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BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 1

BRASIL – 500 ANOS


DE LÍNGUA
PORTUGUESA
(Congresso internacional)

Apoio específico para esta publicação

CNPQ

FAPERJ

MINISTÉRIO DA CULTURA

AlphagraficsPinheiro/São Paulo
ABF/SBLL/UERJ

EDITORA ÁGORA DA ILHA


2 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Ficha catalográfica
FILHO, Leodegário A. de Azevedo
Brasil 500 anos de Língua Portuguesa / Leodegário
A. de Azevedo Filho (organizador)
372 páginas - Rio de Janeiro, junho de 2000

Editora Ágora da Ilha - ISBN 86854


Lingüística e Filologia CDD - 410.412

COPYRIGHT: Leodegário A. de Azevedo Filho.


TEL.: (0 XX 21) 522-5155

BRASIL 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Rio de Janeiro, junho de 2000

Magnífico Reitor da Universidade


do Estado do Rio de Janeiro
Antônio Celso Alves Pereira
Presidente da Academia Brasileira de Filologia e
da Sociedade Brasileira de Língua e Literatura
Leodegário A. de Azevedo Filho
Diretor do Instituto de Letras
Cláudio Cezar Henriques

COMISSÃO EDITORIAL
Álvaro de Sá
Amós Coelho da Silva
Marina Machado Rodrigues

Editor: Paulo França


EDITORA ÁGORA DA ILHA
TEL.FAX: 0XX 21 - 393-4212
agorailh@ruralrj.com.br
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 3

Sumário
PARTE I
CONFERÊNCIAS.......................................................................................13
Língua, poesia e música em Cecília Meireles...................................15
Albano Martins (Universidade Fernando Pessoa, Portugal)
Questões de globalização e lusofonia..................................................21
Anna Hatherly (Universidade de Lisboa, Portugal)
D. Francisco Manuel de Melo no Teatro da Língua Portuguesa.......33
Evelina Verdelho (Universidade de Coimbra, Portugal)
Da construção lingüística da identidade. Um estudo de caso...............61
João Nuno Paixão Corrêa Cardoso (Universidade de Coimbra, Portugal)
Sintaxe camoniana: “Na qual quando imagina.”...................................73
Jorge Morais Barbosa (Universidade de Coimbra, Portugal)
Os estudos vicentinos: balanço e perspectivas......................................81
José Augusto Cardoso Bernardes (Universidade de Coimbra, Portugal)
Em defesa da Língua Portuguesa.........................................................91
Leodegário A. de Azevedo Filho (UERJ e UFRJ)
A Lusitania liberata ou A Restauração portuguesa em imagens .....95
Lilian Pestre de Almeida (Universidade Independente, Lisboa)
A Língua Espanhola e a sua função na obra catequética no Brasil.....111
Nicolás Extremera Tapia (Universidade de Granada)
O primitivismo literário de influência brasileira na poesia de
Angola....................................................................................................133
Salvato Trigo (Universidade Fernando Pessoa)
O léxico arcaico na história da Língua Portuguesa...........................143
Telmo Verdelho (Universidade de Aveiro, Portugal)
Tradução literária e comunicação cultural: o Português do Brasil em
Espanha..................................................................................................149
Xosé Manuel Dasilva Fernández (Universidade de Vigo, Espanha)
4 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

PARTE II
COMUNICAÇÕES ESPECIAIS...................................167
Análise contrastiva da variedade da Língua Portuguesa no Brasil e
em Portugal..........................................................................................169
Alessandra Dias Gervasoni (Universidade de Assis, SP)
José de Alencar e a língua nacional....................................................177
Ana Lúcia de Sousa Henriques (UERJ)
Duarte Nunes do Lião e a saudade do latim.......................................185
Antônio Martins de Araujo (ABF e UFRJ)
Língua e História do Brasil seiscentista em um manuscrito lusitano
.................................................................................................................197
Carla da Penha Bernardo (UFRJ)
Os utensílios de cozinha: português europeu do séc. XVI em confronto
com o português do Brasil no séc. atual..............................................207
Celina Márcia Abbade (UNEB/PPGL - UNBa)
É uma Língua Portuguesa, com certeza............................................217
Claúdio Cezar Henriques (ABF e UERJ)
Qual é a “língua brasileira” a se aprender na escola?.......................221
Darcília Simões (UERJ)
A defesa da fé no púlpito transdisciplinar............................................227
Geysa Silva (UFJF)
A indeterminação do sujeito no falar culto do Rio de Janeiro...........235
Hilma Ranauro (ABF e UFF)
As linguagens de Fernando Pessoa e Manoel de Barros................251
Isaac Newton Almeida Ramos
Edição diplomática de Gregório de Matos Guerra..............................261
José Pereira da Silva (ABF e UERJ)
Os sufixos tupi tyba ou tüba identificados com o sufixo português al...267
Luís César Saraiva Feijó (ABF e UERJ)
A Língua Portuguesa no Brasil: papel dos gramáticos na sua implantação
(participação em mesa-redonda)........................................................271
Manuel Pinto Ribeiro (ABF e UERJ)
Clarice Lispector e Maria Gabriela Ilansol: tentativas de descrever
sutilezas ou como dobrar a língua........................................................281
Maria de Lourdes Soares (UFRJ)
Um olhar sobre O memorial do convento - Saramago, primeiro Prêmio
Nobel da Língua Portuguesa................................................................293
Marina Machado Rodrigues (UERJ e ABF)
Tupinismos, africanismos, asiaticismos e o Dicionário Houaiss de
Língua Portuguesa..............................................................................303
Mauro Vilar (ABF e IAH)
Confrontos entre o Tupi antigo e a Língua Portuguesa....................317
Nataniel dos Santos Gomes (UFRJ e SUAM)
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 5

A língua literária do Brasil no século XX e sua formação.................329


Paulo Silva de Araújo (ABF e Unesa)
A Língua Portuguesa no Brasil: papel dos gramáticos na sua implantação
(participação em mesa-redonda)........................................................341
Walmírio Macedo (ABF e USU)
Língua culta e língua literária............................................................347
Walmírio Macedo (ABF e USU)

PARTE III
COMUNICAÇÕES LIVRES (Resumos).........................353
Isoglossas do português.......................................................................355
Afrânio da Silva Garcia (UERJ-FFP)
O contorno semântico-sintático dos adjetivos em “O coruja” de Aluísio
de Azevedo..............................................................................................355
Afrânio da Silva Garcia (UERJ-FFP)
Intertextualidade como característica da língua literária machadiana
.................................................................................................................355
Alexandre Marcelo Matos (UFJF)
A cidade na obra de Lima Barreto e Almada Negreiros.....................356
Ângela Maria Thereza Lopes (UniverCidade – Univers. de Sá)
As figuras femininas em A geração da utopia de Pepetela...............356
Assunção Maria Sousa e Silva (UFRJ)
O ‘sociolingüista’ Mário de Andrade e o problema da língua brasileira
.................................................................................................................357
Carlos Alexandre Victorio Gonçalves (UFRJ)
História externa do português do Brasil............................................357
Castelar de Carvalho (ABF e UFRJ)
Diálogo entre tradições: uma leitura de “A cartomante” de Machado de
Assis.......................................................................................................357
Cecília de Macedo Garcez (UFJF)
O fim de Arsênio Goddard de João do Rio: o destino de um voluntarioso
Cláudio de Sá Capuano (UFRJ e CMRJ)...............................................358
Os caminhos da memória. Esquecer e lembrar. Uma leitura de Baú de
ossos de Pedro Nava...............................................................................358
Cristina Ribeiro Villaça (UFJF)
Texturas da narrativa de Autran Dourado...........................................359
Irene Jeanete L. Gilberto (Univers. Católica de Santos)
Neologismos formados por empréstimos na Língua Portuguesa escrita
contemporânea do Brasil......................................................................359
Isabel Aparecida S. Stamato (PG- FCL – UNESP)
O português do Brasil: a língua de Alencar .......................................359
Jorge Marques (UFRJ e CMRJ)
6 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

A trajetória da Língua Portuguesa na Amazônia colonial................360


José Ribamar Bessa (UERJ)
A produtividade de alguns processos formadores de palavra na consti-
tuição do vocabulário de pescadores artesanais.................................360
Kátia Carlos Alves/ Nelson Carlos Tavares Junior/Vanessa Sant’Anna
Tavares (UFRJ)
Murilo Mendes e as rasuras na religiosidade....................................361
Mara Conceição Vieira de Oliveira (UFJF)
A defesa da Língua Portuguesa e do império lusitano nos primeiros
gramáticos e em António Ferreira......................................................361
Márcia Maria de Arruda Franco (UFOP – CNPq)
Jeitinho brasileiro. A expressão idiomática no português do Brasil:
uma contribuição para o léxico da língua............................................361
Maria Auxiliadora Fonseca Leal (FALE – UFMG)
As duas faces da cidade na prosa ficcional de João do Rio................362
Mariângela Monsores Furtado Capuano (UERJ)
A reinvenção do infinito: mundos imaginados e imaginários em A idade
do serrote, de Murilo Mendes..............................................................363
Maria Perla Araújo Morais (UFMG)
A onomástica indígena no português do Brasil: confrontos lingüísticos
e interétnicos.........................................................................................363
Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick (USP)
A linguagem do poder e o poder da linguagem: Lima Barreto e a Língua
Portuguesa.............................................................................................364
Maurício Pedro da Silva (USP)
O (não) lugar de Portugal na formação de Murilo Mendes................364
Patrícia Riberto Lopes (UFJF)
O duplo destronizado e a devoração simbólica – a antropofagia como
revisão canônica em um conto de Rubem Fonseca..............................364
Petra Cristina Augusto (UFJF)
Fatores externos na formação do léxico português da América: os ele-
mentos indígenas e afro-negros...........................................................365
Ruy Magalhães de Araújo (UERJ- FFP)
Entre o segredo da Jurema e a perdida muiraquitã: uma busca da iden-
tidade nacional.......................................................................................365
Tatiana Alves Soares (UFRJ)
A linguagem literária machadiana e a reescritura da tradição........366
Terezinha Vânia Zimbrão da Silva (UFJF)

PARTE IV
MINICURSOS..........................................................................................367
1 - “Edição crítica da lírica de Camões”, com as participações de Álva-
ro de Sá (ABF); Marina Machado Rodrigues (UERJ) e Xosé Manuel
Dasilva Fernández (Universidade de Vigo, Espanha).....................369
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 7

A – O corpus minimum (Xosé Manuel Dasilva Fernández)


Lírica de Camões: problemas afetos à autoria e reconstituição textual
– Tentativas anteriores de estabelecimento de um corpus lírico
camoniano - Metodologia concebida por Emmanuel Pereira Filho –
Os critérios empregados por Leodegário A. de Azevedo Filho – A
crítica textual: ferramenta fundamental para o estabelecimento crítico
dos textos – O corpus minimum camoniano, segundo edição crítica
de Leodegário A. de Azevedo Filho.

B – O corpus addititium (Marina Machado Rodrigues)


Conceito de corpus addititium - Critérios propostos por Leodegário
A. de Azevedo Filho – Aplicação dos critérios aos textos excluídos.

2 - “Unidade do português literário no mundo lusofônico de Portugal,


Brasil e nações africanas de Língua Portuguesa”, com as participa-
ções de Pedro Lyra (UFRJ); Carmen Lúcia Tindó Secco (UFRJ) e Nadiá
Paulo Ferreira (UERJ).
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 9

Apresentação
Realizou-se, no período de 26 a 30 de julho de 1999, o Congres-
so Internacional-Brasil: 500 Anos de Língua Portuguesa, no
Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

1 – Participação de professores estrangeiros

Participaram do Congresso os seguintes professores vindos do


exterior:
1.1 - Prof. Dr. Eugenio Coseriu, da Universidade de Tübingen,
Alemanha, que falou sobre “Língua Portuguesa e exemplaridade
brasileira”;
1.2 - Prof. Dr. Fernando Alves Cristóvão, da Universidade de
Lisboa, Portugal, que falou sobre “Unidade e diversidade da Lín-
gua Portuguesa na hora da globalização”;
1.3 - Prof. Dr. Telmo Verdelho, da Universidade de Aveiro,
Portugal, que falou sobre “O português quinhentista”;
1.4 - Profª Drª Evelina Verdelho, da Universidade de Coimbra,
Portugal, que falou sobre “O português quinhentista”;
1.5 - Prof. Dr. Jorge Morais Barbosa, da Universidade de
Coimbra, Portugal, que falou sobre “O português quinhentista”;
1.6 - Prof. Dr. José Carlos Seabra Pereira, da Universidade
de Coimbra, que falou sobre “A redescoberta do Brasil pelo ima-
ginário neo-romântico”;
1.7 - Prof. Dr. Nicolás Extremera Tapia, da Universidade de
Granada, Espanha, foi debatedor em mesa-redonda que tratou do
tema proposto pela conferencista Yonne Leite, do Museu Nacional
e da UFRJ, sobre “As línguas indígenas brasileiras” e a Grammatica
da lingoa mais falada na costa do Brasil, do Padre José de
Anchieta. Em outra sessão, já como conferencista, expôs as suas
10 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

conclusões sobre recente investigação feita em torno da língua dos


catecismos usadas no Brasil quinhentista;
1.8 - Prof. Dr. José Augusto Cardoso Bernardes, da Universi-
dade de Coimbra, Portugal, que falou sobre “Os estudos vicentinos:
balanço e perspectivas”;
1.9 - Profª Drª Anna Hatterly, da Universidade de Lisboa, que
falou sobre “A questão da lusofonia”;
1.10 - Prof. Dr. Xosé Manuel Dasilva Fernández, da Universi-
dade de Vigo, Galiza, que falou sobre “Tradução literária e comuni-
cação cultural: o português do Brasil na Espanha”;
1.11 - Prof. Dr. Albano Martins, da Universidade Fernando Pes-
soa, Porto, Portugal, que falou sobre a “Língua, poesia e música em
Cecília Meireles”;
1.12 - Prof. Dr. Salvato Trigo, da Universidade Fernando Pes-
soa, Porto, Portugal, que falou sobre “O português em África”;
1.13 - Prof. Dr. João Nuno Paixão Corrêa Cardoso, da Universi-
dade de Coimbra, Portugal, que falou sobre “A construção lingüística
da identidade”

2 – Participação de professores brasileiros

Em seguida, relacionaremos a participação de professores bra-


sileiros, indicando temas de conferências e mesas-redondas:
2.1 - Conferência sobre a “Língua histórica portuguesa e
exemplaridade brasileira”com as participações de Cilene da Cu-
nha Pereira (ABF e UFRJ), Castelar de Carvalho (ABF e UFRJ)
e Evanildo Bechara (ABF e UERJ);
2.2 - Conferência sobre “As línguas indígenas brasileiras e a
Grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil, do pa-
dre José de Anchieta”, de Yonne Leite (do Museu Nacional e da
UFRJ), com a participação de Ricardo Cavaliere (ABF e UFF);
2.3 - Mesa-Redonda sobre “A contribuição das línguas indíge-
nas e africanas para o enriquecimento do léxico do português do
Brasil” com as participações de Horácio Rolim de Freitas (ABF e
UERJ), Luís César Saraiva Feijó (ABF e UERJ) e Mauro Vilar
(IAH);
2.4 - Conferências sobre “A Língua Portuguesa no Brasil:
papel dos gramáticos na sua implantação” com as participações
de Evanildo Bechara (ABF e UERJ), Manuel Pinto Ribeiro (ABF
e UERJ) e Walmírio Macedo (ABF e USU);
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 11

2.5 - Mesa-Redonda sobre “A formação da língua literária no


Brasil” com as participações de Domício Proença Filho (ABF e UFF),
Gilberto Mendonça Teles (ABF e PUC) e Ildásio Tavares (UFBa);
2.6 - Conferência sobre “Tradução literária e comunicação cul-
tural: o português do Brasil na Espanha”, com as participações de
Helena Ferreira (UFRJ), Maria Lúcia Aragão (UFRJ), Ivany Lessa
Baptista de Oliveira (SBLL) e Maria Leny H.S. de Almeida (UERJ);
2.7 - Mesa-Redonda sobre “O português do Brasil - sua implan-
tação e sua oficialização como língua nacional”, com as participa-
ções de Claúdio Cezar Henriques (ABF e UERJ), André Valente
(UERJ), José Carlos Azeredo (UERJ) e Darcília Simões (UERJ);
2.8 - Conferência sobre “Palavra de poeta – Cabo Verde e
Angola” proferida pela escritora e jornalista Denira Rozário;
2.9 - Conferência sobre “Escrevendo ainda em Latim no
séc.XVII e defendendo Portugal por imagem”, proferida por Lílian
Pestre de Almeida (Lisboa, Portugal);
2.10 - Conferência sobre “Unidade e diversidade da Língua
Portuguesa na hora da globalização”, com as participações de
Eneida Monteiro Bonfim (ABF e PUC); Horácio Rolim de Freitas
(ABF e UERJ) e Rosalvo do Vale (ABF e UFF);
2.11 - Mesa-Redonda sobre “A língua literária moderna” com
as participações de Dalma Nascimento (UFRJ); Marcus Accioly
(UFPe) e Pedro Lyra (UFRJ);
2.12 - Conferência sobre “Em defesa da Língua Portuguesa”,
por Leodegário A. de Azevedo Filho.

Minicursos

1 - “Edição crítica da lírica de Camões”, com as participações


de Álvaro de Sá (ABF); Marina Machado Rodrigues (UERJ) e
Xosé Manuel Dasilva Fernández (Universidade de Vigo, Espanha);
2 - “Unidade do português literário no mundo lusofônico de
Portugal, Brasil e Nações Africanas de Língua Portuguesa”, com
as participações de Pedro Lyra (UFRJ); Carmen Lúcia Tindó Secco
(UFRJ) e Nadiá Paulo Ferreira (UERJ).

Em síntese, o Congresso pôs em discussão, de um lado, o pro-


blema do transplante e da implantação do português como língua
nacional do Brasil, analisando o uso da língua geral no séc. XVI e
o gradativo triunfo da Língua Portuguesa através do bilingüismo
12 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

do séc. XVII e da sua definitiva implantação no séc. XVIII. A


partir do séc. XIX, a elite intelectual brasileira assumiu como dela
a Língua Portuguesa, surgindo então várias polêmicas entre por-
tugueses e brasileiros. Conclusivamente, a língua é a mesma en-
quanto sistema, apresentando naturais variações de norma e uso,
não apenas entre Portugal e Brasil, mas em todo o mundo
lusofônico. De outro lado, o Congresso analisou a formação da
língua literária no Brasil, desde o séc. XVI, quando a obra de
Anchieta se incluiu dentro dos postulados da estética jesuítica, re-
cebendo os influxos ideológicos do Concílio de Trento, em sua
expressão pré-barroca. No séc. XVII, com Gregório de Matos e
Vieira, o Barroco atingiu a sua plenitude, estendendo-se ainda pelo
séc. XVIII, em que floresceu o Arcadismo com os poetas do
grupo mineiro. No séc. XIX, a língua literária do Brasil estava
plenamente constituída, como se pode ver nas obras literárias dos
românticos, realistas e simbolistas. Afinal, no séc. XX, a partir da
Semana de Arte Moderna de 22, a literatura brasileira tornou-se
uma das mais expressivas do mundo lusofônico.
Com a publicação das Atas do Congresso, que serão enviadas
aos órgãos patrocinadores, melhor se poderá avaliar a qualifica-
ção científica das conferências proferidas e dos temas discutidos
em mesas-redondas e em sessões de Comunicações livres.
Em anexo, remetemos ainda a programação das sessões de
Comunicações, indicando os nomes dos participantes e os temas
das mesmas, com a observação de que também serão selecionadas
e inseridas nas Atas, ampliando-se assim os benefícios culturais
do Congresso Internacional – Brasil: 500 Anos de Língua
Portuguesa.
Por fim, de acordo com o Regulamento do Congresso,
por todos aprovado, aqui se publicam apenas os textos entregues
à Comissão Organizadora, com disquetes, dentro do prazo es-
tabelecido.

Leodegário A. de Azevedo Filho


Presidente
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 13

Parte I
Conferências
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 15

Língua, poesia e
música em Cecília Meireles
Albano Martins

.............................. palavras,
que estranha potência, a vossa!

Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência

Há um poema de Cecília Meireles que me persegue há


cinqüenta anos. Vem no seu livro Viagem, de 1939, e os seus
quatro primeiros versos dizem assim:

Pus o meu sonho num navio


e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Porque me persegue ele, o poema? Não sei. Tenho-o no


ouvido, onde ressoa em surdina, e sei, isso sim, que lá irá con-
tinuar, fazendo companhia a outros que ali um dia também en-
traram, para não mais sair. Este, por exemplo:

Senhora, partem tão tristes


meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Ao seu poema chamou Cecília “Canção”. Este, cujo mote


acabo de evocar, é uma “cantiga”, e o seu autor, João Roiz de
16 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Castelo Branco, um dos poetas recolhidos por Garcia de Resende


no seu Cancioneiro Geral, lá por alturas de Quinhentos, quando
a Língua Portuguesa atravessava os mares, levada no bojo das
naus – dos navios –, como o sonho de Cecília. Mas se a este, por
vontade do poeta, o engoliram as “ondas entreabertas” por suas
mãos, a língua, essa, aportou aqui triunfante, bebeu o sumo dos
frutos tropicais, mergulhou raízes no húmus estuante de seiva, tor-
nou-se “vaga música”, abriu as vogais, suavizou as consoantes,
fez-se imperatriz na toada dolente do chorinho, congonha no bule
dos dias iguais, vinho anestesiante das noites cálidas do luar serta-
nejo, grito de Ipiranga, rosa e ametista.
É dessa “vaga música”, dessa suavidade, desse vinho
perturbante, do perfume dessa rosa e do brilho dessa ametista que é
feita a poesia de Cecília, que são feitas as suas “canções” – título de
um sem número de poemas avulsos e de um emblemático livro seu.
E esta palavra “canção”, a que os tempos da demanda
petrarquista haviam de emprestar novas feições, novos ritmos, no-
vos conteúdos e respiração mais dilatada, logo remete para as ori-
gens da língua literária, para a jubilosa atmosfera das “flores do
verde pino” ou para as “ondas do mar de Vigo”, a que o poeta de
Mar Absoluto sempre se manterá ligado pelo ritmo escandido dos
seus versos brandos. Canção, e canto, e música interligados num
novelo de rimas, de ritmos e de sons, ora vindos do corpo redondo
dos alaúdes, ora do afilado perfil das flautas, ora dos cravos e das
clarinetas que por ali andam urdindo a sua teia sonora, num compas-
so de valsa lenta e suavíssimos adágios.
É essa a língua primeva de Cecília: a dos Cancioneiros. Os
medievais, os das cantigas de amigo e de amor, e o de Garcia de
Resende. Mas é também a do romanceiro popular português, como
claramente deixam perceber o seu Romanceiro da Inconfidên-
cia e alguns romances ou rimances que também escreveu e avul-
samente publicou.
Volto ao poema. Para dizer que sei, afinal, donde vem o seu
fascínio. Vem do ritmo, do seu compasso lento, das cesuras e, também,
dos seus timbres vocálicos. Diz Amorim de Carvalho, no seu Tratado
de Versificação Portuguesa, que o octossílabo (e octossílabos são
os versos do poema de Cecília) “tem uma toada própria lânguida,
mole, vagarosa e dolente”; que os seus acentos rítmicos recaem,
umas vezes, na 4ª e 8ª sílabas; outras, na 2ª, 4ª, 6ª e 8ª, caso em que
o seu andamento se torna mais vagaroso. Não conheceu Amorim
de Carvalho o poema de Cecília. Conhecendo-o, teria emendado a
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 17

afirmação, ou tê-la-ia completado, ao menos, acrescentando que a


norma por si enunciada pode admitir desvios, aceitar variantes.
Repare-se no segundo verso:”e o navio em cima do mar”. Aqui, as
tónicas dominantes são a 3ª, 5ª e 8ª sílabas. E há, no mesmo poema,
um verso – este: “colore as areias desertas” – em que eles, os
acentos rítmicos, recaem na 2ª, na 5ª e na 8ª sílabas. Donde se
infere que o maior vagar e dolência do octossílabo podem também
resultar da sua maior variedade rítmica. Como naquele verso – nem
sáfico nem heróico – de Camilo Pessanha – “aridez de sucessivos
desertos” –, cuja acentuação (com as tónicas dominantes na 3ª e 7ª
sílabas) se furta visivelmente às normas estabelecidas pelos tratadistas
para o verso decassilábico. Veja-se como, com tais acentos, ambos
os versos ondulam.
O de Cecília:

lo rei ser
co re ( as a as de ( tas )
(∪ - / ∪ ∪ - / ∪ ∪ - /)

O de Pessanha:

dez ssi ser


ari de suce vos de (tos)

(∪∪- / ∪ ∪∪ - / ∪ ∪ - /)

No primeiro, o ritmo iâmbico volve-se em dactílico por exce-


lência. E é também dactílico, no essencial, o verso de Camilo
Pessanha, onde a introdução do péon IV no segundo pé ( ∪ ∪ ∪ -)
parece dilatar ad infinitum a extensão (a aridez) dos “sucessivos
desertos”. E esta é a prova – mais uma, e prova bastante – de que,
em matéria de poesia, são os poetas quem, em definitivo, estabelece
as normas, não os tratadistas.
Mas falei dos timbres. É que também eles concorrem decisi-
vamente para a música apetecida que os versos engendram. Aí os
temos: a tónica final do primeiro verso, que contém a vogal fechada
i (“Pus o meu sonho num navio”) ecoa duas vezes no segundo (“e o
navio em cima do mar”) e também no terceiro (“depois, abri o mar
com as mãos”). As rimas em i (neste caso, internas) são, como é
sabido, uma constante nas cantigas de amigo (“Ai flores, ai flores do
verde pino, / se sabedes novas do meu amigo...”; “Ondas do mar de
18 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Vigo, / se vistes meu amigo...”), onde alternam, como também é


sabido e notório, com as rimas em a. Aí as temos, na primeira quadra
do poema de Cecília, onde o substantivo mar, do final do segundo
verso, entra em consonância com o infinito naufragar, do quarto.
E, como se tal não bastasse, o mar do segundo verso é recuperado
no terceiro, numa espécie de leixa-pren, e a sua vogal repercute-se,
como um eco, na palavra “água”, sempre sabiamente colocada a
meio dos versos (“debaixo da água vai morrendo”; “praia lisa, águas
ordenadas”), lá onde o tom sobe ou se encrespa, como a crista
duma onda, que logo se quebra, desamparada, nas “areias desertas”.
E de leixa-pren poderíamos falar ainda a propósito de navio e
sonho, que são, juntamente com mar, as palavras-chave da
semântica do poema. Navio e sonho que, em repetidas variações
sobre o mesmo tema, como leit-motiv ou em jeito de estribilho,
reaparecerão em outros, vários, momentos do poema. Antes que o
“navio chegue ao fundo” e o “sonho desapareça”.
As rimas em i e em a, dizíamos. E são elas que de novo
irrompem em pontos fulcrais do poema. As primeiras, nesta qua-
dra, situada a meio:

O vento vem vindo de longe,


a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio.

