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Observação:

Esse livro foi publicado inicialmente em 1987


no Brasil e se encontra esgotado já faz alguns
anos. Assim, divulgá-lo é tarefa para quem
reconhece a importância do mesmo.

A formatação do texto foi, na medida do


possível, preservada.
Sendo assim, o número que consta em cada
página é, efetivamente, a página do livro
publicado, permitindo, assim, que se faça a
referência correta, em caso de se utilizar
algum trecho dessa obra como elemento em
outro texto.

Espero que aquele que ler esse texto por ele se


apaixone assim como eu o fiz!

Brasília, maio de 2008.


Wilhelm Jensen

GRADIVA
Uma fantasia pompeiana

Tradução: Ângela Melim

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
Copyright © 1987 da tradução: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31
sobreloja 20031 Rio de Janeiro, RJ

Todos os direitos reservados.


A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui
violação do copyright. (Lei 5.988).

Produção editorial
Revisão: Cláudio Estrella (copy); Andréa Rodrigues, Nair Dametto, Nanei
Ribeiro (tip.);
Diagramação: Celso Bivar;
Composição e Arte-final: Linolivro
Composições Gráficas Ltda.;
Arte-final de capa: António Sampaio;
Impressão: Gráfica Pertinho Cavalcanti Ltda.
ISBN: 85-85061-80-4

COLEÇÃO: TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE


Diretores: Marco António Coutinho Jorge Octavio de Souza

Psicanálise - uma ciência?


Questão desde sempre respondida pela afirmativa, encontra sua
problematização no ensino de Jacques Lacan. Se a transmissibilidade
na ciência pode ser formulada através de indicações técnicas
intersubjetivamente testáveis, o particular do caso a caso da clínica
psicanalítica derroga de saída a viabilidade do projeto.
Um transmissível que considere a perda de verdade inerente à
instalação do saber é o que requer do psicanalista a reinvenção perene
da própria psicanálise.
Prática de enunciação, cuja teoria - produzida a partir da ignorância
que aflige o ser falante face às questões cruciais da morte, do sexo, do
nascimento e da loucura, ganha cidadania junto aos enunciados
científicos.
É o testemunho desta intrusão virulenta do sujeito nos pressupostos
objetivantes da ciência que a coleção Transmissão da Psicanálise
quer trazer ao leitor.
GRADIVA
uma fantasia pompeiana

Publicado originalmente em 1903, Gradiva — uma fantasia


pompeiana, romance do escritor alemão Wilhelm Jensen (1837—
1911), tornou-se célebre a partir do estudo que Freud lhe consagrou
em 1907, Delírios e Sonhos na "Gradiva" de Jensen.

Segundo Lacan, Freud era ávido de literatura, pois ela "lhe servira
para franquear a via desta idéia do inconsciente" e, com efeito, diante
do romance de Jensen, ele se encontra face a uma obra que lhe
permite estabelecer, mais uma vez, um paralelismo, que lhe era tão
caro, entre o procedimento arqueológico e o método psicanalítico:
Gradiva narra a estória de um jovem arqueólogo e de seu tortuoso
reencontro com uma musa de sua infância.

A figura de Gradiva tornou-se, além disso, uma espécie de musa dos


surrealistas (sempre atentos aos trabalhos de Freud), que em sua
imagem mítica aglutinaram as imagens da mulher enquanto ideal. Foi
pintada por Salvador Dali (que chamava sua mulher de Gala Gradiva),
por André Masson, e tornou-se o nome de uma galeria surrealista
inaugurada por André Breton em Paris, em 1937. Em seu ensaio
Gradiva, Breton atribuiu a ela o epíteto "aquela que avança",
originalmente adscrito ao deus da guerra Mars Gradivus.
PRÓLOGO A Prática Freudiana
Marco António Coutinho Jorge
Psicanalista Membro do Colégio Freudiano do Rio de janeiro

Publica-se aqui pela primeira vez em nossa língua o romance Gradiva


— uma fantasia pompeiana do escritor alemão Wilhelm Jensen
(1837-1911). Publicado originalmente em 1903, Gradiva tornou-se
célebre a partir do estudo que Freud lhe consagrou em 1907, Delírios
e sonhos na "Gradiva" de Jensen. (1)

Sendo a primeira análise sistemática de uma obra literária que


empreendeu — a outra é seu estudo sobre as Memórias de um doente
dos nervos, (2) de Daniel Paul Schreber —, o trabalho de Freud sobre
Gradiva ocupa um lugar particular em sua obra, o qual se tentará
aqui apenas indicar.

A importância que Freud atribuía à literatura é salientada por Lacan


que observa, numa entrevista com estudantes da Universidade de
Yale, que Freud era ávido de literatura, pois ela “lhe servira para
franquear a via desta idéia do inconsciente”. (3) Para exemplificar a
legitimidade de tal avidez, basta simplesmente que se reconheça o
lugar nuclear do mito edipiano, tomado emprestado à tragédia de
Sófocles, na elaboração freudiana.

Considerando-se que a obra monumental de Freud se encadeia


através de passos exercidos em múltiplas direções, para situar
Gradiva no conjunto de seus escritos cabe a pergunta: qual o passo
que

5
Freud dá com esse texto? A resposta para tal questão, e sobretudo em
se tratando de Freud, não é certamente unívoca, e variadas foram as
tentativas de situar Gradiva em sua obra.

James Strachey, editor inglês da Edição Standard das Obras


Completas de Freud, ressalta o fascínio sempre exercido sobre este
pela arqueologia, em geral, e por Pompéia, em particular, fascínio
exercido pela "analogia existente entre o destino histórico de Pompéia
(o soterramento e a posterior escavação) e os eventos mentais que lhe
eram tão familiares: o soterramento pelo recalcamento e a escavação
pela análise".(4)

Com efeito, em muitas passagens, Freud estabelece um verdadeiro


paralelismo existente entre o procedimento do arqueólogo e o método
psicanalítico. Assim é que num dos derradeiros ensaios que escreveu,
Construções em análise, Freud se vale dessa comparação. Afirma ele
aí que o trabalho de construção do analista, "ou, se se preferir, de
reconstrução, assemelha-se muito à escavação, feita por um
arqueólogo, de alguma morada que foi destruída e soterrada, ou de
algum antigo edifício".(5)

No entanto, se os dois processos são idênticos, Freud ressalta uma


diferença fundamental que os distingue, o fato de que aquilo com que
o analista trabalha "não é algo destruído, mas algo que ainda está
vivo".(6) Se por um lado o analista "trabalha em condições mais
favoráveis do que o arqueólogo, já que dispõe de material que não
pode ter correspondente nas escavações, tal como as repetições de
reações que datam da tenra infância e tudo o que é indicado pela
transferência em conexão com essas repetições",(7) isso significa que
ele se defronta "regularmente com uma situação que, com o objeto
arqueológico, ocorre apenas em circunstâncias raras, tais como as de
Pompéia

6
ou da tumba de Tutancâmon. Todos os elementos essenciais estão
preservados; mesmo coisas que parecem completamente esquecidas
estão presentes, de alguma maneira e em algum lugar, e simplesmente
foram enterradas e tornadas inacessíveis ao indivíduo. Na verdade,
como sabemos, é possível duvidar de que alguma estrutura psíquica
possa realmente ser vítima da destruição total. Depende
exclusivamente do trabalho analítico obtermos sucesso em trazer à luz
o que está completamente oculto".(8)

O fato decisivo, revelado pela experiência psicanalítica, de que nada é


destruído no psiquismo — tudo nele sendo preservado, e o
esquecimento não implicando de modo algum no total
desaparecimento, mas sendo, antes disso, efeito da ação do
recalcamento que a análise visa suplantar — é o que impõe, pois, a
Freud, os limites desta comparação entre a arqueologia e a
psicanálise.

Freud já tematizara este problema amplamente em O mal-estar na


civilização, onde ele afirma: "No domínio da mente, por sua vez, o
elemento primitivo se mostra tão comumente preservado, ao lado da
versão transformada que dele surgiu, que se faz desnecessário
fornecer exemplos como prova".(9) Procedendo ainda aí a uma
comparação com os achados arqueológicos, e partindo da questão
sobre o que teria restado na Roma atual da Roma Antiga para abordar
o esquecimento de que se trata no processo do recalcamento, Freud
postula que "só na mente é possível a preservação de todas as etapas
anteriores, lado a lado com a forma final (...)".(10)

Vê-se, assim, o relevo dado por Freud à analogia da psicanálise com a


arqueologia. E, ao ter, segundo Ernest Jones, sua atenção chamada
por Jung para a obra de Jensen, Freud vai se deparar precisamente

7
com a história de um arqueólogo cujo "esquecimento das mulheres",
por assim dizer, obterá sua cura exatamente em Pompéia!

Voltemos, então, à pergunta que formulamos de início, para dizer que


com seu trabalho sobre Gradiva Freud dá mais um lance em seu
projeto de dimensionar amplamente o espectro de ação de sua teoria
do inconsciente, a qual ele quis, desde seus primórdios — veja-se
apenas, a esse respeito, sua Psicopatologia da vida cotidiana, obra
cujo título é um violento escândalo para a tradicional oposição clínica
entre o normal e o patológico —, situar mais além do contexto restrito
da prática clínica com neuróticos.

Trata-se nesse ponto precisamente da extensão da intervenção da


psicanálise, de que falará Lacan em sua Proposição de 9 de outubro
de 1967", referência que tem sido retomada entre nós de modo mais
vigoroso pelo ensino de M. D. Magno, ao tratar do que denomina de
prática freudiana: "A prática freudiana transcende os limites da
chamada relação analítica. A prática freudiana inclui não apenas a
prática analítica enquanto tal, como também a incidência e a
interferência do discurso psicanalítico nos mais diversos campos do
saber".(12)

Ao considerar Gradiva como "um estudo psiquiátrico",(13) Freud


afirma que se trata nesta obra de "um caso clínico e [da] história de
uma cura que parecem concebidos para ressaltar determinadas
teorias fundamentais da psicologia médica".(14) Ê nessa medida que
Lacan afirma que Freud via "na arte uma espécie de testemunho do
inconsciente" (15) em seu trabalho sobre Gradiva, Freud se encontra
precisamente diante da possibilidade de demonstrar sua teoria do
inconsciente ilustrando-a com a limpidez da qual é capaz uma
narrativa poética. Tratava-se aqui

8
para Freud, mais uma vez, de recolher os achados do escritor e do
poeta, achados cuja emergência na obra é tornada possível pela
especial aptidão do artista para se deixar perpassar pelos elementos
que, estruturados como uma linguagem — como sabemos a partir de
Lacan —, apontam para o inconsciente, para a Outra Cena.

São tais elementos que desejamos com esta publicação trazer ao leitor
brasileiro, em geral, e ao psicanalista, em particular.

Rio de Janeiro, novembro de 1986

NOTAS:

1. .Freud, S., Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen, Edição Standard Brasileira das Obras
Completas, Rio, Imago, 1976, vol IX, pp. 13-98.
2. Schreber, D. P., Memórias de um doente dos nervos, Rio, Graal, 1985.
3. Lacan, J., "Conférences et entretiens dans dês universités nord-américaines", Scilicet 6/7,
Paris, Seuil, 1976, p. 33.
4. Freud, S., Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen, op. cit., Nota do editor inglês, pp. 14-
15.
5. Freud, S., Construções em análise, Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Rio,
Imago, 1975, vol. XXIII, p. 293.
6. Freud, S., Construções em análise, op. cit., p. 293.
7. Freud, S., Construções em análise, op. cit., pp. 293-294.
8. Freud, S., Construções em análise, op. cit., p. 294.
9. Freud, S., O mal-estar na civilização, Edição Standard Brasileira das Obras Completas,
Rio, Imago, 1974, vol. XXI, p. 86.
10. Freud, S., O mal-estar na civilização, op. cit., p. 89.
íl. Lacan, J., "Proposition du 9 octobre 1967 sur lê psychanaliste
de 1'École", Scilicet l, Paris, Seuil, 1968, pp. 14-30.
12. Magno, M. D., "Alguns apontamentos sobre a garantia e o passe", Revisão l, Rio, Aoutra,
p. 161.
13. Freud, S., Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen, op. cit., p. 48.
14. Freud, S., Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen, op. cit., p. 50.
15. Lacan, J., "Conférences et entretiens dans dês universités nord-américaines", op.
cit., p. 21.

9
Ao visitar uma das grandes coleções romanas de antiguidades,
Norbert Hanold descobrira um baixo-relevo que o impressionara
excepcionalmente. Alegrou-se de poder encontrar, na volta à
Alemanha, uma excelente cópia dele. Alguns anos depois, esta se
encontrava em lugar privilegiado em seu gabinete de trabalho, cujas
paredes estavam quase que inteiramente revestidas de prateleiras
cobertas de livros; a luz caía diretamente sobre o relevo, e o sol poente
o iluminava durante alguns instantes. A escultura representava, de pé,
uma mulher caminhando, mais ou menos num terço do seu tamanho
natural. Ela era jovem, não criança e, evidentemente, ainda não
mulher, porém uma virgem romana de cerca de vinte anos. Em nada
lembrava os baixos-relevos tão freqüentes de Vênus, de Diana, ou de
alguma outra divindade do Olimpo, nem Psique ou outra Ninfa. Havia
nela alguma coisa da humanidade contemporânea — expressão que
não é tomada num sentido desfavorável — atual, de algum modo,
como se o artista, ao invés de lançar, como teria feito hoje, um croquis
sobre uma folha de papel, tivesse esboçado um modelo de argila, na
rua, passando rapidamente ao lado da própria vida. O corpo era
grande e esbelto, os cabelos frouxamente ondulados e quase que

11
completamente cobertos por um xale. O rosto, um pouco pequeno,
não tinha fascínio especial, mas era evidente que não buscava tal
efeito. Seus traços finos exprimiam uma tranqüila indiferença em
relação aos acontecimentos externos, o olho, que olhava reto para
frente, testemunhava uma visão excelente e intacta, e de um voltar-se
pacífico dos pensamentos para si mesmo. Essa jovem mulher, que não
atraía pela beleza de suas formas, possuía, no entanto, uma coisa rara
nas esculturas da antiguidade, o encanto simples e natural de uma
moça, encanto que parecia ser a inspiração de sua própria vida. Ele se
devia, sem dúvida, à postura em que ela era representada. Com a
cabeça ligeiramente inclinada, tinha recolhida na mão esquerda uma
parte do vestido extraordinariamente pregueado, que lhe caía da nuca
aos calcanhares, e descobria assim seus pés nas sandálias. O pé
esquerdo estava à frente, e o direito, disposto a segui-lo, só tocava o
chão com a ponta dos artelhos, enquanto que a planta e o calcanhar
elevavam-se quase verticalmente. Esse movimento exprimia ao
mesmo tempo a leveza ágil de uma jovem caminhando e um repouso
seguro de si, o que lhe dava, ao combinar uma espécie de vôo
suspenso com um andar firme, aquele encanto particular.

De onde ela vinha? Para onde ia? O doutor Norbert Hanold, professor
de arqueologia, não encontrava, na verdade, do ponto de vista da
ciência que ensinava, nada de particularmente notável naquele baixo-
relevo. Não era uma escultura da época áurea, mas antes um tableau
de genre ao gosto romano, e ele não conseguia explicar a si mesmo o
que é que tinha chamado tanto a sua atenção; mas alguma coisa o
havia atraído e ele ficou, desde o primeiro momento, com aquela
impressão. Para designar a escultura, lhe tinha dado o nome, para si

12
mesmo, de Gradiva, aquela que avança. Esse prenome, que os poetas
antigos reservam para Mars Gradivus, para o deus da guerra que vai à
batalha, parecia a Norbert, entretanto, o mais característico do
movimento da jovem, ou, empregando uma expressão
contemporânea, da jovem dama, pois ela evidentemente não era de
origem da classe inferior, mas filha de um nobre, pelo menos de um
honesto loco ortus. Talvez, como sua aparência o sugerisse
involuntariamente, fosse filha de um magistrado patrício que
desempenhava suas funções sob os auspícios de Ceres, e ia-se ela,
para uma atividade qualquer, rumo ao templo da Deusa.

Mas o jovem arqueólogo não conseguia imaginá-la no contexto de


Roma, aquela grande cidade cheia de barulho. Aquela postura, aquele
andamento calmo e plácido, pareciam-lhe pertencer não àquela
agitação múltipla onde ninguém presta atenção no outro, mas a uma
pequena aldeia, onde todos a conheceriam, onde todos parariam para
dizer ao acompanhante: é Gradiva (não conseguia pôr aqui seu
verdadeiro nome), a filha de... Ela tem o andar mais bonito entre
todas as moças da nossa cidade.

Estas palavras se tinham fixado em seu espírito, como se de fato as


tivesse escutado e tinham transformado uma hipótese numa quase
convicção. Na ocasião de sua viagem à Itália, ele ficou algumas
semanas em Pompéia, para estudar as ruínas e, de volta à Alemanha,
de repente lhe pareceu, um dia, que a mulher representada no baixo-
relevo caminhava sobre as lajes que foram descobertas, e que estavam
dispostas especialmente para os pedestres. Elas permitiam que se
atravessasse a rua com os pés secos, em tempo de chuva, ainda assim
deixando um intervalo para as rodas dos carros. Ele a via passando
um dos pés por sobre o intervalo que separa duas pe-

13
dras, enquanto que o outro se dispunha a segui-lo. Ao mesmo tempo
em que ele contemplava a menina andando, tudo aquilo que o
cercava, perto ou longe, se projetava na realidade diante de sua
imaginação. Graças a seu conhecimento de antiguidades, aquela
mulher fazia nascer nele a visão de uma rua comprida, estendendo-se
entre duas fileiras de casas a que se misturavam os numerosos
edifícios dos templos e dos pórticos. O comércio e a indústria
mostravam tabernae offidnae cauponae, butiques, ateliês e tavernas.
Os padeiros exibiam seus pães, as ânforas de argila afundadas em
mesas de mármore ofereciam todo o tipo de coisa útil para o lar e a
cozinha; num canto de rua, uma mulher sentada oferecia aos
compradores legumes e frutas em cestos. Tinha tirado a casca de meia
dúzia de grandes nozes para atrair os fregueses, mostrando que o
interior de seus frutos era irrepreensível e fresco. Em toda parte onde
a vista pousava, descobria cores vivas: as muralhas alegremente
coloridas, as colunas com capitéis vermelhos e amarelos, tons
deslumbrantes e resplandecentes sob o esplendor do sol de meio-dia.
Mais adiante, sobre um pedestal elevado, erguia-se uma estátua de
uma brancura gritante que, através das brumas de calor que faziam
tremer o ar, parecia contemplar o Vesúvio, que ainda não tinha a
forma de cone acastanhado e solitário que tem hoje, mas estava
recoberto, até o pico rude e despojado, por uma vegetação de um
verde ofuscante. Pela rua não passava ninguém além de jovens que
procuravam sombra. O calor estival do meio-dia paralisava o tráfego
em outras horas tão intenso. No meio de tudo isso, Gradiva
caminhava pelas lajes espaçadas, fazendo fugir um lagarto verde e
ouro.

Era assim que aquilo tudo revivia diante dos olhos de Norbert
Hanold; entretanto, a contempla-

14
cão diária daquele rosto havia feito nascer nele uma outra hipótese. O
ar geral de seus traços lhe parecia ser, cada vez mais, não de raça
latina ou romana, mas grega. E pouco a pouco ele adquiria a certeza
dessa origem helênica. A antiga colonização do sul da Itália pela
Grécia lhe fornecia uma série de motivos suficientes, e ele daí deduzia
uma nova série de agradáveis suposições. A jovem domina talvez
tivesse falado grego em casa e fosse educada, nutrida, pela educação
grega. E seu rosto, bem examinado, o confirmava, pois sob a sua
modéstia se ocultava, sem dúvida, prudência e uma inteligência fina e
cheia de espírito.

Essas suposições e essas descobertas não podiam, no entanto, bastar


para motivar um real interesse arqueológico por aquela pequena
escultura, e Norbert reconhecia que era outra coisa completamente
diferente, à margem da ciência que ele ensinava, que o levava a se
ocupar dela com tanta freqüência. Tratava-se, para ele, de chegar a
um juízo crítico: o andar de Gradiva, tal como o havia reproduzido o
artista, estava de acordo com a vida real?

Mas não conseguia tirar a limpo essa questão, e sua rica coleção de
obras de arte da antiguidade, nesse assunto, não lhe trazia auxílio
algum. A posição quase vertical do pé direito lhe parecia exagerada.
Toda vez que ele próprio fazia essa experiência, o pé que ficava atrás
durante seu movimento encontrava-se sempre em posição menos
vertical; formulando matematicamente, durante o breve instante em
que o pé permanecia no lugar, o seu só fazia, em relação ao chão, um
semi-ângulo reto, o que lhe parecia ao mesmo tempo mais natural e
mais apropriado ao mecanismo do andar. Ele chegou a se aproveitar,
uma vez, da presença de um jovem anatomista amigo seu, para lhe
colocar a questão, mas este também foi

15
incapaz de resolvê-la definitivamente, porque nunca tinha feito
observações sobre o tema. Repetida a experiência, o amigo chegou ao
mesmo resultado, mas acrescentou que não saberia dizer se o andar
feminino se distinguia do masculino, e a questão não foi solucionada.

Apesar disso, essa discussão não foi infrutífera, na verdade levou


Norbert Hanold a uma coisa que ainda não lhe tinha ocorrido: decidir
fazer ele próprio observações junto à natureza, a fim de esclarecer o
caso. Mas isso o obrigava a uma ação que lhe era totalmente estranha.
O sexo feminino não existia até aqui para ele, a não ser nas espécies
do bronze ou do mármore, e ele nunca tinha dado a menor atenção a
suas representantes contemporâneas. Mas seu desejo de conhecer lhe
inspirava um tal ardor científico que ele se entregou a essa observação
específica, reconhecida como indispensável. Numerosas dificuldades
se interpunham na multidão da grande cidade e não o faziam esperar
resultado, a não ser indo às ruas pouco freqüentadas. Aí também, na
maior parte dos casos, os vestidos longos tornavam o
empreendimento completamente impossível, ainda mais porque
somente as domésticas tinham saias curtas e os sapatos grosseiros que
elas usavam, na maioria, não permitiam que entrassem em
consideração para a solução do problema. Entretanto, ele continuou
com perseverança suas observações, em tempo seco assim como em
tempo úmido. Percebeu que este último lhe era mais propício, pois
obrigava as damas a levantar a barra das saias. O modo como ele
examinava os pés delas devia inevitavelmente desagradar algumas
mulheres; às vezes, a fisionomia contrariada de uma das que ele assim
olhava mostrava que se tomava o seu comportamento como uma
audácia ou uma grosseria; às vezes também, sendo Norbert um moço

16
de aspecto bastante sedutor, uma espécie de encorajamento se lia em
alguns olhos; mas ele não compreendia o sentido desses olhares.
Pouco a pouco, sua perseverança ia sendo recompensada. Colecionava
um número considerável de observações e encontrava entre elas
numerosas diferenças. A maioria das mulheres deixava escorregar a
planta do pé quase sobre o chão, e havia poucas que a erguiam
obliquamente numa posição mais graciosa. Mas nenhuma delas tinha
o andar de Gradiva, o que o satisfez bastante: ele não se tinha
enganado em seu exame do baixo-relevo, do ponto de vista
arqueológico. Mas, suas observações o contrariaram, porque ele
achava bonita a posição vertical do pé suspenso e lamentava que ela
apenas tivesse sido obra da imaginação e da vontade do escultor e não
correspondesse à realidade.

Pouco tempo depois de suas observações do pé feminino o terem


levado a essa conclusão, ele teve, uma noite, um sonho horroroso e
aterrador. Estava na antiga Pompéia, precisamente no dia 24 de
agosto de 79, o ano da terrível erupção do Vesúvio. O céu envolvia a
cidade, destinada à destruição, com um sombrio manto de fumaça. As
chamas ardentes da cratera apenas permitiam que se percebesse
qualquer objeto numa luz vermelho-sangue; todos os habitantes,
presas de um terror desconhecido, apavorados, buscavam salvação na
fuga, sozinhos ou em grupos confusos. Os lapilli e a chuva de cinza se
abatiam em torno de Norbert, mas como acontece milagrosamente
nos sonhos, ele não era atingido e, do mesmo modo, sentia no ar a
fumaça mortal do enxofre, sem ser por isso impedido de respirar. Ele
se encontrava na orla do Fórum, perto do templo de Júpiter, quando
de repente percebe Gradiva à sua frente, a pouca distância. Até esse
momento, o pensamento de que

17
ela pudesse estar presente nem sequer lhe tinha aflorado, agora, essa
idéia surgia e lhe parecia completamente natural! Gradiva era
pompeiana, morava em sua cidade natal e, com toda certeza, na
mesma época que ele. Ele a reconhecia ao primeiro olhar, a visão que
tinha dela era perfeitamente exata, até o mínimo detalhe, mesmo o
seu andar, que ele designava com a expressão lente festinans. Ela
atravessava assim, com o seu andar macio e tranqüilo, o lajeado do
Fórum e se dirigia ao templo de Apolo, em tranqüila indiferença para
com tudo o que a cercava, indiferença que lhe era característica.
Parecia que ela não se apercebia do destino que se abatia sobre a
cidade, absorvida unicamente em seus pensamentos; ele o esquecia
também, pelo menos por alguns momentos, o terrível acontecimento,
e procurava, ao pensamento de que a viva realidade da moça fosse
desaparecer em breve, gravar o mais profundamente possível a sua
imagem na memória. Mas a todo momento lhe vinha à mente que se
ela não fugisse rapidamente, tornar-se-ia vítima da catástrofe geral, e
um terror violento arrancou dele um grito de aviso. Ela o ouviu, pois
voltou a cabeça em sua direção, de tal modo que ele viu o rosto um
tanto de lado, mas expressando uma incompreensão total; sem mais
prestar atenção, ela retomou o caminho no mesmo rumo anterior. Seu
rosto descoloriu-se como se ela se tivesse transformado em mármore;
ela continuou ainda seu caminho até o pórtico do templo, mas, aí
chegando, sentou-se entre as colunas, sobre um degrau onde
lentamente encostou a cabeça. Agora, os lapilli caíam em tal número
que se pareciam com uma cortina completamente opaca. Apressando-
se na direção dela, ele encontrou o caminho do local onde ela havia
desaparecido de sua vista, e lá estava ela deitada, sobre o grande
degrau, protegida pela sa-

18
liência do telhado. Parecia dormir, estendida, mas não respirava mais;
os vapores do enxofre evidentemente a tinham sufocado.

Vindo do Vesúvio, um reflexo vermelho pairava sobre seu rosto que,


as pálpebras fechadas, em tudo se assemelhava ao de uma bela
escultura. Seus traços não eram perturbados nem pelo medo, nem por
qualquer contorção: exprimiam uma calma sobrenatural que se
resignava com tranqüilidade com o irreversível. Mas eles logo
tornaram-se mais indistintos, porque agora o vento ali levava a chuva
de cinza, que se estendia sobre eles como um véu de gaze cinzenta
para em seguida fazer desaparecerem os últimos vestígios do rosto, e
que terminava, como uma tempestade de neve nas regiões do norte,
por cobrir todo o corpo com um manto uniforme. De ambos os lados
erguiam-se as colunas do templo de Apolo, mas a chuva de cinza que
rapidamente se acumulava perto delas logo as envolveu até à metade.

Quando o doutor Norbert Hanold despertou, ainda tinha nos ouvidos


os gritos perturbados dos habitantes de Pompéia e o zunido surdo das
vagas do mar agitado se despedaçando. Em seguida, retomou a
consciência; o sol lançava sobre sua cama uma brilhante faixa
dourada. Era uma manhã de abril e o barulho múltiplo da cidade
grande, os gritos dos comerciantes e o ruído dos carros subiam até o
andar em que ele morava. Apesar de tudo, o quadro do sonho, com
todos os detalhes, ainda se encontrava diante de seus olhos abertos, e
da forma mais nítida. Foi preciso algum tempo para que pudesse
libertar os sentidos de um semitorpor e se desse conta de que, na
realidade, não tinha participado na noite anterior da catástrofe
ocorrida cerca de dois mil anos antes no golfo de Nápoles. Um pouco
antes de se vestir, ele havia se livrado mais ou menos da obses-

19
são, mas não conseguia, fazendo uso da razão, evitar a idéia de que
Gradiva tinha vivido em Pompéia e lá fora sepultada no ano de 79.
Sua primeira hipótese se transformava, ao contrário, em convicção, e
esta se unia aos precedentes. Ele olhava melancolicamente, na parede
do quarto, o antigo baixo-relevo, que tinha ganhado para ele uma
nova importância. Era, em certa medida, um monumento funerário,
no qual o artista havia conservado para a posteridade a imagem da
mulher que tinha deixado a existência numa idade tão jovem. Mas
quando a olhava com o espírito bem desperto, a expressão de toda sua
atitude não deixava nenhuma dúvida: de fato ela tinha se deitado, na
noite fatal, para morrer, com uma calma semelhante à que
demonstrara no sonho. De acordo com o antigo provérbio, os
favoritos dos deuses são aqueles que eles fazem com que deixem a
terra na flor da idade.

Norbert, vestido ainda com o roupão leve da manhã, de chinelos,


estava de pé diante da janela aberta e olhava para fora. A primavera,
afinal chegada às regiões do norte, estendia-se lá fora, não se
manifestando, na grande cidade de pedra, a não ser pela leveza do ar e
o azul do céu, mas um prenúncio avisava os sentidos, despertava a
necessidade de lonjuras radiantes, de verdura, de folhas, de perfume
do campo e de canto de passarinhos. O reflexo dela chegava até aqui.
As mulheres do mercado, na rua, tinham enfeitado suas cestas com
flores do prado e, numa janela entreaberta, um canário fazia ressoar
seus cantos. O pobre rapaz se emocionara; ele adivinhava por trás dos
gritos claros do pássaro, apesar de seu tom de triunfo, o desejo
ardente da liberdade, do ar puro e das distâncias.

Mas os pensamentos do jovem arqueólogo não estacionaram aí senão


por um pequeno espaço de

20
tempo: outra coisa os solicitava. Ele percebia agora apenas que não
tinha notado, em particular, se Gradiva, viva, andava assim como a
representava o baixo-relevo e, pelo menos, se andava de modo
diferente das mulheres de hoje. Isso era bem surpreendente, já que
era a origem do interesse científico que ele tinha pelo baixo-relevo,
mas se explicava, por outro lado, pela emoção que sentira diante do
perigo de morte que a ameaçava.

Nesse momento, alguma coisa o tocou bruscamente e, na hora, ele


não pôde discernir de onde vinha o choque. Mas logo reconheceu a
origem. Embaixo, na rua, de costas para ele, andava num passo largo
uma mulher, uma jovem dama, a julgar por seu aspecto e vestuário.
Na mão esquerda segurava a saia ligeiramente suspensa, que só lhe
chegava aos calcanhares, e ele teve de repente a impressão de que,
durante o caminhar, a planta daquele pé fino que havia ficado para
trás erguia-se verticalmente durante um breve instante, a ponta
roçando a superfície do solo; parecia, pelo menos, que era assim, pois
a olhando de tão alto e de uma tal distância, não podia ter certeza.

De repente, Norbert Hanold se encontrava na rua, sem saber bem


como chegara ali. Tinha se precipitado como um menino desliza pelo
corrimão para descer a escada, e corria entre as charretes, os carros e
os passantes. Estes últimos o olhavam com espanto e alguns deixavam
escapar exclamações meio debochadas, meio engraçadas. Ele nem
procurava saber que era com ele que falavam, buscava a jovem com o
olhar e pensou distinguir o vestido dela a algumas dúzias de passos,
mas não pôde perceber que a parte superior, a metade inferior e os
pés estavam ocultos pela multidão apressada na calçada. Nesse
momento, uma velha vendedora de legumes,

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obesa, puxou-o pela manga e, fazendo-o parar, disse-lhe, meio rindo:

— Diga, filhinho, encheu a cara esta noite e agora está procurando a


cama na rua. Faria melhor se voltasse para casa e se olhasse no
espelho.

O riso que estourou à sua volta lhe confirmou que não estava em
trajes dignos de se apresentar em público e o convenceu de que tinha
se dirigido para fora do quarto sem considerações. Isso o atemorizou,
porque se preocupava com a aparência e, abandonando seus projetos,
voltou rapidamente para o apartamento. Os sentidos perturbados pelo
sonho eram ainda, evidentemente, joguete de falsas aparências, pois a
última coisa que ele notou foi que os risos e gritos por um instante
fizeram a jovem voltar a cabeça e ele jurava ter visto, não um rosto
desconhecido, mas aquele mesmo que Gradiva mostrara quando o
tinha olhado no sonho.

O doutor Norbert Hanold encontrava-se na agradável situação de,


estando à frente de uma fortuna considerável, ser dono soberano de
seus feitos e gestos, e se algum gosto se revelava nele, não tinha
necessidade de que fosse aprovado por nenhuma outra autoridade
além de si mesmo. Nisso se distinguia muito favoravelmente do
canário, que só podia exprimir em vão, através de seus gritos, sua
necessidade natural de deixar a gaiola pelas alturas ensolaradas; no
entanto, não deixava de compartilhar semelhanças com

22
o pássaro. Com efeito, o jovem arqueólogo não tinha nascido na
liberdade da natureza nem tinha sido criado nela, mas ao contrário,
desde seu nascimento tinha sido fechado pelas grades da gaiola com a
qual o cercara a tradição familiar, a boa educação e as disposições
elaboradas pelos outros em relação a ele. Desde a tenra infância, não
havia dúvida, na casa de seus pais, enquanto filho único de um
professor de universidade que tinha feito descobertas relativas à
antiguidade, tinha sido destinado a conservar, e se possível aumentar,
o lustro do nome de seu pai, seguindo o mesmo caminho, e via a
sucessão nessa carreira como tarefa evidente para o seu futuro. Tendo
ficado só após a morte dos pais, ateve-se fielmente a essa idéia; fez a
viagem obrigatória à Itália depois de passar por excelentes exames de
filologia e abundantemente contemplar os originais das obras-primas
da escultura antiga, das quais até então tinha visto apenas
reproduções. Em nenhum outro lugar poderia encontrar algo mais
instrutivo que as coleções de Roma, Nápoles e Florença, e podia
felicitar-se por ter utilizado o tempo de sua estada tirando o maior
proveito para a sua ciência. Voltou ao seu país inteiramente satisfeito,
para mergulhar nos estudos com as novas aquisições. Não lhe ocorria
senão vagamente que afora os objetos que testemunhavam um
passado longínquo, pudesse existir um presente em torno dele. O
mármore e o bronze não eram para ele matérias mortas, mas a única
coisa realmente viva, a que exprimia o valor e a razão de ser da
existência humana. Assim ele se mantinha entre suas paredes
cobertas de livros e de quadros, sem necessidade de qualquer
relacionamento com os outros homens, pelo contrário, evitando-os,
como se constituíssem uma pura perda de tempo, resignando-se, no
máximo, contra a sua vontade, ao tributo inevi-

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tável de algumas obrigações mundanas, às quais era constrangido
pelas antigas relações de sua família. Mas se sabia que ele freqüentava
esse tipo de reunião sem ver e sem ouvir o que se passava à sua volta,
que ele ia embora a qualquer pretexto, logo depois do almoço ou do
jantar, se fosse possível, e que jamais cumprimentava na rua uma
pessoa que tivesse estado à mesma mesa com ele. Tudo isso não
permitia que ele fosse visto sob prisma muito favorável, sobretudo
pelas jovens mulheres, pois se acontecia de encontrar-se com uma
delas, mesmo que, por exceção, tivesse trocado com ela algumas
palavras, ele a olhava como uma estranha figura desconhecida e não a
cumprimentava.

Sendo a própria arqueologia uma ciência um tanto bizarra, ao aliar-se


com o comportamento de Norbert Hanold produzira uma curiosa
mistura e não lhe granjeou grande simpatia da parte dos outros, coisa
que em nada lhe havia ajudado a usufruir da existência, hábito tão
próprio da juventude. Mas, por uma espécie de vigilante atenção, a
natureza lhe tinha posto no sangue, como uma compensação e como,
de certa forma, um corretivo de tipo completamente oposto à ciência,
uma imaginação muito viva, e que se expressava nele não só em
sonho, mas muitas vezes em estado de vigília, o que, na realidade, não
predestinava particularmente o seu espírito a um método grave e
severo de meditação. Esse dom era outro ponto de semelhança em
relação ao canário. Aquele canário, na realidade, se encontrava no
cativeiro e jamais tinha conhecido outra coisa além da gaiola que o
aprisionava, mas levava consigo, apesar disso, o sentimento de que
alguma coisa lhe faltava e exprimia essa necessidade do desconhecido
por meio da garganta. Também Norbert Hanold compreendia aquele
pássaro e, de volta a seu quarto, outra vez se

24
condoía dele, acudindo de novo à janela. Era ao mesmo tempo afetado
pelo sentimento de que também a ele faltava qualquer coisa, sem que
pudesse dizer com certeza o que era: meditar sobre este último ponto
de nada lhe servia; o ar leve da primavera, os raios do sol, o espaço
perfumado lhe punham no espírito um sentimento vago e o
conduziam à comparação — também ele se encontrava entre as grades
de uma gaiola. Mas logo lhe veio à mente uma idéia que o consolou,
que sua situação era infinitamente melhor que a do canário, pois
possuía asas que nada impedia de voarem rumo à liberdade quando
tivesse vontade.

Poder-se-ia, entretanto, meditar mais tempo sobre essa idéia. Norbert


se dedicava a ela por instantes, mas não ia além do tempo necessário a
se decidir a fazer uma viagem naquela primavera. Intenção que pôs
em execução no mesmo dia. Fez uma mala pequena e, no início da
noite, deitava um último olhar de pena sobre a Gradiva que,
iluminada pelos últimos raios do sol, parecia andar mais levemente
que nunca sobre as lajes invisíveis. Tomou o trem noturno para o
Midi. Embora tivesse sido empurrado para essa viagem por um
sentimento indefinível, a reflexão posterior lhe sugeriu que o
deslocamento devia servir a fins científicos. Notou que tinha
esquecido de decifrar importantes questões relativas a estátuas
preservadas em Roma, e foi para lá que rumou diretamente, sem
parar no caminho, fazendo uma viagem de um dia e meio.

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Pouca gente tem a experiência de, sendo jovem, rica e independente,
ir da Alemanha à Itália, pois as pessoas que possuem esses três
privilégios nem sempre têm acesso ao sentimento de tal beleza.
Principalmente porque tais pessoas, e infelizmente é o que ocorre na
maioria dos casos, fazem essa viagem a dois durante os dias e as
semanas que se seguem a seus casamentos; elas não permitem que
nada passe por seus olhos sem expressar seu contentamento através
de inúmeros epítetos superlativos, mas, no final das contas, nada
trazem de volta além do que poderiam ter descoberto, sentido e
saboreado se tivessem ficado em casa. Esses casais têm o hábito de
voar por sobre os Alpes na direção contrária à dos pássaros
migradores.

Norbert Hanold foi, durante a viagem, cercado de adejos e arrulhos,


como se se encontrasse num pombal ambulante, e foi assim, pela
primeira vez na vida, obrigado a prestar atenção, com o olho e o
ouvido, nas criaturas humanas que o cercavam. Embora essas pessoas
fossem em sua maioria, a julgar pela língua que falavam, alemães,
compatriotas seus, ele não sentia nenhum orgulho pelo fato de eles
pertencerem à sua raça, mas experimentava, antes, o sentimento
contrário pois, com razão, até aqui ele não tinha tentado pensar no
Homo Sapiens — segundo a classificação de Lineu — a não ser o
mínimo possível. Levou em consideração, em primeiro lugar, a parte
feminina dessa espécie zoológica. Era, aliás, a primeira vez que ele via
de tão perto criaturas como aquelas associadas pelo instinto da
aproximação e era incapaz de imaginar o que é que poderia ocasionar
aquela proximidade recíproca. A razão pela qual as mulheres podiam
ter escolhido homens como aqueles lhe parecia incompreensível, mas
o motivo por que os homens tinham feito sua opção por mulheres

26
como aquelas lhe parecia ainda mais misterioso. Cada vez que erguia
a cabeça era obrigado a deixar seu olhar cair sobre o rosto de uma
delas e não encontrava nenhum detalhe que desse prazer ao olho por
sua forma agradável ou que exprimisse uma alma terna ou
espirituosa. Com certeza lhe faltava algum padrão para avaliá-los, pois
não se pode comparar o sexo feminino contemporâneo com a sublime
beleza das obras antigas, mas ele tinha a vaga sensação de que não era
responsável pela injustiça desse método e de que esses rostos não
possuíam algo que ele tinha o direito de exigir no dia-a-dia. Também
refletiu durante algumas horas acerca da atitude extraordinária dos
homens e chegou à conclusão de que, se dentre todas as loucuras
humanas, o primeiro lugar cabe sempre ao casamento, como a maior
e a mais inconcebível, conviria, no entanto, reservar o cetro da
loucura a essas absurdas viagens de lua-de-mel à Itália.

Mais uma vez se recordou do canário que tinha deixado na prisão,


pois ele estava também numa gaiola, e em torno dele passavam
apressados os rostos dos jovens casais, tão felizes quanto vazios de
expressão, e entre eles somente de quando em quando conseguia
olhar pela janela. Aquilo que desfilava no exterior, diante de seus
olhos, lhe provocava uma impressão completamente diferente da que
recebera alguns anos antes, o que podia muito bem se explicar pela
situação na qual se encontrava. A folhagem das oliveiras o
deslumbrava com maior esplendor, os ciprestes e os pinheiros
isolados que se recortavam aqui e ali no céu lhe mostravam contornos
ao mesmo tempo mais belos e mais curiosos, as aldeias inclinadas
pelas montanhas lhe pareciam mais encantadoras e cada uma delas,
como uma pessoa, parecia ter uma fisionomia diferente. Ele viu no
lago Trasi-

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mene um azul úmido que nunca tinha notado na superfície de água
nenhuma. Veio-lhe à mente que a estrada estava cercada dos dois
lados por uma natureza que lhe era estranha, como se tivesse sido
obrigado a atravessá-la na luz de um crepúsculo perpétuo ou durante
uma chuva cinzenta e a visse pela primeira vez sob cores opulentas
douradas pelo sol. Às vezes, se surpreendia com um desejo do qual
não havia suspeitado até então; o de descer e poder encontrar o
caminho que deveria fazer a pé, para tal ou tal lugar, porque lhe
parecia que alguma coisa particular e de certa forma misteriosa ali se
ocultava. Mas não se deixava seduzir por sugestões tão loucas, o
direitíssimo o conduzia direto a Roma, onde o acolheu, mesmo antes
de sua chegada, todo o mundo antigo, com as ruínas do templo da
Minerva Medica. Tendo deixado a gaiola cheia de obstáculos e
atingido a liberdade, estabeleceu-se primeiramente num hotel que já
conhecia, a fim de poder procurar sem pressa um apartamento
particular a seu gosto.