As segundas, no seu remate:

Depois tudo estará perfeito:


praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Entre parênteses, faria notar que são as rimas em i que


dão o timbre mais saliente à “cantiga” de João Roiz de Castelo
Branco atrás aludida, e as rimas em a as mais constantes no
romanceiro popular português. Quem não se lembra do início
da “Nau Catrineta”?:

Lá vem a nau catrineta,


que tem muito que contar.
Ouvi agora, senhores,
uma história de pasmar.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 19

Poesia em mi, em si, em fá e em lá, isto é, poesia e músi-


ca harmonizadas na escrita rendilhada de Cecília Meireles.
Música de clavicórdio, instrumento antigo, e de harpa eólica
(“O vento vem vindo de longe, / a noite se curva de frio...” –
note-se a explosão das fricativas, a sugerir o continuado sus-
surro da aragem). Ou, se preferirem, a língua elevada à sua
mais alta expressão musical. Terá sido a consciência de tais
valores – os valores musicais da língua -, tanto como a da sua
irresistível energia comunicativa, que levou Cecília a escrever,
no “Romance LIII ou das palavras aéreas”, do seu Romanceiro
da Inconfidência:

................................. palavras,
que estranha potência a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia...

Palavras. Sonho e rosa. Uma rosa de sílabas “aéreas”, per-


fumadas. Uma canção. Todo o canto e toda a música no timbre
de algumas vogais. Do i, sobretudo. Porque é em i que “ o mel do
amor cristaliza”. Porque é lá, no amor, que o “sentido da vida
principia”. E eis como, deste modo, a frase do Génesis “Ao princí-
pio era o verbo” ganha novo significado. Este: ao princípio era o i.
O i de Cecília. O i de poesia. E, enfim, o i de Brasil.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 21

Questões de globalização e lusofonia


Ana Hatherly, da Universidade Nova de Lisboa.

Em primeiro lugar, desejo expressar a minha satisfação por me


encontrar mais uma vez nesta cidade maravilhosa que sempre me
encantou e onde sempre fui tratada com tanto carinho. Agradeço
ao meu querido amigo Leodegário de Azevedo Filho e aos
organizadores deste Congresso o convite para estar aqui convosco.
Apesar de a Lingüística não ser a área da minha especialida-
de, esta não é a primeira vez que me encontro no meio de mestres
da Lingüística: lembro-me bem de ter participado no 1º Congresso
de Lingüística que, em 1979, se realizou em João Pessoa, e que foi
para mim um Encontro a muitos títulos memorável.
Vinte anos depois, aqui estou, novamente num Congresso de
Lingüística, mas como sou apenas escritora e professora de litera-
tura, vão-me perdoar se, no meu pequeno texto, eu ficar dentro do
meu terreno, tanto mais que a literatura, que é uma das áreas
privilegiadas de funcionamento duma língua, me permite abordar
a questão da lusofonia, que é aonde eu quero chegar.
Recentemente, no passado mês de Junho, estive em Varsó-
via, para participar no 66º Congresso do P.E.N. Club Internacional,
que este ano se realizou na Polônia. O tema do Congresso era
Farewell to the XXth Century – uma despedida do século – mas
o sub-tema que mais se debatia era o problema da globalização,
que, sendo na origem, de ordem econômica na Europa, mas tam-
bém em todo o mundo, se projecta duramente na área da cultura.
O conceito de global village prenunciado por Marshall Macluhan
há mais de duas décadas, começa agora a tomar forma de um
modo generalizado.
Devo dizer que além de ser membro da direcção do P.E.N.
22 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Club Português, há muito que também sou membro da direcção


do pelouro para os direitos lingüísticos no P.E.N. Club Internacio-
nal, e por isso a minha ligação com as questões lingüísticas tem
sido uma das áreas do meu interesse.
Voltando ao Congresso de Varsóvia, o que preocupava os
congressistas do P.E.N Club, europeus, americanos do norte e do
sul, africanos e asiáticos, uma vez que se tratava de uma repre-
sentação de intelectuais de todo o mundo, o que os preocupava
estava equacionado nos dois temas que foram propostos para de-
bate e eram os seguintes:
1º - Quais os efeitos da globalização ante a singularidade do
escritor?
2º - Qual o papel do escritor no próximo milênio?

Estes dois temas já haviam sido discutidos num Encontro In-


ternacional de Escritores do P.E.N. que se realizara em Bled, na
Yugoslávia, no mês de Maio. O que se passou em Varsóvia, foi,
portanto, um prolongamento desse debate.
Eu não estive nesse encontro de Bled, mas li atentamente as
Actas e, quando chegou minha vez de entrar no debate em Varsó-
via, apresentei um texto de que vos darei aqui uma breve súmula.
Assim, voltando à questão inicial da globalização que tanto
preocupa os intelectuais, especialmente os de países de línguas
minoritárias que, em geral, correspondem a economias deficitárias
ou em desenvolvimento, o que se pôde concluir destes debates foi
que o processo de globalização, que agora ameaça as erradamente
chamadas “pequenas literaturas nacionais”, que representam por
vezes, culturas longamente individualizadas, esse processo há muito
que tem estado em discussão porque, agora como antes, o que
verdadeiramente está em questão é o problema da sobrevivência:
sobrevivência duma individualidade, sobrevivência duma ideia de
cultura, sobrevivência do todo um mundo de expressão e criatividade
própria, num contexto em que o domínio duma força econômica, a
que agora chamamos globalização, é uma velha ameaça. O que
mudou é que essa ameaça atinge agora mesmo países e culturas
secularmente importantes que, hoje em dia, em termos de números
de falantes, se encontram de repente no número das línguas
minoritárias, como exemplo, a Alemanha.
Quanto à necessidade de afirmação de singularidade por parte
do escritor, agora mais do que nunca confrontado com o processo
de globalização, esse confronto estende-se agudamente às litera-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 23

turas e às culturas nacionais, e a das em línguas minoritárias, con-


frontadas com os padrões de consumo das áreas culturalmente
dominantes.
Perante esta situação que, na Europa e no mundo, diz respei-
to a um grande número de países com culturas tradicionais com
séculos de existência, quesurgiram várias perturbantes perguntas,
como por exemplo:

1) - Poderá acaso o romântico conceito de escritor como


out-sider, ou a defesa de uma cultura marginal, sobreviver num
mundo dominado pelo processo de globalização, a qual, para citar
uma definição oferecida pela Internet, que aqui traduzo, “é um
meio para se atingir altos níveis de produtividade, eficiência e se-
gurança, penetrando as forças do mercado e os ciclos económicos
à escala mundial”?
2) - Poderá acaso o velho conceito de literatura como merca-
doria espiritual (ou Ropicapnefma segundo lhe chamou João de
Barros no século XVI) poderá acaso esse velho conceito sobrevi-
ver num mundo dominado pelos interesses económicos que fazem
dos assuntos culturais uma indústria como qualquer outra?
3) - Qual é o lugar do talento individual num contexto que tende
a nivelar as diferenças, tantas vezes pelo baixo, submetendo tudo
aos padrões ditados pelos valores das sociedades antes dominantes
e suas dominantes línguas?
A estas prementes questões as tentativas de resposta gera-
ram logo debates, que aqui não tenho tempo de relatar, mas que
poderemos aqui re-iniciar, se for vosso desejo.O que posso infor-
mar é que, dos importantes debates que ocorreram tanto em Bled
como em Varsóvia, uma das principais conclusões a que se che-
gou foi que, curiosamente, ou talvez significativamente, aquilo a
que o processo de globalização em curso tem dado origem, nos
países e nas culturas de línguas minoritárias mais atentos, é uma
intensificação das diferenças culturais, literárias e lingüísticas que
reafirmam – ou pelo menos tentam reafirmar – uma diferencia-
ção, surgindo essa diferenciação como a resposta natural à ame-
aça da normalização, da standardização, do nivelamento das cul-
turas personalizadas, que põem em perigo a diversidade, que é
uma regra natural do processo de sobrevivência.
Quando, nesse debate internacional, chegou a minha vez de
falar, o exemplo que eu dei, como não podia deixar do ser, foi
precisamente o da lusofonia.
24 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Como todos sabem, sendo a Língua Portuguesa uma língua


minoritária na Europa, à escala mundial é uma língua com um
importante número de falantes, mas isso só acontece no conjunto da
lusofonia, que se caracteriza, precisamente, pela afirmação duma
convivência apoiada numa diferenciação harmoniosa. Esse é o
prodígio (talvez momentâneo) que se verifica no mundo da Língua
Portuguesa, e que evidencia a enorme ductibilidade dum idioma em
que diferentes culturas se apoiam para se afirmarem individualmente,
constituindo uma experiência multicultural em que as diferenças,
até agora, têm sido uma vantagem, e não uma desvantagem.
Esse é o prodígio da lusofonia que, perante a ameaça de
globalização, consegue manter uma forma de coexistência das dife-
renças num harmonioso plural, num todo sinfônico, em que o talento
individual e as culturas individuais contribuem umas para as outras
sem se contradizerem.
E se, como já tem sido dito, a literatura surge como o local da
plenitude da língua, e não a literatura da lusofonia, explorando na
simultaneidade o mundo da diferença, no seu conjunto será uma
ilustrativa manifestação do alcance da criatividade individual num
conjunto de pluralidades.

E então pergunto:
1) Não será acaso tarefa do pensamento criador tentar a
exploração do mundo da diferença?
2) A criatividade, a todos os níveis, não será acaso a expres-
são duma procura da secreta relação que existe entre o homem e
o mundo, destinada a promover imaginativamente a compreen-
são do outro?
O exemplo da lusofonia surge, assim, como algo que se atin-
ge através duma compreensão da unidade superior da língua portu-
guesa, que poderá transformar-se em “uma ponte eterna sobre a
corrente dos séculos, como tem sido uma ponte sobre a vastidão
do oceano.”1
Dois exemplos recentes da harmoniosa expressão da lusofonia:
para além da arreigada competência e dedicação com que no
Brasil se estudam os autores portugueses, quero assinalar aqui a
recentíssima edição da Antologia da poesia portuguesa con-
temporânea, organizada por Alberto da Costa e Silva e Alexei
Bueno, que inclui dezenas de poetas.2
Também recentemente, em Maio, mas em Portugal, reali-
zou-se em Sintra a II Festa da Língua Portuguesa, um encontro de
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 25

poetas da lusofonia, vindos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-


Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. 3
Da participação desses poetas surgiu uma Antologia intitulada
Vozes poéticas da Lusofonia4 que é uma verdadeira sinfonia de
vozes em que as diferenças constituem a sua riqueza, a sua beleza,
a sua força individual enriquecida pela convivência.
Para ilustrar esta afirmação vou ler alguns dos poemas inclu-
ídos nessa Antologia, que merece um estudo atento porque o que
ela exemplifica é uma amostragem de talentos individuais que
independem da origem dos seus autores. Desta coletânea de ta-
lentos e vozes individuais está excluído o folklore, a exploração
mais ou menos primária de realidades culturais distintas. O que aí
domina é o mundo da língua ao serviço da expressão individual
ainda que não esteja isenta de ideologia.
O que importa é que cada um se sentiu livre para se exprimir
e para utilizar uma língua comum como veículo de afirmação per-
sonalizada.
Consideremos, portanto, alguns exemplos da criatividade
lusofônica numa feliz convivência dentro do âmbito da poesia con-
temporânea.

Homo angolensis

Mastiga a própria desgraça


com ela improvisa uma farra
precisa de uma boa maka
como do ar para respirar
acha o mundo demasiado pequeno
pró seu coração
ri à toa fornica por disciplina
revolucionária
jura que um dia será potência
gosta de funje todos os sábados
e foge do trabalho na segunda
mas fica limão
quando lhe querem abusar

Angola: João Melo, p.17


26 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

O número quatro

O número quatro feito coisa


ou a coisa pelo quatro quadrada,
seja espaço, quadrúpede, mesa,
está racional em suas patas;
está plantada, à margem e acima
de tudo o que tentar abalá-la,
imóvel ao vento, terremotos,
no mar maré ou no mar ressaca.
Só o tempo que ama o ímpar instável
pode contra essa coisa ao passá-la:
mas a roda, criatura do tempo,
é uma coisa em quatro, desgastada.

Brasil: João Cabral de Melo Neto, p. 78

Ser tigre

O tigre ignora a liberdade do salto,


como se uma mola o compelisse a pular.

Entre o cio e a cópula,


o tigre não ama.

Ele busca a fêmea


como quem procura comida.

Sem tempo na alma,


é no presente que o tigre existe.

Nenhuma voz lhe fala da morte.


O tigre, já velho, dorme e passa.

Cabo Verde:
Arménio Vieira, p.116
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 27

Imerecimento

Adormeço
Na luz
dos teus olhos
vejo Veneza
que não conheço

Ondulo
num círculo
de ondas
de levitação

Confesso:
não mereço
a ternura
da gôndola
acariciando
as águas
onda a onda

Guiné-Bissau: Tony Tcheka,


p. 133

O nosso medo

Agora
a memória vasculha
os quatro cantos da cidade
e encasacados os ex-amigos
rastejam emaranhados nas raízes
subterrâneas do seu medo
e ágeis as suas mãos embraiam reluzentes
besoiros que dilaceram as estradas
bebendo sequiosos o sangue dos ventos.

Vasculha
as ruas
de ponta a ponta
a memória
28 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

laboriosa como um insecto


e se há mais do que eu digo
também o meu medo
encasacado instiga-me ao segredo.

Moçambique: José Craveirinha, p.157

Lá no Água Grande

Lá no “Água Grande” a caminho da roça


negritas batem que batem co’a roupa na pe-
dra.
Batem e cantam modinhas da terra.

Cantam e riem em riso de mofa


histórias contadas, arrastadas pelo vento.

Riem alto de rijo, com a roupa na pedra


e põem de branco a roupa lavada.

As crianças brincam e a água canta.


Brincam na água felizes...
Velam no capim um negrito pequenino.

E os gemidos cantados das negritas lá do rio


ficam mudos lá na hora do regresso...
Jazem quedos no regresso para a roça.

S. Tomé e Príncipe: Alda do Espírito


Santo, p. 239

O sal da língua

Escuta, escuta: tenho ainda


uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 29

é hoje capaz de salvar o mundo


ou apenas mudar o sentido
da vida a alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

Portugal: Eugénio de
Andrade, p. 195

A fala

Sou de uma Europa de periferia


na minha língua há o estilo manuelino
cada verso é uma outra geografia
aqui vai-se a Camões e é um destino.

Velas veleiro vento. E o que se ouvia


era sempre na fala o mar e o signo.
Gramática de sal e maresia
na minha língua há um marulhar contínuo.

Há nela o som do sul o tom da viagem.


O azul. O fogo de Santelmo e a tromba
de água. E também sol. E també sombra.

Verás na minha língua a outra margem.


Os símbolos os ritmos os sinais.
E Europa que não mais Mestre não mais.

Portugal: Manuel Alegre, p. 209


30 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Estou aqui
Ó Brasil
terra maravilhosa
onde cresce
a fruta mais gostosa

Quero comer
quero beber
água de coco
quero provar
fruta de cajá
caju
capuaçú
goiaba
abacate
abacaxi
aruças
aracás
joá
cambois
mamão
mangava
macujé
mangará
maracujá
mapurunga
mandacarú
pitomba
pitanga
piquiá
ananás

umbu
mandacaru
oitituruba
genipapo
As romãs rubicundas, quando abertas
à vista agrados são; à língua ofertas*
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 31

Ah!
Há um mundo na língua!

*Manoel Botelho de Oliveira, in A ilha


da Maré (1705).

Notas
1
Cf. Leodegário A. de Azevedo Filho, A língua, portuguesa e a
unidade do Brasil, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Filologia,1999,
p.22
2
Esta Antologia foi publicada no Rio do Janeiro, pela Editora Nova
Aguilar, em 1999.
3
Infelizmente não foram incluídos poetas da Ásia nem da Oceania,
onde se destaca Xanana Gusmão, de Timor, cuja poesia é regularmente de
antologias e recitais em Portugal.
4
Organização do Instituto Camões, de Lisboa, Edição da Câmara
Municipal de Sintra, Maio de 1999
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 33

D. Francisco Manuel de Melo


no Teatro da Língua Portuguesa
Evelina Verdelho, da Universidade de Coimbra.

Entre os numerosos estudos realizados sobre a personalidade


e a obra valiosa, vasta e diversificada, em português e espanhol, de
D. Francisco Manuel de Melo, contam-se alguns que incidem sobre
a sua linguagem, designadamente trabalhos académicos que trou-
xeram contributos para o conhecimento do seu estilo. Essa constitui,
todavia, uma área de investigação ainda muito em aberto, a solicitar
novos estudos de vária ordem. Refiro a propósito que na Universi-
dade de Coimbra está a desenvolver-se um projecto de investiga-
ção que tem em vista organizar o corpus lexical das obras em Lín-
gua Portuguesa do Polígrafo, tanto quanto possível com base em
edições fidedignas. Neste ensejo proponho-me focar algumas facetas
deste autor manifestadas perante o idioma português, as quais –
adoptando expressão modelada pelo universo teatral, à imagem do
que se verificou com o próprio D. Francisco Manuel de Melo, no-
meadamente no soneto “Mundo he Comedia” (As Musas portu-
guesas, p. 6), e com outros autores de Seiscentos – poderei etiquetar
de espectador, crítico e actor no teatro da Língua Portuguesa.
Nas suas obras, quer no discurso de autor, quer nas falas de
figuras ou personagens, D. Francisco Manuel de Melo faz não ra-
ras referências a aspectos e materiais da Língua Portuguesa. De
quando em quando, como que interrompe o fio da narração ou da
reflexão, e detém-se em vocábulos, assinalando o significado ou o
uso, às vezes apontando o que se verificava no português de épocas
anteriores, ou em outras línguas. Entre outros casos, de que um
levantamento exaustivo propiciará certamente informações com
interesse no âmbito da história da língua, destaco que assim procede
com vocábulos que designam categorias sociais, como «dama»,
34 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

«dona», «senhora» e «fidalgo», em A Visita das fontes, em inter-


venção da Fonte Velha, onde está notado que às «(…) Damas e
Senhoras (…) antigamente chamavam Donas» (p. 118), e na
Epanáfora política, onde se lê: «Viuia por estes tempos em Lis-
boa hum dos nobres do Reino, de aquella ordem a quem os
Portuguezes chamão: Fidalgos, com mais digna recordação que
as outras nasções de Espanha, sendolhes a todas vniuersal este
nome, não ha muito trocado ao de Caualleiros» (p. 8) (veja-se no
final indicação das obras e edições citadas). Também palavras
relativas ao comportamento lhe merecem nota, como «despejo»,
«compostura», «descompostura», e outras. Na Carta de guia de
casados depara-se-nos o seguinte trecho: «Faz grande dano a
maldita palavra que se nos pegou de Castela, a que chamam des-
pejo, de que muitas [mulheres] se prezam. E certo que em bom
Português, despejo é descompostura» (p. 140). Em A Visita das
fontes, pela voz de duas figuras, Apolo e o Soldado, regista-se que
ao «saber misturar o despejo e a compostura, dando o seu a seu
dono» chamam «bizarria» (p. 59).
Em casos como os dos vocábulos acima mencionados, em que
as referências extralinguísticas constituíam, no século XVII, maté-
ria sensível, designadamente sob o ponto de vista moral, político e
social, as observações metalinguísticas surgem geralmente associa-
das a observações de outra natureza.
Por vezes o escritor apresenta séries mais ou menos extensas
de termos e de expressões, da linguagem comum e de linguagens
especiais, sendo notório que essa apresentação tem muito que ver
com o comprazimento que D. Francisco Manuel de Melo encontra-
va nos próprios materiais linguísticos reunidos. É o que sucede em
Os Relógios falantes, onde aparecem, em fala do Relógio da Al-
deia, os seguintes «modos de dizer» em que entra o vocábulo
«hora»: «em boa hora», «em má hora», «ide com as horas más»,
«vinde com as horas boas», «a hora muito fermosa», «nas horas de
Deus», «logo nessas horas», «as horas perentórias», «as horas su-
cessivas», «são horas», «a que horas», «a desoras», «fora de ho-
ras»» (p. 27). Em A Visita das fontes, o Polígrafo, em fala da Fonte
Velha, expõe não escassos termos relativos à arte militar, que aliás
lhe deveriam ser familiares, pois prestou serviço na carreira das
armas durante largos anos. Veja-se: «(…) combóis, brechas, aproxes,
víveres, avançadas e castrametanções (…), cornas, hornaveques,
crubeques, golas, francos, lisieres, barbacãs e falsas-bragas (…)
esquadrões, serras, grandes fundos, grandes frontes, quadrados de
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 35

gente e de terreno, dobretes, cruzes, cubos e prolongados (…),


arreueres, marechais-da-estala, caporal, corneta, dragão, furriéis,
quartéis-mestres, grão-preboste» (p. 58). Muitos destes termos são
estrangeirismos, comentando-se, após o seu registo, ainda pela boca
da Fonte Velha, que aqueles são proferidos «(…) com milhares de
vozes estrangeiras que nossos pecados, além dos costumes estran-
geiros, nos trouxeram à terra para sua maior corrução que defesa»
(pp. 58-59).
Sublinho que uma compilação extraordinária de materiais
linguísticos é oferecida pelas Metáforas, ou Feira de anexins.
Nessa obra o autor apresenta, através de diálogos, um avultado
contingente de metáforas, jogos de palavras, ditos e provérbios. Se-
gundo as palavras de Alexandre Herculano, a Feira de anexins
«(…) seria quasi um manual para os escriptores dramaticos, princi-
palmente do genero comico, que quizessem fazer falar as suas per-
sonagens com phrase conveniente, e com as graças e toque proprio
da nossa lingua portugueza e do verdadeiro estylo dramatico (…)»
(apud ob. cit., p.V).
Conforme se vê pelo que acima fica relevado, as obras de D.
Francisco Manuel de Melo mostram-no como observador minucio-
so da Língua Portuguesa, sensível a aspectos como a sua riqueza,
variedade, mudança e pureza, a convocar o leitor para as particula-
ridades e preciosidades que nela detecta e colecciona, enfim, como
um espectador do espectáculo do idioma.
O emprego da Língua Portuguesa na escrita cuidada, por parte
de poetas e prosadores, que D. Francisco Manuel de Melo menci-
ona, é objecto de alguns comentários no Hospital das letras. Aí
encontramos, por exemplo, a seguinte opinião expressa pela voz de
Lípsio, a propósito das obras de Francisco Rodrigues Lobo: «As de
prosa têm perfeitíssima saúde; não há para que lhes pôr mão, por-
que foi claro, engenhoso, elegante, grande cortesão e não menor
jardineiro da Língua Portuguesa que tosou, poliu e cultivou como
bom filho e grato repúblico» (p. 72). Situação semelhante verifica-
se em algumas das missivas que subscreveu, nomeadamente nas
que correspondem a solicitações de apreciação de composições
poéticas. Nelas está patente que o Polígrafo analisou, a par da satis-
fação de requisitos específicos da Retórica e Poética, a ortografia, a
pontuação e até a letra com que as composições lhe foram apresen-
tadas. Leiam-se, por exemplo, as cartas nº 109 e nº 565 do volume
Cartas familiares em que há alguns anos foi reunida e publicada a
sua copiosa correspondência. Naquela – «Sentenceando um
36 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