Não encontrou um que lhe conviesse durante todo o dia seguinte e


teve de voltar a seu albergo e deitar-se, cansado que estava do ar
italiano, ao qual não estava acostumado, da vivacidade do sol, da
longa caminhada e do barulho da rua. Já começava a perder a
consciência e dormir quando a entrada no quarto vizinho de dois
viajantes que o tinham alugado naquela mesma manhã o tirou do
sono. O quarto se comunicava com o de Norbert através de uma porta,
protegida por um armário. As vozes que atravessavam a parede fina
eram as de um homem e uma mulher, que evidentemente pertenciam
à classe dos pássaros migradores da primavera, os alemães com os
quais viajara na véspera desde Florença. A disposição dos dois parecia
dar um aval muito favorável à cozinha do hotel e era sem dúvida à boa
qualidade

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do vinho castelli romani que deviam, muito nitidamente, a troca de
sentimentos em alemão do norte.
— Meu adorável Augusto!
— Minha adorável Greta!
— Outra vez um para o outro!
— Sim, enfim sós!
_ Ainda devemos nos preocupar com amanhã? _ Veremos no
Baedeker à hora do café da manhã o que nos falta fazer.
— Meu Augusto querido, você me agrada mais que o Apolo do
Belvedere.
— Eu pensei a mesma coisa, minha doce Greta, você é muito mais
linda que a Vênus Capitolina.
_ O vulcão que vamos escalar fica perto daqui?
_ Não, para chegar lá, acho que teremos de fazer uma viagem de trem
de algumas horas.
— Se ele começasse a entrar em erupção exatamente no momento em
que nós estivéssemos no meio, o que você faria?
_ Não teria outra idéia senão a salvar e tomaria você nos braços,
assim.
— Não se fira com um alfinete!
_ Mas eu não posso imaginar coisa mais doce que derramar sangue
por você.
— Meu querido Augusto!
— Minha adorável Greta!

Assim terminou, no momento, a conversa. Norbert ainda ouviu um


barulho vago e o arrastar de cadeiras, depois voltou a mergulhar em
seu meio-sono. Este o conduziu a Pompéia no momento da erupção
do Vesúvio. Uma agitação preocupada reinava em torno dele, homens
em fuga apressavam-se dos seus lados e de repente ele percebeu o
Apolo do Belvedere levando a Vênus Capitolina. Pegava-a e a colocava
numa sombra obscura que dissimulava um ob-

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jeto qualquer. Devia ser um carro ou carroça no qual a iria levar, pois
dali provinha um rangido. Esse evento mitológico não surpreendia
muito o jovem arqueólogo, mas o que lhe parecia digno de atenção era
o fato de o casal não empregar o grego, mas o alemão, e de ele os ouvir
dizer um tempo depois, quase retomando consciência:

— Minha adorável Greta!


— Meu querido Augusto!

As imagens oníricas em seguida se transformavam completamente.


Em torno do sonhador agora reinava um pesado silêncio no lugar dos
barulhos agitados e a fumaça e o brilho das chamas foram
substituídos pela luz quente e clara do sol que iluminava as ruínas da
cidade soterrada. Esta se transformava aos poucos e se tornava um
leito de lençóis brancos iluminados por raios dourados que aos poucos
subiam até os olhos do adormecido. Norbert Hanold despertou no
meio do esplendor cintilante de uma jovem manhã romana.

Alguma coisa, com efeito, havia mudado nele, sem que ele pudesse
dizer o quê, pois de novo era presa daquele sentimento
particularmente angustiante de que estava preso em uma gaiola que,
desta vez, chamava-se Roma. Quando abriu a janela, dúzias de
mercadores lançaram a seu ouvido gritos ainda mais agudos que em
sua Alemanha natal. Ele nada tinha feito além de vir de uma massa de
pedras cheia de barulho a outra, e uma apreensão inquietante e
misteriosa o afastava das coleções de antiguidades, onde desejava
reencontrar-se com o Apolo do Belvedere e a Vênus Capitolina. Do
mesmo modo, depois de uma breve deliberação, abandonou seu
projeto de procurar para si um apartamento, fez rapidamente a mala e
tomou o trem para ir adiante, mais para o sul. Fez essa viagem, para
evitar os casais insepará-

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veis, na terceira classe, esperando, por outro lado, ter a companhia
daqueles tipos do povo italiano que antigamente serviram de modelo
às obras de arte, coisa de que tiraria proveito para a ciência que
estudava. Mas não viu nada além da sujeira popular, o fedor
assustador dos charutos da região, uns homenzinhos tortos
gesticulando braços e pernas e umas mulheres perto das quais aquelas
que viu emparelhadas com seus compatriotas lhe pareciam, quando as
revia na memória, deusas do Olimpo.

Dois dias depois, Norbert Hanold estava vivendo num quarto meio
duvidoso, balizado de camera no Hotel Diomedes, na frente do
Ingresso, escavações de Pompéia guardadas por eucaliptos. Tivera a
intenção de passar um bom tempo em Nápoles para aí estudar de
novo com cuidado os afrescos e as esculturas do Museo Nazionale,
mas lhe ocorreu a mesma coisa que em Roma. Na sala onde se
reúnem os utensílios do lar de Pompéia, viu-se no meio de uma
nuvem de vestidos femininos de viagem da última moda que, sem
dúvida, sucederam imediatamente a virginal auréola dos vestidos de
noiva em cetim, seda ou gaze. Cada uma das mulheres que os vestia
estava presa ao braço de um companheiro mais jovem ou mais idoso
que ela, de roupa igualmente impecável, e o discernimento
recentemente adquirido por Norbert, numa espécie de ciência que ele
havia até então ignorado, tornou-se tal que ao primeiro olhar reco-

31
nheceu que todos eram Augusto e que todas eram Greta. Mas, em
pleno dia, o clima geral de sua conversa tinha se modificado. A
presença de ouvintes fazia-os acalmarem-se e baixar o tom.

— Oh! Veja este aqui. Eram pessoas práticas; devíamos comprar um


escaldador como este.
— Sim, mas para a comida que a minha mulher vai fazer, deveriam ser
de prata!
— Será que o que vou preparar para você vai lhe agradar tanto?

A pergunta vinha acompanhada de um olhar malicioso, mas um dardo


brilhante respondia à cintilação desse olhar:

— O que você servir, para mim só poderá ser delicioso.


— Mas olhe! Um dedal! Aquela gente já usava agulha.
— É o que parece. Mas não serviria para você. Ë grande demais pro
seu dedo.
— Você acha mesmo? E você prefere dedos finos aos grossos?
— Nem preciso ver os seus. Eu os descobriria na maior escuridão, no
meio de todos os dedos do mundo.
— Tudo isto é mesmo muito interessante. Precisamos mesmo ir a
Pompéia?
— Não, não vale a pena. Não tem nada lá além de um monte de pedra
velha. Tudo o que tinha valor, diz o Baedeker, foi retirado. Além disso,
temo que o sol lá seja forte demais para a sua pele delicada, e isso eu
não poderia me perdoar.
— E se de repente você tivesse uma mulher negra?
— Felizmente, a minha imaginação não vai tão longe assim, mas uma
mancha vermelha no seu narizinho já me deixaria muito aborrecido.
Se você qui-

32
ser, poderemos ir amanhã a Capri, meu amor. Dizem que é tudo uma
beleza, e na admirável luz da caverna azul enfim eu conseguiria ver
toda a perfeição do grande prêmio que tirei na loteria da sorte.
— Olha, se alguém nos ouve, me dá vergonha. Mas onde você me levar
tudo estará bem e será sempre assim posto que você estará do meu
lado.

Perto de Augusto e Greta, um tanto sérios e moderados porque eram


ouvidos e vistos, Norbert Hanold tinha a impressão de que haviam
espalhado mel à sua volta e de que era obrigado a engoli-lo gole por
gole. Aquilo lhe fez mal e ele saiu do Museo Nazionale para beber um
copo de vermute na mais próxima osteria. Dez vezes se perguntou:
por que essas pessoas unidas em pares, multiplicadas às centenas,
enchem os museus de Nápoles, Roma e Florença, ao invés de se
preocuparem um com o outro no seio da pátria alemã?

Mas uma parte dessas conversas e diálogos carinhosos lhe ensinou,


pelo menos, que a maioria desses casais de rolinhas não ia se aninhar
nas ruínas de Pompéia, porém considerava mais conveniente voar
para Capri. Isso fez com que se decidisse rapidamente a fazer aquilo
que eles não faziam. Isso lhe dava, comparativamente, maior
oportunidade de se evadir do pelotão de frente daquela tropa de
galinholas e de encontrar aquilo que buscava sem sucesso naquele
jardim das Hespérides. Era também um casal, não um casal de jovens
noivos, mas um casal fraternal que não ficava arrulhando sem parar, o
Silêncio e o Saber, dois irmãos calmos, junto aos quais se podia ter
certeza de sempre encontrar um refúgio de satisfação. O desejo que
sentia por eles era algo que lhe tinha sido até então desconhecido;
poder-se-ia dar, a essa vontade, se isso não constituísse um contra-
senso, o epíteto de "apaixonada" Uma hora mais tarde já

33
estava ele instalado em uma carozella que o levava rapidamente
através de Portici e Resina! Viajava por uma estrada que parecia tão
magnificamente ornada como a de um conquistador da antiga Roma:
à direita e à esquerda, em quase toda casa, estendiam-se como que
uns tapetes amarelos. Era, suspensa, pasta da Napoli em abundância,
chamada de macaroni, vermicelli, spaghetti, canelloni e fidelini,
conforme a grossura, a iguaria nacional à qual a fumaça gordurosa das
tascas, as nuvens de poeira misturadas às moscas e pulgas, as escamas
de peixe que voavam no ar, o fumo das chaminés e os outros fatores
diurnos e noturnos davam todo o sabor de seu gosto especial.

O cone do Vesúvio, bem próximo, dominava campos de lava. À direita


se estendia o golfo, de um azul cintilante e como que mesclado de
malaquita líquida ou lápis-lazúli. A pequena casca de noz montada
sobre rodas voava como se estivesse sendo empurrada por uma
terrível tempestade e cada um de seus instantes, sobre o calçamento
desigual de Torre dei Greco, parecia ser o último. Ela fez tremer o de
Torre dell'Annunziata, e chegando ao casal de Dioscuros que parecem
ser o Hotel Suíço e o Hotel Diomedes, medindo numa luta incessante
e furiosa seus respectivos poderes de atração, parou diante deste
último, cujo nome, tirado da antiguidade, havia já ditado a escolha do
jovem arqueólogo, na ocasião de sua primeira estada.

O moderno concorrente suíço olhava, entretanto, esse acontecimento


da porta, com a mais evidente tranqüilidade. Tinha certeza de que,
nas panelas do concorrente com nome tirado da antiguidade, não se
cozinhava com água diferente da sua, e de que as maravilhosas
antiguidades expostas na frente não tinham, mais do que as suas,
vindo à luz do dia de

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pois de terem, permanecido dois mil anos numa mortalha de cinzas.

Assim, Norbert Hanold havia se transportado em poucos dias,


inesperadamente e sem nenhuma intenção, do norte da Alemanha a
Pompéia. Não encontrou o Diomedes muito repleto de seres
humanos, mas já abundantemente povoado pela mosca comum, a
musca domestica communis. Ele jamais soubera se sua sensibilidade
era capaz de emoções ardorosas, mas a mais fervilhante raiva se
apossou dele contra esses voadores... Considerava-os a pior invenção
da natureza em sua maldade; eram o motivo por que ele preferia o
inverno ao verão, como sendo a única estação que convinha à
dignidade humana e achava que as moscas eram uma prova
irrefutável da inexistência de uma harmonia racional no mundo. Elas
o acolhiam aqui e ele só seria jogado como presa a essa infâmia alguns
meses mais tarde na Alemanha. Elas se lançaram imediatamente
sobre ele às dúzias, como sobre uma vítima esperada, voavam pelos
seus olhos, zumbiam nos ouvidos, prendiam-se nos cabelos e corriam-
lhe pelo nariz, a testa e as mãos, fazendo cócegas. Algumas lhe
lembravam os casais em viagem de núpcias, e deviam dizer-se
provavelmente em sua língua: Meu querido Augusto! e Minha
adorável Greta! Assim atormentado, ele desejava doentemente um
scacciamosche, uma espécie de palheta excelente para matar moscas,
semelhante à que havia visto no museu etrusco de Bolonha e que
tinha sido descoberta numa sepultura. Dessa forma, aquela criatura
imunda havia sido, desde a antiguidade, o flagelo da humanidade,
uma criatura mais irritante e impiedosa que os escorpiões, as
serpentes venenosas, os tigres e os tubarões, que pelo menos não têm
outro objetivo senão ferir, rasgar e devorar o corpo humano e que são
animais em relação aos quais é possível se

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proteger através de uma atitude prudente. Mas, contra a mosca
comum, não havia nenhum meio de proteção e ela aborrecia, ela
paralisava, ela acabava, enfim, no homem, com a inteligência, a
capacidade de trabalho e de pensamento, todos os impulsos
superiores e todos os sentimentos sublimes. Não era a necessidade de
saciar sua fome, nem a sede da chacina que a possuíam, mas apenas o
desejo diabólico de atormentar. Era a coisa em si na qual o mal
absoluto havia encontrado sua expressão e realização. Como o
scacciamosche etrusco — um tubo de madeira ao qual estava preso
um feixe de finas correias de couro — comprovava, elas haviam já
expelido da cabeça de Ésquilo os pensamentos poéticos mais
sublimes, haviam induzido Fídias a dar um golpe de martelo mal
dirigido e irreparável, haviam trotado sobre a fronte de Zeus, sobre o
peito de Afrodite e percorrido todos os deuses e todas as deusas do
Olimpo, da cabeça aos pés. Norbert pensou, no mais profundo do seu
ser, que era preciso, antes de tudo, avaliar o mérito de um homem
pelo número de moscas que ele tivesse podido, ao longo de sua vida, a
título de vingador da raça humana desde os tempos mais remotos,
aniquilar, transpassar, queimar, e extinguir em hecatombes
cotidianas.

Mas aqui, para conquistar essa glória, a arma necessária lhe faltava, e
da mesma forma como o maior herói da antiguidade, vendo-se só, não
teria podido fazer outra coisa senão fugir diante das vulgares
adversárias, que lhe eram cem vezes superiores em número, assim
Norbert fugia, ou melhor, deixava o seu quarto. Uma vez fora dele, se
deu conta de que o que havia se passado hoje aconteceria em maior
escala amanhã. Pompéia não era, ademais, o lugar tranqüilizante e
reconfortante que ele desejava. Além disso, a essa idéia se associava
vagamente uma

36
outra, a de que o seu descontentamento não era apenas provocado
pelo que o cercava, mas vinha também um pouco dele mesmo. Os
tormentos que as moscas lhe causavam sempre lhe tinham sido
insuportáveis, mas não o haviam deixado, até então, num tal estado
de furor. A viagem o havia, incontestavelmente, excitado e deixado
com os nervos à flor da pele, estado cuja origem era, sem dúvida,
devido à estafa e à atmosfera fechada do inverno. Sentia-se de mau
humor, faltava-lhe algo que não podia compreender. E esse mau
humor ele o levava consigo aonde fosse. Os jovens casais e as moscas
que o haviam rodeado em massa não eram, nem uns, nem outras,
feitos para tornar a vida de ninguém agradável. Todavia, se não queria
se deixar envolver por uma nuvem espessa de fatuidade, não podia
dissimular a si próprio que se conduzia como eles, sem quê nem
porquê, surdo e cego, a torto e a direito pela Itália, com uma faculdade
de se distrair muito menor. Sua companheira de viagem, a ciência,
tinha muito, na verdade, de uma velha trapista, não abria a boca
senão quando se dirigia a ela, e ele parecia estar bem perto de
esquecer com que língua havia podido comunicar-se com ela.

O dia já ia muito avançado para que ele pudesse entrar em Pompéia


pelo Ingresso. Norbert se lembrou de que a cidade era rodeada por
velhas fortificações e se pôs a procurar o caminho por entre moitas e
espinheiros. Caminhava assim um pouco acima da cidade-túmulo. Ela
se estendia à sua direita, sem um movimento, sem um ruído. Parecia
um campo de escombros morto, de que a sombra recobria já grande
parte. O sol poente não estava mais quase nada afastado do mar
tirreno mas por todos os lados distribuía ainda, sobre os montes e as
planícies, o mágico esplendor da vida. Dourava o penacho de fuma-

37
ca que se elevava da cratera do Vesúvio e revestia de púrpura os
cumes e os recortes do monte Sant'Ângelo. Soberbo e solitário, o
monte Epomeo se erguia por cima do mar azul e cintilante onde
faiscavam fagulhas de luz e de onde surgia, como uma misteriosa
construção titânica, a silhueta sombria do cabo Misene. Onde quer
que o olhar pousasse, descobria um quadro maravilhoso em que o
sublime se aliava à graça, o passado distante ao alegre presente.
Norbert Hanold tinha acreditado aí encontrar aquele desconhecido
para o qual o impelia um desejo indistinto, mas não se encontrava
com a disposição de espírito que esperava. Não havia, no entanto,
sobre essas muralhas abandonadas, nem jovens casais, nem moscas,
para importuná-lo, mas a natureza mesma não estava em condições
de oferecer-lhe o que lhe faltava, quer dentro dele quer fora. Passeou
seus olhos com uma calma próxima da apatia por sobre aquela
profusão de beleza e não lamentou nem um pouco quando o pôr do
sol a fez empalidecer e se apagar. Voltou ao Diomedes tão descontente
como daí havia partido.

Mas como tivesse sido, invita Minerva, aí levado pela sua falta de
reflexão, tomou a decisão, durante a noite, de ao menos tirar algum
proveito científico, ainda que por um dia, da bobagem que tinha feito,
e cedo, tão logo se abriu o Ingresso, tomou o caminho obrigatório que
leva a Pompéia. À sua frente

38
e atrás dele, os hóspedes eventuais dos dois hotéis avançavam em
pequenos grupos sob as ordens do inevitável guia, munidos do
Baedeker ou de suas imitações estrangeiras, ávidos de meterem-se em
escavações clandestinas. Tagarelices em inglês ou anglo-saxônicas
ressoavam no ar ainda puro da manhã quase que exclusivamente. Os
jovens casais alemães, lá longe, por trás o monte Sant'Ângelo, se
haviam sentado à mesa para almoçar no seu quartel-general de
Pagano, e se faziam mutuamente felizes com uma doçura e um
entusiasmo bem alemães. Norbert sabia, por experiência própria,
graças a algumas palavras bem escolhidas e a uma gorjeta (de uma
manda), como se desembaraçar do guia, aquele pesadelo, a fim de
poder seguir livremente com suas intenções. Comprazia-se com o fato
de ter uma memória infalível; onde quer que seu olhar caísse,
encontrava um lugar exatamente semelhante àquele cuja lembrança
guardava, como se o tivesse gravado na véspera em sua memória,
depois de ampla contemplação. Essa observação, que não cessava de
fazer, o levava a pensar que bem podia dispensar a ida a esses lugares;
e assim, uma notável apatia tomou sua vista e seu espírito, como já lhe
havia acontecido na tarde que havia passado sobre as muralhas. Ainda
que percebesse várias vezes, ao levantar os olhos, o cone do Vesúvio e
seu penacho de fumo se destacando sobre o céu azul, não lhe veio
sequer uma vez ao espírito, o que não deixa de ser bastante singular, o
sonho que ele havia tido pouco tempo antes e no qual havia
testemunhado o sepultamento de Pompéia na erupção de 79. Depois
de ter caminhado durante horas, sentiu-se fatigado e meio sonolento,
mas não teve a impressão de se encontrar em um cenário de sonho.
Tinha ao seu redor apenas velhos pórticos, muros e colunas do maior
interesse arqueológico mas sem ne-

39
nhum sentido esotérico propriamente dito; não passavam de um
grande conjunto de ruínas devidamente mantidas, mas por isso
mesmo bastante insípidas. E embora a ciência e a fantasia sejam
normalmente bem antagônicas, hoje pareciam se ter combinado para,
de alguma maneira, privar Norbert Hanold de sua ajuda,
abandonando-o completamente ao curso de sua ociosa caminhada.

Ele havia assim percorrido o caminho do Fórum ao anfiteatro, da


Porta di Stabia à Porta do Vesúvio, pela rua dos túmulos e suas
inumeráveis vias e, durante esse tempo, o sol havia terminado o
percurso que habitualmente faz todas as manhãs e estava no ponto
em que, chegado ao máximo de sua trajetória, costuma abandonar sua
ascensão por uma descida mais confortável, do lado do mar. Indicava,
assim, aos americanos e aos ingleses dos dois sexos que aí haviam
sido conduzidos pela obrigação da viagem, que era tempo de
consagrar seus pensamentos ao grande prazer de estarem
confortavelmente sentados às mesas da sala de jantar de um dos dois
hotéis gêmeos, para grande satisfação dos guias, que não haviam sido
compreendidos, apesar de terem falado até o enrouquecimento. Aliás,
esses turistas tinham visto com seus próprios olhos tudo o que é
necessário conhecer para se manter uma conversação do outro lado
do oceano ou da Mancha. Esses grupos empapados de antiguidade
batiam pois em retirada, de comum acordo, pela Via Marina, para
não correrem o risco de serem mal colocados nas mesas
contemporâneas — e que não se poderia chamar de luculianas sem
eufemismo — do Diomedes e do Suíço. Sem dúvida era essa, de longe,
a mais inteligente solução, se se considerasse as circunstâncias
interiores e exteriores, pois se o sol de meio-dia tinha qualquer
simpatia pelos lagartos e pelas borboletas, pelos habitantes

40
alados ou rastejantes das. ruínas, ele exercia todo o seu ardor vertical
com menos amabilidade sobre a tez ocidental das Misses e das
Mistresses. E é preciso mesmo acreditar nessa relação de causa e
efeito pois durante a hora que acabava de se passar, os Charming
haviam diminuído consideravelmente, os Shocking, aumentado
igualmente, e os Oh! masculinos, provenientes de duas carreiras de
dentes ainda mais divergentes do que anteriormente, se aproximavam
de maneira inquietante do bocejo.

Era curioso constatar como tudo o que havia sido outrora a vila de
Pompéia tomava um outro aspecto, ao mesmo tempo em que se
operava esse êxodo. Não era, certamente, uma cidade viva, mas nesse
momento parecia se petrificar numa rigidez cadavérica. No entanto,
daí emanava qualquer coisa que dava a impressão de que a morte se
punha a falar, embora não de uma maneira perceptível aos ouvidos
humanos. Ê verdade que aqui e ali ressoava uma espécie de
murmúrio, que parecia sair das pedras, só revelado pelo doce sussurro
do vento do sul, o antigo Atabulus, que dois mil anos antes tinha
assim zunido em volta do templo, dos mercados e das casas, e que
agora brincava levemente com as ervas verdes e brilhantes que
cresciam sobre as ruínas baixas das muralhas. Às vezes esse vento,
vindo da costa da África, se precipitava aqui lançando a plenos
pulmões um assovio louco. Ele hoje não estava assim, e abanava com
doçura seus velhos amigos de volta à luz, mas continuava um filho do
deserto e seu hálito queimava, mesmo se soprava com extrema
doçura, tudo o que encontrava no caminho. O sol, seu pai,
eternamente jovem, o ajudava nessa tarefa, reforçando seu sopro
ardente, o supria nos lugares que ele não podia atingir, e derramava
sobre todas as coisas seu esplendor resplandecente, ofus-

41
cante e fremente. Ele havia retirado com uma lâmina de ouro a pouca
sombra desatada que subsistia rente às casas dos semitae e dos
crepidines via-rum — assim se chamavam antigamente as calçadas.
Jogava em profusão feixes de raios em todos os vestibula, atria,
peristyla e tablina, e lá onde um telhado saliente impedia seu acesso,
encontrava um jeito de jogar por baixo dele raios esparsos. Mal
conseguia algum canto para proteger-se da onda de luz e obter uma
penumbra prateada. Cada rua se estendia entre as antigas paredes
como se aí tivessem posto para secar grandes peças de fazenda de
brancura resplendente E, sem exceção, tudo estava mudo e calmo: os
viajantes fanhosos e barulhentos enviados pela América e pela
Inglaterra desapareceram todos, até o último, e mesmo o arremedo de
vida que haviam emprestado até este instante os lagartos e as
borboletas, se dissipou. Pareciam ter abandonado o silencioso campo
das ruínas, o que em realidade não havia, sem dúvida, acontecido,
mas o olho não via mais um só movimento. Assim também,
antigamente, há milhares de anos, acontecia com os animais seus
ancestrais, os das montanhas e os dos rochedos, era um costume,
enquanto o grande Pan repousava, eles também, para não incomodá-
lo, se estendiam sem moverem-se ou pousavam aqui e ali, fechando as
asas. E era como se se submetessem aqui, mais rigorosamente ainda,
à lei da calma tórrida e sagrada do meio-dia, desta hora de espectros,
quando a vida devia calar-se e esconder-se porque os mortos, a esta
hora, despertavam e começavam a conversar na língua muda dos
fantasmas. Não era tanto a visão que ficava chocada com este novo
aspecto das coisas, mas o sentimento, ou um sexto sentido sem nome,
contudo este ficava tão fortemente impressionado e de uma maneira
tão decisiva, que a pessoa que o possuísse não poderia

42
se subtrair ao efeito que ele causava. Na verdade, era pouco provável
que algum, ou alguma, dos honestos turistas, que já se ocupavam em
mergulhar na sopa a colher, no interior de um dos dois hotéis situados
perto do Ingresso, fosse dotado desse sentimento, mas isso pouco
importava, pois a natureza havia sido pródiga em tal dom para
Norbert Hanold, destinado a sofrer seus efeitos. Sem dúvida, não o
exercia por sua própria vontade, pois não desejava senão uma coisa:
poder estar tranquilamente sentado no seu gabinete de trabalho, um
bom livro nas mãos, em vez de estar metido, sem razão, nessa viagem
de primavera. Entretanto, mal havia tido tempo de penetrar no
coração da cidade, ao voltar da porta de Hércules pela Via dos
Túmulos, tendo acabado de tomar, sem pensar, um estreito vicolo à
esquerda da Casa de Salusto, quando aquele sexto sentido se
manifestou nele. Ou melhor, não foi bem assim, ele acabava de ser
transportado, em função desse sentido, a um estado de espírito
estranhamente sonhador, intermediário entre a consciência lúcida e a
inconsciência. O silêncio morto e inundado de luz estendia-se à volta
dele, como se o mistério se escondesse por toda parte sem um sopro, a
tal ponto que seu próprio peito não ousava respirar. Encontrava-se no
cruzamento do Vicolo di Mercúrio com a Strada di Mercúrio. Essa
avenida bastante larga que corta a ruela se estendia a perder de vista à
sua direita e à sua esquerda. Pelo patronato do deus dos mercados,
esse lugar deveria ter sido outrora o local do comércio e da indústria,
como testemunham as esquinas mudas. Em diversos pontos, pelos
lados, se abriam tabernas, lojas guarnecidas de mesas cobertas com
mármore quebrado; aqui, a arrumação indicava uma padaria, ali,
muitos potes grandes, barrigudos, indicavam comércio de óleo e
farinha. Mais adiante, graciosas ânforas pre-

43
gadas às prateleiras de uma mesa indicavam que havia funcionado
uma venda de vinho na peça vizinha. Toda noite os escravos e
servidores das vizinhanças sem dúvida vinham ali buscar a caupona,
em suas bilhas, o vinho de seus senhores. Via-se, com efeito, que uma
multidão de passos havia gasto a inscrição de pedrinhas de mosaicos
incrustados na semita diante da loja, tornando-a ilegível. Ela, sem
dúvida, teria cantado aos passantes o louvor de vini praecellentis.
Sobre a parede em frente, à altura da metade de um homem apenas,
um graffito, com certeza um rabisco de criança, com a unha ou um
prego, comentava esse anúncio, talvez ironicamente, dizendo que o
vinho do restaurante devia sua qualidade incomparável à diluição em
água, que não era mínima.

Aos olhos de Norbert Hanold, a palavra caupo parecia se destacar da


garatuja, mas talvez fosse ilusão, pois não poderia afirmá-lo com
certeza. Ele sabia decifrar com muita habilidade esses graffiti tão
difíceis de se ler, e tinha tido nesse ramo um sucesso gloriosamente
reconhecido, mas naquele momento, sua destreza lhe recusava
totalmente os serviços. Mais ainda, levava consigo o sentimento de
que não sabia uma palavra de latim e de que era contra qualquer bom
senso decifrar aquilo que, dois mil anos antes, tinha rabiscado numa
parede um aluno de primário de Pompéia. Não só a sua ciência o tinha
abandonado, como ele tinha também perdido todo o desejo de
reencontrá-la; só se lembrava dela como uma coisa muito longínqua e,
em seu sentimento, ela tinha sido uma tia velha, seca e aborrecida, em
suma, a criatura mais árida e mais supérflua da Terra. Tudo o que
pudessem dizer seus lábios enrugados, .num tom completamente
pedante e apresentando-se como sabedoria, tudo aquilo não passava
de vã inutilidade, algo que nada mostrava além da casca ressecada dos

44
da árvore da ciência, sem nada dar a perceber da essência e de seu
verdadeiro conteúdo, sem dar o prazer de sua íntima compreensão. O
que a ciência professava era uma visão arqueológica sem sentido e o
que ela falava, uma língua morta para uso dos filólogos. Ela não
permitia apreender com a alma, sentimento, o coração, pouco importa
o nome. Ao contrário, aquele que aspirava a essa compreensão sofria,
único ser vivo no silêncio abrasado do meio-dia por permanecer aqui
entre os restos do passado, para não mais ver com os olhos do corpo,
para não mais ouvir com os ouvidos carnais. Nesse momento, de
repente parte disso surgia, sem fazer, porém, um movimento, e
começava a falar sem emitir um único som. Nesse momento, o sol
tirava de seu entorpecimento sobre as pedras velhas, um arrepio
abrasado as perseguia, os mortos despertavam e Pompéia recomeçava
viver.

Norbert Hanold não tinha em mente pensamento de blasfêmia, mas


era com um vago sentimento de que merecia inteiramente essa
qualificação que ele olhava, sem fazer qualquer movimento, a Strada
di Mercúrio, na direção das muralhas.

Os blocos de lava rochosa que a pavimentam, arrumados, como no


momento de seu sepultamento, eram, tomados isoladamente, de cor
cinza clara, mas uma claridade tão radiosa caía sobre eles, que se
estendiam como uma cortina branca de prata no espaço ardente entre
as ruínas mudas das muralhas e os fragmentos de coluna.

Nesse momento, de repente...

Ele mantinha os olhos abertos e olhava a rua em toda sua extensão,


mas lhe parecia que sonhava. Diante dele, repentinamente, alguma
coisa acabava de sair da casa de Castor e Pólux, e sobre as lajes

45
que se estendiam dessa casa ao outro lado da Strada di Mercúrio
avançava, no seu passo leve, Gradiva.

Sem dúvida nenhuma, era. ela mesma, e embora os raios de sol


cercassem sua forma numa espécie de véu de ouro, ele a via, porém,
distintamente, e ela se apresentava de perfil, exatamente como no
baixo-relevo. Ela inclinava ligeiramente a cabeça para a frente,
coberta por um pano que lhe caía sobre a nuca, segurava na mão
esquerda a saia extraordinariamente plissada e que não ia abaixo dos
calcanhares. Só se deixou reconhecer claramente caminhando: o pé
que ficava para trás erguia-se por um instante sobre a ponta, o
calcanhar quase que vertical. Mas não se tratava de um ser de pedra
monótono e sem cor. O vestido era feito de um tecido extremamente
mole e macio que não tinha a branca frieza do mármore, mas um tom
quente, puxando para o amarelo. Os cabelos frouxamente ondulados
sobre o xale valorizavam, pelo brilho de seu castanho dourado, o
alabastro do rosto. Ao mesmo tempo em que a percebeu, Norbert
reencontrou num canto da memória a imagem já vista ali mesmo, à
noite, em sonho, quando ela se deitou lá, perto do Fórum; sobre os
degraus do templo de Apolo, tão tranquilamente como se fosse
dormir. E juntamente com essa lembrança, um outro pensamento
surgiu pela primeira vez em sua consciência: sem compreender ele
próprio o seu impulso íntimo, tinha partido para a Itália, a tinha
atravessado até Pompéia, sem mesmo parar em Roma e Nápoles, para
ver se poderia voltar a encontrar ali o rastro de Gradiva. E isto no
sentido literal, tendo seu passo tão particular deixado, com certeza, na
cinza, uma pegada distinta de todas as outras, na qual se leria a
pressão de seus artelhos. Era, de novo, uma figura de sonho em pleno
meio-dia que se movia diante dele e, no entanto, era

46
realidade. Isso se viu pelo efeito que fez ao se aproximar da última
laje, sobre a qual estava estendido, na luz quente do sol, um grande
lagarto, cujo corpo de ouro e malaquita resplendia distintamente nos
olhos de Norbert Hanold. Quando os passos de Gradiva
aproximaram-se do animal, ele se precipitou de um só golpe para
baixo da pedra e fugiu num movimento ondulado e macio por entre o
pavimento cintilante da rua. Gradiva, após ter atravessado as lajes
com tranqüila agilidade, continuou o seu caminho. Norbert agora a
via de costas — na calçada da frente. Ela parecia se dirigir à casa de
Adónis, que se encontrava diante dela, mas, depois de uma breve
parada, continuou a caminhar, tendo sem dúvida mudado de idéia,
pela Strada di Mercúrio. Não havia mais, nessa direção, outra
residência célebre, a não ser, à esquerda, a Casa di Apollo, assim
chamada devido às numerosas figuras de Apolo aí descobertas, e logo
voltou à mente de Norbert, que a observava, que ela já tinha elegido o
pórtico do templo de Apolo para abrigar seu sono eterno. Era,
portanto, provável, que um laço qualquer a unisse ao culto do deus do
sol e que ia à casa que lhe era consagrada. No entanto, ela logo parou
outra vez. Também aí as lajes iam de um lado a outro da rua e ela
passou de novo para a direita. Mostrou assim a Norbert a outra face
de seu perfil e lhe deu nesse momento uma impressão diferente.
Agora, escondia a mão esquerda, que segurava o vestido, e mostrava o
braço direito que, ao invés de dobrar-se, pendia reto. Mas a essa
distância pouco maior, a faísca dos raios de sol a envolvia num véu
mais denso, não permitindo que se distinguisse onde ela poderia ter
desaparecido subitamente, ao passar diante da casa de Meleagro.

Norbert Hanold ficou parado no lugar, sem poder se mexer. Mas tinha
nos olhos, nos do corpo

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desta vez, a visão de sua imagem que se distanciava. Retomou
profundamente a respiração pela primeira vez, pois até esse momento
seu peito esteve quase que paralisado. Entretanto, ao mesmo tempo,
seu sexto sentido, em detrimento de todos os outros, o dominou
completamente. Acabava de ver diante de si uma criatura real ou um
produto da imaginação? Não sabia se sonhava ou se estava acordado,
e em vão tentava descobrir. Nesse momento um arrepio muito
peculiar lhe percorreu bruscamente a espinha. Não via nada, não
entendia nada, mas havia nele qualquer coisa misteriosa que o fazia
sentir que Pompéia em volta dele começava a reviver naquela hora
espectral do meio-dia e que Gradiva, ressuscitada acabava de entrar
na casa em que vivia antes daquele dia fatal em agosto de 79.

Ele conhecia a Casa di Meleagro de uma viagem anterior, mas desta


vez ainda não a havia visitado. Tinha se contentado em parar um
tempo no Museo Nazionale de Nápoles diante do afresco que
representava Meleagro e sua companhia de caça, a árcade Atalanta,
afresco que deu o nome à casa da Via di Mercúrio, onde foi
descoberto. Mas quando se pôs novamente em condições de se mover,
dirigiu-se àquela casa, duvidando de que seu nome viesse do assassino
do javali caledônio. Lembrou-se de repente de um poeta grego
chamado Meleagro que, na realidade, havia vivido mais ou menos um
século antes da destruição de Pompéia. Mas era possível que um de
seus descendentes tivesse emigrado e construído uma casa! A idéia,
ou melhor, a certeza que ele tinha da origem grega de Gradiva, e da
qual se lembrava agora, ligou-se a essa hipótese no momento em que
a descrição de Atalanta que Ovídio faz em suas Metamorfoses lhe
vinha à memória.

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O colchete polido fecha com o alfinete o alto de sua túnica.
Seus cabelos estão presos sem arte num único nó.

Não conseguia lembrar-se literalmente desses versos, mas seu


conteúdo e fundo estavam presentes para ele ao mesmo tempo em
que sua ciência lhe lembrava que a jovem esposa de Meleagro, filha de
Eneus, se chamava Cleópatra. Portanto, não era dele que se tratava,
segundo toda verossimilhança, mas do poeta grego Meleagro. Era
assim que, no calor solar do campo napolitano, a mitologia, a
literatura, a história e a arqueologia se misturavam em sua cabeça.

Depois de ter passado pela casa de Castor e Pólux, e pela do Centauro,


ele se encontrava agora diante da Casa di Meleagro, no pórtico da
qual o acolhia, inscrita num mosaico ainda legível, a saudação Have.
Sobre as paredes do vestíbulo, Mercúrio dava a Fortuna um saco de
dinheiro, o que provavelmente significava votos alegóricos de riqueza
e outras felicidades aos habitantes de outrora. Atrás se abria o átrio
cujo centro era ocupado por uma mesa de mármore apoiada sobre
três grifos.

O local em que acabara de penetrar estava vazio e silencioso, lhe


parecia completamente estranho e ele não se lembrava de jamais o ter
visitado. A memória lhe voltou, porém, porque o interior dessa casa
oferecia uma anomalia que não se encontrava em nenhum dos outros
edifícios descobertos na cidade. O peristilo não estava localizado atrás
do átrio, do outro lado do tablinum, como de hábito, mas à esquerda,
o que provocava uma amplidão maior e uma disposição mais
magnificente que nos outros lugares de Pompéia. Um pórtico o
enquadrava, apoiado por duas dúzias de colunas, vermelhas em suas
metades inferiores e brancas nas superiores. Elas davam àquela

49
sala grande e silenciosa algo de solene. Via-se no centro uma piscina
em forma de fonte, rodeada de um belo cenário. A julgar, por todos
esses detalhes, a casa devia ter sido domicílio de um homem
conhecido, de boa educação e apreciador das belas-artes.

Norbert percorreu a moradia com os olhos e pôs de prontidão o


ouvido. Mas nada se mexia em lugar nenhum e ele não escutava o
menor barulho. Não havia mais, entre aquelas pedras frias, respiração
viva; se Gradiva tinha entrado na casa de Meleagro, já se havia
fundido com o nada.

Ao lado, atrás do peristilo, havia ainda uma sala, um oecus, a antiga


sala de festas, também cheia de colunas pintadas de amarelo que, de
longe, na luz viva, brilhavam como se fossem de ouro. Mas ao pé
dessas colunas se percebia uma cor vermelha ainda mais violenta que
a das muralhas e que não se devia a nenhum pincel antigo, mas à
jovem natureza de hoje, revestida pelo sol. O piso de mosaico interior
estava completamente destruído e arruinado, e todo florido. Era o
mês de maio, que exercia ainda uma vez sua antiga força e que cobria
todo o oecus, como nessa época a maior parte das casas da cidade
morta, de papoulas vermelhas que o vento trouxera e que se
desenvolveram na cinza. Dir-se-ia uma maré espessa e movediça de
flores, embora na realidade permanecessem imóveis, pois o Atabulus
não soprava tão baixo e se contentava com murmurar lentamente no
cimo das muralhas. Mas o sol projetava ali uma tal cintilação de
esplendor que se tinha a impressão de que ondas vermelhas
balançavam, como num tanque.

Norbert Hanold já tinha visto, sem prestar atenção, outras casas em


estado semelhante, mas este espetáculo provocava nele um estranho
arrepio. As flores do Sonho tinham crescido nas margens do Lethé, e
Hipnos se estendia no meio delas, distri-

50
buindo os sucos colhidos à noite em seus cálices vermelhos e que
provocavam nos espíritos um sonho crepuscular. Esse antigo
conquistador dos deuses e dos homens parecia ter tocado Norbert
com a sua varinha invisível que dá sono. Ele acabava de penetrar no
oecus pelo pórtico do peristilo e entrou não num pesado torpor, mas
num sonho leve e amável que envolvia vagamente a consciência.
Permaneceu, no entanto, senhor de seus passos. Andava ao longo das
muralhas da antiga sala de festas onde o olhavam velhos afrescos
representando Páris dando a maçã e um sátiro que, com uma víbora
na mão, assustava uma jovem bacante.

Mas o imprevisto surgiu outra vez diante de Norbert, bruscamente. A


cinco passos, no máximo, na sombra estreita que projetava o único
fragmento da arquitrave ainda conservado do pórtico da sala, entre
duas colunas amarelas, sentada sobre degraus baixos, encontrava-se
uma figura feminina vestida de cores claras que, nesse momento,
levantava ligeiramente a cabeça. Com esse movimento, apresentava
seu rosto de frente a Norbert, que deve ter se aproximado sem ter sido
percebido e que, pelo barulho de seus passos, deve ter sido notado
naquele mesmo instante. O aspecto daquela fisionomia despertava
nele um sentimento ambíguo, pois ela lhe parecia ao mesmo tempo
estranha e conhecida, já vivida, tal como ele a havia imaginado. Mas
ao estrangular-se a sua respiração, ao cessar de bater seu coração,
reconheceu sem erro a quem pertencia aquele rosto. Tinha descoberto
aquilo que procurava, aquilo que o havia levado a Pompéia sem que
ele soubesse: Gradiva continuava a viver a sua vida aparente ao meio-
dia, hora dos fantasmas, e encontrava-se sentada diante dele como ele
a havia visto em sonho sentar-se sobre os degraus do Templo de
Apolo. Ela tinha

51
sobre os joelhos qualquer coisa branca que ele era incapaz de
distinguir, mas que lhe parecia ser uma folha de papiro, onde se
destacava o luar vermelho de uma papoula.

O rosto de Gradiva exprimia surpresa; sob a fronte de alabastro e os


esplêndidos cabelos castanhos, os olhos, que brilhavam com o
esplendor extraordinário das estrelas, olhavam Norbert com uma
surpresa cheia de interrogação. A ele, no entanto, bastaram alguns
instantes para reconhecer naqueles traços os mesmos que tinha visto
de perfil. Deviam ser assim, de frente, e era por isso que nunca lhe
foram verdadeiramente estranhos, mesmo no primeiro olhar. De
perto, na roupa de Gradiva realçava ainda mais o amarelo, sendo as
cores mais quentes ainda. Era feita, evidentemente, de um tecido de
algodão muito fino e muito leve, o que permitia aquelas pregas
extremamente numerosas. O xale que lhe cobria a cabeça era do
mesmo tecido e deixava aparecer, na nuca, uma parte dos cabelos
brilhantes presos sem arte num único nó. No pescoço, bem abaixo do
queixo gracioso, um pequeno colchete de ouro fechava o vestido.

Tudo isso apareceu a Norbert Hanold numa semi-inconsciência. Ele


pegou mecanicamente o chapéu-panamá, tirou-o, e se pôs a dizer, em
grego:

— És Atalanta, filha de Jasão, ou és da família do poeta Meleagro?

Quando assim dirigiu a palavra a Gradiva, ela o olhou sem responder,


sem mudar a expressão calma e prudente dos olhos. Dois
pensamentos vieram ao mesmo tempo à mente de Norbert. Ou ela
não podia falar como ressuscitada ou então não era de origem grega e
ignorava a língua. Mudou então de idioma e lhe perguntou em latim:

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— Teu pai é um nobre cidadão de Pompéia, e de origem latina?

Ela também não respondeu, mas um movimento fugidio passou por


seus lábios delicadamente desenhados, como se tentassem reprimir
uma vontade de rir. O terror o tomou nesse momento. Aquela que se
encontrava diante dele como uma imagem muda era, portanto,
evidentemente, um fantasma, incapaz de falar. Os traços de Norbert
exprimiram claramente o medo que essa idéia lhe deu.