certámen poético» – D. Francisco Manuel de Melo afirma: «De


muitas considerações pende a averiguação da preferência entre
Poemas contenciosos. Parece-me se podem reducir a quatro cir-
cunstâncias. A primeira: que sejam em tudo conformes ao assunto.
A segunda: que guardem decoro aos sujeitos propostos. A terceira:
que se apropriem ao dialético da língua em que se escrevem. A
quarta: que observem boa ortografia» (pp. 143-144). Na carta nº
565 – «Tornando a um amigo poeta um livro de versos que lhe havia
dado a ver» – avisa: «Esta noite (e tarde) recebo os quadernos, e
poderei logo dar deles alguma razão. A letra é boa mas pouco cas-
tigada, e eu proluxíssimo nestas meudezas. Lá se achará V. M.
coalhado de pontos e vírgulas» (pp. 539-540).
Os comentários metalinguísticos de D. Francisco Manuel de
Melo avultam particularmente em torno da realização da Língua
Portuguesa na conversação. Aliás, com o Polígrafo o discurso oral
é referenciado (e valorizado) como meio privilegiado de recolha e
transmissão de certos saberes – saberes tradicionais, de senso co-
mum, de experiências de vida – o que está indiciado nos seus textos,
designadamente nos apólogos, por expressões como: «dezia minha
avó» (Visita, p. 37), «Dezia um amo» (Visita, p. 37), «disseram os
antigos» (Visita, p. 46), «disseram as nossas velhas» (Carta, p. 140).
Estas expressões ocorrem tão frequentemente nos escritos do au-
tor que ganham foro de traço característico do seu estilo, tal como,
por exemplo, os adágios.
Em A Vista das fontes, numa intervenção da Fonte Nova, que
de resto suscita o aplauso de outro interlocutor do diálogo, Apolo,
preconiza-se que as pessoas se exprimam com simplicidade e natu-
ralidade, e censura-se a fala arrebicada que perde em clareza o que
presume em subtilezas e requintes, quando aquela figura diz: «Não
há cousa como um falar desabotoado, de sorte que as pessoas di-
gam tudo quanto lhes faz mister sem pedir outras regras que as que
lhe dá a Natureza de mão comum com a necessidade, ocasião e
compostura, que a todos em seu modo pertence. Mas, andar falan-
do como quem bebe por púcaro penado ou como a história do
Calcinha, que não haveis de dizer sim nem não, é um maldito costu-
me» (p. 109; trecho comentado por Giacinto Manuppella, em nota
da sua edição do apólogo, pp. 576-577). Aliás, a fala enfatuada,
(pseudo)erudita e obscura dos poetas cultos, e a dos gramáticos
que se preocupavam com questões pequeninas e irrelevantes, no-
meadamente certos pormenores de etimologia, são alvo de crítica
em O Fidalgo aprendiz (através da elocução do Mestre das Tro-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 37

vas e dos comentários que lhe faz D. Gil Cogominho), e, mais de-
senvolvida e explicitamente, na Visita. Nesta obra lê-se: «Pelo mes-
mo caso que os gramáticos de contino desentranham os idiomas e
fazem a varrela, e muitas varrelas, à linguagem, são de contínuo os
que pior falam, escrevem e conversam (…)» (p. 110; cf. também
pp. 109 e 111).
Em relação à Língua Portuguesa realizada na conversação,
são sobremaneira interessantes as observações registadas na Car-
ta e na Visita sobre modos de tratamento, em particular os que se
cumprem através das formas pronominais «tu», «vós», «ele», «ela»,
e de «senhor e «senhora», «dom» (ou) «dona», «mercê», «senhoria
» e «excelência». Na primeira obra, D. Francisco Manuel de Melo
considera o tratamento entre marido e mulher, aconselhando alguns
usos, desaconselhando outros. Veja-se: «O Tu é Castelhano e por
mais que eles o achem carinhoso, como lá dizem, é palavra muito de
praça e que ao mais não deve de quebrar a menagem da câmara
para fora. O Vós é Francês, que com um Vous receberam a mesma
Rainha Sabá, se cá tornara. Tenho-o por demasiado vulgar. O Ele e
Ela, um Ouve Senhor, Que diz Senhora, é termo bem Português,
assaz honesto e bem soante» (Carta, p. 177). E continua, não es-
quecendo certamente a apropriação abusiva – a despeito de dispo-
sições legais que regulavam o seu emprego – das fórmulas que
menciona, por pessoas que não tinham elevado estatuto social: «As
Senhorias e Excelências, a quem pertencem, gravidade induzem;
mas parece um certo modo de esquivança tratar um homem sua
mulher como que se o não fora. Fiquem-se para os Príncipes e Reis
as Altezas e Majestades (…)» (ibidem). Na segunda obra, pela voz
de Apolo, é descrita pormenorizadamente a maneira como, segun-
do os ditames da galanteria, as damas e os seus servidores se trata-
vam em três «pontos» ou circunstâncias (que o autor – no seu jeito
de se deter em certas palavras – explica serem também chamadas
«momentos, partes, ou ocasiões», informando ainda depois que «par-
tes» é usado com outro significado, isto é, ‘inimigos’ (Visita, pp. 122
e 126). Essas circunstâncias são: a conversação «em lugares públi-
cos diante dos Reis»; entre as damas que passeiam em coche e os
galantes que se colocam ao lado; na «cabeça de motes», complexa
composição poética, entretecida de perguntas e respostas. Além
disso, Apolo indica a forma de tratamento entre as damas e os seus
noivos, especialmente segundo a «lei do Paço», quando se acordava
o casamento (Visita, pp. 122-127).
Qualidades e principalmente imperfeições da prática
38 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

conversacional são apontadas por D. Francisco Manuel de Melo na


Carta, ao expor orientações para a vida familiar, e na Visita, ao
caracterizar e caricaturar alguns tipos da sociedade portuguesa
seiscentista, como letrados, militares, fidalgos, gramáticos. Neste
apólogo, o autor não desaproveita a oportunidade de deixar um re-
paro ao «desvario» «da gente vulgar» diante de palavras como «por-
co» e «asno», que evitavam proferir e que não ouviam sem «nojo e
melindre» (p. 42) – considerando de caminho, por meio de Apolo,
que «os abusos» – por certo os de linguagem – «estão no vulgo
introduzidos e se vão já nele metendo como a unha pela carne.
Porque abusos e povo são como unha com carne» (p. 43).
Entre as qualidades da elocução advogadas pelo Polígrafo conta-
se, no que concerne as mulheres discretas, falar «(…) o necessário,
brando, a tempo, com tom que baste para ser ouvida da pessoa a
quem fala e não das outras» (Carta, p. 139). Entre as imperfeições
verberadas, ainda em relação às mulheres, inclui-se «falar sempre»,
e falar alto, nomeadamente nas igrejas (ibidem), e, no caso dos
homens, a utilização de certas expressões perifrásticas para fazer
referência às esposas. Veja-se: «A cousa com que mais atentado
sou é uns que dão em nomearem as mulheres por circunlóquios,
chamando-lhes ora a minha velha, a minha companheira, a mi-
nha hóspeda, a minha obrigação, a mãe dos meus filhos, e
cousas assi que, em qualquer tom que sejam ditas, parecem pouco
graves e, a meu juízo, indignas de se acharem na boca de nenhum
sisudo. A mulher de que o homem se preza e o homem de que a
mulher se honra, por que não hão-de ser por seus nomes nomea-
dos? Digo delas para eles outro tanto» (Carta, pp. 176-177).
Por quanto fica salientado, D. Francisco Manuel de Melo dife-
rencia-se do tipo do «gramaticão», ou seja, daqueles gramáticos do
seu tempo que, segundo declara na Visita pela voz da Fonte Velha,
se enredavam a discutir «Sobre se um tu ou um eu (…) vem de
Grécia ou de Palestina, sem que nisso vá ou venha cousa alga» (p.
109). Poderá dizer-se que o Polígrafo se manifesta como um crítico
do desempenho da Língua Portuguesa, pois que usa de saber e
sensibilidade para apreciar e julgar a prática do idioma, opinando
como deve ou não deve realizar-se, especialmente na conversação,
em família e entre pessoas de qualidade. Tendo por base uma sólida
e ampla formação, adquirida nos livros e apurada nos círculos aris-
tocráticos onde nasceu e se fez espelho de fidalguia e cortesania,
com os seus comentários, os seus reparos e as suas orientações,
configura uma arte de bem falar, em que não só a correcta e infor-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 39

mada realização da língua, mas também a urbanidade, as conveni-


ências de ordem social e até a moral, estão implicadas, sendo a boa
conversação um dos predicados principais de quem pretendesse
atingir o ideal do cortesão discreto (caracterizado pelo Prof. José
G. Herculano de Carvalho, com fundamento na análise da Corte
na aldeia de Francisco Rodrigues Lobo, no estudo Um Tipo literá-
rio e humano do Barroco: o «cortesão discreto», Coimbra, 1963).
É de notar que, embora em várias referências e alusões, o modo
como se exprimem as pessoas da Corte e de Lisboa apareça enca-
recido, em A Visita das fontes Apolo pronuncia-se pela superiori-
dade da linguagem falada em Coimbra, ao afirmar: «(…) os Gregos
dividiram seu idioma em quatro classes, das quais era mais sublime,
regular e concertada a língua dos Áticos, por cair em seu distrito a
Universidade de Atenas que lhe deu nome, e ao mundo todo: como
se cá, entre vós, disséssemos se falava mais elegante em Coimbra
que em outra parte, não mentiríamos, sendo ali o coração e alma das
ciências que se ensinam e aprendem» (p. 110).
Como é sabido, D. Francisco Manuel de Melo escreveu sobre
matérias variadas, em diversos géneros de textos. Relanceando de
corrida a sua obra, a tal respeito releva-se que, em Língua Portu-
guesa, em prosa, registou factos relativos à História em epanáforas
e relações (algumas destas concernem o Brasil); que expôs
ensinamentos e críticas sobre costumes do tempo, em escritos de
pendor pedagógico e moralizante; que tratou de múltiplos negócios
pessoais e alheios, em abundante correspondência; que elaborou
discursos de circunstância para sessões académicas. Em verso, além
de textos de carácter teatral, compôs, entre outras formas poéticas,
cartas, églogas, romances, sonetos.
O que importa aqui salientar é que D. Francisco Manuel de
Melo, em conformidade com os preceitos retóricos e poéticos em
que foi instruído, procurou «em todos seus escritos acomodar sem-
pre o estilo com a matéria», como se declara na dedicatória aos
leitores da edição de 1651 da Carta de guia de casados (p. 87),
assinada pelo impressor Paulo Craesbeeck, a cujo conteúdo
porventura não terá sido estranho o Polígrafo. Não faltam de resto
referências do escritor a vários estilos em que modalizou a sua ex-
pressão. Assim, no Prólogo do Escritório avarento afirma que,
requerendo a matéria de que ia tratar «um estilo excelente» da sua
«pena já muito alheo», usou «deste nosso modo familiar, amigo e
inteligível» (p. 70), e de «comum eloquência» (p. 71). No Hospital
das letras , depois de mencionar a Carta de guia de casados
40 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

entre as obras que elaborara, observa que se acha «agora tão bem
com estilo corriqueiro», e que faz propósitos «de não tornar ao [es-
tilo] majestoso» (p. 99).
Ora, o estilo desse apólogo – «descansado estilo», segundo as
palavras da respectiva dedicatória (p. 87) – distingue-se do das
Epanáforas, em cuja escrita eloquente se empenhou, como se de-
duz de vários passos (cf. por exemplo, pp. 354 e 481; veja-se o
estudo da Prof.ª Maria Lucília Gonçalves Pires, “Epanáfora trágica:
viver e escrever história”, in Xadrez de palavras, Lisboa, 1996, pp.
173-185), e com nenhum deles se identifica o das orações acadé-
micas, espessas de elegâncias e ornatos de linguagem. Encontra-se
também uma paleta variada de estilos, no volume das suas cartas,
em que o familiar se cruza com o solene, o mesmo se podendo dizer
de composições em verso que integram as Musas portuguesas,
ora graves, ora jocosas.
Alguns editores e comentadores da farsa O Fidalgo apren-
diz consideraram que a fala da figura nuclear, D. Gil Cogominho,
integra formas linguísticas populares, e que com elas D. Francisco
Manuel de Melo terá pretendido sublinhar o perfil rústico da figura.
Em rigor, a maior parte das formas que foram distinguidas sob tal
perspectiva pertencem ao fundo comum linguístico português
seiscentista, sendo idênticas a outras que se detectam no próprio
discurso do autor, tal como é documentado pelo manuscrito autó-
grafo de A Visita das fontes, e não são características ou exclusi-
vas da linguagem das pessoas iletradas do povo. Algumas outras,
todavia, podem ser classificadas de populares em tal acepção,
como, por exemplo, - intés - e - home - ( pp. 59 e 86). Em Os
relógios falantes, o Relógio da Cidade apresenta na sua fala -
depois» (p. 11), enquanto na do seu interlocutor aldeão vemos -
despois - (ibidem), e - samos - , em vez de - somos - (p.13).
Perante estes e outros elementos semelhantes poderá admitir-se
que D. Francisco Manuel de Melo teve em vista modalizar a
linguagem das figuras ou personagens que tomam voz nas suas
obras, em consonância com os estatutos sociais e culturais que
lhes atribuiu, mas será necessário, para se avançarem asserções
precisas sobre este ponto, dispor-se de estudos minuciosos da
linguagem do escritor, que colham fundamentação dos raros
autógrafos que dele nos chegaram, onde as formas linguísticas se
mostrem tal como saíram da sua mão, e não eventualmente
alteradas por interferência de copistas, tipógrafos ou editores.
Como quer que seja, pode dizer-se que o Polígrafo, ao pôr em
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 41

cena o nosso idioma sob as máscaras dos vários estilos e, certa-


mente, de vários registos sócio-culturais, perante a Língua
Portuguesa, além de procedimentos de espectador e crítico, teve
ainda o de actor.
Aliás, a metáfora das máscaras serve para aludir ao facto de a
linguagem de D. Francisco Manuel de Melo, em muitos passos, e
em diversos planos, não se oferecer com transparência à fruição
imediata do leitor não filólogo dos nossos dias, em consequência de
mudanças que o tempo trouxe ao idioma e às suas referências, e de
concepções e técnicas literárias do autor, ao gosto de Seiscentos.
Aliás, já em vida, segundo uma vez mais a dedicatória do impressor
de 1561 da Carta de guia de casados, foi - reprendido de misteri-
oso (ou talvez de escuro) - (p. 87). Desde logo a (orto)grafia
seiscentista, com que os textos foram transmitidos por manuscritos
e impressos, motiva dificuldades de interpretação, de que destaco
as que concernem o valor fónico de grafemas actualmente desusa-
dos, o valor semântico-estilístico das maiúsculas, e as funções da
pontuação. O significado preciso de muitos dos vocábulos que ocor-
rem nas suas obras é hoje de problemática apreensão, havendo
numerosos termos que, empregados ou não por outros autores, não
recebem esclarecimento de dicionários ou vocabulários antigos, em
que não tiveram entrada ou foram insuficientemente tratados. Além
disso, interessando-se o Polígrafo por uma arte poética - rara e
requintada -, dirigida a leitores não vulgares – como expôs, detida e
fundamentadamente, a Prof.ª Maria Lucília Gonçalves Pires, em
“As Ideias literárias de D. Francisco Manuel de Melo”, in Xadrez
de palavras, Lisboa, 1996, pp. 41-52 – cultivou com assiduidade
processos de estilo, como elaboradas metáforas e subtis jogos de
palavras, que conferem alguma opacidade à sua expressão.
Esperemos que D. Francisco Manuel de Melo, graças à leitura
persistente e acurada da sua obra, não venha a ser uma persona-
gem esquecida, a assistir na obscuridade do - vestuário - a - tramóias
- do teatro da nossa língua. Até porque, além de se nos apresentar
como espectador, crítico e actor do espectáculo do idioma, nele
alcançou o estatuto de autoridade. Este, porém, tem de ficar como
tema para outra visita às suas letras.
42 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Notas bibliográficas
Obras e edições citadas de D. Francisco Manuel de Melo

Carta de guia de casados. Quadros cronológicos, Introdução, biblio-


grafia selectiva, fixação do texto e notas de Pedro Serra. Braga-Coimbra,
Angelus Novus, 1996.
Cartas familiares. Prefácio e notas de Maria da Conceição Morais
Sarmento. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981.
Epanáforas de vária história portuguesa (Epanáfora política,
Epanáfora trágica, Epanáfora amorosa , Epanáfora bélica, Epanáfora
triunfante). Introdução e apêndice documental por Joel Serrão. Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, s. d. (reprodução fac-similada da ed.
de 1660).
Escritório avarento. In Os relógios falantes e Escritório avarento.
Edição crítica de Maria Judite Fernandes de Miranda. Coimbra, 1968. Sepa-
rata da Revista da Universidade de Coimbra, vols. XX-XXI. Ocupa as pp.
69-117.
Feira dos anexins. Edição dirigida e revista por Inocêncio Francisco
da Silva. Lisboa, Livraria A. M. Pereira, 1875.
O Fidalgo aprendiz. Texto estabelecido, introdução e notas de António
Corrêa de Oliveira. 2ª edição, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1958.
Hospital das letras. In Jean Colomès, Le Dialogue “Hospital das
letras” de D. Francisco Manuel de Melo. Texte établi d’ après l’ édition
princeps et les manuscrits, variantes et notes par … . Paris, Fundação
Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português, 1970.
Metáforas, ou Feira de anexins. Ver Feira dos anexins.
As Musas portuguesas (ou As Segundas três musas do Melodino). In
Obras métricas. Lyon, Horacio Boessat e George Remeus, 1665. Com pagi-
nação própria.
Os relógios falantes. In Apólogos dialogais, vol. I, Introdução, fixação
do texto e notas de Pedro Serra. Braga, Angelus Novus, 1998, pp. 1-31.
A visita das fontes. In Apólogos dialogais, vol. I, Introdução, fixação
do texto e notas de Pedro Serra. Braga, Angelus Novus, 1998, pp. 33-127.
Também reenviamos para nota da edição preparada por Giacinto Manuppella,
Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1962.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 43

Diversidade e unidade da
língua na hora da globalização
Fernando Alves Cristóvão,
da Universidade Clássica de Lisboa.
O tema que me foi proposto, relativo à unidade e diversidade
da Língua Portuguesa, aceitei-o de muito bom grado, pois a esta e
outras questões afins tenho dedicado boa parte do meu percurso
académico.
Proponho-me tratá-lo reflectindo sobre a incidência nas lín-
guas, dos fenómenos culturais e sociais que no nosso século
condicionaram e condicionam a Língua Portuguesa, nomeadamente
o moderníssimo fenómeno da globalização.
Todos sabemos como foi necessário no Brasil, desde José de
Alencar e Carlos de Laert, em especial, reivindicarem contra
Castilho, Pinheiro Chagas e Camilo, a existência de uma norma
brasileira, de um estilo próprio.
Felizmente que tudo se esclareceu fazendo-se justiça tanto à
diversidade como à unidade da língua pois não se tratam de duas
dinâmicas alternativas, mas complementares.
Na convergência destas duas realidades se tem vivido e con-
tinua a viver nos nossos dias, porque a Língua Portuguesa não tem
um dono mas vários condóminos que a usam como sua.
Lapidarmente afirmou Celso Cunha, a este propósito: “Che-
ga-se assim à evidência de que para a geração actual de brasilei-
ros, de cabo-verdianos, angolanos, etc, o português é uma língua
tão própria, exactamente tão própria, como para os portugueses.
E em certos pontos, por razões linguísticamente justificáveis,
na Românica nova, a língua se manteve mais estável do que na
antiga Metrópole”1 .
Mas, para se chegar a esta situação de estabilidade tranquila,
largo e difícil caminho foi necessário percorrer.
44 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Inúmeras foram as dificuldades, porque inúmeros foram os


perigos e ameaças do exterior, mas todas vencidas, contribuindo
até para o seu enriquecimento.
E porque a história não para, novos desafios estão a ser en-
frentados pela língu portuguesa e pelas culturas que nela se pro-
cessam, sendo o mais recente o da globalização.
Permitam-me, pois, algumas considerações preliminares que
mais claramente ponham em evidência como, tanto a diversidade
linguístico–cultural, como a unidade são indissociáveis e comple-
mentares, ora postulando as diversidades, a importância da unida-
de, ora exigindo a unidade, a autenticidade das diversidades.
O nosso século, agora a chegar ao termo, conheceu quatro
grandes dinâmicas no modo de considerar as línguas e de as
ensinar e aprender: a dinâmica do romantismo herdada
sobretudo de Humboldt e que se intensificou por meio do
nacionalismo político, a ponto de chegar até aos nossos dias até
aos anos 50, apesar dos progressos da linguística, da doutrinação
de Saussure e das novas perspectivas da psicologia e da
sociologia;a dinâmica internacionalista e imperialista que
conviveu com a mentalidade anterior e chegou até ao fim da
década de 60; a dinâmmultilinguística e multicultural que na
Europa teve a sua expressão mais significativa quando a
restruturação desencadeada pelo plano Marshall, após a 2ª
Grande Guerra Mundial, atraiu milhões de emigrantes da Europa
do sul e dos países da bacia mediterrânica para os países
industrializados; a dinâmica da globalização que se processa
em nossos dias e que não só condiciona as comunicações e a
economia, mas também interfere na cultura, nas religiões, nos
costumes e, também, nas políticas linguísticas.
Na etapa nacionalista, em que muitos de nós fomos forma-
dos, as línguas eram estudadas como a expressão dos povos,
diversificadas como eles, património que era preciso zelosamente
defender e enriquecer segundo o lema de Du Bellay.
Assim, era necessário combater duas espécies de desvios e
erros, os herdados da tradição de séculos anteriores que alatinaram
e helenizaram as línguas, sobretudo a ortografia, complicando-a
(séculos XV e XVI) ou a vestiram à espanhola e à francesa (sé-
culos XVII e XVIII).
A essa tarefa se entregaram os puristas e suas sociedades
combatendo por igual os estrangeirismos, então, sobretudo
galicismos, e o que julgavam serem “erros” e “corruptelas”.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 45

Ao mesmo tempo, multiplicavam-se os apelos à leitura dos


clássicos como modelos a seguir fielmente.
Quanto às relações com as outras línguas, eram entendidas
dentro de um quadro de prestígio: o latim e o grego para a erudi-
ção, o Direito e a medicina; o francês para a cultura; o alemão
para a filosofia etc..
Deste modo, as línguas não se expandiam, mas vigiavam-
se zelosamente, apenas sendo permitidas algumas liberdades con-
troladas.
Nas etapas internacionalistas, os países com colónias ou as-
pirações a tê-las, impunham em todo o seu espaço de soberania a
língua oficial, proibindo que se falassem as línguas étnicas ou, den-
tro do território metropolitano, combatendo as línguas regionais.
Em simultâneo, e com o apoio de grandes meios financeiros,
foram criadas instituições destinadas a propagar no estrangeiro,
ou trazer até ao país os estrangeiros para dar a conhecer a língua,
cultura, instituições etc, não se poupando em oferecimento de li-
vros, revistas, conferências, cursos anuais e de férias etc..
Assim surgiram o British Council, a Alliance Française, o
Instituto de Alta Cultura e outros institutos e centros culturais.
Percebeu-se então que, por honestas e louváveis razões de
diálogo entre culturas, ou por ousada propaganda com objectivos
de hegemonia política ou de facilitação comercial, a expansão da
língua nas colónias ou no estrangeiro era um veículo privilegiado
para coisas tão diversas como o diálogo, a hegemonia, a expansão
dominadora, segundo o velho aforismo colonial de que a língua ea
a melhor companheira do império.
Na etapa do multilinguísmo e multiculturalismo que é aquela
em que, desde à algumas décadas vivemos, o ensino e aprendiza-
gem das línguas, de um modo geral, pedeu a sua hybris de domínio
e expansão, democratizou-se, passou da propaganda ao diálogo
entre iguais, tendo-se as instituições que vinham da etapa anterior,
transformado em foruns de diálogo, no melhor sentido da palavra.
É que, entretanto, quer nos Estados Unidos quer na Europa, a
conjuntura sócio-política alterou-se profundamente: as correntes
migratórias procurando trabalho, realizando negócios, promoven-
do peregrinações, alteraram a composição étnica dos países.
Milhões de trabalhadores fixaram residência nos países indus-
trializados e de um dia para o outro esses países monolíngues ou de
débil variedade de expressão linguística viram-se multilingues e
multiculturais, com as inevitáveis consequências, tanto no plano das
46 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

relações socias como nos da educação, cultura e ensino das línguas.