Mas os lábios da mulher não puderam mais resistir à sua vontade de


rir e um verdadeiro sorriso apareceu neles, enquanto diziam:
— Se o senhor quiser conversar comigo, tem que falar alemão.

Era muito curioso ouvi-lo de uma jovem pompeiana morta há mais de


dois mil anos, ou melhor, teria sido, para alguém que a tivesse
escutado em outro estado. Mas para Norbert, essa bizarrice se
eclipsava por dois sentimentos que se entrecruzavam nele:, um,
devido ao fato de Gradiva poder falar, e outro emanado da impressão
que sua voz tinha deixado na alma dele. A voz de Gradiva era tão clara
quanto o seu olhar. Era bastante baixa e lembrava o timbre de um
sino. Ela ressoou pelo silêncio ensolarado sobre o campo de papoulas.
O jovem arqueólogo tomou consciência bruscamente de que a tinha
escutado nele mesmo, na sua própria imaginação e disse
involuntariamente em voz alta:
— Eu sabia que era esse o som de tua voz.

O rosto da jovem mostrava que ela procurava compreender alguma


coisa e não conseguia. Respondeu a esse último comentário:
— Como é que o senhor sabe? Nós nunca nos falamos.

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Já não lhe parecia nada curioso que ela falasse alemão e que
pronunciasse as vogais segundo o costume moderno. Como agira
dessa maneira ele estava persuadido de que não podia ser de outro
modo e respondeu rapidamente:
— Não, não nos falamos, mas eu te chamei quando te deitavas para
dormir, e fiquei perto de ti. Teu rosto estava calmo e belo como o
mármore. Oh! Peço-te, pousa-o outra vez no degrau como então.

Enquanto ele falava, uma coisa curiosa aconteceu. Uma borboleta


dourada, ligeiramente pincelada de vermelho na parte interna das
asas de baixo, saiu das papoulas e voejou em torno das colunas. Deu
diversas voltas ao redor da cabeça de Gradiva, depois pousou sobre
seus cabelos castanhos frouxamente ondulados, bem acima da testa.
Mas nesse mesmo momento ela endireitou o corpo flexível e esguio e
levantou-se num movimento calmo e rápido, lançando a Norbert
Hanold, sem nada dizer, um breve olhar que parecia expressar que ela
o tomava por um insensato. Em seguida, avançando o pé, andou ao
longo das colunas do velho pórtico, com seu andar peculiar. Ainda
ficou visível por um curto instante, depois pareceu fundir-se no sol.
Ele permaneceu ali, sem poder respirar, como que loucamente, mas
tinha confusamente compreendido o que acabava de acontecer aos
seus olhos. Meio-dia, hora dos fantasmas, era agora passado, e sob a
forma de borboleta vinda dos campos de asfódelos do Hades, tinha
chegado um mensageiro alado encarregado de lembrar à morta que
devia voltar. A isso se associava, ainda que indistintamente e de um
modo confuso, uma outra idéia. Ele sabia que chamavam aquela bela
borboleta de Cleópatra e que esse era o nome da jovem esposa de
Meleagro de Calidon, aquela cuja dor ao receber a notícia da morte

54
do esposo foi tamanha que ela própria se imolou aos deuses
subterrâneos.

No momento em que Gradiva se ia, um grito saiu da boca de Norbert:

— Voltarás aqui amanhã ao meio-dia?

Mas ela não se voltou, não respondeu e desapareceu alguns instantes


depois por trás das colunas do canto do oecus. Ele sentiu em seu ser
como que um golpe e se pôs a segui-la rapidamente. Mas não viu em
parte alguma seu vestido claro, a Casa di Meleagro se espalhava
sozinha em torno dele, sob os raios do sol ardente, sem que um
movimento ou ruído a animassem. Sozinha, voejava a cleópatra de
asas cintilantes vermelho e ouro, lentamente descrevendo círculos
acima da massa espessa de papoulas.

Norbert Hanold jamais se lembrou em que momento e de que


maneira voltou ao Ingresso. Lembrava-se apenas de que seu
estômago exigiu imperiosamente que fosse servido, numa hora muito
tardia, de qualquer coisa no Diomedes, e de que em seguida caminhou
sem destino e sem caminho. Terminou chegando a uma praia no
golfo, no norte de Castellamare; sentou-se num bloco de lava e aí ficou
enquanto o vento do mar lhe soprava o rosto até o momento em que o
sol se pôs, mais ou menos a uma distância igual do monte
Sant'Angelo, abaixo de Sorrento, e do monte Epomeo, que domina
Ischia. Mas não tirou nenhum benefício dessa estada à beira da água,
que

55
tinha durado pelo menos algumas horas, e a frescura do ar não teve
nenhum efeito sobre o seu estado de espírito e seus sentidos. Voltou
ao hotel quase no mesmo estado em que o deixou. Encontrou os
outros hóspedes ocupados com a cena, fez-se servir num canto de sua
sala de jantar um fiaschetto de vinho do Vesúvio e se pôs a observar o
rosto dos comensais e a ouvir suas conversas. Parecia indiscutível, de
acordo com a mímica e com a conversa deles, que nenhum tinha
encontrado uma pompeiana morta, ressuscitada ao meio-dia por um
instante, nem falado com ela. Aliás isso se poderia supor de imediato
pois, nesse momento, todos se encontravam no seu pranzo. Pouco
depois, sem motivo e sem saber por que, Norbert foi ao concorrente
do Diomedes, o Hotel Suíço, sentou-se do mesmo modo num canto, e
depois de ter pedido meia garrafa de Vesúvio, porque era preciso
pedir alguma coisa, entregou-se às mesmas observações, ouvindo e
observando. Elas lhe deram o mesmo resultado, mas fizeram ao
mesmo tempo com que conhecesse de vista todos os turistas
atualmente hospedados em Pompéia. Aí estava um aumento dos seus
conhecimentos que ele, absolutamente, não podia considerar como
enriquecimento, mas tirava certa satisfação do fato de que não havia
mais nenhum hóspede dos dois hotéis com quem não tivesse tido uma
relação pessoal, ainda que unilateral, vendo e ouvindo. Bem
entendido, não lhe tinha vindo ao espírito a hipótese absurda de que
poderia muito bem ter encontrado Gradiva num dos hotéis, mas ele
podia jurar que nenhuma das pessoas ali hospedadas tinha com ela a
mínima parecença, por mais longínqua que fosse. Enquanto fazia
essas observações, entornava de quando em quando o conteúdo de
seu fiaschetto no copo, bebendo aos golinhos. Quando a garrafa por
fim se esvaziou, levantou-se para voltar para o Dio-

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medes. O céu estava agora semeado de uma infinidade de estrelas
cintilantes e deslumbrantes. Elas não estavam ordenadas
imovelmente, como de hábito; parecia a Norbert Hanold que Perseu,
Cassiopeu, Andrômeda e todos os vizinhos e vizinhas se inclinavam
ligeiramente aqui e ali, dançavam lentamente em círculo. Do mesmo
modo, no chão, lhe parecia que as silhuetas negras dos cumes das
árvores e dos edifícios não ficavam completamente retas. Esse
fenômeno, é verdade, não tinha nada de assustador nessa região
sempre abalada desde as épocas mais remotas, pois o fogo
subterrâneo que espera por todos os lados com impaciência para fazer
erupções encontra uma saída pelas parreiras e pelos cachos de uvas
com que fazem o- Vesúvio, esse Vesúvio que não era uma das bebidas
habituais de Norbert Hanold todas as noites. Mas ele se lembrava de
que, ainda que atribuindo ao vinho um pouco do torvelinho dos
objetos em volta, tudo havia já girado em torno dele ao meio-dia, e de
que não era um fenômeno novo para ele, mas a sequência natural do
que havia acontecido anteriormente. Subiu à sua camera e aí
descansou algum tempo, diante da janela aberta, a contemplar o cone
do Vesúvio, sobre o qual não se via, naquele momento, o penacho de
fumaça, mas que envolvia uma espécie de manto de púrpura escura
que parecia se agitar de um lado para outro. Depois o jovem
arqueólogo se despiu sem acender a luz e procurou sua cama às
apalpadelas. Mas quando aí se estendeu, não era mais a cama do
Diomedes, mas um campo vermelho de papoulas que se fechava sobre
ele como uma almofada fofa e aquecida pelo sol. A Musca domestica
communis, sua adversária, chegava ao número de meia centena sobre
a muralha, por cima de sua cabeça, mas elas estavam domadas pela
obscuridade que as mergulhava numa letargia embotada. Uma só
dentre

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elas, tirada da sonolência pela necessidade de atormentar, se pôs a
zumbir em volta do seu nariz. Mas ele não a identificou com o mal
absoluto, com o flagelo eterno que aflige a humanidade há milénios,
ele a tomou, os olhos fechados, por uma cleópatra vermelha e dourada
ocupada em adejar à volta dele.

Quando de manhã o sol, com a ajuda ativa das moscas, o despertou,


ele não se lembrava das miraculosas metamorfoses dignas de Ovídio
que se haviam desenrolado ao redor da sua cama. Mas, sem dúvida,
algum ser místico havia passado toda a noite ao seu lado, tecendo
sonhos, pois sentiu a cabeça pesada e vaga, como se tudo o que sabia
aí estivesse aprisionado sem poder sair, a não ser a única coisa da qual
tinha consciência: que devia estar outra vez ao meio-dia na casa de
Meleagro. Teve medo de que os guardas, se o olhassem no rosto, não o
deixassem entrar; em todo caso, não era preciso que se expusesse ao
julgamento desses homens. Para quem conhecia Pompéia, havia
meios de evitá-los. Eram ilícitos, mas Norbert não estava em
condições de considerar a ordem estabelecida para decidir sobre a
conduta a seguir. Subiu, como no dia de sua chegada, aos velhos
muros da cidade, depois, havendo descrito um grande semicírculo em
volta das ruínas, atingiu a Porta ai Nola, que não era vigiada. Daí não
era difícil descer ao interior, o que ele fez, sem muito preocupar a
consciência pelo fato de que sua intrusão privava a amministrazione
de duas liras, que ele poderia, aliás, lhe restituir de um modo ou de
outro. Assim chegou sem ser notado a um quarteirão da cidade sem
interesse e que ninguém frequentava, a maior parte das casas estavam
ainda enterradas. Sentou-se à sombra, numa espécie de esconderijo, e
deixou passar o tempo, consultando de vez em quando o relógio.
Percebeu de repente a alguma distância, nas ruínas, uma

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forma de um branco prateado brilhante, que sua vista, bastante baixa,
não permitia distinguir claramente. Mas ele se dirigiu
involuntariamente até o objeto e descobriu uma haste de asfódelo
inteiramente coberta de campânulas brancas. O vento havia trazido a
semente do exterior. Era a flor do mundo subterrâneo e ele pensou
que ela havia brotado num tal lugar especialmente para ele. Colheu a
elegante haste e voltou ao lugar onde estava sentado. O sol de maio
estava cada vez mais ardente, se aproximava enfim do meio-dia.
Tomou então a longa Strada di Nola. Esta se estendia vazia num
silêncio de morte, como quase todas as outras. Lá embaixo, na direção
do oeste, todos os visitantes da manhã se apressavam já para a Porta
Marina e os pratos de sopa. O ar em movimento vibrava e no seu
esplendor, Norbert Hanold, seu galho de asfódelo na mão, parecia a
solitária aparição do Hermes Psicopompos, vestido com uma roupa
moderna e pronto para acompanhar ao Hades a alma de um defunto.

Sem tomar consciência disso, obedecendo ao instinto, achou o


caminho da rua de Mercúrio, à qual seguiu pela Strada delia fortuna,
e chegou, virando à direita, à Casa di Meleagro. O vestíbulo, o átrio e
o peristilo, pouco animados como na véspera, o acolheram. Entre as
colunas deste último se podia ver, flamejantes, as papoulas do oecus.
Teria sido impossível ao recém-chegado dizer se fora na véspera, ou
dois mil anos antes, que viera pedir ao proprietário da casa uma
informação, o que teria o mais alto interesse do ponto de vista
arqueológico. Ele não julgava esse interesse, e além disso, pouco lhe
importava, pois, ao contrário, a ciência da antiguidade era para ele a
coisa mais inútil e a mais indiferente do mundo. Não compreendia
que um homem pudesse se ocupar dela, porque para ele existia
apenas uma coisa, para

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a qual convergiam todos os pensamentos e todas as reflexões: qual a
essência da aparição corporal de um ser como Gr adiva, ao mesmo
tempo morta e viva, embora ela só se revestisse desse último estado
ao meio-dia, à hora dos fantasmas, ou quem sabe somente ontem, ou
ainda uma vez a cada século ou a cada mil anos. De repente, sentiu-se
certo de que sua visita de hoje era inútil. Não encontraria aquela que
procurava porque não se permitiria a ela regressar senão em uma
época em que ele também não pertenceria mais ao mundo dos vivos e
estaria, depois de muito tempo, morto, enterrado e esquecido. Mas
quando caminhava ao longo da muralha onde estava pintado Páris no
momento de dar a maçã, percebeu Gradiva à sua frente, com o mesmo
vestido da véspera, sentada sobre o mesmo degrau, entre as mesmas
duas colunas amarelas. Ele não se deixaria enganar por uma fantasia
de sua imaginação, sabia bem que era objeto de uma alucinação que
compunha outra vez como uma ilusão, diante dos seus olhos, o que
ontem ele havia visto na realidade. Mas não pôde se negar a
abandonar-se à vã aparência saída da imaginação. Ficou pregado no
lugar e gritou, sem mesmo se dar conta, num tom queixoso:

— Oh! Tu não existes, tu não és viva!

Sua voz se extinguiu e o silêncio, que nem um sopro perturbava,


cobriu de novo as ruínas da antiga sala de festas. Mas uma outra voz
rompeu o silêncio vazio e lhe disse:

— Não queres sentar-te? Tens um ar fatigado.

O coração de Norbert Hanold parou uma vez mais. Juntou na sua


cabeça toda a razão que pôde: uma visão não podia falar, mas talvez
uma alucinação auditiva abusasse dele. Apolou-se com uma das mãos
a uma coluna, olhando-a fixamente.
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A voz o questionava de novo, e era a voz que só Gradiva possuía.
— Tu me trazes uma flor branca?

Uma tonteira tomou-o. Sentiu que seus pés não o sustentavam mais.
Teve que sentar-se e deixou-se escorregar frente a ela, contra uma
coluna, sobre o degrau de mármore. Ela fixava no rosto dele seus
olhos claros, mas a expressão desse olhar era completamente
diferente da que tinha na véspera, quando se levantou bruscamente
para partir. Qualquer vestígio da possível expressão de aborrecimento
ou recusa havia desaparecido, como se ela houvesse mudado de
opinião e como se a curiosidade e o desejo de saber a tivessem
conduzido àquele lugar. Ela parecia também ter percebido que tratá-
lo cerimoniosamente não convinha nem à sua pessoa nem às
circunstâncias. Havia usado o "tu" que, para dizer a verdade, vinha
aos seus lábios como coisa muito natural. Mas como ele havia ficado
mudo, sem responder sua última pergunta, ela tomou a palavra e
disse:
— Tu me dizias ontem que me havias chamado quando eu me
dispunha a dormir e que havias ficado perto de mim e que meu rosto
se havia tornado parecido ao mármore. Quando é que tudo isso se
passou? Não consigo lembrar-me disso e queria que me explicasses
mais claramente.

Norbert, naquele momento, já tinha se recuperado o bastante para


poder dizer:
— Foi na noite em que tu te sentaste no Fórum, sobre os degraus do
templo de Apolo e a queda das cinzas do Vesúvio te cobriu.
— Ah, sim, é isso. Justamente, eu não me lembrava mais. Porém
deveria ter pensado que se tratava de alguma coisa assim. Quando me
falaste ontem, foi verdadeiramente muito imprevisto e eu não estava
preparada. Mas isso se passou, se me recordo

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bem, mais ou menos há dois mil anos. Tu vivias já nessa época? Tu me
pareces mais jovem.

Ela falava muito seriamente, mas ao fim do discurso um sorriso leve e


gracioso apareceu no canto dos lábios. Ele se sentiu indeciso e
embaraçado e respondeu gaguejando um pouco:
— Não, na realidade creio que eu não estava vivo ainda no ano 79.
Talvez seja... sim, talvez seja essa disposição de espírito que se chama
sonho que me transportou ao tempo da destruição de Pompéia... Mas
te reconheci no primeiro olhar...

Sobre os traços da jovem mulher, que se encontrava apenas a alguns


passos de Norbert, apareceu uma viva surpresa e ela repetiu com ar
espantado:
— Tu me reconheceste em sonho? E como?
— Primeiramente pela tua maneira de andar, toda tua.
— Foi isso que te impressionou? Eu ando mesmo de uma maneira
diferente?

Sua surpresa parecia ainda maior e ele respondeu:


— Sim, tu o ignoras... Tens o caminhar mais gracioso que o de
qualquer outra, pelo menos que o de todas as que vivem hoje. Mas
outra coisa ainda me permitiu reconhecer-te: teu corpo e teu rosto,
tua postura e tua roupa, que correspondem em tudo à maneira como
estás representada no baixo-relevo de Roma.
— Ah, sim — replicou ela, da mesma maneira adotada antes —, no
meu baixo-relevo de Roma. Sim, não havia pensado nisso, e mesmo
agora, não compreendo... Como é ele? Tu o viste?

Ele contou então como esse baixo-relevo o havia fascinado, como


havia ficado encantado de poder encontrar na Alemanha uma cópia,
que estava há anos pendurada na parede de seu quarto. Ele a olhava
todos os dias até que lhe surgiu a idéia de que devia

62
representar uma jovem pompeiana caminhando pela sua cidade natal,
sobre as pedras de uma rua, e seu sonho confirmara essa idéia. Sabia
agora que era esse sonho que o havia incitado a vir de novo à cidade
morta para explorá-la e incumbir-se de descobrir seus rastros. E
ontem quando parara na esquina da rua de Mercúrio, ela caminhava
precisamente como uma imagem bruscamente aparecida diante dele,
sobre as lajes. Parecia encaminhar-se à casa de Apolo. Mas refez seu
caminho e desapareceu em frente à casa de Meleagro.

Ela sacudiu a cabeça e disse:


— Sim, eu tinha intenção de visitar a casa de Apolo, mas fiquei aqui.
Ele prosseguiu:
— Foi por essa razão que me veio à memória o poeta grego Meleagro,
e pensei que fosses uma de suas descendentes, voltando, quando te é
permitido, à casa de teu pai. Mas quando te falei em grego, não me
compreendeste.
— Era grego? Não sabia, ou melhor, o havia esquecido... Mas ao voltar
hoje tu disseste algo que compreendi muito bem: desejavas que
alguém estivesse aqui e vivesse ainda. Mas não compreendi de quem
se tratava.

A estas palavras, Norbert respondeu que acreditara, ao vê-la, que ela


não estava verdadeiramente ali, que sua imaginação abusava dele
mostrando-lhe a imagem dela onde ele a havia encontrado na véspera.
Ela riu e retrucou:
— Realmente me parece que devias tomar cuidado com a tua
imaginação demasiado fértil, embora essa minha opinião não
provenha dos nossos encontros. — Interrompeu-se e acrescentou: —
O que é essa coisa diferente na minha maneira de caminhar de que me
falaste há pouco?

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Era visível que o interesse dela a levava a esse ponto e ele se pôs a
dizer:
— Eu te peço, se tu queres...

Mas ele parou nesse instante, pois se lembrou com medo, de repente,
de que na véspera ela tinha se levantado bruscamente para partir
quando ele pediu que se deitasse sobre a laje para dormir, como
outrora fizera no templo de Apolo; e ele vagamente associou, em seu
espírito, essa lembrança com o olhar que ela lhe havia lançado ao
partir. Mas agora seus olhos guardavam a mesma expressão calma e
doce e ela disse, como ele não acrescentasse mais nada:
— Foi gentil de tua parte dizer que teu desejo de que alguém fosse
vivo se aplicava a mim... E tu podes, por isso, me pedir o que quiseres,
eu o farei com prazer.

Essas palavras acalmaram os temores de Norbert e ele respondeu:


— Eu ficaria feliz de te ver caminhar de muito perto, como no teu
retrato.

Ela se levantou sem dizer nada, pronta para realizar esse desejo, e
percorreu uma pequena distância entre a muralha e as colunas. Tinha
mesmo aquele passo calmo e flexível que ele tinha gravado no
espírito, em que a planta do pé se elevava quase verticalmente, mas
ele verificou pela primeira vez que ela não tinha sandálias sob o
vestido, que deixava ver seus pés, mas finos calçados claros, cor de
areia. Quando ela retornou e se sentou sem dizer uma palavra, ele
involuntariamente levou a conversação para a diferença que existia
entre os sapatos que ela calçava e aqueles do baixo-relevo. Ela
respondeu:

— Tudo muda com o tempo e, para a época atual, as sandálias não são
cômodas. Ponho estes sapatos que protegem melhor contra a poeira e
a chuva.

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Mas por que me pediste para caminhar diante de ti? Há qualquer
coisa de diferente no meu caminhar? Esse desejo de saber isso, desejo
que ela manifestava de novo, mostrava que não era desprovida de
curiosidade feminina. Ele respondeu então que se tratava da posição
particularmente vertical de seu pé, que se demorava atrás, enquanto
ela caminhava, e acrescentou que havia tentado observar, na sua
cidade natal, a maneira de caminhar de suas contemporâneas durante
várias semanas. Mas suas observações haviam sido frustrantes, exceto
talvez uma só ocasião em que ele havia acreditado perceber a mesma
maneira de caminhar. Ele se havia, sem dúvida, deixado levar, na
confusão da multidão, vítima de uma ilusão, pois havia pensado que
os traços dessa mulher se pareciam um pouco aos de Gradiva.