Os governos tiveram de perceber que a unidade nacional não
devia ser entendida à maneira napoleónica do centralismo linguístico
e cultural, mas que deviam respeitar e fomentar o ensino das lín-
guas dos seus emigrantes e aceitarem as suas culturas em suas
variadas expressões: no vestuário, na alimentação, nos costumes,
na frequência de sinagogas, mesquitas e outros templos que era
urgente construir.
Por outras palavras, chegaram à conclusão de que a paz e a
harmonia sociais, bem como o rendimento do trabalho, melhor se
conseguiriam com o multilinguismo e o multiculturalismo. Que se
os trabalhadores estrangeiros vivessem no país de acolhimento
como no seu meio cultural, o benefício seria de todos.
Também, em consequência, passaram a interrogar-se
seramente sobre que sentido tinham agora o centralismo linguístico,
o purismo baseado em conceitos de correcção e vernaculidade,os
“erros” e “corruptelas” de linguagem, a luta contra os
estrangeirismos?
Para além disso, e em simultâneo com esta invasão pacífica
das multidões de emigrantes, outra explosão comunicativa acon-
teceu, favorecendo os ignorantes contra os eruditos: a explosão
comunicativa da televisão impondo uma linguagem simplificada.
Com ela, a escola tradicional passou a sofrer a concorrência
daquela que George Friedmann apelidou de “escola paralela”, a
televisão. À lentidão da escrita sucedeu o imediatismo e a evidên-
cia da imagem, e o saber deixou de ser hierarquizado e segundo
valores para se tornar num verdadeiro mosaico de realidades de-
sintegradas, como o multilínguismo, o multiculturalismo ou os qua-
dros de Picasso.
Sobre a etapa recente da globalização, diametralmente opos-
tas são as suas interpretações.
Para os herdeiros do capitalismo triunfante, ela permitirá re-
solver alguns problemas de âmbito geral, antes insoluveis.
Para os deserdados do marxismo e do arruinado império so-
viético ela representa a chegada do apocalipse de todas as abomi-
nações.
Para os que entre ambos os grupos se interrogam sobre o
futuro do Homem no milénio que chega e sobre o papel mediador
a desempenhar pelas culturas ela é sobretudo, um desafio
ambivalente, porque tudo está a ser reformulado.
Será a globalização aquilo que o título do estudo de Ignacio
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 47

Ramonet sugere, uma Geopolítica do caos2 ou dela poderá


resultar algum cosmos benéfico?
Demorei-me algum tempo no esboço deste cenário porque
entendê-lo e tê-lo em conta é essencial para se compreender como
se põe hoje o problema das políticas linguísticas e culturais relati-
vas à diversidade e unidade da língua.
Políticas que não pertence só aos governos actualizar nas relações
externas, nos sistemas e programas escolares, mas também às
instituições nomeadamente Universidade e aos professores.
Porque é óbvio que importa defender agora, ainda mais do
que no passado, a diversidade.
Diversidade essa que exprime mundividência dos falantes
em situações concretas, herdeiros de um património cultural que a
língua materna guarda, exprime e transmite como sistema
modelizador primário, base de outros sistemas modelizadores que
acompanham a vida individual e colectiva, como bem o observou
Iuris Lotterman.
Diversidade que na Língua Portuguesa começou a esboçar-
se muito cedo dando origem a variantes, sobretudo na fase da sua
expansão intercontinental.
Já o nosso primeiro gramático Fernão de Oliveira observa em
1536 variantes no vocabulário, “porque os da Beira têm umas falas
e os do Alentejo outras, e os homens da Estremadura são diferen-
tes dos de Entre Douro e Minho, porque assim como os tempos,
assim também as terras criam diversas condições e conceitos”3 .
Se tal acontecia no interior do país, na fase arcaica da língua,
como demonstrou Lindley Cintra, com a aventura dos mares maio-
res proporções essa diversidade atingiu.
Assim aconteceram as grandes variantes de carácter naci-
onal - portuguesa, galega e brasileira -, e previsivelmente poderão
acontecer as dos países africanos que foram antigas colónias
portuguesas.
Daí que defender e enriquecer as diversidades é o mesmo que
salvaguardar a própria autenticidade de cada país e da sua cultura,
ou das suas culturas, e que no caso do Brasil se compatibiliza em
“cerca de 170 línguas indígenas, as línguas brasileiras autóctones
identificadoras de mais de 180 regiões indígenas com uma popula-
ção de 220.000 índios”4 .
E, do mesmo modo, os crioulos que resultaram da expansão
colonial, desde o século XVI.
O reconhecimento destas diferenças chegou mesmo ao pon-
48 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

to de uma especulação excessiva a propósito de uma possível


língua brasileira a partir de contributos do tupi e das línguas africa-
nas. Suposições estas cujas ambiguidades vieram a ser desfeitas
pela primeira grande geração universitária de linguisticos brasilei-
ros, como o notou objectivamente Paul Teyssier (Mattoso Câmaca,
Serafim da Silva Neto, Silvio Elia, Gladstone Chaves de Melo,
Celso Cunha, Nelson Rossi).
E não só por estes, também por outros antes e depois deles.
Associando-me, por isso, à homenagem que este congresso
presta a Barbosa Lima Sobrinho, por ocasião dos seus 102 anos,
torno aqui presente a sua opinião sobre o assunto, exposta na obra
A Língua Portuguesa e a Unidade do Brasil, publicada em
1958 e que dentro em breve o Professor Leodegário de Azevedo
Filho analisará com a agudeza e o brilho a que nos habituou.
São afirmações do ilustre escritor e académico: “Há que pen-
sar num idioma que não seja monopólio de portugueses e brasilei-
ros (…) o termo idioma, é claro, aqui tem o sentido de língua, que
é apenas uma, por força da unidade de todos os seus morfemas
gramaticais. Mas, dentro dessa unidade morfológica, existe a di-
versidade de pronúncia e de sintaxe, além da riqueza também
diversificada do léxico. Por isso mesmo, nenhuma nação do mundo
lusofónico pode ter a prtensão pueril de querer ditar normas e usos
linguísticos às demais. No caso, o que todas as nações devem
fazer é proceder ao conhecimento das diferenças sempre em bus-
ca de uma unidade superior. Até porque a norma culta da língua
comum estará sempre onde houver maior desenvolvimento de
cultura e civilização como hoje ninguém ignora. Em outras pala-
vras, todas as nações do mundo lusofónico famal a mesma língua,
mas cada um a seu modo” 5 .
Segundo o mesmo Paul Teyssier a adopção de métodos cien-
tíficos conduziu estes e outros filósofos a uma revisão crítica des-
sas ideias recebidas e não devidamente comprovadas, embora,
obviamente, confirmassem as citadas influências. E desse modo,
a adoptarem um posicionamento de grande correcção e objectivi-
dade científica: “Plus générale les philologues de l´Ecole brésilienne
ont adopté sur la “question de la langue” des positions modérés. Ils
sont à la fois attachés à lóriginalité linquistique du Brésil et à l´unité
de la langue portugaise. Une spécifité brésilienne à l´interieur du
portugais, voilà, ensomme ce qu´ils revendiquent”6 .
Segundo Jean-Michel Massa, algo de semelhante se poderá
dizer do português em África, embora numa situação muito instá-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 49

vel e de acentuado plurilinguismo. Porque, “En Afrique, depuis


l´indépendence, une nouvelle phase est engagée. Les portugais
s´ètaient empanés d´une partie de l´Afrique, les Africains se sont
emparés du portugais”7 .
No Brasil ainda, a situação de ambiguidade relativamente à
Língua Portuguesa, quanto à sua designação no sistema escolar
que persistiu até aos anos 80, viria a ser completamente eliminada
pelo relatório da Comissão formada por António Houaiss, Celso
Cunha, Celso Luft, Fábio Lucas, João Vanderley Geraldi, e presi-
dida por Ábgar Renáult, que assim dirimiu a questão: “Podemos
adoptar a pespectiva de que no Brasil se pratica uma variedade da
Língua Portuguesa, vencida a etapa em que se procurou insinuar
o designativo “língua brasileira” ou “brasileiro”, para aquela que
serve de meio de comunicação e expressão em nosso país (…)
Torna-se consensual que, nos documentos ou textos expositivos
quando se empregam “língua nacional”, língua materna”, “língua
pátria” ou “língua vernácula”, é à Língua Portuguesa, na sua vari-
edade brasileira, que tais expressões se reportam, salvo entendi-
mento contrário, decorrentedo contexto.
(…) Recomendação: Será de toda a conveniência que os
diplomas legais que tratam do nosso idioma oficial se refiram ex-
pressamente à Língua Portuguesa ou português, fazendo constar
essas denominações nos programas de ensino de todos os graus
admitidos em nosso sistema educacional” 8 .
Se o problema da salvaguarda da diversidade se identificou,
em certa época, com a reivindicação da independência, não só
política, mas também cultural e, nos nossos dias, atingiu o ponto do
equilíbrio entre diversidade e unidade entendendo-as como com-
plementares, com a novíssima globalização, uma nova luta é pre-
ciso empreender, a do reforço e da eficácia da unidade.
E por duas razões fundamentais:
Porque num mundo em que tudo se intercomunica e interactiva,
a unidade própria de uma língua de cultura falada e escrita em
vários continentes e apta a exprimir tanto o pensamennto abstrac-
to como a expressão poética, como as situações triviais do dia a
dia, tem a melhor garantia de eficácia nesse tipo de relacionamen-
to e de resistência. A globalização não seria inevitávelmente um
mal, poderá transformar-se num bem, tal como a força do vento
que os marinheiros aproveitaram navegando à bulina.
E também porque, paradoxalmente, e ao contrário do que
aconteceu no passado, será na unidade e força da lusofonia que
50 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

poderá estar a estabilidade e futuro da diversidade. Sem o seu


apoio, as várias diversidades ficariam à mercê da poderosa força
neo-colonialista globalizante da actual língua franca, o inglês.
Em face dela, as línguas de grande expressão internacional
poderão representar alternativas de uso e santuários de preserva-
ção de valores culturais.
Para tanto, precisam de ser unas e sustentadas pelos países
que as partilham.
Entre elas o português, língua de base da lusofonia, só terá
possibilidade de sucesso, se todos os seus integrantes responsá-
veis o fizerem, pois se situa “entre a quinta, inclusivé, até à sétima
posição inclusivé” 9.
Obviamente que a unidade da língua se faz enquanto língua
de cultura, não sobre a língua oral, mas sobre a escrita, língua de
“feição universalista (oferecida) aos seus milhões de usuários, cada
um dos quais pode preservar, ao mesmo tempo, usos nacionais,
regionais, setoriais, profissionais” 10.
António Houais explica essa dimensão cultural da língua com-
parando-a com uma pirâmide em que ele ocupa o ápice, “pelo qua-
se igual teor de sua culturalização gráfica – se entendeu entre si de
um modo quase comum ou mesmo comum: nesse nível, a língua de
cultura portuguesa é universal para todos os que a aprenderam como
língua de cultura, isto é, transmitida pelo aprendizado escolar: nessa
pirâmide, sobe-se de milhares de dialectos locais para um certo tipo
de linguagem sem cor local e, de certo modo, sem cor temporal, pois
a culturalização acumula o léxico e as regras gramaticais do passado
no léxico e regras gramaticais do presente (…) numa fonia, que, nos
nosso caso, é a lusofonia” 11.
As vantagens em se promover e defender esta unidade
lusófona que, obviamente, admite várias normas cultas, que dis-
pensam outros argumentos.
Mas não só na actualidade o problema foi encarecido pelos
brasileiros.
Já no princípio deste século alguns intelectuais tinham cha-
mado a atenção quer para a importância da língua como fronteira
cultural, quer para a sua relevância como fronteira política, decisi-
va para os interesses nacionais.
Soube este último aspecto, o seu grande defensor no Brasil
foi Silvio Romero que em plena época anti lusista proferiu em,
Julho de 1902, uma memorável confência intitulada “O elemento
português”.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 51

Nela preconizava a intensificação e preferência pela coloni-


zação portuguesa moderna como a mais acertada medida não só
para obstar às tendências separatistas de alguns núcleos de colo-
nos, nemeadamente em São Paulo e no Rio Grande do Sul, mas
também para fortalcer o sentimento da unidade nacional face às
cobiças dos vários imperialismos reinantes, nomeadamente da
Inglaterra e da Alemanha.
Cobiças essas voltadas não só para a África e as regiões cen-
trais da Ásia, mas também para a América Latina, especialmente
apetentes do Amazonas, do Madeira, do Purús e do Acre.
O que é surpreendente nesta apologia de uma nova coloniza-
ção portuguesa é a coragem de se demarcar do ambiente dominan-
te anti lusista, e a previsão, de tipo profético, dos acontecimentos
que se começariam a realizar cerca de vinte e cinco anos
depois,ligando intimamente a colonização lusitana à língua e cultura
de Portugal como revitalizadoras do orgulho nacional brasileiro.
Chegou mesmo como veremos, a prevêr a organização das
potências em blocos de poder aglotinados pela língua comum que
usaram, e a união lusófona como uma solução para lhes faze face.
Antes de Fernando Pessoa, Silvio Romero foi um dos pimeiros
teóricos da construção da lusofonia.
Previsões estas que contrastaram com o citado ambiente rei-
nante e triunfante do anti-lusismo.
Com efeito, à lembrança das críticas galhofeiras de Ramalho
Ortigão e Eça nas Farpas, e de Camilo no Cancioneiro alegre,
tinha-se juntado a onda de indignação patriótica contra o acolhi-
mento e imponidade concedida pela força naval portuguesa fun-
dada na baía de Guanabara aos conspiradores derrotados na “Re-
volta da Armada” de 1894.
A indignação foi tão grande que provocou o corte de rela-
ções diplomáticas entre Portugal e o Brasil e levava ao auge as
sátiras e chacotas de Raul Pompeia na literatura, no teatro e na
caricatura.
Mesmo depois da intervenção de Sílvio Romero continuou a
maré de hostilidade e desentendimentos acompanhada por medi-
das drásticas contra os monópolios de portugueses na imprensa,
nas pescas etc..
Basta ler As Razões da Inconfidência de António Torres,
para desde a primeira página, se poder avaliar o nível de degrada-
ção das relações luso-brasileiras.
Foi no meio deste torvelinho de paixões exacerbadas que a
52 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

voz de Silvio Romero se levantou.


Para o notável crítico, sociólogo, folclorista e historiador literá-
rio, a língua era um factor decisivo na identidade brasileira: “Basta-
ria o facto extraordinário, único, inapreciável, transcendente, da língua
para marcar ao português o lugar que ele ocupa em nossa vida, em
nossas lutas, em nossas aspirações; bastaria a língua para definirmos
e extremar-nos de quaisquer concorrentes estranhos que porventura
sonhem embaraçar-nos em nossa marcha. Ela só por si na era
presente serve para individualizar a nacionalidade”12.
Dentro da mesma lógica Romero anteviu que no desenrolar
do xadrez mundial jogado pelas nações se caminhava no sentido
de se agruparem em grandes blocos de poder e influência levados
pelo que então se julgava a maior força social - a raça -, e aglutinados
pela força da língua:
“Esse movimento unitário e centrípeto das raças, formando
grandes todos homogéneos entre si, e diferenciados uns dos ou-
tros, é que há-de poupar à humanidade a monotonia asfixiante do
cosmopolitismo avassalador, que facilmene triunfaria de pequenos
povos isolados.
Uma das ideias mais ousadas, atribuídas creio que a Cecil
Rhodes, é a de uma imensa federação de gentes que falam a
língua inglesa, e é verdadeiramente um pensamento genial.
Inglaterra, Escócia, Estados Unidos, tudo isto unido, aliado,
federado,vem a ser alguma coisa de inédito, de nunca visto nos
anaes do homem.E mais admirável será o quadro se nos lembrar-
mos que nele deverão entrar a Índia e o Egipto, transformados
pelo génio britânico.
É de assombrar” 13.
Sendo esta a dinâmica prevista e temida da anglofonia, lógica
se tornou também a previsão - desejo de que os povos de Língua
Portuguesa se organizassem, mesmo num tempo em que as inde-
pendências africanas em geral e as das colónias portuguesas em
particular eram imprevisíveis:
“Sim, meus senhores: não é isto uma utopia, nem é um sonho
a aliança do Brasil e Portugal, como não será um delírio ver no
futuro o império português de África unido ao império português
da América, estimulados pelo espírito da pequena terra da Euro-
pa que foi o berço de ambos.
Só assim, quando estamos a assistir à difusão do elemento
anglo - saxónico por todos os continentes, do elemento eslavo por
toda a Europa oriental e por toda a Ásia do norte e do centro, e do
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 53

elemento francês nessa última parte do mundo e pelo coração a


dentro de África; só assim, quando até o Japão se aparelha para
as peripécias do futuro e é de esperar que a China venha a fazer
o mesmo; só assim, só pela união, é que se manterá no porvir
longínquo a famosa língua de Vieira e Herculano”14.
E, em geito de “grand finale” retórico, o também grande ora-
dor rematou a sua conferencia com esta exortação entusiástica:
“Nós devemos também esforçar-nos para que esta língua,
grandíloqua e sonorosa, seja também perpétua, seja eterna em
nossas almas, para que nunca mais desapareça das plagas de
Guanabara, nem de toda esta imensa e amada terra que vai do
Amazonas ao Prata”15.
Outro sonhador do futuro de Língua Portuguesa, para me
limitar a dois grandes vultos do mundo luso-brasileiro, foi Fernando
Pessoa que, por volta, provavelmente de 1931, no Livro do De-
sassossego deixou expresso: “não tenho sentimento nenhum polí-
tico ou social. Tenho porém num sentido, um alto sentimento
patriótico, minha pátria é a Língua Portuguesa”16.
Não pode esta afirmação ser diluída como hiperbólica ou de
exaltação simples, mas deve entender-se como definição a um
tempo simbólica e literal do seu pensamento sobre a Língua Por-
tuguesa.
E por razões que não cessam de lhe confirmar a intenção e o
sentido, à medida que foram sendo publicados inéditos seus refor-
çando afirmações sobre o significado de um quinto império cultu-
ral fundado na língua.
Em 1934, no prefácio à obra de Augusto Ferreira Gomes,
intitulada O Quinto Império explica Pessoa a cronologia dos im-
périos e como têm sido interpretados, contrapondo-lhes a sua, em
que o português se afirma como o Quinto, por vir na ordem de
uma sucessão não de impérios materiais mas espirituais.
O Quinto Império de Pessoa é, simultâneamente, espiritual e
temporal, sendo a Língua Portuguesa a constituinte essencial des-
se império, antecipando as modernas concepções da lusofonia.
Identificando as traves mestras desse edifício imperial, assim
as enumera: uma língua apta, rica, gramaticalmente completa e
fortemente nacional, e o aparecimento de homens de génio literá-
rio escrevendo nessa língua e ilustrando-a.
Assim, alguns tópicos avultam nessa construção:
a) A capacidade da Língua Portuguesa, pela sua riqueza e
plasticidade, servir de pátria comum;
54 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

b) A existência de um património lusófono, como o apelidarí-


amos hoje, linguístico e cultural capaz de se impor no mundo da
cultura e da ciência;
c) A capacidade institucional e sócio-política da nossa língua
se propagar e impor no estrangeiro;
d) Um número considerável de falantes;
e) A existência de uma geografia linguística correspondente
à de um império17.
Porque para Fernando Pessoa “A base da pátria é o idioma,
porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animal
pensante, e a acção é a essêcia da vida. O idioma, por isso mesmo
que é uma tradição verdadeiramente viva, concentra em si, indistin-
ta e naturalmente, um conjunto de tradições, de maneiras de ser e
pensar uma história e uma lembrança, um passado morto que só
nele pode reviver. Não somos irmãos, embora possamos ser ami-
gos, dos que falam uma língua diferente, pois com isso mostram que
têm uma alma diferente (…) A base da sociabilidade, e portanto, de
relação permanente entre os indivíduos é a língua, e é a língua com
tudo quanto traz em si e consigo qe define e forma a Nação”18.
É nesta óptica que se explicam e completam os conceitos
pessoanos de pátria, quinto império, mensagem, conceitos que pre-
param e explicam o que entendemos por lusofonia que, como afir-
mava Agostinho da Silva, não tendo quinto-imperador não contém
em si quaisquer ambições de domínio.
Porque “outro não é o espírito da lusofonia, descartadas que
sejam as vertentes imperialistas, pois ela reclama como objectivos
tão somente os de viver e testemunhar uma forma mais humana
de ser e de dialogar com as outras fonias e culturas, sem a preten-
são de vir a dominá-las”19.
Por todas estas razões nos parece uma excelente proposta
de interpretação da lusofonia a de Silvio Elia que, partindo de uma
analogia com o uso que se fez da palavra “România” no mundo
neolatino, apelidou a língua comum de “Lusitânia”, assim denomi-
nando os espaços em que ela é ou foi usada: Lusitânia Dispersa -
a dos emigrantes espalhados pelo mundo20.
Deste modo se pode afirmar tanto a diversidade como a uni-
dade da Língua Portuguesa.
E nessa unidade não reside simplesmente um modo mais fá-
cil e eficiente de comunicar, mas também, simultâneamente, uma
visão da vida individual e colectiva algo diferente da das outras
fonias, herdadas do carácter nacional português e enriquecida pelos
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 55

contributos brasileiro e africanos.


Já Pessoa notava que “de todos os povos da Europa somos
nós aquele em que é menor o ódio a outras raças e a outras na-
ções. É sabido de todos, e de muitos censurado, o pouco que nos
afastamos das raças de cor diferente (…) a nossa índole prepara
para aquela fraternidade universal”.
Atá Charles Boxer, que tão implacavelmente analisou a colo-
nização portuguesa, e que tantas dificuldades teve para entender
as suas contradições que escapavam à sua coerência e
geometrismo saxónico, não pôde deixar de afirmar, no meio de
críticas ao racismo que também foi português, que os portugueses
o eram menos que os outros: “can truthfully be said is that, in this
respect, they were usually more liberal in pratice than were their
Dutch, English and French sucessors”21.
Como já foi afirmado a lusofonia dá os seus primeiros pas-
sos, e a unidade da língua só lentamente provoca a construção da
unidade das nações lusófonas agindo como um bloco.
Até porque não é fácil realizá-la, dado que os países lusófonos
não estão no número das grandes potências industriais, sendo al-
guns deles de economia muito débil e vivendo situções de pobreza
aguda. Situações estas que os forçam à dependência económica e
política em relação a países da anglofonia e Commonwealth e da
francofonia.
Mas também essas situações serão um dia vencidas como
ultrapassadas foram outras conjunturas difíceis, perigos ou ameaças.
No passado mais remoto foram as ameaças hegemónicas do
expansionismo de Castela sobre a jovem nação portuguesa, reno-
vadas de 1508 a 1640 com a junção das duas coroas ibéricas.
Ameaças ao Brasil e às colínias africanas portuguesas que
viriam a ser países independentes, por parte das grandes potênci-
as imperialistas europeias, a que Sílvio Romero se referiu.
Perigos e ameaças na primeira metade do século, não já di-
rectamente a uma soberania nacional, mas à própria cultura
lusófona, miscigenada, por parte da ideologia ariana branca cujo
racismo foi claramente denunciado por Gilberto Freire na famosa
conferência de 1940: “Uma cultura ameaçada”.
Ameaças provenientes da ideologia marxista que, pregando
o materialismo e a luta de classes como motor da História e método
dialéctico de evolução, não via com bons olhos a cultura lusófona de
base cristã, do diálogo, do entendimento étnico e cultural dos vários
tipos de mestiçagem e humanismo da conciliação e concertação.
56 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Perigos e ameaças ainda decorrentes da mesma perspectiva


ideológica e política encarnados por uma forte corrente da negritude
radicalmente racista no seu anti-racismo, também anti -cristã, anti-
europeia, anti-mestiça ou branca como era proclamada pela “legi-
time défense”, e nas reuniões e congressos de Manchester, de
1945, e de Bandung, de 1955 22 .
Desafio ambivalente da globalização porque, se por um lado se
obtém algum ganho na promoção dos valores e direitos humanos,
especialmente pela homogeneização das políticas e dos sistemas
jurídicos nacionais e também pela proposição - aceitação de modelos
para resolver problemas que sempre ultrapassaram as capacidades
de um país no âmbito da saúde, do ambiente, do combate à pobreza,
por outro lado a grande concentração económico destabiliza e
desorganiza a ordem económica, plolítica e cultural dos povos.
É que a concentração económica arrasta consigo a reorgani-
zação da sociedade, provocando a “desterritorialização” das for-
ças produtivas levando ao esvaziamento das economias nacionais
e a uma “concomitante polarização de actividades produtivas,
industriais, manufactureiras, de serviços, financeiras, administrati-
vas, gerenciais, decisórias” 23 , com as inevitáveis consequências
nas línguas e nas culturas.
E como são as nações mais ricas e prósperas o centro motor
destas transformações, e os Estados Unidos o centro do centro
deste furacão, daí as imposições descaracterizadoras da cultura
tecnocrática, e a dominância da língua inglesa e do “american
way of life”.
Entre as culturas e línguas mais prejudicadas encontram-se
as de matriz latina (a hispanofonia, a lusofonia, a francofonia), pelo
que uma estratégia de defesa, individual e de grupo se impõe.
Por um lado, devemo-nos aliar a espanhóis e franceses con-
tra a expressão anglófona, por outro, impõe-se o reforço da nossa
própria coesão.
Em relação à francofonia, em especial, a lusofonia devia rei-
vindicar um respeito maior pelo seu espaço e esfera de influência,
pois ultimamente se têm sentido demasiadas cobiças de hegemonia,
nomeadamente em Cabo Verde e na Guiné. Se nos dividirmos
como rivais como fazer frente aos excessos da anglofonia
americanizante?
É que a influência potencialmente descaracterizadora da
globalização não se faz sentir só sobre os países de economias
pobres, também se exerce sobre outras culturas de países indus-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 57

trializados, quer diluíndo-lhes a identidade, quer apropriando-se dos


seus valores próprios não já como contributos para a harmonia
universal, mas sobretudo coisificando-os como objectos banais de
consumo cultural.
E não são estes perigos meras suposições teóricas, porque a
inevitável unificação do mundo está a verificar-se em movimento
uniformemente acelerado.
Segundo o último relatório do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD) publicado neste mês de Julho
em que nos encontramos, o movimento cultural contemporâneo
está desiquillibrado por ser grande a instabilidade cultural dos pa-
íses pobres que não dispóem de barreiras de resistência ou selec-
ção, sobretudo nas duas áreas mais sensíveis para a criação ou
transformação da mentalidade colectiva: a da informação e a do
entretenimento.
É cada vez mais universal e avassaladora a audiência da
CNN e da BBC que agora emitem 24 horas sobre 24 horas, até
porque, em apenas quatro anos, no mundo inteiro passou para o
dobro o número de televisores em uso.
Quanto à informatização em geral, e ao uso da Internet em
particular, elas passaram a ser práticas rotineiras e prestigiadas,
possibilitadas por facilidades cada vez maiores que vão até à ofer-
ta total por parte das grandes empresas e dos governos.
E o mesmo se poderá dizer do showbusiness e do cinema
americano em especial. Basta lembrar de que a maior e mais
rentável indústria americana não é a da aeronáutica ou do auto-
móvel, mas do audiovisual, e que os filmes de Holliwood triunfam
em toda a parte.
Concluem os autores do relatório do PNUD que “há neces-
sidade de maior apoio para as culturas indígenas e nacionais, para
que elas possam florescer de forma paralela às culturas estrangei-
ras “porque obviamente não pode ser um idela, o isolacionismo,
mas uma saudável competição.
Naturalmente que a unidade linguística não é panaceia mila-
grosa para resolver eficazmente os problemas levantados pela
globalização, mas ela está na base de uma conjugação de forças a
que chamamos lusofonia.
Nela e na lusofonia deverão ser enquadrados os meios para
que o necessário e indispensável diálogo com as outras culturas se
realize preservndo os nossos valores.
Valores que se constelem à volta de concepções e atitudes
58 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

relativas a Deus, ao Homem, à família, à sociedade, realizados


sobre um fundo cristão, em diálogo étnico que repele todas as
formas de racismo e que elegem a tolerância, a cordialidade, a
cocertação, a solidariedade, como formas suas de Humanismo.
A lusofonia não é só um problema linguístico de ensino e
aprendizagem de uma língua de comunicação internacional, é muito
mais do que isso - uma certa forma de estar no mundo e viver em
sociedade.
Por isso trabalhamos cada vez mais a favor da unidade da
língua comum da lusofonia para que enfrente com sucesso os
desafios que lhe surgem, e reivindicarmos na União Europeia a
mudança na sua política linguística protagonizada pelos progra-
mas “Língua” e “Sócrates”.
Política essa que pretendendo, certamente com boas inten-
ções, ajudar todas as línguas que, brevemente ultrapassaram as
vinte, em vez de favorecer o diálogo entre elas, as vão encher de
ruídos e confusão, reeditando a Torre de Babel.
Em vez disso será mais eficaz e aconómico apoiar as línguas
de basedas grandes fonias mundiais de comunicação, que todas
são europeias, independentemente da língua franca, o inglês, ou
seja: a hispanofonia, a lusofonia, a francofonia, a germanofonia,
pois que apoiando essas línguas de base da comunicação interna-
cional, não são só nem principalmente as línguas de quatro países,
mas as línguas de quatro constelações de países espalhados pelo
mundo inteiro.
Também por isso, reivindicamos como tarefa prioritária a
muitas outras, a concretização do Instituto Internacional da Lín-
gua Portuguesa, criado no papel em 1989 e que deveria ser posto
a funcionar antes da CPLP (Comuidade de Povos de Língua Por-
tuguesa) que não o substitui de modo algum.
Em resumo, só com uma política linguística concertada pelos
sete seremos capazes de transformar o desafio da globalização
em potenciação de eficácia e não em confissão de derrota.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 59

Notas
1
Celso Cunha, Uma Política do Idioma, Rio, Liv.S.José, 1964, p.34
2
Ignacio Ramonet, Geopolítica do Caos, Rio, Vozes, 1998
3
Fernão de Oliveira, Gramática
4
Virgínia Mattos e silva, “Diversidade e Unidade – A Aventura Lin-
guística do Português, (2ªparte)”, in Revista Icalp, Lisboa, 1988, p.15
5
Barbosa Lima Sobrinho, A Língua Portuguesa e a Unidade do Bra-
sil, , 1958, p.177
6
Paul Teyssier, Histoire de la Langue Portugaise, Paris, PUF, 1980,
p.117
7
Jean-Michell Massa, “La Langue Portugaise en Afrique”, in Lexikan
des Romanistischen Linguistik, Tobugen, 1994, p.575
8
Comissão Nacional para o Aperfeiçoamento do Ensino / Aprendi-
zagem da Língua Nacional – Relatório Conclusivo,Ministério da Educa-
ção, Janeiro de 1986, p.4
9
António Houais, O Português no Brasil, Rio, Unibrade, 1985, p.141
10
Comissão Nacional para o Aperfeiçoamento…, p.5 e 6
11
António Houais, ibidem, p.15
12
Silvio Romero, O Elemento Português, Lisboa, Tipografia da Com-
panhia Nacional Editora, 1902, p.11
13
ibidem, p.33
14
ibidem, pp 32-33
15
ibidem, p. 49
16
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, Lisboa, Ática, 1982, p. 17
17
Fernando Pessoa, em textos – fragmentos, publicados in Sobre Por-
tugal, dir. de Joel Serrão, Lisboa, Ática, 1978, p.229
18
Fernando Pessoa, ibidem, p. 121-122
19
Fernando Cristóvão, “Fernando Pessoa e a Lusofonia a haver”, in
Letras, Edição especial dedicada a Fernando Pessoa, Santa Maria, Univer-
sidade Federal de Santa Maria, 1995, p.91
20
Joel Serrão, ibidem, p.237
21
Charles Boxer, Four Centuries of Portuguese Expansion, 1415-
1825, Succint Survey,
22
Fernando Cristóvão, “As literaturas de Língua Portuguesa em áreas
tropicais”, in Notícias e Problemas da Pátria da Língua, Lisboa, Icalp,
1987, p.91
23
Octávio Ianrri, A Era do Globalismo,3ª ed.,Rio,Civilização
Brasileireira,1997,p.12
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 61

Da construção lingüística da
identidade. Um estudo de caso. 1

João Nuno Paixão Corrêa Cardoso,


da Universidade de Coimbra

1. Considerações prévias

A bibliografia sociolingüística dos últimos anos tem aproxi-


mado, com uma premente insistência, três realidades cuja associ-
ação o exame teórico de pendor imanentista não deixava consi-
derar com demora. Hoje em dia e independentemente das comu-
nidades estudadas, a língua, a escola e os processos de cons-
trução da identidade dos indivíduos e/ou dos grupos constituem
um tríptico conceptual em que repousa novo ímpeto da investiga-
ção aplicada.
Para além de tudo aquilo que o discurso crítico da lingüística
nos tem legado acerca do seu objeto formal, é com crescente
convicção que os investigadores identificam agora o aproveita-
mento utilitário das línguas naturais em projectos políticos de plani-
ficação educativa, com o fim último de claro nivelamento dos su-
jeitos falantes, esteja em análise a legitimação de uma norma ou a
imposição do ensino de um sistema dominante em salas de aulas
multiculturais.
Paralelamente à influência inicial do núcleo familiar, a escola,
na sua qualidade de instituição ao serviço das ideologias com
poder decisório, transformou-se na arena privilegiada do movi-
mento socializador de crianças, de jovens (e até de adultos) que
retomam, noutros moldes, a construção da sua identidade - íntima
e grupal - de acordo com os parâmetros definidos por instâncias
que lhes são igualmente desconhecidas e superiores.
O objectivo primordial do traballho de campo realizado entre
os filhos de trabalhadores portugueses fixados em território ale-
62 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

mão e cuja primeira língua adquirida foi o português consiste no


exame de uma dimensão parcelar das suas titudes lingüísticas para
com esse idioma, no âmbito particular da situação de contacto
com a língua alemã: a da elaboração do universo íntimo de sobre-
vivência no país receptor.
A par deste leit-motiv considerarei a concepção dos
informadores do espaço lusófono e o grau de consciência do es-
pectro sociolingüístico do português nas duas cidades germânicas
de Hamburgo e de Harburg e verei das (im)possibilidades
definitórias das cumplicidades dos três vectores referidos.

2. Aspectos do terreno abordado

O ensino ministrado da L1 procura corresponder às solicita-


ções dos pais e às exigências programáticas do Ministério da Edu-
cação português. Estas duas entidades procuram solucionar proble-
mas, a meu ver, concêntricos: que o futuro dos educandos nào fique
truncado, na eventualidade de desejarem regressar a Portugal ou,
então, de não perderem o sentimento de pertença ao espaço lusófono,
se resolverem permanecer na Alemanha para sempre.
Se se fizer uma leitura circunstanciada dos textos homologa-
dos que, em termos oficiais, orientam o ensino português nos nos-
sos núcleos no estrangeiro, detectamos neles a presença constan-
te da preocupação em satisfazer positivamente ambas as necessi-
dades. Senão, atentemos:

Em 1978, os Objectivos a alcançar através do


Programa de Língua e cultura portuguesas eram
o de transformar o educando num indivíduo ca-
paz de “(...) intervir oportunamente, tanto no país
de origem, como no país onde vive (..)” (p.3). Se-
gundo as notas preliminares, “(..) tal programa
deverá proporcionar um conhecimento da rea-
lidade social do país de origem, que Ihe facilite
uma possível integração futura, sem demasiados
sobressaltos e traumatismos e, ao mesmo tempo,
lhe abra perspectivas para compreender a sua
própria situação de filho de imigrante (...)” por-
que “(...) essas novas aquisicões não poderão ser
desligadas das vivências concretas da criança e
do ambiente em que vive (...)” (p. 4)2
Nos Objectivos programáticos do estudo da
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 63

Língua Portuguesa para a obtenção da equiva-


lência ao ensino secundário, são de destacar os
que ocupam o 3 e 6 lugares: “Levar o aluno ao
domínio progressivo da Língua como meio de
expressão do Pensamento e de transmissão de
valores individuais e colectivos” e “intensificar
o interesse pela língua e pela civilização portu-
guesas”3 .

Também não se encontram alheadas desta óptica as inten-


ções que presidiram a arquitectura dos programas só de cultura
portuguesa.
De facto, logo nos Objectivos gerais do do-
cumento que permite a equivalência ao Curso Uni-
ficado de Portugal, pode ler-se o seguinte: “O pre-
sente programa de cultura portuguesa tem como
finalidade ajudar o aluno, filho de emigrantes,
que vivendo desligado do contexto cultural da
terra de seus pais e da realidade actual do nosso
país, a integrar-se na sociedade e na escola por-
tuguesas. Na mesma página, mais à frente, repete-
se a formulação do desejo institucional de “Permi-
tir ao aluno, filho de emigrantes, que regressa a
Portugal uma melhor adaptação à escola que irá
frequentar evitando assim desajustamentos, mau
aproveitamento escolar com consequente perda
de anos lectivos.”4

Na década de 90, registou-se a emissão de novos programas


escolares que continuam a acentuar - se bem que com uma maior
veemência - a importância da identidade de partida dos alunos (e
dos núcleos familiares de que são oriundos) a par, naturalmente,
da equacionação de outros problemas do foro psico-pedagógico e
didático, levantados pelas realidades - multifacetadas – do ensino
– aprendizagem em português no mundo.
Por exemplo, nas Finalidades do quadro oficial da difusão
linguística e cultural dirigido às crianças dos 6 aos 10 anos de
idade, tecem-se as seguintes linhas de acção: “3) Favorecer o
desenvolvimento da consciência da identidade linguística e
cultural, através do confronto com a língua estrangeira e a(s)
cultura(s) por ela veiculada(s). 4) Fomentar um dinamismo
cultural que não se confine à escola nem ao tempo presen-
64 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

te(...). 5)Promover a educação para a comunicação enquan-


to fenómeno de interacção social, como forma de favorecer o
respeito pelo(s) outro(s), o sentido da entreajuda e da coope-
ração, da solidariedade e da cidadania. 6) Proporcionar o
contacto com outras línguas e culturas, assegurando o domí-
nio de aquisições e usos linguísticos básicos. 7) Estruturar o
conhecimento de si próprio (..), valorizando a sua identidade
e raízes. 8) (...) reflectir sobre a sua própria realidade sócio-
cultural, através do confronto com aspectos da cultura e da
civilizacão portuguesas.”( p.s 9-10). Nos contéudos culturais
aparecem sublinhadas a identidade nacional, por um lado, e a
localização de Portugal face à Europa e ao resto do mundo
ou as ligações de Portugal com o mundo, por outro. (p. 31)5
Em meu entender, esta ambivalência programática reflecte,
de maneira explícita, o (re)conhecimento que as autoridades
educativas possuem dos vários constrangimentos inerentes à
acu1turação por que passam estes indivíduos em fases iniciais (e
importantes) da formação do Eu (profundo e frágil) e do estabele-
cimento dos laços com os não-EU.
Em ambas as circunstâncias, o que motiva a prática escolar
e, no fundo, a intenção de alertar para a anterioridade da heran-
ça portuguesa e desenvolver e manter mecanismos identificativos
renovados que combatam o enorme peso do factor da extra-
territorialidade de que a gradual separação das culturas de par-
tida é a primeira consequência inevitável.

3. O.I.L.H. - 97
O Inquérito Linguístico foi aplicado nas Escolas de Harburg
e de Hamburgo, da Missão Católica Portuguesa, pertencentes à
zona consular de Hamburgo, em Maio de 1997, e a fase posterior
de confirmações realizou-se em Maio de 1997, e a fase posterior
de confirmações realizou-se em Fevereiro de 1998. Composto
por três Questionários (A, B e C), permitiu a obtenção de dados
junto quer do corpo docente, quer da população escolar que fre-
quenta, mais ou menos assiduamente, as aulas de língua e de cul-
tura de origem (da 1 geração).
Durante a aplicação do I.LH-97, auscultei igualmente as ori-
entações das vontades políticas e institucionais em matéria educativa
e (socio)linguística - a) da Direcção da Escola da Missão Católica
Portuguesa em Hamburgo e em Harburg, na pessoa do Padre
Dr.Eurico José de Azevedo, b) junto do Dr. José António Fernandes
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 65

Costa, na qualidade de Erziehungsattaché des portugiesischen


Generalkonsulats em Hamburgo e c) do Departamento de Co-
ordenação Geral do Ensino, da Embaixada de Portugal em Bona,
através da Dra. Maria da Piedade Gralha , aqui ficando publica-
mente registado, a todos três, o meu reconhecimento.
A discussão teórica anunciada pelo título da minha interven-
ção é suscitada essencialmente pelas respostas abertas, fornecidas
às cinco últimas perguntas do Questionário 2. (I.L.H.-97/B): 34)
Agora, vou escrever o nome dos países do mundo onde se
fala a Língua Portuguesa...; 35) E agora, vou dizer o que
sinto quandoouço falar português à minha volta...; 36) Como
estou quase a acabar, voudizer o que sinto quando falo a
Língua Portuguesa...; 37) Para mim, Portugal é...; 38) E os
portugueses são...

4. Apresentação da amostra

A selecção dos informadores foi, de início, condicionada pe-


las seguintesircunstâncias: a) os contactos, em tempos desiguais,
com os professores responsáveis pelas turmas6 , b) a difícil articu-
lação entre as actividades escolares previamente calendarizadas
e a aplicação do I.L.H.-97 e c) as contingências vividas pelo cor-
po discente que frequenta, em dias alternados, as Escolas da Mis-
são após o cumprimento de um horário lectivo diario (de tipo diur-
no e completo) nas escolas oficiais alemãs.
Todos estes informadores frequentam o ensino oficial ale-
mão. O dia normal de aulas nas instituições germânicas inicia-se
às 8 horas da manhã e termina às 14 horas e trinta da tarde. Os
tempos lectivos das escolas portuguesas compreendem-se entre
as 15 e as 18 horas, privilegiando-se o estudo da língua, da história
e da geografia de Portugal. Entre outros factores, a própria
e1aboração do texto do Questionário 2. devia prever, é claro, o
cansaço acumulado e/ou o desinteresse dos alunos inquiridos.
Hoje apresentarei apenas os elementos fornecidos por três
dos cinco grupos de alunos, ainda nascidos em Portugal, que par-
ticiparam na pesquisa. A Tabela 4.1. disponibiliza as informações
essenciais sobre a amostra recolhida:
66 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Tabela 4.1 (Fonte: I.L.H. – 97)

Ano de escolaridade GØnero MØdia etÆria


_________________________________________________________

9 raparigas
Grupo I 5 classe 11.6
12 rapazes
13 raparigas
Grupo II 7 classe 13.1
11 rapazes
25 raparigas
Grupo III 9 classe 15.3
10 rapazes

Com um total de 80 informadores, trata-se de uma amostra


de proporções equilibradas, tanto quanto a flutuação do universo
de partida o permite. De uma forma global7 , o perfil sócio-econó-
mico dos inquiridos situa-os num escalão médio.

5. Resultados e seriação das conclusões globais8

A imagem unificada do espaço lusófono resulta de uma visão


consensual de todos os grupos entrevistados e permite a delimita-
ção inequívoca de zonas solidárias.
De forma repetida, Portugal (às vezes acompanhado pela
nomeação de centros urbanos como o de Lisboa e o do Porto)
encimou sempre a lista das enumerações, juntamente com os terri-
tórios açoreano e madeirense. O mesmo aconteceu com o Bracil
que esteve presente em quase todas as escolhas. Não foram es-
quecidos os países africanos de expressão oficial portuguesa, como
Angola, Mucambique, Cabo Verde, Guinea, São Tomê e Principe
(incluídos por este ou por aquele informador em designações
genéricas do tipo nas costas da Africa ou na Àfrica). Nas selecções
de lugares onde vivem grupos residuais de locutores do português,
Macau, Timor Leste e Goa aparecem pontualmente.
Todos falam, como seria de se esperar, na Alemanha que é o
país do quotidiano ou em Hamburg, a cidade que melhor conhe-
cem; mas é o sentimento agudo da condição de portugueses a
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 67

viver no estrangeiro por motivos económicos que ajuda especial-


mente os informadores mais velhos (Grupos II e III) a encontrar
noutras regiões de extensão lingüística portuguesa - e com preci-
são -, como em França, no Luxemburgo, na Suíssa, na Africa
do Sul, no Canadá ou, então, no Mexico e na Amérika do Norte
e do Sul o paradeiro de companheiros de infortúnio aí colocados
por meio de viagens com escalas (trans)europeias.
Poderá surpreeder-nos a minúcia dos contornos e dos por-
menores do retrato da grande família lusitana traçado por indiví-
duos tão jovens e tão distanciados dos meios de (re)produção e de
representação ideológicas e simbólicas nucleares da língua e da
cultura portuguesas. Ela decorrerá certamente da acção combi-
nada i) do legado transmitido euforicamente pela viva voz da gera-
ção dos progenitores – sempre mais renitente nos processos de
aculturação -, com responsabilidades na apreciação positiva das
origens ibéricas e dos concidadãos, e ii) da insistência com que se
trabalham, na escola, determinados conteúdos programáticos, dos
quais sublinharia o estudo dos países de língua oficial portu-
guesa e sua localização ou análise das razões históricas do uso
do português por cerca de 200 milhões de falantes, referindo
as grandes viagens dos portugueses.8

Assim condicionados pelas intenções confluentes da família


e da instituição escolar, eis como os informadores testemunham
o teor da sua relação com Portugal, com os portugueses e com a
língua de Fernando Pessoa9 :

1 - Para mim, Portugal é um dos países mais lindo que á (2),


o melhor país (6), um país onde a muito Sol, e onde eu nasci, onde
esta a minha família (9), a terra mais importante que há (23), uma
nação que é uma das melhores que conheço (46), um País de
Alegria (um paraíso) (48), o País que eu mais gosto e por o que eu
sinto mais consideração (57);

2 - E os portugueses são passoas sinpaticas e spetaqular (2),


como pais (6), inteligentes (24), bons em Futebol (30), the Best
(33), as pessoas mais felizes do mundo (40), porreiros fixes, (52),
têm as mulheres mais bonitas do universo (58), freundtich (71);

3 - A Língua Portuguesa é minha língua (Muttersprache) (25).