— Que pena — disse ela —, pois uma tal constatação teria sido, sem
dúvida, de grande interesse científico e, se tu a tivesses efetuado,
terias poupado essa longa viagem até aqui. Mas quem é a pessoa de
que falas, quem é essa Gradiva?
— Foi .assim que eu chamei a tua imagem, pois que ignorava até
agora teu verdadeiro nome.

Ele acrescentou estas últimas palavras hesitando um pouco, e a jovem


mulher hesitou também antes de responder à pergunta indireta que
continha a última frase:
— Eu me chamo Zoe.

Ele exclamou num tom doloroso:


— Esse nome combina muito contigo, mas soa aos meus ouvidos
como uma amarga ironia, pois Zoe quer dizer a vida.
— Ë preciso se resignar com o que não se pode mudar — respondeu
ela — e há muito tempo já me habituei a estar morta. Mas agora meu
tempo já se

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esgotou. Tu me trouxeste a flor dos túmulos para que ela me mostre o
caminho. Dá-ma, portanto.

Ao levantar-se, ela estendeu a mão e ele lhe entregou o ramo de


asfodelo, tomando cuidado para não lhe roçar os dedos.

Aceitando-o, ela disse:


— Eu te agradeço. A outras, mais privilegiadas, as rosas da
primavera; a mim, vinda de tua mão, só convém a flor do
esquecimento. Tenho permissão para vir aqui amanhã à mesma hora.
Se o teu caminho te conduzir uma vez mais à casa de Meleagro,
poderemos sentar-nos de novo à beira do campo de papoulas. Sobre o
umbral está gravada a palavra Have, eu te digo, então, Have.

Ela se afastou e desapareceu, como na véspera, no canto do pórtico


parecendo se entranhar no chão. Tudo ficou de novo vazio e mudo e,
súbito, a pequena distância, retiniu um som breve e claro, muito
parecido com o grito ridente de um pássaro que atravessou a cidade
em ruínas. Norbert, sozinho, contemplava os degraus, assento
abandonado, em cuja parte mais baixa percebeu alguma coisa branca
e brilhante. Era a folha de papiro que, na véspera, Gradiva tinha sobre
os joelhos e que hoje esquecera de levar. Ele estendeu a mão,
medrosamente, para colhê-lo e encontrou um pequeno caderno com
alguns esboços a lápis de diferentes casas pompeianas. Sobre a
penúltima página se via a mesa enfeitada com os grifos do átrio da
Casa di Meleagro, por trás da qual havia começado a desenhar a
fileira das colunas do peristilo e as papoulas do oecus. O fato da morta
desenhar num álbum esboços de tipo totalmente moderno não era
menos surpreendente do que ela exprimir seus pensamentos em
alemão. Mas essas não passavam de pequenas coisas acrescidas ao
grande milagre da ressurreição e ela aproveitava, evidentemente, ao
meio-dia, de sua hora de lazer para guardar, com extraor-

66
dinário talento artístico, a lembrança do ambiente em que ela havia
outrora vivido. Seus desenhos testemunhavam um grande sentido de
observação finamente desenvolvido, assim como cada palavra sua
mostrava capacidade de raciocínio e idéias inteligentes. Ela deveria
ter se sentado frequentemente perto da mesa adornada com os grifos
e essa era, sem dúvida, para ela, uma recordação particularmente
preciosa. Norbert, segurando o caderno, atravessou mecanicamente o
pórtico e descobriu, no momento em que ia virar-se, uma estreita
abertura na muralha, suficientemente larga, no entanto, para deixar
passar um corpo de uma esbelteza fora do normal para dentro do
edifício contíguo, e, de lá, para o Vicolo dei Fauno, do outro lado da
casa. Parecia-lhe, ao mesmo tempo, muita insensatez sua acreditar
que Zoé-Gradiva se entranhasse pelo solo. Não podia compreender
como ele havia acreditado nisso. Ela tomava o caminho que a levava a
sua tumba. Esta devia encontrar-se na rua dos Túmulos. Precipitou-se
e seguiu apressado a rua de Mercúrio até à porta de Hércules. Mas
quando chegou aí, era já muito tarde. A grande Stirada dei Sepolcri se
estendia vazia, inundada de luz. O máximo que se podia distinguir, na
sua extremidade, por trás da cortina resplandecente dos raios do sol,
era uma sombra ligeira que parecia passar vagamente diante da casa
de Diomedes.

Norbert teve, durante toda a segunda metade desse dia, a sensação de


que Pompéia estava toda enco-

67
berta, ou se encontrava, pelo menos, numa nuvem brumosa. Esta não
era, como habitualmente, cinza, morna e melancólica, mas, para dizer
a verdade, era mais uma nuvem alegre, particularmente mesclada de
azul, de vermelho, de marrom, e sobretudo de um branco amarelado e
de um branco de alabastro, onde os raios do sol misturavam fios de
ouro. A nuvem tampouco diminuía a capacidade ótica do olho, ou a
capacidade auditiva do ouvido. Somente o pensamento não conseguia
atravessá-la, e era, no entanto, uma muralha de nuvens cujo efeito
podia ser comparado ao da mais densa bruma. Ao jovem arqueólogo
parecia que lhe administravam todas as horas de uma maneira
invisível e, ademais, mal perceptível, que um fiaschetto di Vesuvio
girava incansavelmente no seu cérebro. Procurava libertar-se disso
aplicando a si mesmo o antídoto, bebendo muita água e fazendo
caminhadas tão longas quanto possível. Seus conhecimentos médicos
não eram muito extensos, mas o faziam diagnosticar que seu estado
estranho se devia a um afluxo de sangue muito forte à cabeça, o que
estaria relacionado talvez com uma aceleração da atividade do
coração, pois sentia, por outro lado, algo até aqui totalmente
desconhecido: um choque rápido, de tempos em tempos, contra a
parede do peito. Além disso, seus pensamentos, se não podiam se
exteriorizar, não ficavam inativos no seu interior, ou, mais
exatamente, não havia no seu espírito senão um pensamento, seu
dono exclusivo, e cuja atividade era tal que, mesmo sendo perpétuo,
se tornava vão. Girava em torno da questão de saber que invólucro
físico tinha Zoé-Gradiva, durante sua estada na casa de Meleagro, ou
se, ao contrário, ela não era senão a enganadora ilusão do que havia
sido anteriormente. O fato de que dispusesse de órgãos para falar, de
que pudesse manter um lápis entre os

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dedos, parecia testemunhar em favor da primeira hipótese dos pontos
de vista da física, da fisiologia e da anatomia. Mas a idéia dominante
em Norbert era a de que, se ele a tocasse, se ele tentasse pôr sua mão
sobre a dela, não encontraria senão o vazio. Um estranho instinto o
impelia a procurar uma certificação, enquanto uma não menor
timidez o impedia, em imaginação, pois ele sentia que a confirmação
de qualquer dessas duas possibilidades tinha alguma coisa de
assustador. A existência física dessa mão o teria amedrontado e a
ausência dessa existência lhe daria um grande desgosto. Esterilmente
absorvido por esse problema, que continuaria sem solução pelo
menos até que uma experiência científica fosse instituída, Norbert foi
conduzido pelo seu longo passeio até à montanha que se eleva acima
de Pompéia e que é o primeiro contraforte da alta cadeia do monte
Sant'Angelo. Aí encontrou, de maneira bastante imprevista, um velho
senhor de barba grisalha que, a se julgar pelos apetrechos de toda
sorte com que estava munido, devia ser um zoólogo ou um botânico
ocupado em pesquisar sobre uma encosta ardentemente ensolarada.
Virou a cabeça para Norbert, no momento mesmo em que este quase
o tocava, olhou-o por um momento com surpresa e lhe disse:

— O senhor também se interessa pelo Faraglio-nensis? Eu mal podia


acreditar, mas me parece provável que ele não se encontre somente
no Faraglione, perto de Capri, mas também aqui sobre terra firme, se
se tiver paciência de procurá-lo. O procedimento indicado por meu
colega Fimer é verdadeiramente bom e eu já o tenho aplicado várias
vezes com pleno sucesso. Por favor, não se mexa.

Parou de falar e depois de subir com prudência um pouco mais alto,


deitou-se no chão, e sem um movimento colocou uma pequena alça,
feita

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com um talo de erva comprido, diante de uma estreita fresta de
rochedo onde se via a cabeça brilhante de um lagarto a espiar. O
zoólogo permaneceu assim, sem se mexer. Norbert passou por trás
dele sem fazer ruído e retomou o caminho pelo qual tinha vindo.
Parecia lembrar-se vagamente de já ter visto a figura do caçador de
lagartos, provavelmente num dos dois hotéis, e a acolhida que ele lhe
dera parecia confirmar isso. O mínimo que se poderia dizer dos
motivos que levavam as pessoas a demorar em Pompéia é que eram
extremamente curiosas e incríveis. Feliz por ter podido se
desembaraçar rapidamente do armador de laços e voltar a pensar no
problema da existência ou da não-existência corporal, sentiu-se no
dever de retornar. Mas um atalho o levou na direção errada,
conduzindo-o à extremidade leste das muralhas da cidade e não a
oeste aonde deveria ir. Absorvido pelos pensamentos, só percebeu seu
erro quando chegou perto de um edifício que não era nem o Diomedes
nem o Hotel Suíço. Entretanto, a construção tinha as indicações de
um hotel. Notou, na vizinhança, as ruínas do grande anfiteatro de
Pompéia e lhe veio à lembrança que existia perto do teatro um outro
hotel, o Albergo dei Sole, que por ser afastado da estação não
conseguia senão um número restrito de hóspedes e, que por essa
mesma razão, era pouco conhecido. Tinha sentido calor durante o
trajeto e sua cabeça não se havia liberado das nuvens que a rodeavam.
Entrou então pela porta aberta e pediu o remédio que acreditava seria
bom contra a congestão, uma garrafa de água mineral. A peça estava
vazia, não se levando em conta as moscas, que se amontoavam em
grande número, e o proprietário, que não tendo o que fazer,
aproveitou a ocasião para puxar conversa e recomendar-lhe sua casa e
as maravilhas, retiradas das escavações, que

70
continha. Fez alusões bem pouco veladas às pessoas em casa de quem
não havia um só objeto autêntico entre os que punham à venda, mas
apenas falsos. Ele, que se contentava com uma coleção menor, pelo
menos não oferecia aos seus clientes senão peças absolutamente
autênticas. Não comprava jamais objetos provenientes de escavações
às quais não tivesse ele mesmo assistido e, em seguida, de seu
discurso se depreendeu que ele estava presente quando se descobriu,
nos arredores do Fórum, um jovem casal de amantes que, na
expectativa da inevitável catástrofe, se havia estreitamente enlaçado
para esperar a morte. Norbert já havia ouvido essa história antes, mas
havia dado de ombros, considerando-a uma fábula saída da
imaginação particularmente fértil de um contador de histórias. Fez de
novo essa observação, mas o proprietário lhe trouxe um broche de
metal coberto de patina que teria sido encontrado, sob os seus olhos,
na cinza, ao lado da jovem. Quando o hóspede do Albergo dei Sole
teve a jóia em suas mãos, sua imaginação dominou-o de tal forma que
a comprou ali mesmo, abandonando todo senso crítico, pelo preço
para inglês que lhe pediam, e deixou logo em seguida o hotel com a
sua compra. Ao virar-se para trás viu, à janela de um dos andares,
uma haste de flores brancas de asfódelos suspensa, mergulhada num
copo de água. Sem que nada de lógico houvesse nisso tudo, a vista
dessa flor dos túmulos lhe pareceu uma confirmação da autenticidade
de sua nova aquisição. Tomou então o caminho que segue ao longo
das muralhas da cidade até a Porta Marina, olhando a jóia com
atenção e timidez, tomado por um duplo sentimento. Não era,
portanto, uma fábula; um casal de amantes fora exumado perto do
Fórum e tinha sido perto do templo de Apolo que ele vira Gradiva se
deitar para dormir o sono da morte. Mas ele a

71
tinha visto em sonho e estava certo agora de que, na realidade, ela
podia ter avançado alguns passos no Fórum e aí haver encontrado
com o homem com quem havia morrido.

Segurando aquele broche esverdeado entre os dedos, estava possuído


do sentimento de que pertencera a Zoé-Gradiva, e de que havia
fechado seu vestido na altura do pescoço. E ela tinha sido a amante, a
noiva, ou talvez a mulher daquele com quem quisera morrer.

Norbert Hanold teve vontade de jogar fora o broche. Queimava-lhe os


dedos como se fosse de fogo. Ou melhor, lhe causava a mesma dor que
sentiria em sua imaginação, se quisesse colher a mão de Gradiva na
sua, e não encontrasse senão o vazio.

Mas a razão ainda era a dona do seu espírito e não deixava reinar sem
controle a imaginação. Faltava-lhe, de qualquer maneira, uma prova
irrefutável de que o broche pertencera a Gradiva e de que fosse
mesmo ela que houvessem encontrado nos braços do jovem. Essa
convicção teve para ele a força de um sopro liberador e, quando
chegou ao Diomedes, com o crepúsculo que caía, seu passeio de
algumas horas e sua boa saúde lhe haviam proporcionado também a
necessidade de se alimentar. Comeu com bastante apetite a refeição
espartana que o Diomedes estava acostumado a servir, apesar de sua
origem ariana, e reparou em dois clientes novos chegados naquela
tarde. Pela postura, pela língua, via-se que eram alemães. Eram um
homem e uma mulher, tinham os dois umas caras jovens, simpáticas e
espirituosas. Não se podia adivinhar que laços os uniam, mas Norbert
deduziu por uma certa semelhança que encontrou entre eles que
deviam ser irmão e irmã. No entanto, os cabelos louros do rapaz se
distinguiam da nuance castanho-clara dos de sua companheira. Ela
trazia no

72
peito uma rosa vermelha de Sorrento, cujo aspecto recordava
qualquer coisa àquele que a observava de um canto da sala, sem que
ele pudesse se lembrar o que era. Era o primeiro casal que encontrava
na viagem que lhe causava uma impressão simpática. Eles se
entretinham diante de um fiaschetto e falavam num tom nem alto
nem confidencial, sem dúvida de coisas tanto sérias quanto alegres
pois, de vez em quando, um ligeiro sorriso lhes subia, nos dois ao
mesmo tempo, aos lábios, tornando-os gentis e dando vontade de
tomar parte na conversa deles ou, pelo menos, a Norbert veio esse
desejo, se ele os tivesse encontrado dois dias antes numa sala povoada
de ingleses e de americanos. Mas ele sentia que o que tinha na cabeça
estava em grande contradição com a atitude natural e alegre do jovem
casal que, evidentemente, não estava envolvido em nenhuma nuvem,
que não meditava, certamente não, sobre a substância de que é feita
uma mulher morta há dois mil anos e que usufruía do momento
presente e da vida, sem se deixar perturbar por um problema repleto
de enigmas. Não correspondendo seu estado ao deles, ele achou que
não saberiam ser uns para os outros de nenhuma valia e, além disso,
tinha bastante medo de travar conhecimento com aquelas pessoas
naquelas condições, porque sentia um vago pressentimento de que
seus olhos claros poderiam penetrar sua fronte, seus pensamentos e
mostrar, pela sua expressão, que eles pensavam não estar ele em toda
a sua razão. Meteu-se então no quarto e ficou, como na véspera,
algum tempo frente à janela, a contemplar o manto de púrpura que, à
noite, revestia o Vesúvio, depois se estirou para dormir. Muito
fatigado, adormeceu logo e teve um sonho estranhamente absurdo:
em algum lugar, sob o sol, Gradiva estava sentada e fez de um talo
de erva um nó escorregadio para prender

73
um lagarto dizendo: "Eu te peço, não te movas, minha colega tem
razão, o procedimento é verdadeiramente bom, e ela o tem aplicado
com pleno sucesso". No sonho, tudo isso pareceu absolutamente louco
a Norbert Hanold, e ele se agitou, dormindo, a fim de libertar-se do
seu sonho. E conseguiu, com efeito, graças ao socorro de um pássaro
que, soltando um grito breve, semelhante a uma gargalhada, voou
levando o lagarto no bico. Então, tudo desapareceu.

Ao despertar, Norbert se lembrou de que durante a noite uma voz lhe


havia dito que as roseiras dão flor na primavera, ou foram os olhos
que o recordaram disso quando seu olhar, pela janela, caiu sobre um
arbusto coberto de deslumbrantes flores vermelhas. Eram da mesma
espécie da que tinha ao peito a jovem mulher. Assim que chegou
embaixo, Norbert colheu algumas rosas e cheirou-as. As rosas de
Sorrento deviam, com efeito, ter qualquer coisa de peculiar, pois seu
odor não lhe pareceu apenas maravilhoso, mas também estranho e
novo. Parecia ter sobre o seu espírito um poder dissolvente. Pelo
menos, elas o fizeram perder o medo que ontem tivera dos guardas do
Ingresso e foi por esta via lícita que entrou em Pompéia, pagando o
dobro do preço da entrada sob o primeiro pretexto que encontrou.
Tomou rapidamente um caminho onde se misturou à multidão dos
visitantes. Havia trazido o caderno de esboços da Casa di Meleagro, o
broche esverdeado e as rosas

74
vermelhas. Estas últimas o haviam feito esquecer de tomar o café da
manhã, e seus pensamentos não apontavam a hora presente, mas o
meio-dia. Como tinha ainda muito que esperar até lá, devia encontrar
como empregar o tempo e, com essa intenção, penetrou numa casa,
depois numa outra, onde lhe parecia possível que, outrora, Gradiva
tivesse entrado com frequência, e que ela devesse, de tempos em
tempos, visitar. A opinião de que ela só podia sair ao meio-dia lhe
pareceu menos correta. Podia ser que lhe fosse permitido sair em
outras horas do dia e durante a noite, ao luar. As rosas confirmavam
miraculosamente essa opinião quando as tinha sob o nariz e as
cheirava. E a reflexão ela própria lhe vinha confirmar essa maneira de
ver. Ele podia, com efeito, se orgulhar de não manter uma suposição a
priori e, ao contrário, deixar o campo livre a todas as hipóteses
plausíveis e sua última hipótese não só lhe parecia lógica, como ainda
desejável. Mas então colocou a questão de saber se os outros homens
eram também capazes de perceber o invólucro corporal de Gradiva ou
se era o único a possuir esse poder. Não pôde repelir a primeira destas
hipóteses que chegou a tomar, a seus olhos, alguma verossimilhança,
ainda que ele desejasse que fosse o contrário, e ela o pôr num estado
de instabilidade e aborrecimento. O pensamento de que outros
pudessem falar com Gradiva e sentar-se perto dela para a entreter o
chocava. Era um direito que não pertencia senão a ele ou, pelo menos,
tinha direito a um tratamento mais favorável, pois fora ele quem a
havia reencontrado, a esta Gradiva, em quem ninguém pensava. Ele a
havia contemplado diariamente, ele a tinha presa nele mesmo, ele
tinha infundido nela, por assim dizer, sua própria força vital, e lhe
parecia, por isso, haver dado a ela uma vida que ela não mais teria
possuído sem ele.

75
Por tudo isso, segundo o seu sentimento, tinha adquirido um direito
ao qual podia pretender sozinho, e que podia recusar dividir com
quem quer que fosse.

O dia estava ainda mais quente que os dois precedentes, o sol parecia
alcançar um extraordinário recorde e fazia lamentar, não só do ponto
de vista arqueológico, mas ainda do ponto de vista prático, que o
aqueduto de Pompéia se encontrasse interrompido e ressecado há
dois mil anos. As fontes das ruas guardavam aqui e ali uma lembrança
e testemunhavam o fato de que antigamente os passantes sedentos as
haviam utilizado sem cerimônia. Para se aproximarem de seus bocais,
agora desaparecidos, eles pousavam uma das mãos sobre as bordas de
mármore, e terminavam, da mesma maneira que a água gasta a pedra,
gota a gota, por aí deixar uma marca funda. Norbert observava isso na
esquina da Strada delia Fortuna e lhe vinha também à idéia que a
mão de Zoé-Gradiva outrora teria igualmente se apoiado nesse lugar.
Involuntariamente, pôs a mão na pequena mossa mas abandonou em
seguida essa hipótese e chegou a ficar contrariado pelo fato de tal
idéia lhe ter vindo ao espírito. Não combinava com os modos e o
comportamento de uma jovem pompeiana de boa família. Havia
qualquer coisa de degradante na idéia de ela se inclinar e pôr os lábios
no bocal onde bebia a boca rude da plebe. Ele nunca havia visto nada
mais nobre ou distinto que os gestos e a atitude de Gradiva.
Aterrorizava-o que ela percebesse que ele tivera essa idéia
incrivelmente absurda. Com efeito, os olhos dela tinham qualquer
coisa de extraordinariamente penetrante e às vezes aflorava nele o
pensamento de que, durante os encontros, eles procuravam saber o
que se passava em sua mente e a penetravam com sua sonda de aço
claro. Por isso precisava ter muito cui-

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dado para que eles não descobrissem nada de estúpido entre os seus
pensamentos.

Faltava ainda uma hora para chegar o meio-dia e, para passar esta
hora, atravessou a rua e entrou na Casa dei Fauno, a maior e mais
magnificente casa ali descoberta. À diferença de todas as outras,
possuía um átrio duplo, exibindo no centro do implúvio o pedestal
sobre o qual se encontrara a famosa estátua do fauno dançando, que
lhe havia dado o nome.

Norbert Hanold, no entanto, não sentiu o menor desgosto pelo fato de


essa obra de arte, tão estimada pelos sábios, ter sido, juntamente com
o mosaico da batalha de Alexandre, transportada para o Museo
Nazionale de Nápoles e não se encontrar mais ali. Não tinha outra
intenção ou desejo que passar o tempo e, com esse propósito,
passeava ao acaso pelo grande edifício. Por trás do peristilo se abria
uma peça espaçosa, cercada de numerosas colunas, repetição do
peristilo ou jardim do prazer — Xisto — que a isso se parecia, pois
estava, como o oecus da Casa di Meleagro, inteiramente recoberto de
papoulas em flor. O visitante, com o pensamento ausente, andava pelo
espaço desolado e silencioso.