Portugal é o pais de origem, o país de uma vida liberta de
68 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

obrigações (escolares e profissionais), onde os pais lhes dedicam


mais atenção. É ainda o reduto dos avós e de familiares que
revisitam ano a ano e talvez constitua um eventual futuro destino.
Parece estar assegurada a identidade (linguística e psicossocial)
de base de uma população escolar afastada do quadro participativo
original e que se pode traduzir em enunciados paradigmáticos do
tipo Portugal é o meu país e tenho muito orgulho nisso (24), a
minha terra (31), O meu país perferido (36), a minha pátria,
embora eu viver na Alemanhã (46), os portugueses são os meus
amigos (31), o meu Povo são as pessoas que eu tenho mais
consideração (49) e quando falo português eu sinto que per-
tenço a Portugal (46).
Estes resultados poderão ser, afinal, animadores, se pensar-
mos, em primeiro lugar, que, no país receptor, os jovens em causa
devem satisfazer necessidades comunicativas e, portanto,
corresponder com sucesso a expectativas de usos actualizando
um sistema semiótico tipologicamente diferenciado da L1 e, em
segundo lugar, se considerarmos o estatuto da utilidade que atribu-
em ao português como língua minoritária, plasmado que foi nas
limitações sociais das práticas discursivas reservadas à L1 com as
dimensões dos seguintes segmentos micro-culturais: é a língua que
50.5%. falam em casa com a família e, nesse ambiente, a prefe-
rida por 56.9% em relação ao alemão. Por isso e a par da escola,
o lar é o local decisivo para a transmissão e a manutenção do
português: o idioma aprende-se em casa (83.9%) e na escola
(96%), com os professores (92.8%), a família (85.6%) e, mais
remotamente, com alguns dos amigos próximos (39.7%).
A observação do continuum dos comportamentos subjecti-
vos para com a L1 indica, todavia, uma crescente deterioração da
identidade lusa a favor de uma aproximação linguística (e cultural)
a situação sociolinguística do país de acolhimento. O poder da
assimilação da língua maioritária exercido em todos os domínios
da vida comum, ao conduzir os alunos estrangeiros no processo
gradual de integração, fá-los passar por uma fase mais ou menos
(in)consciente e conflituosa de hierarquização das línguas em con-
tacto, marcada pelo movimento de oposições e adesões aos múl-
tiplos valores veiculados pelo alemão. A passagem da qualidade
de othergroup a owngroup members evidencia índices de hesi-
tação flutuantes, muito particularmente quando funcionam os cha-
mados contextos de crispação identitária, isto é, em situações de
enunciação concretas em que as fronteiras da(s) diferença(s) ou
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 69

não fazem parte do horizonte de espera - na óptica alemã – ou não


podem (nem devem) transparecer.
A auscultação dos sentimentos desencadeados quer pela
audição do português, quer pela actuação individual nessa mesma
língua, no âmbito de um dualismo linguístico cuja tensão é vivida
de forma continuada, manifesta os diferentes graus de desafecto
de tal idioma. Para uma amostragem das tendêcias, ouçamos par-
ticipações exemplificativas dos três grupos implicados:
GRUPO I Quando ouço falar português à minha volta
Sinto o meu coração a rir e penso em portugal (7), Apetece-
me falar p’ra as pessoas e falar (13), eu gosto muito disso
porque sei que aqui também há portugueses (15). Quando
falo a Língua Portuguesa Sintume bem (1), Sinto que estou a
falar a língua que a minha mãe e também os professores me
ensinaram (18), Sintu-me feliz porque sei falar Português (21).
Neste conjunto de entrevistados poucas são as vozes
dissonantes.
Porém, algumas respostas do Grupo II perdem a vivacidade
na aceitação da L1; e apontam, com maior nitidez, o afastamento
sentido pelos locutores da comunidade apresentando soluções tí-
picas de um compromisso linguístico:

GRUPO II Quando ouço falar português à minha volta


não sei o que sinto (24), É bom porquê as pessoas afinal não
esqueceram a Língua Portuguesa (32), Eu sintome como
sempre normal (38), Sinto muita alegria por terem respeito
pela Língua Portuguesa (43). Quando falo a Língua Portu-
guesa Eu sinto igual como falo Alemão (38), Não tenho a
serteza (39).
Entre os mais velhos, as evidências empíricas obtidas reme-
tem já para o estatuto de marginalidade do português e para uma
esbatida noção de pertença à comunidade de língua:

GRUPO III Quando ouço falar português à minha volta


não me sinto no meio deles por não falar e perceber bem
português (58), sinto normal porque também há pessoas que
falam outras línguas (65), Nada. Mas gostava falar tão bem
Português como alguns portuguêses (68), Eu acho que tem
interesse para aprender (77). Quando falo a Língua Portu-
guesa eu detesto falar (65), Não sinto nada é uma língua
como qualquer outra (79).
70 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

A geração de educandos que acabamos de observar é das


que, em situações idênticas de transplante geo-linguístico, acabam
por ser socializadas através de esquemas, espirituais e materiais, em
concorrência assimétrica: uns, os menos fortes, pertencem ao mundo
das referências familiares; os outros, diversos e dominantes, são os
das coordenadas que conforma(ra)m a sociedade alemã
contemporânea. Por outro lado, é também a juventude psico-fisioló-
gica dos seus organismos que surge como potência responsável pelo
processo de alteração e/ou mudança (socio)linguística, favorecen-
do o rápido desenvolvimento da competência comunicativa na lín-
gua da comunidade receptora.
A prática quotidiana de um excelente bilinguismo, nesta ge-
ração de transição, poderá, por conseguinte, conservar-se - na
tentativa em defender-se a chamada memória colectiva do gru-
po- ou conduzir à extinção de um dos sistemas co-existentes,
segundo a força do desejo de integração e de aceitação pelos
não-Nós. Tudo dependerá da tipologia das atitudes desencadeadas
por tais esquemas para com o código semiótico em risco.Outra
especificidade do conjunto dos informadores é a íntima aliança
criada entre a Língua Portuguesa e a identidade étnica e nacional,
reunião essa que os estudos de Psicologia Social nos dizem não
ser obrigatória. De facto, quanto mais afastados se sentem da
proficiencia em português, mais ácidas são as apreciações sobre
a população de Portugal: no Grupo I são generalizados comentá-
rios como os portugueses são bons amigos (12), simpaticos e
pessoas boas (15), (Aqueles que também falam Português.)
bons (18); no Grupo II diminui o grau de solidariedade, com enun-
ciados do género os portugueses sao simpácticos, mas só às
vezes (35), fantásticos, burros, inteligênticas, etc. (.37); no
Grupo III indiferença impõe-se, com asserções como os portu-
gueses são pessoas normais como todas as outras raças
tamben (68) ou como todas as outras pessoas (79).

6. Epílogo
A aproximação a esta complexa realidade escolar, em tempo
aparente e vivida por uma população não natural, dá-nos a medida
exacta do que ocorre no terreno. Durante a adolescência, as crises
que lhe são inerentes fazem-se acompanhar, de maneira reforçada,
pela instabilidade nos processos pluridimensionais e funcionais das
auto e hetero-identificação linguística (e cultural) uma vez que há
mais do que um modelo orientador colectivo proposto.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 71

No sentido de vencer este penoso período afectivo e psíquico


das criancas e dos jovens perfeitamente divididos entre dois pólos
- de igual modo legítimos - e de, com integridade, se perpetuarem
a língua e a cultura portuguesas neste e noutros ambientes adver-
sos, devemos repensar, com toda a seriedade, o nível dos canais
que transmitem o discurso da unidade.
Só assim se cumprirá, nas palavras de Aníbal Pinto de Cas-
tro, a vocação ecuménica de Portugal10 .

Notas
1
Trata-se do primeiro estudo de um conjunto amplo em que desen-
volverei outros temas a partir dos dados obtidos por intermédio do I.L.H
– 97 ou em que retomarei, para desenvolvimento teórico, pistas que a
análise aqui avançada me tenha sugerido ao longo da elaboração do
presente texto. À Prof. Doutora Maria Manuela Gouveia Delille, do
Instituto de Estudos Alemães da Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, quero expressar a minha gratidão por me ter proporcionado
ambas as estadias na Alemanha, sem as quais não só o trabalho de
campo teria sido impossível, bem como as subsequentes pesquisa, refle-
xão e sistematização, de que o presente texto é subsidiário.
2
Programa de Língua e cultura portuguesas para 5 e 6 anos de
escolaridade, Ministério dos Negócios Estrangeiros - Secretaria de Es-
tado dos Negócios Estrangeiros e da Emigração.
3
Programa de Língua Portuguesa, Ministério dos Negócios Es-
trangeiros Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Emigra-
ção, p.3.
4
Programa de cultura portuguesa, Ministério dos Negócios Estran-
geiros – Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Emigração,
p.3
5
Cf. a título ilustrativo ANTUNES, M. F., SILVA, M. R, TEIXEIRA,
M., 1994' Programa de língua e cultura portuguesas, Lisboa, Ministério
da Educação
33
- Departamentc da Fducação Básica.
A obtenção de todo o material linguístico só foi possível pela
acção adjuvante de três professoras cujo elevado profissionalismo e
adesão ao projecto me impressionaram ao tornarem possível o meu con-
tacto (imediato e prolongado) com os alunos das suas turmas, como pela
disponibilidade e cuidado que revelaram ao responder ao I.L.H.-97/A
(Questionário 1.). As Dr.as. Maria Isabel M. Dantas de Brito, Regina
Correia e Ana Paula Fonseca Pilzecker deixo lavrado um especial agrade-
cimento.
7
De acordo com as informações prestadas pelas respectivas pro-
72 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

fessoras no I.L.H.-97 (Questionário 1.) Na transcrição dos dados, mante-


nho a ortografia dos alunos.
8
ANTUNES, M.F., SILVA, M. R., TEIXEIRA, M., Op. cit., p.31.
9
Entre parênteses curvos, indico o número de ordem dos
informadores.
10
In Em questão: lusofonia. Apud Discursos. Estudos de língua
e cultura portuguesa. 1993, vol..3. Unidade linguística. Diversidade
cultural. Coimbra, Universidade Aberta, p.122.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 73

Sintaxe camoniana:
“Na qual quando imagina.”
Jorge Morais Barbosa,
da Universidade de Coimbra.

Convidou-me o meu velho amigo Professor Leodegário A. de


Azevedo Filho para participar neste congresso sobre “Brasil: Qui-
nhentos Anos de Língua Portuguesa” com uma intervenção dedicada
ao português quinhentista. Desde logo aceitei, com entusiasmo, o
seu convite, porque vir ao Brasil há muito se tornou para mim uma
espécie de vício, hoje enraizado: e de todos os vícios que eu possa
ter é este, seguramente, o mais gostoso. É também, felizmente, o
mais inofensivo, excepção feita, claro, por quantos, em circunstânci-
as como esta, padecerem com escutar-me.
Mas, aceite o convite, não me foi fácil escolher o tema de
minha intervenção. O conhecimento que hoje podemos ter de qual-
quer estado da língua anterior ao de nossos dias é, como bem se vê,
limitado ao que a literatura nos proporciona, e nem sequer o teatro
de Gil Vicente, tantas vezes invocado como testemunho de usos
considerados arcaizantes, nos permitirá conhecer o que de facto se
dizia no Portugal de Quinhentos. Os próprios conhecimentos que na
literatura podemos colher, além de eventualmente enganadores -
que representam, na realidade, muitos dos usos atestados em Camões
mais que uma execução singular de potencialidades linguísticas? -,
não se encontram nem sistematizados nem suficientemente desen-
volvidos. A tendência tem sido, salvo excepções, para se falar da
“língua” de um autor por referência ou ao português nosso contem-
porâneo ou ao que se julga saber de fases a ele pretéritas. Faltam-
nos, numa palavra, trabalhos como o que Paul Teyssier dedicou a
Gil Vicente. Já uma vez tive ocasião de dizer que, fora Camões
espanhol, quase nada restaria hoje para investigar a seu respeito:
como o não foi, resta quase tudo: bastará reportar-nos à “Biblio-
74 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

grafia Camoniana (1980-95)” organizada por Maria Vitalina Leal


de Matos para nos darmos conta do reduzido interesse que
Camões tem merecido aos linguistas portugueses, em flagrante
contraste com o exemplo que nos dão colegas nossos do Brasil.

1. Ocupei-me em Outubro passado, na Academia Internacional da


Cultura Portuguesa, de alguns problemas de sintaxe e topicalização
n’ Os lusíadas. Também como homenagem ao Presidente da
Academia Brasileira de Filologia e da Sociedade Brasileira de Língua
e Literatura e dinamizador deste nosso Congresso, que tanto se
vem dedicando ao estudo da obra camoniana, trago hoje aqui outro
caso, este de natureza apenas sintáctica, que em particular tem que
ver com os bem conhecidos versos da epopéia (I.33)

2.
Sustentava contra ele Vénus bela,
Afeiçoada à gente lusitana
Por quantas qualidades via nela
Da antiga, tão amada sua, romana,
Nos fortes corações, na grande estrela
Que mostraram na terra tingitana,
E na língua, na qual quando imagina
Com pouca corrupção crê que é a latina.

Epifânio Dias, cuja edição do poema, ainda relativamente aces-


sível graças à reprodução que dela se fez por iniciativa da Comissão
Brasileira encarregada das comemorações do IV Centenário da
publicação da epopeia, continua sendo, a meu ver, a melhor quanto
à interpretação e comentário linguístico do texto, escreveu em nota
o seguinte: “A construcção ‘na qual quando imagina...crê que he a
latina’ equivale a ‘a qual, quando nella imagina, Venus crê que he a
Latina’ [...] (Não deve conseguintemente pôr-se pausa entre ‘na
qual’ e ‘quando’).” Não viria esta sábia recomendação a ser aten-
dida pelos editores subsequentes do poema que, preferindo seguir a
pontuação das duas edições de 1572, assim leram: E na língua, na
qual, quando imagina, [...] Curiosamente, a Carlos Eugénio Corrêa
da Silva (Paço d’Arcos), que de tão perto o seguiu, parece ter pas-
sado despercebida essa observação do mestre, o que o levou a
considerar a construção como representando um caso de “oração
simultaneamente relativa e temporal”. Deixando de lado conceitos
como este, que em sintaxe se não revestem de qualquer interesse,
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 75

dir-se-á que tal pontuação não sustenta qualquer interpretação acei-


tável dos versos. Ter-se-ia de considerar, por um lado, o verbo ima-
ginar aqui em uso intransitivo, o que seria possível, já que, conforme
se verá, ele ocorre em Camões com este estatuto, mas isso obriga-
ria, por outro lado, a entender a latina e a qual como os dois termos
de uma construção dita equativa, ou seja, onde um deles
corresponderia à função “sujeito” de “ser” (é) e o outro a uma
determinação deste. Nunca sendo, porém, os functivos de “sujeito”
precedidos em português de preposição, teria de ver-se em qual a
mencionada determinação de “sujeito” e, consequente-mente, em a
latina o functivo deste determinante de “ser”. Ora, com este verbo,
também a determinação do “sujeito” nunca ocorre precedida de
preposição. Certa estava assim a lição de Epifânio, pois, como reco-
nheceria qualquer leigo em matéria linguística, de outro modo os
versos não fariam sentido.
Interessará agora atentar em dois pontos relativos aos mes-
mos versos: respeitam aos usos de imaginar e de qual.
3. Graças aos inestimáveis Índices devidos a A. Geraldo da Cunha
e às facilidades de pesquisa proporcionadas pela Biblioteca Virtual
dos Autores Portugueses, sabemos que o verbo imaginar ocorre
dezasseis vezes n’Os lusíadas e vinte e uma nas Rimas. Daquelas
dezasseis ocorrências, duas apresentam o complemento precedido
de em: são a já citada de III,21 e a de IX,27, para a qual, aliás, no
prosseguimento da nota acima citada, já Epifânio remetera em abono
da sua interpretação:

4. E vê do mundo todo os principais


Que nenhum no bem púbrico imagina.

Também na lírica está essa regência representada, pelo me-


nos quatro vezes:
Ao longo d’ ûa praia deleitosa,
vou na minha inimiga imaginando;
Ainda eu imagino em ser contente?
Que tanto por seu dano se perdeu,
que o longo imaginar em seu tormento
em desatino Amor lho converteu;
Que um contino imaginar
naquilo que Amor ordena,
é pena que, enfim, por pena
se não pode declarar.
76 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Encontram-se, bem entendido, usos intransitivos e usos transi-


tivos do mesmo verbo. São os primeiros os seguintes:

A disciplina militar prestante


Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando,
Senão vendo, tratando e pelejando;
... este fantasiar que, imaginando,
a vida me reserva.

Não me deterei, por hoje, em dois casos que podem prestar-se


a dúvidas. Um é o de

Se tão alto imagino


que de vista me perco, peco nisto,
desculpa-me o que vejo,
que na edição de 1598 se lê como
Se tão alto imagino
que dé vista me perco, ou pecco nisto,
desculpame o que vejo,

onde que de vista me perco deve ser “consecutiva” de tão


alto e não integrante de imagino, e o outro

imaginando sobre o famulento,


quanto mais come mais está crecendo,
na edição de 1598
Imaginando como o famulento,
Que come mais, e a fome vai crecendo.

Creio, todavia, tratar-se em ambos os casos de usos intransitivos,


embora o segundo coloque um interessante problema de “regência
preposicional” que seria deslocado desenvolver aqui.
Dos usos transitivos, os mais frequentes tanto na epopeia como
na lírica, limitar-me-ei, por economia de espaço, a assinalar serem
de variadas formas os functivos correspondentes à função “com-
plemento directo”. Apenas acrescentarei que, a meu ver, nos ver-
sos de onde partimos - E na língua, na qual quando imagina /
Com pouca corrupção crê que é a latina- , o estatuto sintáctico
de a qual equivale ao deste complemento, uma vez que imaginar
em X, entendido como verbo sintemático, exclui Y como “comple-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 77

mento directo” de imaginar.

5. Mereceriam um estudo pormenorizado os usos de qual, como


“conjunção”, “adjectivo” ou “pronome” (e entre estes “relativo” ou
“interrogativo”), no português quinhentista e particularmente em
Camões. Não sendo este o lugar adequado para o fazer, limitar-me-
ei a registar alguns dos seus usos como “relativo”, não sem, no
entanto, ressalvar que, por facilidade de exposição, me refiro agora
ao termo no sentido mais corrente na terminologia gramatical, que
não seria decerto o mais adequado numa exposição de outra natu-
reza e com outros fins.
Mencionarei, de passagem, o facto, corrente no português qui-
nhentista, de qual, como anafórico, poder ter por referência não um
nome mas um “discurso”, caso onde hoje se diria que ou isso: pare-
ce-me ser o que se vê em

Pelo qual, admirada


a Rainha infernal e comovida,
te deu a desejada
esposa que, perdida,
de tantos dias já tivera a vida.

Referirei ainda de passagem que qual ocorre como parte de


uma determinação intra-sintagmática e, contrariamente ao que hoje
é de regra em semelhantes casos, não apenas de determinação
inter-sintagmática:

Não há cousa a qual natural seja


Que não queira perpétuo seu estado.

Mas interessa regressar à posição de qual em Na qual quan-


do imagina. Fazer preceder e seguir este segmento de vírgulas
implicará que qual deixe de ser complemento de imagina e passe a
sê-lo de crê, o que manifestamente nem se coaduna com a sintaxe
portuguesa, onde o “complemento directo” não pode ser precedido
de preposição outra que a, nem faria sentido.
Documenta-se a mesma ou idêntica posição em outros passos
camonianos, como os dois seguintes:

Esta é a ditosa pátria minha amada,


À qual se o Céu me dá que eu sem perigo
78 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Torne com esta empresa já acabada,


Acabe-se esta luz ali comigo.
Nisto ûa parte dela foi passada,
na qual se tive algum contentamento
breve, imperfeito, tímido, indecente,
não foi senão semente
de longo e amaríssimo tormento.

Conforme se vê, vírgula que se colocasse depois de qual ex-


cluiria este “relativo” da oração iniciada por o céu e por tive, res-
pectivamente, e ligada à “principal” pelo conector se, o quer dizer
que faria de qual complemento de acabe no primeiro caso e de foi
no segundo. Não é pois aceitável tal pontuação, como o não é igual-
mente em

Quando a fermosa Ninfa


Com todo ajuntamento venerando
Na pura e clara linfa
O cristalino corpo está lavando,
O qual nas águas vendo
Nele, alegre de o ver, se está revendo:
nem em
Mas vês o fermoso Indo, que daquela
altura nace, junto à qual também
de outra altura correndo o Gange vem.

6. Embora possa parecer estranha a quem menos familiarizado es-


tiver com a sintaxe, cujo objecto não reside no estudo da ordem das
palavras (como já ouvi a alguém que tinha obrigação de não dizer
disparates destes), nem sempre importa às relações de determina-
ção sintáctica a posição do “relativo”. Não poderei alongar-me ago-
ra neste ponto, mas não deixarei ainda assim de mencionar um exem-
plo de onde:

7. Veria erguer do sol a roxa face,


veria correr sempre a clara fonte,
sem imaginar a água donde nace,
nem quem a luz esconde no horizonte

no qual, conforme é evidente, a água faz parte do functivo do


sujeito de nace (a outra parte está na “3.ª pessoa” amalgamada
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 79

neste sintagma verbal). Sem querer regressar hoje a tais problemas,


não deixarei de notar termos aqui um caso de topicalização, de que
cito apenas mais um:

Peço-vos que me digais


as orações que rezastes
se são pelos que matastes
se por vós, que assi matais.

Dizer, como por vezes ainda se ouve, que se trata de liberdades


poéticas ou de questões de estilo é esquecer que não há nem liber-
dades daquelas nem efeitos destes que se situem fora da língua e
deixem por isso de ter enquadramento linguístico descritível e expli-
cável.

8. Recordarei, para terminar, que apenas me propus falar hoje de


problemas de qual como “relativo” em Camões: foi a esse propósi-
to que, sem sair da obra camoniana, me ocupei de imaginar e
imaginar em. Mas muito haverá que estudar acerca do assunto,
bem como dos usos do mesmo monema com diverso estatuto sin-
táctico, no português de Quinhentos e das fases que o precederam
e se lhe seguiram. Mesmo hoje, haverá um só monema qual ou
mais de um? Haverá “relativos” ou apenas um “relativo” com vari-
antes contextuais? E será, de facto, “relativo” tudo quanto tradicio-
nalmente dá por esse nome?
Deixo para outro dia tais problemas. Por hoje é tudo.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 81

Os estudos vicentinos:
balanço e perspectivas
José Augusto Cardoso Bernardes,
da Universidade de Coimbra

Se exceptuarmos o invulgar estrelato que corresponde a


Camões e a voga relativamente recente de Pessoa, poucos autores
portugueses terão suscitado mais adesão e inspirado mais estudos
do que Gil Vicente. Em alguns casos, estão já razoavelmente
inventariados os factores (intrínsecos e extrínsecos) que explicam a
fortuna - ainda assim desigual - de alguns desses “escritores maio-
res”. Mas não em Gil Vicente. Perguntemos pois: Que motivos
contribuirão para que continue a sobressair desta forma no cânone
da Literatura Portuguesa o poeta lavrante da Rainha D. Leonor?
Habituados desde sempre a esta centralidade, quase nunca nos ocor-
rem formulações deste tipo. A verdade, porém, é que essa indaga-
ção pode desde logo conduzir-nos a explicações interessantes (se
não mesmo decisivas) a respeito do fluxo e das orientações dos
próprios estudos vicentinos. Vejamos pois, sumariamente, que res-
postas podem encontrar-se para estas questões.
Coloco em primeiro lugar um factor de ordem estética: preci-
samente o que decorre da relativa extensão e variedade do corpus
vicentino. São quase cinquenta peças, recobrindo os grandes géne-
ros do teatro medieval europeu, e esta circunstância, que nunca
poderia ser ignorada, traduz-se, por si só, num raríssimo valor
patrimonial, que abrange a Língua (captada numa impressionante
multiplicidade de níveis e registos) e as formas artísticas moldadas a
partir dela e a partir de uma tradição de base peninsular e extra-
peninsular, que incluía o Lirismo, a Narrativa e as formas dialogadas
em geral, sem falar nas inúmeras manifestações não discursivas
próprias da convivialidade palaciana; vem depois outra condicionante
que, embora sendo de natureza cívica e política, se revela igualmen-
82 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

te poderosa: refiro-me ao próprio estatuto de dramaturgo quinhen-


tista, que Gil Vicente partilha com relativamente poucos escritores
de Língua Portuguesa e que se vê reforçada com a aura de teste-
munha viva desse “memorial eterno da portugalidade” que é o sé-
culo XVI; e termino este inventário lembrando a absoluta
excepcionalidade da Copilaçam no panorama da criação teatral
portuguesa, em termos de qualidade (e até de quantidade), conside-
rando não apenas o século de Quinhentos, mas todos os que até
hoje se lhe seguiram. Em função dessa excepcionalidade, pode afir-
mar-se que, para além dos seus méritos próprios, a escrita de Gil
Vicente vale também pelo seu desacompanhamento, o mesmo é
dizer, que contrasta com os silêncios que o precedem e se lhe se-
guem na história do teatro português.
À primeira vista, são estas as razões principais que fazem de
Gil Vicente um autor incontornável da Literatura Portuguesa, ao
mesmo tempo que lhe garantem um lugar muito especial no nosso
imaginário cultural, como crítico dos desconcertos de uma época
onde, como em nenhuma outra, se entrelaçam sem cessar as nos-
sas Grandezas e Misérias.
E são também estas as razões que explicam o grande caudal
bibliográfico que tem inspirado. Só nos vinte anos que medeiam
entre 1975 e 1995, puderam recensear-se 620 contributos, contando
edições, traduções e estudos gerais ou localizados1 . A este número
haveria ainda que somar os trabalhos publicados desde 95 para cá:
tomando por base apenas o ritmo médio das duas últimas décadas,
chegamos à apreciável média de trinta e cinco trabalhos por ano.
No âmbito de um Congresso comemorativo de 500 anos de
Língua Portuguesa no Brasil, pareceu-me justificável delinear uma
visão esquemática dos estudos vicentinos tal como eles se configu-
ram hoje, tentando depois captar algumas das tendências que se
desenham num futuro mais próximo, em função das muitas tarefas
que permanecem por cumprir. A escolha de tal assunto radica evi-
dentemente no meu próprio interesse; mas tenho esperança de que
a minha opção possa ser tolerada no temário desta Reunião científi-
ca. De facto, se entendermos, com Eugenio Coseriu, que a Litera-
tura corresponde à plenitude da Língua, não há dúvida de que os
autos de Gil Vicente consubstanciam uma das mais completas e
diversificadas realizações estéticas da Língua Portuguesa de sem-
pre. É nessa perspectiva (lateral) que aqui gostosa e honrosamente
me associo à celebração da Língua materna de Gil Vicente, que por
insondável fortuna, é ainda a nossa.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 83

2. Como é sabido, a percepção moderna da obra de Gil Vicente


deve-se, em Portugal, ao Romantismo. Há desde logo boas razões
para acreditar que tenha sido Almeida Garrett a recomendar a
Barreto Feio e Gomes Monteiro (dois judeus de origem portuguesa,
radicados em Hamburgo) a reimpressão da Copilaçam, o que es-
tes fizeram a partir de um exemplar da 1ª edição que se encontrava
na Biblioteca da Universidade de Göttingen. E foi a partir deste
acontecimento (1834) que Gil Vicente se tornou conhecido e estu-
dado por uma plêidade de filólogos dos finais do século passado e
princípios deste, de onde é justo destacar Carolina Michaëlis de
Vasconcelos e Anselmo Braamcamp Freire2 .
Apesar dos esforços de contextualização que foram sendo fei-
tos, a mitologia romântica (que, pelo menos em Portugal conviveu,
sem litígios de maior, com o positivismo filológico) depressa se apro-
priou da figura de Gil Vicente, transformando-o designadamente
numa encarnação da vox populi, espécie de génio sem suporte
nem explicação racionais (como se sabe, na teogonia romântica, os
génios não necessitam de um suporte histórico rigoroso).
E não se estranha que essa lendarização (como tantas outras
que tiveram por objecto figuras literárias) tenha acabado por exce-
der, em muito, os limites cronológicos do próprio Romantismo. Nem
os trabalhos de António José Saraiva que, um tanto incompreendida-
mente, em finais de 30, coloca a obra vicentina na senda de uma
vasta e rica tradição européia, conseguiram obstar à ideia de que Gil
Vicente é uma espécie de meteoro desacompanhado no firmamento
político e idiomático da Península.
Grande parte do esforço de nomes cimeiros do vicentismo como
Paul Teyssier, Luciana Stegagno-Picchio, Stephen Reckert ou
Thomas F. Hart (para só citar quatro nomes vivos e activos, cujo
labor vem desde, pelo menos, a década de sessenta) pode ainda ser
lido como uma tentativa de desromantizar o dramaturgo português.
Mas em vão. A avaliar pelo que se vê ainda hoje escrito
(inclusivamente entre os meios universitários), não se pode ainda
prescindir totalmente desse logotipo, até porque —reconheçamo-lo
— ele se enquadra exemplarmente no nosso esquema mítico de
pensar e de sentir.

3. Olhando para o índice de nomes com que se encerra o já


citado volume da Bibliografia de Stathatos e destacando de entre
eles os que são responsáveis pelos contributos de melhor qualidade,
verifica-se, em primeiro lugar, que o inventário dos vicentistas
84 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

incontornáveis vai aumentando a bom ritmo e, ao lado dos consa-


grados nos anos 60 e 70, tornou-se já obrigatório referir um bom
punhado de investigadores, dos quais destaco María Luisa Tobar,
Armando López Castro, Manuel Calderón Calderón, Stanislav Zimic,
Constantine C. Stathatos ou João Nuno Alçada.
Como não poderia deixar de ser, por entre os títulos mais re-
centes, detectam-se muitas duplicações de perspectiva e de resulta-
dos obtidos; mas também se vêem claros movimentos de renova-
ção numa área que, aliás, durante muito anos, permaneceu seques-
trada pela história literária (em sentido estrito), quase imune, portan-
to, aos ventos novos que vieram fecundar as metodologias dos estu-
dos literários e teatrais.
Continua a predominar, quantitativamente, a tendência para o
estudo isolado de um só auto, correspondendo, muitas vezes, a in-
cursões esporádicas e de fôlego menor de estudiosos não reinciden-
tes; mas são já em número significativo os estudos transversais que
abrangem os autos ou pelo menos alguns conjuntos de peças, deli-
mitados em termos cronológicos, temáticos ou genológicos: a farsa,
a comédia, a representação da Mulher, do Natal, do Amor, a projec-
ção cénico-teatral dos textos, etc. Ainda numa linha estruturante e
global, a Lírica vicentina, cuja importância foi desde sempre intuída,
vem merecendo uma atenção crescente, consubstanciada em edi-
ções antológicas, que não deixam de surpreender quem tem dos
autos um conhecimento mais rarefeito e em estudos de sólida fun-
damentação que religam Gil Vicente à grande tradição da lírica ibé-
rica de Quatrocentos, nas formas e nos temas, ao mesmo tempo
que se busca o significado global da Lírica enquanto correlato
dialéctico de outras formas de expressão (V. Reckert, Calderón
Calderón e López Castro).

4. Perante sinais tão encorajadores, apetece pensar que os


estudos vicentinos se encontram a caminho do lugar que lhes com-
pete por direito próprio no âmbito da história literária (portuguesa e
peninsular, pelo menos). E assim há-de ser, seguramente. Mas
convém não embarcar em contentamentos de suficiência, uma
vez que as lacunas são ainda numerosas e de grande monta. Sem
pretensões de exaustividade, anotemos apenas cinco: as edições;
a Língua; as matrizes estéticas; as coordenadas contextuais e os
sentidos.

4.1.Um dos sinais que melhor reflecte o grau de desenvolvi-


BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 85

mento de uma determinada área dos estudos literários é, como se


sabe, o grau de fiabilidade que merecem os textos diponíveis. E,
para o caso de Gil Vicente, o mínimo que se pode dizer é que ele
está longe de ser satisfatório. Continuam tímidos os passos dados
para se chegar a uma edição crítica. Em 1965 (ano em que se
comemorou o quarto centenário do nascimento do autor) chegou a
ser nomeada uma Comissão Nacional para trabalhar criticamente
os textos vicentinos. Passadas mais de três décadas, os dedos de
uma só mão chegam para contar as edições que podem reclamar-
se de críticas (e creio que, das que existem, nenhuma veio a benefi-
ciar desse fervor comemoracionista). Em contrapartida, cresce quase
incontavelmente o número de edições didácticas, em suporte escri-
to e também já em suporte informático, repetindo, por sistema, os
erros de leitura, tão favorecidos, como se sabe, pelas deficiências da
própria editio princeps. São as consequências normais da presen-
ça de Gil Vicente na Escola de massas, onde aparece inevitavel-
mente reduzido a meia-dúzia de chavões, que oscilam sobretudo em
função das conjunturas cívico-políticas e em resultado do capricho
incontrolado dos autores de programas e manuais.
Mais inaceitável do que a escassez de edições críticas é, po-
rém, a penúria de edições globais fidedignas. No mercado portugu-
ês encontram-se hoje apenas a edição da Lello & Irmão (que se
limita a reproduzir, em aparato de luxo, a que Mendes dos Remédios
preparou em 1907 para a colecção Subsídios para a História da
Literatura Portuguesa); e encontra-se ainda a edição de Costa
Pimpão que, apesar da sua melhor qualidade científica, é “artística”,
o que significa dizer que é ainda mais cara, além de pouco prática,
pelas suas invulgares dimensões. A edição dos clássicos Sá da Costa
(preparada por Marques Brag) cumpriu razoavelmente a sua missão
na Escola portuguesa ao longo de trinta anos mas já só se encontra
em alfarrabistas; até a que Maria Leonor Buescu preparou para a
Imprensa Nacional (com normalização de texto), e que tem
alimentado o mercado escolar nos últimos anos, se encontra já fora
da vista dos potenciais compradores.
O panorama das traduções, por sua vez, também está longe de
ser excelente. Para além das Barcas, do Auto da Alma e da Sibila
Cassandra (peças muito traduzidas para quase todas as línguas
europeias na primeira metade deste século) tem-se verificado uma
natural curiosidade pelos autos que reflectem as circunstâncias da
expansão, inspirando um número razoável de versões, nomeada-
mente em Língua Inglesa. Menção muito positiva, a este respeito,
86 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

merecem as traduções francesas coordenadas por Paul Teyssier,


que começaram a vir a lume muito recentemente, sob a chancela
das Éditions de la Chandeigne. Mas se a este excelente exemplo,
quiséssemos contrapor um fenómeno de sinal contrário, não seria
difícil: bastaria aludir às edições do teatro exclusivamente castelhano
de Gil Vicente (feitas por espanhóis e publicadas em Espanha) e a
outras feitas em Portugal, deliberadamente expurgadas dos autos
em castelhano ou até dos textos bilingues.
As insuficiências de base verificadas nestes dois planos não
pode obviamente deixar de condicionar a produção crítica, uma vez
que daí resultam dificuldades naturais no acesso aos textos. Deste
modo, a necessidade de conjugar esforços para ultrapassar este
estado de coisas, num sentido duplo e convergente impõe-se com
absoluta urgência:
a - elaborar uma edição fiável dos textos, o que significa, para
já, cotejar as lições existentes e expurgá-las dos muitos lapsos de
fixação que resultam da leitura deficiente da Copilaçam que é, como
se sabe, ão patrimonialmente preciosa quanto filologicamente de-
sastrada. É necessário também estabelecer critérios de anotação,
que poderão ir desde o esclarecimento vocabular localizado e co-
textual (tarefa que, em muitos casos, se revela espinhosa) até ao
comentário estético e ideológico, só realizável por equipas numero-
sas e bem coordenadas.
b - depois - ou paralelamente? - deve levar-se por diante a tão
almejada edição crítica, muito mais trabalhosa, mas ainda assim
perfeitamente exequível e, sobretudo, amplamente justificada em
face dos benefícios que promete.

4.2. Na posse destes dois elementos de trabalho seria, em


dúvida, muito mais fácil deitar ombros a tarefas de outra índole,
enfrentando problemas que desde há muito se encontram suspensos.
Era preciso voltar à questão da Língua, em primeiro lugar. Sobre
este assunto, Paul Teyssier disse praticamente a primeira e a última
palavra. Mas disse-a em 1959. Na mesma perspectiva ou adoptan-
do outros enfoques, impõe-se retomar o estudo da Langue vicentina,
em correlação com os vários registos do discurso literário e não-
literário da mesma época, nos domínios idiomáticos do Castelhano e
do Português, através de cruzamentos que os recursos informáticos
vieram entretanto facilitar enormemente.

4.3. É também necessário reexaminar a questão das matrizes


BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 87

da arte vicentina. Concebido durante muito tempo como uma ave


insólita nos céus rarefeitos da dramaturgia portuguesa, Gil Vicente
permanece ainda pouco integrado na tradição peninsular e europeia,
em geral, tanto em termos de ascendência como em termos de
projecção. Questões como a dos géneros teatrais ou a dos próprios
esquemas de encenação muito terão a ganhar com este trabalho de
inserção que liberte a obra vicentina das fronteiras políticas e até
idiomáticas a que tem estado confinada. Neste plano particular, é
óbvio que os estudos vicentinos muito têm a ganhar com o grande
incremento de publicações de textos dramatúrgicos, inéditos ou re-
ajustados em bases filológicas mais seguras, que se vêm fazendo no
espaço francês e espanhol e bem assim dos estudos acerca do
teatro tardo-medieval (nomeadamente o de expressão francesa);
como podem beneficiar significativamente com os novos quadros
de leitura abertos pela semiologia do texto dramático, definitivamen-
te concebido, não já como objecto estritamente linear e passivo mas
como objecto poligonal e transversalmente codificado.

4.4. Outro aspecto que carece de atenção reforçada prende-


se com as coordenadas contextuais que balizam a produção e a
recepção dos textos vicentinos. Superados há muito os limites e os
excessos do contextualismo determinista que marcou os estudos
literários até à primeira metade deste século e preservada a
especificidade do fenómeno estético, é incompreensível que se não
aproveite o contributo das disciplinas historiográficas (História da
Arte, das Mentalidades, dos planos Institucional e Político). Parale-
lamente ao enraizamento estético, torna-se indispensável esclare-
cer melhor os parâmetros da convivialidade cortesâ em Portugal, no
primeiro terço do século XVI, ajustando, para já, a leitura dos autos
ao que de novo se tem vindo a publicar sobre estas matérias. Nos
anos mais recentes, têm surgido contributos importantes, nomeada-
mente no que se refere à figura da Rainha D. Leonor de Lencastre
e às linhas de espiritualidade que lhe são próximas e cuja repercus-
são no teatro vicentino se vai tornando cada dia mais nítida (Carnei-
ro de Sousa); e também se tem progredido no conhecimento do
século XVI, em geral, em termos sócio-políticos e mentais, abrindo
caminhos para a aferição da importância que em Gil Vicente detem
a tradição popular, seja ela vista como um depósito cultural que os
palácios não excluíam, seja ela entendida como uma opção estética
consequente (Alves das Neves).
Durante muitos anos, o teatro vicentino foi assumido como
88 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

ponto de partida para aceder à compreensão do século XVI, funci-


onando, nessa medida, como fonte quase irreservada da maioria
dos historiadores; é chegado o momento de estes enriquecerem os
estudos vicentinos com conhecimentos hauridos em fontes diferen-
tes. Só asim será possível discriminar aquilo que em Gil Vicente é
manifestamente testemunhal, aferir o grau da transformação estéti-
ca que a partir daí se operou e derimir, enfim, com senso histórico e
hermenêutico, velhas questões dos estudos vicentinos como sejam
o realismo, a sátira ou o cómico.

4.5. Efectuadas estas operações prévias, será altura de


aprofundar os sentidos da obra vicentina, concebida não apenas
como um aglomerado de peças, mas como um macro-texto, ou
seja, uma totalidade orgânica apoiada em linhas de coerência temática
e ideológica. Existe verdadeiramente um ideário vicentino? Como
se projecta ele através do jogo teatral? Quais as componentes esté-
ticas que lhe dão corpo? Que tipos de correlação se estabelecem
entre elas?
Poderão parecer demasiado gerais estas perguntas. Mas, de
facto, se não erro, são elas que hoje melhor ilustram as expectativas
dos devotos vicentistas. Daqueles que estudam os textos e daqueles
que, pura e simplesmente, mantêm com eles uma relação de curio-
sidade fruitiva e indagante.
Independentemente das respostas que possam vir a encon-
trar-se para estas questões, talvez se possa reconhecer desde já a
utilidade da sua simples formulação, uma vez que ela se revela
susceptível de abalar alguns clichés que vêm circulando com
trânsito demasiado fácil. Como era inevitável, o lugar central que
Gil Vicente ocupa no cânone português contribuiu para uma
mineralização excessiva do conhecimento que sobre ele tem sido
divulgado. Costuma dizer-se, aliás, que essa é a “defesa” dos clás-
sicos e é também, sem dúvida, o segredo do seu sucesso num
determinado modelo de Escola. Resta saber se essa situação se
compadece com a Escola que todos afirmamos querer construir:
activa e não dormente, criativa, transformativa e não redutoramente
patrimonialista. Seja como for, o que não pode aceitar-se é que
esta visão pobre possa ser transposta para círculos de maior exi-
gência intelectual, como a própria Universidade.
A 7 de Junho de 2002 completar-se-ão 500 anos desde que Gil
Vicente, disfarçado de rústico saiaguês irrompeu na câmara da ra-
inha parturiente para pronunciar o famoso “Pardiez” fundador do
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 89

teatro português. Espera-se que essa circunstância venha a ser de-


vidamente assinalada no plano cívico-cultural. Mas epera-se sobre-
tudo que, por essa altura, estejam já supridas algumas das lacunas
que aqui apontei, mormente as que respeitam à falta de textos
credíveis.
Em outras ocasiões se hão-de fazer outros balanços dos es-
tudos vicentinos para apontar outros desígnios, suscitados pelo
aparecimento de novos dados e pela emergência de novas expec-
tativas. É verdade que um clássico é “aquele que nunca acaba de
dizer o que tem para dizer” (Ítalo Calvino). É plenamente o caso
de Gil Vicente: ouvi-lo e inquiri-lo cada vez mais e de ângulos
diferentes é um imperativo ético e há-de ser um desafio constan-
te. E não há dúvidas de que ele está mais do que preparado para
essa prova.

Referências bibliográficas

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de síntese no teatro de Gil Vicente. Coimbra, Biblioteca Geral da Univer-
sidade, 1996.
CALDERÓN CALDERÓN, Manuel. La lírica de tipo tradicional
de Gil Vicente. Dissertação de Doutoramento apresentada à Universida-
de de Barcelona, 1992 (policopiada).
DIAS, João José Alves das. Portugal do Renascimento à crise
dinástica (Série ‘Nova História de Portugal’, dirigida por Joel Serrão e
Oliveira Marques). Lisboa, Editorial Presença, 1998.
LÓPEZ CASTRO, Armando. “La lírica de Gil Vicente”. In Actas del
III Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval
(Salamanca, 3 al 6 octubre de 1989). Ed. María Isabel Toro Pascuala. Vol.
I, Salamanca: Biblioteca Española del Siglo XV, Departamento de Litera-
tura Española e Hispanoamaericana, 1994. p.517-524.
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gresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 de
Outubro de 1991). II: Literatura Medieval. Organização de Aires Nasci-
mento e Cristina Almeida Ribeiro. Lisboa, Cosmos, 1993. p.175-185.
RECKERT, Stephen. “A Lírica vicentina: estrutura e estilo”. In Es-
pírito e Letra de Gil Vicente. Lisboa, INCM,1983. p. 135-174.
— “Las poesías del Auto Pastoril Castellano. Edición, comentario y
notas”. In Homenaje a Eugenio Asensio. Madrid, Gredos, 1988. p.379-389.
SOUSA, Ivo Carneiro de. A Rainha da Misericórdia na história da
espiritualidade em Portugal na época do Renascimento. Dissertação
de Doutoramento em Cultura Portuguesa apresentada à Faculdade de
Letras do Porto, 1992 (policopiada).
90 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Notas
1
Esta contabilidade exacta figura na Bibliografia vicentina que tem
vindo a ser publicada por Constantine Stathatos e que conta já dois
volumes: A Gil Vicente Bibliography (1940-1975), London, Grant &
Cutler Limited, 1980 e A Gil Vicente Bibliography (1975-1995), With a
Supllement for 1940-1975, Bethlehem: Leigh University Press/London:
Associated University Press,1977.
2
Para uma resenha dos estudos vicentinos do século XIX aos
nossos dias veja-se o meu Sátira e Lirismo, p. 10 e s.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 91

Em defesa da Língua Portuguesa

Leodegário A. de Azevedo Filho, da UERJ e UFRJ

A expressão língua literária, por muitos desconhecida,


estabelece imediatas relações de intersecção entre dois campos
semânticos naturalmente interligados: o da língua e o da literatura.
Em tal espaço comum logo se configuram problemas específicos,
já que toda e qualquer linguagem literária pressupõe a existência
de uma língua. Assim, do ponto de vista da língua, bem sabemos
que há duas posições na lingüística moderna: a que vem de
Bloomfield e a que vem de Sapir. Para o primeiro, apenas a língua
falada devia ser objeto de estudo da lingüística, enquanto o segundo
sempre entendeu que, de tal objeto, não se podia excluir a língua
escrita. Portanto, de um ponto de vista literário, o que vai importar
é o estudo de uma língua a serviço de uma criação estética. Em tal
uso, por meio da língua, cada povo vai exprimir a sua própria cultura,
de tal forma que o mesmo sistema lingüístico pode servir a
diferentes culturas, como no mundo lusofônico, que se constitui de
Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde,
São Tomé e Príncipe e, agora, também Timor Leste. São nações
irmanadas pela mesma língua, mas culturalmente diversificadas
entre si. Pois bem, em função dessa diversidade cultural, os grandes
escritores, muitas vezes, se afastam da norma da língua escrita,
para a criação de um estilo individual. Sobre o assunto, ouçamos
inicialmente o que escreveu Álvaro Lins: “...um escritor tem o
direito de violar as regras gramaticais de sua língua, para a criação
de um estilo pessoal. Este é um direito legítimo, com o qual as
literaturas se enriquecem e as gramáticas também. Mas será
preciso, num caso dessa espécie, ter o instinto da língua, a intuição
da literatura, o senso da vida artística.” (Jornal de Crítica, 2ª
92 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

série, p.161).
Aliás, antes de Álvaro Lins, mas no mesmo sentido, já havia
observado Mário de Andrade: “É quase lapalissada afirmar que
só tem direito de errar quem conhece o certo. Só então o erro
deixa de o ser, pra se tornar um ir além das convenções, tornadas
inúteis pelas exigências novas de uma nova expressão.” (O
empalhador de passarinho, p.215). E daí se conclui que a língua
literária, sem deixar de ser uma modalidade da língua culta ou
exemplar, apresenta liberdade de expressão artística, por vezes
infringindo-se a norma criadoramente. Em poucas palavras,
entende-se por língua literária escrita a língua da literatura, pois
esta se sobrepõe à língua falada, embora dela se alimente, para
melhor espelhar a cultura de um povo. Assim, a penetração de
fatos da língua falada na língua escrita da literatura, com naturais
desvios da norma lingüística gramaticalmente institucionalizada, é
comum a todas as literaturas, não sendo a nossa nenhuma exceção.
Sem conhecimento da norma culta ou exemplar, será sempre
admissível que, por ignorância, se fale ou escreva mal. Mas um
escritor, conhecendo a norma culta da sua língua, dela pode afastar-
se estilística e criadoramente. Até porque todos sabemos que há
diferenças entre a língua escrita, em suas diferentes modalidades
sempre ajustada à norma culta, e a língua falada, em seu curso
mais livre e espontâneo.
Tudo isso facilmente se verifica quando se cotejam as línguas
literárias de Portugal, do Brasil e das Nações Africanas irmanadas
pelo mesmo sistema, nelas logo se depreendendo múltiplos fatores
de convergência e de divergência. Como é evidente, a linguagem
literária brasileira, bem assim a linguagem literária das nações
africanas aqui citadas, regionalmente vão exprimir a própria cultura,
não sendo exatamente a mesma de Portugal. Lá, na antiga Metrópole,
existem falares, como o minhoto, o alentejano ou o algarvio, como
aqui temos falares regionais do Norte, Nordeste, Centro e Sul, o
mesmo ocorrendo em África. A língua, como sistema, é claro que é
a mesma. Mas comporta, tanto em Portugal, como no Brasil e Nações
Africanas, natural diversidade de normas e de usos. Conseqüen-
temente, cai por terra o ideal fantasioso e inútil de uma língua literária
intangível ou desligada da realidade cultural dos povos que a falam.
Na prática, embora persista o sentimento da língua comum, em face
da integridade do sistema com todas as suas estruturas fônicas e
mórficas, temos plena consciência da divergência dos fatores
culturais. Dito de outro modo, Portugal se insere numa cultura
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 93

européia, enquanto as Nações Africanas pertencem a outro mundo.