Hesitou subitamente e parou. Não estava sozinho aí. Acabava de notar


duas pessoas que, à primeira vista, lhe haviam dado a impressão de
ser uma só, de tal maneira estavam agarradas uma à outra. Elas não o
viam, não se ocupavam senão de si mesmas, e se acreditavam mesmo
invisíveis a todos, dissimuladas como estavam, em um canto,
escondidas pelas colunas. Estavam abraçadas, misturavam seus
lábios, e o espectador imprevisto reconheceu, para sua grande
surpresa, o rapaz e a moça que, na véspera, à tarde, haviam sido os
primeiros a agradá-lo no curso de sua viagem. Mas, para um irmão e
uma irmã, seu

77
beijo e seu abraço pareciam realmente um pouco prolongados. Era,
pois, um casal de enamorados, provavelmente recém-casados, uma
Greta e um Augusto. Ê preciso notar que estes dois personagens não
vieram, desta vez, ao espírito de Norbert e que este episódio não lhe
pareceu de mau gosto ou ridículo, ao contrário, aumentou a simpatia
que sentia pelo casal. Como o que faziam lhe parecia ao mesmo tempo
natural e perfeitamente compreensível, demorou-se a olhar o
espetáculo com seus dois olhos ainda mais abertos do que jamais
haviam estado para a contemplação da obra de arte mais admirada da
antiguidade e teria seguido nesta contemplação com prazer. Mas tinha
o sentimento de que havia penetrado sem nenhum direito num
recinto sagrado e de que estava perturbando as práticas secretas de
um culto. Também a idéia de que poderia ser descoberto o encheu de
terror e retirou-se apressado, caminhando sem fazer nenhum ruído,
na ponta dos pés. Tão logo se viu a uma distância suficiente para não
ser mais ouvido precipitou-se para fora correndo, pelo Vicolo dei
Fauno, com o peito oprimido e o coração batendo.

Quando chegou diante da casa de Meleagro, não sabia se já era meio-


dia e sequer pensou em consultar o relógio. Parou diante da porta,
olhando com indecisão durante alguns instantes o Have que lá estava
inscrito. Um medo o impedia de entrar e tinha, curio-

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samente, medo, ao mesmo tempo, de não encontrar Gradiva no
interior da casa e de a encontrar aí, pois lhe havia vindo à cabeça, há
alguns minutos que, no primeiro caso, ela estaria em algum outro
lugar com um rapaz e que, no outro, este rapaz estaria com ela e lhe
faria companhia, sentados os dois nos degraus entre as colunas.
Tinha, contra este último, um ódio mais forte do que o que sentia por
todas as moscas reunidas e não teria acreditado que fosse capaz de
sentir uma emoção tão profunda e avassaladora. O duelo, que sempre
lhe parecera um ato estúpido, surgia de repente sob essa luz como um
direito natural e o único meio de um homem mortalmente ofendido
exercer uma vingança que o satisfizesse ou deixar uma existência já
então sem objetivo. Bruscamente dirigiu-se para a entrada. Queria
provocar aquela selvagem, queria, e isso lhe vinha ainda com mais
força, dizer àquela mulher que ele a havia considerado melhor, mais
nobre e incapaz de tal comércio.

Estava a tal ponto transbordante nesses ensaios de revolta que as


palavras lhe vinham à boca, embora não tivesse para isso nenhuma
razão. Pois quando sua pressa o conduziu ao oecus, gritou com
impetuosidade:
— Estás só? — mesmo não tendo nenhuma dúvida de que Gradiva,
sentada nos degraus, estava tão sozinha como nas vezes precedentes.

Ela o olhou com surpresa e respondeu:


— Quem poderia estar ainda aqui depois do meio-dia? Todo mundo
tem fome e está almoçando. Eu acho que a natureza fez as coisas
muito bem assim.

A excitação transbordante de Norbert não podia se acalmar


imediatamente e, apesar de sua consciência e vontade, era um campo
aberto às desconfianças que o haviam invadido lá fora com a força

79
de uma certeza. E apesar de toda a realidade, não conseguia chegar a
pensar de outra forma. A mulher tinha os olhos fixos nele, esperando
que retomasse a palavra. Depois bateu com o dedo na fronte e disse:
— Tu és... — Continuou: — Parece-me que já é bastante que eu não
me ausente, apesar de ter que esperar tua chegada. Mas este lugar me
agrada enormemente. Eu vejo que tu me trouxeste o caderno de
esboços que esqueci ontem. Agradeço tua excelente intenção. Não
queres mo dar?

Esta última pergunta se justificava pois Norbert não se propunha a


fazê-lo e continuava pregado no mesmo lugar, sem um movimento.
Vinha-lhe à mente que ele havia imaginado e forjado uma enorme
estupidez e que havia dito outra. Para reparar isso tanto quanto
possível, avançou rapidamente, estendeu o caderno a Gradiva, e
sentou-se maquinalmente no degrau ao seu lado. Ela lançou um olhar
sobre as mãos do jovem e disse:
— Parece que tu és amigo das rosas.

A estas palavras, o motivo que o havia levado a colhê-las e a trazê-las


lhe voltou bruscamente e ele respondeu:
— Sim, mas elas não são para mim... Tu me disseste ontem... e esta
noite alguém me repetiu, que devem ser oferecidas na primavera...

Ela refletiu um pouco, evidentemente, antes de responder:


— Ah! sim, me lembro! Disse que não se dava asfódelos às outras, mas
rosas. Que gentil de tua parte. Parece-me que a opinião que tens de
mim melhorou um pouco.

Ela adiantou a mão para segurar as flores vermelhas e ele deu-lhas


dizendo:
80
— Eu pensava, a princípio, que tu só podias estar aqui ao mejo-dia,
mas creio agora que tu podes vir também a outras horas e estou feliz.
— E por que estás feliz?

O rosto da mulher exprimia incompreensão, mas seus lábios tremiam


de maneira quase imperceptível. Ele respondeu sem jeito:
— Ê belo viver... eu nunca tinha me apercebido antes... Eu queria te perguntar...

Procurou no bolso do seu jaquetão e concluiu, retirando o objeto que


havia, enfim, encontrado:
— Este broche te pertenceu outrora? Ela se aproximou ligeiramente,
mas sacudiu a cabeça.
— Não, não posso me lembrar. Pela sua antiguidade, isso não me
parece, contudo, impossível, pois ele provém, sem dúvida, desse
tempo. O encontraste com certeza no Sol. Me parece já haver visto
esta bela pátima verde.

Ele repetiu involuntariamente:


— No Sol, por que no Sol?
— Chama-se aqui o Sol ao que produz todas as coisas desta espécie. Não é
possível que este broche tenha pertencido a uma jovem que morreu com um
companheiro na região do Fórum, eu creio...
— Sim, ele a tinha em seus braços...
— Ah! sim...

Estas duas pequenas palavras saíram da boca de Gradiva


evidentemente como uma exclamação favorável e ela parou um
instante antes de continuar:
— Essa é a razão que te fez crer que eu o tinha usado e isso te havia
talvez... como me dizias ainda há pouco... feito infeliz?
Via-se que ele se sentia extraordinariamente aliviado e assim
demonstrou sua resposta:
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— Eu estou muito contente... O pensamento de que este broche te
houvesse pertencido me havia causado uma espécie de... turbilhão na
cabeça.
— Tua cabeça me parece propensa a isso. Esqueceste, talvez, de comer
esta manhã? Isso favorece ainda mais tais acessos. Eu não sofro deles,
mas trago provisões, porque gosto de estar aqui ao meio-dia. Se
queres que te ajude a dissipar um pouco o estado de irritação em que
te encontras, podemos reparti-las.

Tirou do bolso de seu vestido um pãozinho enrolado em papel de


seda, pôs a metade na mão dele e começou a comer a outra metade
com evidente apetite. Seus dentes, extraordinariamente graciosos e
regulares, não se contentavam com aparecer entre os lábios e seduzir
por seu esplendor, mas faziam ainda, ao morder a crosta do pão, um
ruído ligeiramente crepitante que não dava absolutamente a
impressão de que fossem aparências sem consistência, mas qualquer
coisa de físico e de natural. Além disso, ela tinha razão ao comentar
sobre o café da manhã perdido. Ele comia, também, maquinalmente e
sentia um efeito favorável a esclarecer seus pensamentos. Assim não
falaram os dois durante algum tempo. Entregaram-se à mesma
ocupação útil, até o momento em que Gradiva disse:
— Parece-me que há dois mil anos nós já partilhamos igualmente o
nosso pão. Não te lembras?

Ele não se lembrava, mas espantou-se por ela lhe falar de uma época
indefinidamente distante, pois o reforço de solidez causado pela
comida na sua cabeça havia tido como efeito uma mudança no estado
do seu cérebro. A idéia de que ela pudesse ter se encontrado neste
local de Pompéia há tão remoto tempo não lhe parecia enquadrar-se
com o são racio-

82
cínio. Tudo nela não lhe parecia agora ter mais que vinte anos. A
forma e a cor do rosto, os cabelos castanhos ondulados de maneira
particularmente encantadora, os dentes imaculados e o vestido claro,
que nem a menor mancha mostrava, não podiam, sem flagrante
contradição, ter estado enterrados durante inumeráveis anos sob a
cinza. Norbert se pôs a duvidar de que estivesse verdadeiramente
sentado ali, acordado, e pensou que era mais certo que estivesse em
seu gabinete de trabalho e que, enquanto contemplava a imagem de
Gradiva, o sono o tivesse tomado. Ele teria então sonhado que estava
em Pompéia, que aí havia encontrado Gradiva ainda viva e continuava
a sonhar que se encontrava sentado ao seu lado na Casa de Meleagro.
Pois o fato de que ela ainda estivesse viva e rediviva não podia
verdadeiramente acontecer senão em sonhos... As leis da natureza se
opunham a isso.

O que ela acabava de dizer, no entanto, que já havia repartido seu


pão, dois mil anos antes, com ele, parecia estranho. Ele nada sabia
disso e, evidentemente, isso não podia lhe acontecer em sonhos.

Ela havia pousado os dedos finos da mão esquerda sobre o seu joelho,
da mão que escondia a chave da revelação de um milagre insolúvel.

O oecus da Casa di Meleagro não estava abrigado da impertinência


das moscas comuns. Norbert acabava de perceber uma, sobre uma das
colunas amarelas, em frente a ele, que corria daqui para ali segundo o
hábito idiota das moscas. Sem razão, agora ela zumbia em torno do
seu nariz.

Ele devia ter respondido à pergunta e dito que não se lembrava de ter
comido antigamente o pão com ela, mas involuntariamente as
palavras seguintes lhe saíram bruscamente da boca:

83
— As moscas eram então já tão diabólicas quanto agora e te
atormentavam a ponto de te dar desgosto pela vida?

Ela o olhou com espanto e repetiu sem compreender:


— As moscas... Será que tens uma agora dentro da tua cabeça?

O monstro negro havia pousado nesse momento sobre sua mão e ela
não exprimia senti-la sequer pelo menor movimento. À essa visão,
dois poderosos impulsos concorreram para conduzir o jovem
arqueólogo a um mesmo ato. Levantou bruscamente a mão e deu um
golpe sem nenhuma doçura sobre a mosca e a mão da vizinha.

Tão logo o golpe foi dado, um grande embaraço tomou-o, ao mesmo


tempo que um terror cheio de alegria. Ele não tinha golpeado no
vazio, ele não tinha encontrado uma coisa fria e entorpecida mas, sem
dúvida alguma, uma verdadeira mão humana, quente e viva, que ficou
um instante sob a dele, sem movimento, evidentemente siderada.
Depois foi vivamente retirada e a moça disse:
— Tu estás realmente louco, Norbert Hanold.

Este nome, que ele não havia dito a ninguém em Pompéia, lhe vinha
com tanta certeza, com tal decisão e sem nenhuma hesitação, dos
lábios de Gradiva, que aquele que o possuía levantou-se, ainda mais
assustado, do degrau onde havia estado sentado. Nesse momento
ressoaram passos entre as colunas, passos que se haviam aproximado
sem serem notados e diante do olhar perturbado de Norbert Hanold
apareceram os rostos do casal de amantes simpáticos da Casa dei
Fauno. A jovem gritou, num tom da mais viva surpresa:

— Zoe, tu também aqui! E também em viagem de núpcias! Não me


havias escrito nada!

84
Norbert se viu do lado de fora da Casa de Meleagro, na Strada di
Mercúrio. Não tinha a menor noção de que maneira havia chegado ali.
Devia ter saído instintivamente ao perceber, num súbito clarão, que
era tudo o que lhe restava fazer se não quisesse se encontrar na
situação mais ridícula do mundo aos olhos do jovem casal, mais ainda
aos olhos daquela que lhe havia chamado por seus dois nomes e que
eles haviam saudado tão amigavelmente, e sobretudo aos seus
próprios olhos. Pois embora não compreendesse nada do que lhe
havia ocorrido, alguma coisa lhe parecia incontestável. Gradiva, com
aquela mão que era humana, que não era sem consistência, que era
morna e realmente viva, havia expressado esta incontestável verdade:
ele havia se encontrado, nos dois últimos dias, num estado de
completa loucura e não era um sonho estúpido, os olhos e os ouvidos
que a natureza põe à disposição da razão humana tinham estado
despertos. Não compreendia em absoluto — não mais, aliás, que todo
o resto — como tudo aquilo pudera acontecer. Além disso, tinha o
vago sentimento de que um sexto sentido teria tido um papel muito
importante nesse caso, a ponto de tê-lo feito tomar uma coisa,
preciosa talvez, pelo seu oposto. A fim de tirar algum proveito dessas
reflexões, precisava de um lugar silencioso e solitário, distante, o que
impulsionou Norbert Hanold a afastar-se o mais rápido possível de
olhos, ouvidos e outros órgãos dos sentidos que utilizam seus talentos
naturais, como convém, aos fins a que são destinados.

85
Quanto à pessoa que possuía a mão morna, tinha ficado também
surpreendida pela visita inopinada e particularmente imprevista ao
meio-dia, e deduzindo-se da expressão inicial de sua fisionomia, a
surpresa não fora exclusivamente agradável. Mas no instante seguinte
não aparecia mais o menor traço disso sobre seu rosto circunspeto;
levantou-se rapidamente, dirigiu-se à jovem mulher e lhe apertou a
mão.

— É verdadeiramente um prazer, Gisa, o acaso tem mesmo de vez em


quando uma idéia agradável. Então o senhor é seu marido há quinze
dias? Estou encantada em conhecê-lo e não é necessário, pelo ar que
vejo em vocês, transformar as felicitações em condolências. Casais
que têm necessidade desse tipo de cumprimento costumam vir
almoçar em Pompéia hoje em dia. Vocês devem estar hospedados
perto do Ingresso. Irei ver vocês esta tarde. Não, eu não escrevi e peço
que você não se zangue, pois, como você vê, minha mão não se
regozija, como a sua, do direito de usar uma aliança. O ar aqui tem
grande efeito sobre a imaginação, você é a prova disso, o que é melhor
do que se ele deixasse vocês muito sóbrios. O rapaz que acaba de
partir também está tecendo no cérebro uma teia estranha, me parece
que ele imagina uma mosca zumbindo na cabeça; aliás, cada um não
tem, mais ou menos, sua aranha no teto? Eu tenho alguns
conhecimentos de entomologia; sou, portanto, de alguma utilidade
em tais casos. Meu pai e eu moramos no Sole, ele teve, também, um
súbito acesso e, com isso, a boa inspiração de trazer-me com ele sob a
condição de que eu me distraia só em Pompéia e de que não o
aborreça. Eu achava que mesmo sozinha acabaria desenterrando aqui
qualquer coisa interessante. Mas sobre o meu achado — quero dizer, a
oportunidade de encontrar você, Gisa — eu não tinha ousado pensar.
Mas não paro de fa-

86
lar, tagarelando como se faz com uma velha amiga. Nós não somos, na
verdade, velhas. Meu pai, às duas horas, deixa o sol pela mesa dos
hóspedes do Soleil e eu preciso ir fazer-lhe companhia e tenho que
renunciar, por agora, à de vocês. Vocês podem, eu creio, admirar sem
mim a Casa di Meleagro. Não tenho certeza, mas suponho que sim.
Favorisca signor! A rivederci Gisetta! Já aprendi bastante italiano e
não preciso saber mais. Aquilo de que se necessita, se inventa. Com
licença, não, senza complimenti.

Este último pedido se dirigia ao jovem marido que, por polidez,


parecia querer acompanhá-la. Ela havia se expressado com
vivacidade, sem nenhum embaraço e de acordo com as circunstâncias
de seu encontro imprevisto com uma de suas amigas íntimas. Mas
havia falado excessivamente rápido, o que demonstrava que, como
dizia, lhe era mesmo impossível ficar. Também só saiu da Casa de
Meleagro para a Strada di Mercúrio alguns minutos depois da partida
precipitada de Norbert Hanold. A rua, como de costume àquela hora
do dia, não continha nada de vivo, a não ser aqui e ali um lagarto que
remexia a cauda. Parou à soleira da porta, refletiu alguns instantes,
depois tomou o caminho mais curto até a porta de Hércules, seguindo
as lajes da encruzilhada do Vicolo di Mercúrio e da Strada di
Lallustio com seu macio andar de Gradiva. Chegou, assim,
rapidamente, às bases das ruínas das muralhas da Porta Ercolanese.
Por trás desta se estendia a longa Via dos Túmulos, mas esta não tinha
então o branco resplendente que a havia revestido e feito toda
faiscante de raios, vinte e quatro horas antes, quando o jovem
arqueólogo aí buscava a moça com os olhos. O sol parecia convencido
de que já havia ultrapassado suas medidas pela manhã. Dissimulava-
se atrás de uma nuvem cinzenta, aparentemente trabalhando ainda
através de sua den-

87
sidade, e os ciprestes, de um lado e de outro da Strada dei Sepolcri se
erguiam, aqui e ali, em negro escuro sobre o céu. Era um quadro
muito diverso do da véspera. A claridade que tornava todas as cores
misteriosamente radiosas havia desaparecido. Via-se com morna
precisão a rua, que parecia haver tomado um aspecto de acordo com
sua denominação. Essa impressão não se desmentia, mas aumentava
devido a alguma coisa que se via mover-se no outro extremo da rua,
nas proximidades da villa de Diomedes e que se assemelhavam a uma
sombra tentando encontrar sua tumba para desaparecer dentro dela.
Não era o caminho mais curto para ir da Casa de Meleagro ao Albergo
dei Sole, melhor dizendo, era a direção oposta, no entanto, Zoé-
Gradiva devia ter-se lembrado, de repente, de que o tempo não a
pressionava tanto para ir almoçar, pois, em seguida, após uma
pequena parada perto da porta de Hércules, afastou-se de costas,
levantando quase verticalmente a sola dos pés sobre as lajes de lava da
Rua dos Túmulos.

A villa de Diomedes era assim denominada gratuitamente pelos


homens modernos porque um certo Líbertus Marcus Arrius
Diomedes, elevado ao cargo de chefe do bairro que outrora se erguia
nesse lugar, aí havia construído um túmulo, primeiro para sua esposa
e depois para si próprio e para os filhos. Essa villa era um vasto
edifício e oferecia um testemunho autêntico e aterrador da história da
destruição de

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Pompéia. Todo prédio superior estava agora reduzido a um grande
amontoado de ruínas. Um pouco mais abaixo se encontrava um
jardim de dimensões excepcionalmente extensas, inteiramente
cercado por um pórtico cujos pilares estavam bem conservados. No
centro do jardim se encontravam os magros resíduos de uma fonte e
de um pequeno templo. Um pouco mais abaixo ainda, duas escadas
conduziam a um subterrâneo abobadado que circundava o jardim e
era iluminado por uma claridade obscura e crepuscular. A cinza do
Vesúvio havia penetrado também aí, onde foram descobertos os
esqueletos de dezoito mulheres e crianças. Haviam se refugiado com
algumas provisões colhidas às pressas nessa peça meio subterrânea e
esse pretenso refúgio se havia transformado em túmulo para todos os
que nele se haviam abrigado. Em outro local se encontrara o suposto
dono da casa que fora do mesmo modo asfixiado e jazia sobre o solo.
Havia querido fugir pela porta do jardim, da qual tinha ainda a chave
na mão. Ao seu lado encontrava-se outro esqueleto contorcido, sem
dúvida o de um de seus serviçais, que trazia com ele considerável
número de peças de ouro e prata. A cinza endurecida conservara a
forma dos corpos que enterrara e assim se tirara moldes deles; no
Museo Nazionale de Nápoles se encontra, sob um vidro, o modelado
exato do pescoço, dos ombros e do belo busto de uma jovem vestida
num fino vestido de gaze.

A Villa de Diomedes era, pelo menos uma vez, o inevitável final de


percurso para um visitante consciente de seu dever, mas naquele
momento, ao meio-dia, se podia supor com certeza que, devido à
localização afastada, não se encontrava ali nenhum curioso; assim, ela
pareceu a Norbert Hanold o refúgio que melhor convinha à sua nova
necessidade de reflexão. Esta exigia imperiosamente uma solidão de

89
tumba, um silêncio sem sopro e uma tranquilidade sem movimento,
mas uma inquietude poderosa crescia energicamente no sistema
arterial de Hanold contrariando essa última pretensão. Tinha sido
forçado a fazer entre as duas reivindicações um acordo; a mente
tentaria manter a sua, permitindo, todavia, aos pés que contentassem
seu desejo. Assim, desde a chegada, passeava em volta do pórtico,
conseguindo manter o equilíbrio corporal e esforçando-se para
normalizar o de sua mente. Mas a realização se mostrava mais difícil
de atingir que a intenção; sem dúvida, Norbert via clara e
incontestavelmente que havia sido totalmente insensato ao pensar
que tinha se sentado ao lado de uma jovem pompeiana ressuscitada e
mais ou menos reencarnada, e esta idéia, bem distinta da sua loucura,
o levava incontestavelmente a um progresso considerável no caminho
de volta à razão. Mas sua razão não retornara ainda ao estado normal,
pois se lhe parecera que Gradiva não era mais que uma figura de
pedra morta, estava da mesma forma fora de dúvida que ela vivia
ainda. Tinha disso uma prova irrefutável, ele não tinha sido o único a
vê-la, outros também o podiam fazer, sabiam que ela se chamava Zoe
e lhe falavam como a uma pessoa de sua espécie. Por outro lado.
Gradiva sabia o nome de Norbert Hanold e isso só poderia dever-se a
uma faculdade sobrenatural do seu ser. Ora, essa dupla natureza
continuava igualmente indecifrável à luz da razão que começava a lhe
voltar. A essa contradição insolúvel se associava outra parecida, que
estava nele, pois se tinha o vivo desejo de se enterrar com os outros na
villa de Diomedes a fim de não correr o risco de reencontrar Gradiva,
ao mesmo tempo o animava o sentimento extremamente alegre de
que ela ainda estava na vida e conseqüentemente ele podia
reencontrá-la outra vez. Isso girava na sua

90
cabeça, empregando uma comparação vulgar, mas exata, como a roda
de um moinho, e ele corria da mesma maneira ao redor do longo
pórtico, o que não dissipava suas contradições. Muito ao contrário,
tinha o vago sentimento de que tudo em volta dele obscurecia sem
cessar.

Foi então que, de súbito, recuou, quando virava um dos quatro cantos
da aléia bordejada de pilares. A alguns passos diante dele, bem alto,
sobre um trecho de muralha em ruínas estava sentada uma jovem,
uma das que foram encontradas mortas aqui mesmo sob as cinzas.

Não, aí estava um desses absurdos dos quais já havia liberado sua


razão. Seus olhos, e qualquer coisa nele que não tem nome, o
reconheceram. Era Gradiva, ela estava sentada sobre as pedras da
ruína como antes sobre o degrau, mas como estivesse bem mais alto,
mostrava, sob a bainha do vestido, os pés, até os graciosos tornozelos,
pendendo livremente, calçados nos sapatos cor de areia.

O primeiro movimento instintivo de Norbert Hanold foi fugir


correndo pelo jardim, entre dois pilares. Aquilo que mais temia no
mundo, na última meia hora, acabava de acontecer num repente. Os
olhos claros que o olhavam e os lábios abaixo deles iam, achava ele,
explodir num riso irônico. Mas nada fizeram e uma voz conhecida
ressoou tranquilamente: "Lá fora vais te molhar."

Percebeu agora, pela primeira vez, que chovia; era por isso que o
tempo se havia tornado tão sombrio. Isso seria, sem dúvida, do
melhor proveito para a vegetação de Pompéia e seus arredores, mas
seria ridículo acreditar que um homem pudesse tirar qualquer
vantagem daquela chuva e nesse momento Norbert Hanold temia
muito mais o ridículo do que um perigo de morte.

91
Foi esta a razão por que abandonou, a contragosto, seu desígnio, e
ficou, todo sem graça, olhando os dois pés de Gradiva que, agora,
como que tomados de impaciência, balançavam ligeiramente. E como
isso não esclarecia precisamente os pensamentos que pudesse estar
exprimindo, a proprietária dos pés graciosos tomou de novo a palavra:
— Nós fomos interrompidos... Querias dizer-me qualquer coisa sobre
as moscas... creio que fazias observações científicas ou tinhas uma
mosca dentro da cabeça... Conseguiste pegá-la sobre a minha mão e
matá-la?

Dizendo essas últimas palavras um sorriso lhe passou pelos lábios,


mas tão leve e gracioso que nada teve de terrível. Muito ao contrário,
devolveu a Norbert o que ele buscava, a possibilidade de falar, mas
com uma restrição: o jovem arqueólogo não sabia mais, de repente,
em que pessoa dirigir sua resposta. Para escapar ao dilema, achou
melhor não usar nenhuma e respondeu:
— Eu tinha, como se diz, o cérebro um pouco confuso e peço perdão
de ter assim... essa mão... Não posso me explicar como pude ser tão
insensato; mas não estou, tampouco, no estado de compreender
como é que a dona dessa mão pode me censurar pelo meu desatino
me chamando pelo meu nome.

Os pés de Gradiva pararam o movimento e ela retomou seu discurso


na segunda pessoa do singular:
— Tua compreensão não está ainda bastante desenvolvida,
Norbert Hanold. Isso, aliás, não poderia me surpreender, pois há
muito tempo que estou acostumada com ela. Para renovar essa
experiência não me teria sido necessário vir a Pompéia, poderias ter-
me convencido, certamente, a uma centena de léguas daqui.

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— A cem léguas daqui — repetiu ele sem compreender e meio
gaguejante —, onde isso?
— Em frente à tua casa, na diagonal, na casa da esquina, à minha
janela há uma gaiola com um canário.

Esta última palavra tocou aquele que a ouvia como a recordação de


um tempo longínquo, e ele repetiu:
— Um canário...

E acrescentou gaguejando ainda mais:


— Que... que canta?
— É o seu costume, sobretudo na primavera, quando o sol começa a
brilhar e a esquentar. Nessa casa mora meu pai, Richard Bertgang,
professor de zoologia.

Os olhos de Norbert Hanold se arregalaram tanto, a tal ponto, como


jamais haviam conseguido arregalar-se antes. Repetiu uma vez mais:
— Bertgang... a senhorita é, então... a senhorita é a senhorita Zoe
Bertgang? Mas essa me parecia outra pessoa.

Os dois pés suspensos começaram a balançar e a senhorita Zoe


Bertgang disse:
— Se achas o tratamento cerimonioso mais conveniente entre nós
eu posso também empregá-lo, mas chamar-te de tu me vinha mais
naturalmente aos lábios. Eu não sei se no passado, quando
brincávamos amigavelmente todos os dias, e de vez em quando
trocávamos tapas e sopapos eu te aparecia sob outra luz. Mas, se
nestes últimos anos o senhor se desse o trabalho de lançar os olhos
sobre mim, as cascas talvez já tivessem caído, e o senhor teria
percebido que há algum tempo sou assim. Não, agora chove muito, a
cântaros, como se diz, o senhor não ficaria com um fio seco.

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Não apenas os pés da jovem testemunhavam uma nova onda de
impaciência, mas também havia no tom da sua voz qualquer coisa que
parecia demonstrar que ela estava zangada e de mau humor e Norbert
tinha a impressão de desempenhar o papel de um escolar
repreendido, que leva um tapa na boca. O que o fez procurar
maquinalmente, mais uma vez, uma saída entre os pilares, e ao
movimento que expressava esse desejo é que se referiam as últimas
palavras que havia acrescentado a senhorita Zoe Bertgang. E, para
dizer a verdade, eram incontestavelmente justas, pois para designar a
chuva que caía por fora do teto protetor a expressão chove muito era
bastante fraca. Uma tromba d'água tropical, de uma espécie que
raramente se abate, para benzê-los, sobre os campos napolitanos,
precipitava o mar Tirreno do alto do céu sobre a villa de Diomedes e
se erguia como uma firme muralha composta de milhares de gotas da
grossura de uma noz, resplandecentes como pérolas. Essa
circunstância tornava, com efeito, impossível uma fuga ao ar livre e
forçava Norbert Hanold a permanecer na sala de aula que constituía o
pórtico. Sua jovem professora, de expressão fina e prudente,
aproveitava o aprisionamento para continuar, após curta pausa, os
esforços pedagógicos.
— Então, até essa idade em que, não sei bem por quê, nos tratam de
"Backfisch", eu, na verdade estranhamente, me dediquei ao senhor, e
acreditei jamais poder encontrar no mundo amigo mais encantador.
Eu não tinha mãe, nem irmão, nem irmã, e quanto ao meu pai, a
primeira cobra-de-vidro que aparece, conservada no álcool, lhe
parece muito mais interessante do que eu; ora, é uma necessidade,
necessidade da mais absoluta para quem quer que seja, mesmo para
uma adolescente, ter com que ocupar seus pensamentos e tudo o que
daí se segue. Esse quê era,

94
então, o senhor, mas quando a ciência da antiguidade o submergiu,
eu fiz essa descoberta que tu — desculpe-me, mas sua inovação
protocolar parece tão insípida e pouco apropriada ao que eu quero
exprimir — eu queria dizer, então, me pareceu que te havias
transformado num homem insuportável que, para mim pelo menos,
não tinha mais olhos na cara, língua na boca, lembranças no lugar em
que eu conservava intacta toda a nossa amizade de infância. Por isso,
sem dúvida, eu não tinha mais meu jeito de antes; pois quando nós
nos encontrávamos aqui ou ali no mundo, no inverno passado ainda,
tu não me vias, eu não ouvia o som da tua voz, o que não me parecia,
aliás, especial, pois fazias o mesmo com todas as outras. Eu não era,
para ti, senão o vento, e com esse topete louro, que antigamente
tantas vezes eu despenteei, estavas também tão tedioso, seco e parco
de palavras como uma cacatua empalhada e com isso inchado de
importância como um arqueopterix (é bem o nome de pássaro
monstro, fóssil antedilu-viano). Mas que a tua mente edificasse um
fantasma assim tão monumental de me tomar aqui, em Pompéia,
como uma coisa qualquer exumada e ressuscitada, eis o que eu não
poderia ter esperado de ti e quando surgiste de imprevisto diante de
mim, foi com grande esforço, primeiramente, que pude alcançar o
que havia por trás da incrível teia tecida pela imaginação no teu
cérebro. Depois comecei a me divertir e saboreei esse divertimento,
apesar do seu bolor de casa de loucos. Pois, como te dizia, não
esperava isso de tua parte.

Isso dizendo, a senhorita Zoe Bertgang havia terminado por adoçar


um pouco o tom de sua voz e sua expressão. Enquanto fazia esse
sermão severo, sem disfarce, circunstanciado e instrutivo, se parecia,
de maneira verdadeiramente notável, ao baixo-relevo

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Gradiva, não apenas pelos traços de seu rosto, pelo tamanho, pela
expressão séria dos olhos, os cabelos graciosamente ondulados, a
postura que ela havia tantas vezes manifestado, mas ainda pelas
vestes, o vestido e o xale de fina e macia casimira creme, com
numerosas pregas, que completavam a extraordinária semelhança de
toda a sua aparência.

Era loucura completa ter acreditado que uma pompeiana enterrada


aqui há dois mil anos pelo Vesúvio, pudesse de vez em quando sair
bem viva, falar, desenhar, comer pão. Mas como a fé traz a felicidade,
ela faz aceitar de contrapeso uma quantidade de coisas inacreditáveis.
Tudo bem considerado, assim era, salvo algumas circunstâncias
atenuantes importantes, levando-se em conta o estado de espírito de
Norbert Hanold e a loucura que o havia feito tomar Gradiva, durante
dois dias, por uma Rediviva.

Embora ele estivesse bem no seco sob o telhado do pórtico, se podia


compará-lo a um cão molhado, sobre o qual acabavam de derramar
um balde cheio de água. Mas, para dizer a verdade, a ducha fria lhe
havia feito bem. Sem que soubesse bem por quê, sentia o peito mais
livre, a respiração mais fácil. Essa leveza poderia ter sido facilitada
pela mudança de tom do fim do sermão — a pregadora estava,
efetivamente, sentada como sobre uma cátedra — e durante o sermão
havia surgido entre suas pálpebras o esplendor transfigurador que
aparece nos olhos dos visitantes de igrejas, em quem a fé e a
esperança despertam a perspectiva de um futuro bem-aventurado.
Como a reprimenda estivesse terminada, sem que se pudesse temer
que outra viesse a seguir, Norbert conseguiu dizer:
— Sim, eu te reconheço agora... Não, na verdade tu não mudaste...
és Zoe..., minha boa camarada, alegre e ajuizada, é realmente muito
estranho.

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— Que alguém tenha primeiro que morrer para encontrar a vida. Mas
isso sem dúvida é necessário na arqueologia...
— Não, eu quero falar de teu nome...
— Porque ele é. estranho?

O jovem arqueólogo se mostrava não apenas versado nas línguas clássicas, mas
também nos radicais germânicos, pois respondeu:
— Pois Bertgang e Gradiva têm o mesmo sentido e querem dizer
aquela que resplandece ao andar.

Os dois sapatos, espécie de sandálias, da senhorita Zoe Bertgang


pareciam naquele momento, pela sua mobilidade, uma alvéloa a se
agitar com impaciência, como a esperar qualquer coisa, e
aparentemente as meditações linguísticas eram o que menos
interessava à dona daqueles pés que resplandeciam quando
caminhavam. E, por sua expressão, ela aspirava um desenlace rápido.
Mas de novo se atravessou uma observação de Norbert Hanold, que
parecia moldada na mais profunda convicção:
— Mas que sorte que tu não és Gradiva, mas sim aquela moça tão
simpática!

Estas palavras fizeram passar pelo rosto da moça uma espécie de


espanto, que disse:
— Quem é, em quem tu pensas?
— Naquela que falava contigo na casa de Meleagro.
— Tu a conheces?
— Sim, já a tinha visto, é a primeira vez que uma mulher me agrada
tanto.
— Ah! E onde a viste?
— Esta manhã, na casa do Fauno. Os dois estavam fazendo uma coisa
extraordinária.
— O que estavam fazendo?
— Não estavam me vendo e se beijavam.

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— Ë bem natural. Por que outra razão estariam em Pompéia em
viagem de núpcias?

A estas últimas palavras toda a perspectiva se transformou aos olhos


de Norbert Hanold, pois o trecho de muro que Zoe havia escolhido
para cátedra se encontrava vazio, a jovem havia descido. Ou melhor,
ela tinha voado, se lançando no ar com a mobilidade oscilante da
alvéloa e se encontrava já ereta sobre os pés de Gradiva antes que o
olhar tivesse podido tomar consciência do seu vôo descendente.

Retomou imediatamente a conversação dizendo:


— A chuva agora passou. Os mestres severos demais não duram muito
tempo. Tudo voltou à razão, eu não menos que os outros. Podes ir te
encontrar com Gisa Hartleben, ou qualquer outro nome que ela tenha,
a fim de lhe ser cientificamente útil durante sua estada em Pompéia.
Eu preciso regressar ao Albergo dei Sole, onde meu pai deve estar me
esperando para almoçar. Nós talvez nos reencontremos pelo mundo,
na Alemanha ou na lua... Adeus. Zoe Bertgang falava no tom distinto,
mas perfeitamente insignificante, de uma jovem da melhor sociedade
e se preparava para ir embora, pousando, como era seu costume, o pé
direito à frente, enquanto a planta do esquerdo se mantinha quase
verticalmente. Como, além disso, dada a umidade do chão, ela
levantasse ligeiramente o vestido com a ajuda da mão esquerda, a
semelhança com Gradiva era perfeita e aquele que estava afastado
dela apenas o dobro do comprimento de um braço, notou então pela
primeira vez um detalhe na verdade ínfimo que distinguia a viva do
baixo-relevo. Faltava a este último uma coisa que a outra possuía e
que se mostrava muito nitidamente nesse momento: era uma
pequena covinha na face, onde se passava qualquer coisa mínima e
difícil de determinar. Ela se pregueou então

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um pouquinho, o que poderia bem exprimir tanto um desafio quanto
um desejo de rir reprimido, talvez até as duas coisas juntas. Norbert
Hanold olhava essa covinha e, ainda que fosse trazido à razão segundo
o diploma que acabavam de conceder-lhe, seus olhos devem ter se
confundido por um erro de ótica. Pois anunciou sua descoberta num
tom particularmente triunfante:
— Eis a mosca outra vez!

Era de tal maneira estranho que a ouvinte, sem compreender estas


palavras, não podendo verificar por si mesma, deixou
involuntariamente escapar:
— A mosca, onde?
— Aí, no teu rosto.

E, em resposta, Norbert enlaçou subitamente o pescoço da jovem,


tentando alcançar com os lábios o inseto que ele tanto detestava e que
imaginava ver na covinha. Evidentemente não teve sucesso, pois
exclamou logo em seguida:
— Não, ei-la agora sobre os teus lábios!

E nesse sentido dirigiu sua caçada com a rapidez do raio. Mas dessa
vez demorou tanto tempo que não deixou nenhuma dúvida de que
não vinha atrás do inseto. E, coisa extraordinária, a Gradiva viva
agora não o contrariava em nada, e quando, por volta de um minuto
mais tarde, foi obrigada a retomar a respiração, não lhe disse, apesar
de a possibilidade de falar lhe ter sido restituída:
— És completamente louco, Norbert Hanold.

Mostrou, pelo contrário, com um sorriso encantador nos lábios bem


mais vermelhos que antes, que agora estava perfeitamente
convencida da total recuperação pelo companheiro, da saúde e do
juízo.
A villa de Diomedes tinha sido, há dois mil anos, numa hora nefasta,
testemunha de acontecimentos particularmente lúgubres, mas
durante uma

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hora não viu acontecer nada capaz de provocar terror. Nesse
momento, então, surgiu na senhorita Zoe uma reflexão sensata e ela
disse, na verdade contra a vontade:
— Mas realmente preciso ir agora. Meu pai vai morrer de fome. Creio
que por hoje podes renunciar à companhia de Gisa Hartleben no
almoço e te contentares com o Albergo dei Sole, pois já não tens mais
nada a aprender com a minha amiga.

Poder-se-ia concluir daí que durante a hora precedente se havia


tratado de uma coisa como outra qualquer, pois essas propostas
pareciam indicar que Norbert Hanold havia recebido da jovem dama
acima citada úteis lições. Ele não deu atenção às palavras de
exortação, mas pela primeira vez lhe veio à mente algo que exprimiu
assim:
— Mas teu pai, o que é que ele vai... A senhorita Zoe o interrompeu
sem manifestar qualquer inquietação:
— Oh! Nada, provavelmente. Eu não sou uma peça indispensável à
coleção zoológica dele. Se fosse, talvez meu coração não se ligasse tão
tolamente em ti. Aliás, já faz tempo que descobri que uma mulher vale
somente na medida em que libera o homem das preocupações
domésticas. Neste ponto, podes ficar tranquilo em relação ao futuro,
sempre poupo disso o meu pai. Mas ele talvez tenha justamente nesse
caso uma opinião diferente da minha, e então arranjaremos as coisas
da maneira mais simples do mundo. Tu irás a Capri por alguns dias e
lá apanharás com um laço de capim — podes treinar como se fez no
meu dedinho — uma Lacerta Faraglionensis. Tu a deixas aqui e a
capturas outra vez à vista dele. Depois, o fazes escolher entre o lagarto
e eu. Sou eu que ele te concederá, tenho tanta certeza que quase
lamento por ti. Sou muito ingrata, hoje sinto isso, para com seu co-

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lega Eimer, pois sem a invenção genial dele, relativa a lagartos, eu
com certeza não viria à casa de Meleagro, o que teria sido uma pena,
não só para ti mas também para mim.

Ela expressou essa opinião ao sair da villa de Diomedes, não havendo,


infelizmente, testemunha que pudesse nos trazer as inflexões e o tom
então presentes em sua voz. Embora combinassem com o resto de sua
pessoa, as inflexões de sua voz tinham então, sem nenhuma dúvida,
um encanto extraordinariamente bonito e travesso.

De todo modo, Norbert Hanold ficou tão enlevado que gritou, tomado
por um impulso poético:
— Oh! Zoe, tu que és a vida amada e a presença amável, faremos
nossa viagem de núpcias na Itália e em Pompéia?

Isso confirmava de forma decisiva o fato de que a transformação das


circunstâncias traz também uma mudança na alma do homem ao
mesmo tempo que um enfraquecimento da memória. Pois não lhe
ocorria que ele e a companheira de viagem estariam arriscados a
receber da parte dos companheiros de viagem misantropos e mal-
humorados os apelidos de Augusto e Greta. Pensava nisso tão pouco
quanto no fato de que iam juntos, de mãos dadas, pela rua dos
Túmulos de Pompéia. A bem da verdade, ela não merecia esse nome
no momento. Um céu deslumbrante e limpo sorria acima dela. O sol
cobria com um tapete dourado as antigas placas de lava, o Vesúvio
abria as asas de seu amplo penacho de fumaça e toda a cidade parecia
coberta, não de cinzas e de pedras-pome, mas de pérolas e diamantes,
graças ao efeito da chuva benfazeja. Com essas jóias rivalizava o brilho
da lua que estava nos olhos da jovem filha do zoólogo, mas seus lábios
prudentes respondiam à vontade de viajar que o amigo de infância
demons-

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trava, ele próprio parecendo ter sido desenterrado de um longo
sepultamento:
— Acho que não há necessidade de quebrar a cabeça com esse
assunto hoje. Ê uma coisa que tem de ser seriamente pensada e à
qual dedicaremos nosso pensamento no futuro. De minha parte,
não me sinto ainda tão plenamente viva para tomar tal decisão
geográfica.

Isso demonstrava uma grande modéstia da parte de alguém que


julgava assim a própria capacidade de escrutinar coisas sobre as
quais ainda não tinha refletido. Nesse momento tinham chegado à
Porta de Hércules, naquele ponto em que, no início da Strada
Consolare, estão as lajes, através da rua. Norbert Hanold parou
diante das lajes e disse num tom de voz muito peculiar:
— Passe aqui, à frente, por favor.

Um sorriso alegre e entendido passou pelos lábios da


companheira, e apanhando frouxamente o vestido com a mão
esquerda, Gradiva-Rediviva-Zoé Bertgang, envolvida pelos olhares
sonhadores de Norbert Hanold, no seu andar macio e tranquilo,
em pleno sol, sobre as lajes, passou para o outro lado da rua.

FIM

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