E o Brasil se integra na América.
Mas nada disso autoriza a pensar-se na cisão estrutural da
língua comum, nem agora, nem mesmo num futuro próximo ou
remoto. No Brasil, estamos mesmo convencidos do contrário, por
força da nossa unidade territorial e por força do ensino sistemático
da nossa língua nas escolas, numa situação que deve prolongar-
se, no próprio interesse nacional, indefinidamente. Por isso mesmo,
as duas línguas literárias, a de Portugal e a nossa, são variantes
cultas do mesmo sistema lingüístico. No caso, seria muita inge-
nuidade supor que a presença cultural do elemento indígena e do
elemento africano em nossa sociedade de pluralismo étnico, que
não exclui ainda a importante presença de imigrantes aloglotas,
seria muita ingenuidade supor que tudo isso pudesse determinar a
mudança, de todo indesejável, da nossa língua comum. Por certo,
haverá vários fatores que vão responder pela variedade de normas
e de usos, mas não pela diversificação do sistema lingüístico, pois
este absorverá, como historicamente o tem feito, todas essas
diferenças culturais. Aliás, a grande tendência do mundo moderno
é para fortalecer, jamais para desintegrar, os grandes blocos
lingüísticos, cujo prestígio universal vai decorrer exatamente da
sua unidade na variedade, não se querendo outro destino para o
mundo lusofônico. Em suma, temos unidade na variedade, como
em todas as grandes línguas de civilização escrita, a exemplo da
inglesa, da francesa ou castelhana. E, com tal unidade, por sermos
a sexta língua materna mais falada no universo, devemos
serenamente encarar o futuro.
Em conclusão, o de que todos necessitamos é do fortalecimento,
da valorização e do melhor conhecimento da língua nacional. Assim
como os Estados Unidos da América assumiram a língua inglesa e
os países hispano-americanos a língua castelhana, a nação brasileira
só poderia adotar o português como língua nacional. Mas isso, é
claro, sem qualquer tutela da antiga Metrópole, pois a língua pertence
a todos os seus usuários e será aquilo que todos juntos fizermos
dela. Nem se fala aqui, em termos de idioma nacional, nenhuma
língua indígena ágrafa, entre centenas que aqui havia durante a
colonização. Também não se fala, sempre em termos de idioma
nacional, nenhuma língua africana ágrafa, entre as muitas que para
cá vieram com os escravos. A propósito, ninguém ignora que o
português da América teve o seu vocabulário enriquecido com
empréstimos lexicais de procedência indígena, africana e de povos
94 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

aloglotas que para o Brasil imigraram. Mas tais empréstimos tiveram


que se adaptar fonomorfologicamente à estrutura do português, para
entrar na língua. Nem vai ser qualquer forma ou qualquer tentativa
de globalização que nos levarão a marginalizar o que é essencialmente
nosso: a língua que bebemos com o leite materno, pois aí estão os
nossos grandes escritores, que muito bem souberam enxergar a
grandeza e a beleza da língua comum em sua riquíssima variedade,
respeitando-se até mesmo o espírito democrático que circula pela
flexibilidade de algumas normas, sempre maleáveis, para melhor
expressão das particularidades idiomáticas de cada povo luso-falante.
Juntos, portanto, entoemos, todos nós, daqui e de além mar, os versos
imortais de Antônio Ferreira: “ Floresça, fale, cante, ouça-se e viva/
a portuguesa língua; e, lá onde for,/ senhora vá de si, soberba e
altiva.” O que se torna urgente é a preservação carinhosa da língua
portuguesa, resguardando-se sempre a sua expressão brasileira, pois
ela é nossa e nós somos dela.

Leodegário A. de Azevedo Filho - Professor Titular da UERJ e da


UFRJ e Presidente da Academia Brasileira de Filologia.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 95

A Lusitania liberata ou A
Restauração portuguesa em imagens
Análise de algumas das gravuras da obra de António de
Sousa de Macedo sobre a Restauração.

Lilian Pestre de Almeida,


da Universidade Independente, Lisboa

Em memória de dois latinistas amigos


Professor José Correia Pinto e Professor Baltasar Xavier.
Para Maria Helena Kopschitz
1. Introdução

Num colóquio em que se aborda essencialmente o problema


da Língua Portuguesa no universo luso-brasileiro, gostaria de
apresentar um texto português do século XVII ainda escrito em
latim e que apresenta uma iconografia riquíssima, em grande
parte, ainda inédita.
Evidentemente, não poderemos aqui analisar todas as ima-
gens. Contentar-nos-emos em apresentar o volume nas suas gran-
des linhas, mostraremos em slides o conjunto das imagens dentre
as quais seleccionaremos apenas duas para leitura mais atenta.
Essa exemplificação bastará, cremos, para dar uma ideia do inte-
resse e da riqueza do texto em questão.
Em meados do século XVII, é publicado em Londres, num
belíssimo volume ilustrado, o texto do Dr. António de Sousa de
Macedo intitulado Lusitania liberata. A obra, escrita em latim,
defende a causa portuguesa perante o público culto e as cortes
estrangeiras. Dois exemplares da obra pertencem a colecções
portuguesas: a da Biblioteca Nacional de Lisboa e a do Arquivo
da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa.
96 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

O exemplar pertencente à Misericórdia está em muito bom


estado e é sobre ele que redigimos o presente texto. No Catálogo
das obras impressas no século XVII da Colecção da Santa Casa
da Misericórdia de Lisboa1 , o volume é descrito, sob o nº 369,
como se segue:

MACEDO, António de Sousa de, 1606 - 1682.

Lvsitania liberata ab injusto Castellanorum dominio


restitvta, legitimo Principi Serenissimo Ioanni IV. Lusitaniæ,
Algarbiorum, Africæ, Arabiæ, Persiæ, Indiæ, Brasiliæ &c. Regi
potentissimo; Summo Pontifici, imperio, regibus, rebus-publicis,
cæterisq[ue] orbis christiani princibus/ demonstrata per D.
Antonium de Sousa de Macedo Lusitanum, aulæ generosum
Regij Ordinis Cristo Equitem …; Opvs historice-juridicum,
materiarum varietate jacundum; Complectens ultra principale
institutum omnes Lusitaniæ notitias (quoad terram, gentem,
potentiam & eventus ab orbe condito) notatu digniores nec
non plurimas aliarum provincarum; Cum duplici indice altero
capitum in principio voluminis altero rerum in fine … - Londini:
in officinâ Richardi Heron, 1645. - 3 v. em 1 t.; 2º (30 cm). - Barbosa
Machado 1 p. 401, NUC NS 0744931. - V. 1: [3 br.], [27], 467, [1
br.] p. - Na p. [1] o retrato de D. João IV. - Na p. [2] o frontispício
alegórico representando o triunfo do dragão da Casa de Bragança
sobre o leão de Castela. - Na p. 58 o retrato de D. Afonso Henriques.
- Na p. 93 a visão de Ourique. - Na p. 143 o retrato de D. João I. -
Na p. 165 a árvore genealógica dos descendentes de D. Manuel I.
- Grav. John Droeshout. - Notas impr. marginais. - Assin.: [ ]6, A34,
A64, A2, B-Z4, Aa-Zz4, Aaa-Nnn4, Ooo2. - V. 2: [2], 540 [i. é 70]p.
- Na p. [2] a fénix renascida. - Grav. John Droeshout. - Notas impr.
marginais. - Paginação e assin. contínuas; paginado a partir de 471.
- Assin.: [ ]2, Ppp-Yyy4, Zzz2. - V. 3: [2], 794 [i. é 252], [22]p. - Na
p. [2] gravura alegórica a representar o dragão da Casa de Bragança.
- Na p. 560 a sagração de D. João IV. - Na p. 650 o triunfo de D.
João IV. - Grav. John Droeshut. - Na p. 708 o dragão e a esfera
armilar. - Na p. 764 o escudo das armas reais de Portugal. - Na p.
792 alegoria a D. João IV. - Grav. John Droeshut. - Notas impr.
marginais. - Paginação e assin contínuas. paginado a partir de 543.
- Assin.: [ ]2, Aaaa-Ssss4, Tttt6, Vvvv-Zzzz4, Aaaaa-Iiiii4, Kkkkk-
Nnnnn2.
Algumas folhas manchadas e rasgadas e encadernação ras-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 97

gada e com a pasta posterior solta.- Falta a folha “A2” da primeira


sequência.- Pert.: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.- Enca-
dernação portuguesa do século XVIII em pasta de papelão revestida
em pele castanha e decorada com dois frisos gravados a seco e
lombada decorada com frisos gravados a seco e motivos florais em
dourado e o título em dourado.- Cota antiga: Est.13.C.5.L.15.- Do-
cumentação iconográfica: estampa 1, 24 e 25.

L.A.XVII.0609 1-3

A obra possui importante iconografia, tanto do ponto de vista


plástico como histórico, em parte ainda inédita. São 13 gravuras
sobre figuras e acontecimentos históricos, antigos e contem-
porâneos. Das gravuras, apenas 5 foram anteriormente publicadas:
as nº 1, nº 3, nº 4, nº 9 e nº 11. A notícia acima, da autoria de Júlio
Caio Velloso, faz a listagem não só de toda a série como propõe
uma primeira identificação dos temas, sem esgotar-lhes, eviden-
temente, a significação.
Note-se, por um lado, que três gravuras da LL são reproduzidas
no próprio Catálogo da Misericórdia de 1994: a estampa 1 com
a sagração de D. João IV , a estampa 24 com o triunfo de D. João
IV e estampa 25 com a visão de Ourique. Por outro lado, o retrato
de D. Afonso Henriques reproduz um modelo iconográfico bas-
tante difundido. A tradição criou um modelo do Fundador : um
guerreiro de longas barbas que corresponde, de certa forma, à
imagem de Carlos Magno, “l’empereur à la barbe fleurie”, da
Chanson de Roland.
Enfim, duas outras estampas da LL servem de ilustração ao
último número da revista Oceanos com as seguintes legendas:
a) na p. 91, D. João coroado pelas figuras alegóricas da Jus-
tiça e da Paz (imagem correspondente, no Catálogo da Miseri-
córdia, à sagração de D. João IV) e
b) na página 146, os astros auguram bons sucessos ao Portu-
gal restaurado (imagem correspondente, no mesmo Catálogo, à
gravura do escudo de Bragança e a esfera armilar).
Temos assim cinco gravuras totalmente inéditas e originais.
O volume de António de Sousa de Macedo constitui um texto
importante no debate sobre a Restauração de Portugal e sustenta
a ascensão à coroa do duque de Bragança, apresentado pela pro-
paganda espanhola como um rebelde e usurpador. É material-
mente, sem dúvida, o mais belo volume publicado sobre Portugal
98 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

no século XVII.
Consideramos aqui as 13 gravuras na ordem do seu apareci-
mento em confronto com o texto que as acompanham. Assim, em
cada gravura buscamos fazer uma leitura articulada da mensagem
icónica e linguística. A relação do texto com a imagem é, na maioria
das vezes, complementar e ideológica. Diante da polissemia (ou
ambiguidade) da imagem, as inscrições em latim ancoram, no espí-
rito do leitor, um determinado significado que se torna, assim, predo-
minante e privilegiado. As inscrições latinas criam uma teia simbóli-
ca de significados que buscamos destacar.
Observe-se por fim que as gravuras distribuem-se de forma
irregular no volume: há seis gravuras no Livro I; uma no Livro II e
seis no Livro III.
No Livro I, as duas primeiras ligam-se a acontecimentos con-
temporâneos: o retrato do novo Rei e o frontispício alegórico com
a luta dos dois animais simbólicos, o dragão e o leão. Seguem-se
os momentos fortes da evolução do reino português até a crise
dinástica: Afonso Henriques, Ourique, D. João I, a árvore
genealógica de D. Manuel I.
No livro II, a imagem da fénix renascida faz a transição entre
o passado de Portugal e a Restauração.
No livro III, todas as gravuras sem excepção dizem respeito
ao novo rei português.

2. A série das gravuras da Lusitania liberata: algumas


imagens a título de exemplo.

Para dar uma ideia do texto, seleccionamos apenas 4 ima-


gens, as de n° 4, 6, 8 e 11.

Gravura nº 4, Livro I, p. 93: Visão de Ourique


A gravura, de tamanho menor, representa a visão do primei-
ro rei de Portugal antes da batalha de Ourique. De todas as gravu-
ras da LL é sem dúvida a mais ingénua do ponto de vista da com-
posição e a mais ideologicamente marcada. Está assinada
(Drœshout _culp) no canto inferior esquerdo.
Quatro textos a companham:
a) o primeiro, no alto da página, glosa de certa forma o título
do volume:
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 99

Ad Lusitanima liberatam
(à Lusitânia liberada)

b) o segundo identifica o personagem ajoelhado no centro e


de mãos postas:
ALPHONSUS. HENRICVS.I.REX. LVSIT.
(Afonso Henriques, 1º Rei da Lusitânia)

c) a frase em diagonal estabelece a ligação entre a visão


celeste e a cena terrestre, ou seja entre o Cristo crucificado e o
Rei de joelhos:
uolo in te et in femine tuo
imperium mihi stabilire

O texto em diagonal corresponde ao discurso divino: é o pró-


prio Cristo que assume o sentido da História de Portugal (quero
em ti e na mulher o teu império estabelecer para mim)

d) o quarto é o texto da inscrição abaixo da gravura propria-


mente dita:
Quid mea miratur mundus, quid facta meorum:
Non ego, non illi, sed, sibi, Christus agit.

(Que o mundo admire os meus feitos, quer os feitos dos meus:


Não eu, nem eles, mas Cristo age por si mesmo).

O último texto corresponde ao discurso atribuído à persona-


gem: o Rei afirma que o que fez e o que fizeram ou farão os seus,
foi (e será) por acção divina
A passagem retoma e glosa, de certa forma, S. Paulo (II
Cor., 4, 4-9): “Por conseguinte, se o nosso evangelho permanece
velado, está velado para aqueles que se perdem, para os incrédu-
los, dos quais o deus deste mundo obscureceu a inteligência, a fim
de que não vejam brilhar a luz do evangelho da glória de Cristo,
que é a imagem de Deus. Não pregamos a nós mesmos, mas a
Cristo Jesus, Senhor”.
A imagem é composta por duas cenas: uma visão celeste, no
alto à esquerda e uma cena terrestre no primeiro plano à direita.
Na visão, o Cristo crucificado surge numa mandorla cercado de
nuvens e de onze anjos. Na cena terrestre, o Rei despojado de
suas armas (espada e escudo) e de seus ornatos (chapéu de plu-
100 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

mas, “talons rouges” à francesa, gibão de laços), de joelhos e


mãos postas, vê a cena divina e ouve a mensagem do Cristo.
Observe-se o facto - curioso e deliberado - de o Rei trajar à moda
do século XVII: o anacronismo no traje reforça a identidade da
figura medieval (D. Afonso Henriques) com o soberano
seiscentista.
A paisagem, em tonalidade mais apagada, tem cariz simbóli-
co: árvores à direita e ao fundo, à esquerda, um grande monastério.
D. Afonso Henriques aparece, em bom número de gravuras, do
século XVII e sobretudo do século XVIII, como aquele que man-
da construir uma igreja em agradecimento ao milagre de Ourique.
A visão de Ourique retoma e nacionaliza, de certa forma, a
visão de Constantino. A tradição afirma que a Afonso Henriques,
antes da batalhe de Ourique, apareceu o Cristo. Não era só a
vitória que Cristo prometia ao Rei cristão; era também a protec-
ção do Reino, glórias futuras, a fundação de um império. Desse
modo, a independência portuguesa assenta na vontade expressa
de Deus e o povo português assume o carácter de povo eleito.
No século XIX Herculano refuta o milagre de Ourique a par-
tir das fontes que a ele se referem2 . É no final do século XV,
provavelmente através do relato de Vasco Fernandes de Lucena,
embaixador de D. João II junto ao papa Inocêncio VIII, que surge
a primeira menção directa ao milagre. O aparecimento do Cristo
passara a fazer parte integrante da História de Portugal.
Depois, no século XVII, com Bernardo de Brito, na Chronica
de Cister, a lenda ganha em precisão e prestígio.O monge
cisterciense dá-lhe nova importância, conferindo a Portugal e aos
seus Reis uma missão divina.
Podem, pois, fundamentalmente, considerar-se dois momen-
tos na “história” de Ourique: sua invenção por Fernandes de Lucena
e sua reinvenção ao tempo do frade de Alcobaça. Note-se o
paralelismo das conjunturas que levaram o seu aparecimento no
século XV e sua reinvenção no século XVII. Em ambos os casos,
em momento de crise nacional, afirma-se a autonomia de Portu-
gal, o carácter da sua eleição pelo próprio Cristo e a impossibilida-
de de sujeição do reino lusitano a soberanos estrangeiros.
Mas a gravura da LL vai mais além: ela afirma o papel funda-
mental da mulher no projecto divino. É da mulher, Dona Catarina,
esposa do 6º duque de Bragança, que descende o novo Rei. Como
se sabe, a duquesa D. Catarina desenvolveu notável actividade no
momento da crise dinástica de 1580 para que lhe fosse reconhecido
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 101

o direito ao trono por ser neta de D. Manuel I. Mas só em 1640 seu


neto D. João, 8º duque, filho do 7º duque, D. Teodósio, veio a subir
ao trono. É esse direito ao trono que defende a LL.
A casa de Bragança sobe pois ao trono em 1640 no meio de
grande debate jurídico sobre quem é o Rei e quais as suas fun-
ções. O Direito exerceu grande influência na defesa da nova di-
nastia. Impunha-se demonstrar à Europa que, no momento da cri-
se dinástica de 1580, face aos diferentes candidatos ao trono por-
tuguês, a coroa devia, por “benefício da representação”, ter cabi-
do a Dona Catarina, duquesa de Bragança. Como filha do infante
D. Duarte, a ela pertencia com justiça o trono de D. Manuel I,
levando em conta ainda que a invasão de Filipe II de Espanha,
pretendente pelo lado materno, violara os foros autênticos do reino
antes da decisão oficial. A partir desta base “ilegal”, o governo
dos três Filipes podia ser considerado ilegítimo e não aceite pela
consciência dos Portugueses. O oitavo duque de Bragança limita-
va-se, pois, a exercer o princípio jurídico da pertença à mais antiga
casa senhorial do reino. Um grupo de jurisconsultos de 1640, como
Francisco Velasco de Gouveia, António Pais Viegas, João Pinto
Ribeiro e o nosso António de Sousa de Macedo, defendia assim a
tese da “restituição” da coroa a D. João IV. Assim se justificava a
designação de Restauração.
Uma segunda tese justificaria a Restauração por outro cami-
nho. Baseava-se no princípio da alienação do poder, que permitia
aos povos expulsar os soberanos que desrespeitassem o pactum
subiectionis acordado com os súbditos. Deste ponto de vista, a
soberania não era pertença dos reis, que apenas a exerciam por
obra de um pacto natural: detinham assim os Reis o poder in actu,
enquanto o povo o recebera in habitu. A doutrina é sustentada pelo
jesuíta Francisco Suárez, o célebre Doctor eximius, que ilustra com
a sua docência a Universidade de Coimbra. Assim sucedera com
os três Reis espanhois, o que tornava legítimo a acção do povo ao
sagrar pela força do direito natural a realeza de D. João IV.
Como o indica Joaquim Veríssimo Serrão, os diplomatas por-
tugueses tiveram que defender estes princípios nas diferentes mis-
sões no estrangeiro. Contra a corrente espanhola que afirmava
ter o duque de Bragança cometido um acto de rebeldia e de
usurpação, foi preciso sustentar a razão do movimento aclamatório,
como a vontade de povos livres que, ao longo de sessenta anos,
não haviam perdido o sentimento da sua autonomia.
Um tema reiterado impõe-se portanto em Portugal no século
102 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

XVII, que se pode semantizar como profecia, oráculo ou promes-


sa. O tema foi glosado de diferentes modos. Em 1641, António
Pais Viegas descreve-o assim:

Este foy aquelle venturoso a quien Cristo bai-


xando del Cielo dio le investidura y corona de um
reyno, que dixo escogia para si quando le hablo en
la Cruz, honrandole desta manera darle tal Reyno3 .

Resta-nos considerar de mais perto o papel da mulher no pro-


jecto divino, tal como aparece na gravura na frase atribuída ao pró-
prio Cristo. Como D. João IV descende de D. Manuel I pelo lado
feminino, era necessário exaltar o papel da mulher. A iconografia
implica numa paráfrase indirecta ao papel de Maria, como nova
Eva, na ordem da Salvação. O mesmo tema reaparecerá, mais
tarde, de forma paralela, na oratória de Vieira quando se trata de
justificar a substituição de Afonso VI pelo seu irmão D. Pedro e o
casamento deste com Dona Maria Francisca Isabel.
Essa concepção da História vista como um projecto divino
marca todo o século XVII português: ela reaparece de forma
transparente na LL nas gravuras sobre os reis que precedem D.
João IV.
O génio de Fernando Pessoa, em Mensagem, foi, entre ou-
tras coisas, dar forma poética a tal acção subterrânea. O facto é
facilmente apreendido na apresentação sintética do antepassado
do Fundador (ou seja o pai do pai):

O conde D. Henrique

Todo começo é involuntário.


Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
“Que farei eu com esta espada?”

Ergueste-a, e fez-se.

Assim, a força do heroi, instrumento de Deus, nasce do seu


abandono confiante à vontade divina. Esta age, apesar do heroi
mas também graças ao heroi. O objeto mágico (= a espada) apa-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 103

rece-lhe nas mãos e o homem aceita ser o instrumento do verda-


deiro agente superior. A mesma concepção da acção reaparece
em outras gravuras da série.

Gravura nº 6, Livro I, p. 165: A árvore genealógica dos des-


cendentes de D. Manuel.
Gravura fundamental para se entender as relações dos pre-
tendentes ao trono português no momento da crise de 1580. A
representação do Rei português toma de empréstimo o modelo
iconográfico da árvore de Jessé, antepassado do Cristo.
D. Manuel I, coroa à cabeça e o manto de arminho, apresen-
ta-se deitado por terra. Um braço dobrado sustenta-lhe a cabeça.
Do seu baixo ventre ergue-se a árvore dos seus descendentes,
todos coroados. Uns levam a coroa ducal, outros a coroa real.
Cada descendente leva uma cartela que o identifica: de forma
para nós, hoje, talvez paradoxal, os nomes masculinos inscrevem-
se num círculo e os nomes femininos, num losângulo.
A função do texto aqui é particulamente importante, sobretu-
do didáctica.
A legenda abaixo reza:
Mascule dum fuerit, seruat me, linea, viuum;
Subsidium extinetæ, fœmina, prolis, erit.

(Enquanto foi viva a linha masculina serviu-me


Extinta, será subsídio meu a feminina)

As pequenas legendas, lidas de baixo para cima e da esquer-


da para a direita, indicam sucessivamente a descendência do Rei:
a) na base da árvore: Manuel, 14º Rei da Lusitânia
b) na primeira linha: Beatriz, duquesa de Saboia; a Imperatriz
Isabel; João III, 15º Rei da Lusitânia; Luís, duque de Beja; o Car-
deal D. Henrique, 17º rei da Lusitânia; Eduardo, Duque de Guima-
rães, todos já mortos;
c) na segunda linha, temos: Manuel Filiberto, duque de Saboia
(pretendente); Filipe II, rei de Castela (pretendente); D. João, prín-
cipe de Lusitânia (já morto); António, prior do Crato (pretenden-
te); D. Maria, duquesa de Parma (já morta) e D. Catarina, duque-
sa de Bragança (pretendente);
d) no alto: D. Sebastião, 16º rei da Lusitânia (já morto) e
Rainunfo, duque de Parma (pretendente).
A árvore permite ainda ao leitor atento à sucessão dos reis
104 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

portugueses perceber a sequência que vai do 14º ao 17º soberano:


D. Manuel; D. João III; D. Sebastião uma vez que o seu pai, o
infante D. João (1537 - 1554), morre antes do seu nascimento;
Cardeal D. Henrique.
O texto latino retoma uma vez mais a argumentação de
exaltação da linha feminina quando se extingue a masculina. O
simbolismo aqui confirma a ideia de que uma figura feminina foi (e
é) necessária à Salvação. Da mesma forma que, do ponto de vista
teológico, Maria é a nova Eva porque permitiu o nascimento do
novo Adão, isto é, o Cristo; do ponto de vista político, D. Catarina
de Bragança “salvou” Portugal, assegurando o direito da linha-
gem da terra.

Gravura nº 8, Livro III, p. [2]: O dragão de Bragança ao pé


da árvore.
Talvez a mais bela (e obscura) gravura da série. Ainda não
reproduzida em nenhum estudo, ao que sabemos. Sem texto na
parte superior, leva apenas a inscrição:

In tempus, vigilo, simulans dormire; neg ullum


Iam timeo Alcidem, Lysius arma colens.

(Até o fim dos tempos, alerta vigio, parecendo dormir;


Já não temo Alcides nenhum: Lísio empunha as armas)

Ou seja: Como Lísio, em armas, já não temo nenhum Alcides.


Vários arquétipos aqui se unem: a lembrança da árvore de
Jessé que assegura a permanência da linhagem dos reis portugue-
ses; a árvore do jardim das Hespérides com seus pomos doura-
dos; o dragão ctónico (oriundo da terra) protegendo a promessa
de flores e frutos de Portugal.
Observe-se que, nessa gravura, o dragão não tem asas e
parece um enorme sáurio. O texto refere-se a duas figuras, Alcides
e Lisius, como antepassados míticos, respectivamente da Espanha
e de Portugal.
Como lembra o leitor, Luso aparece várias vezes em Os
lusíadas (I, 39; III, 21; VIII, 2): é o filho e/ou companheiro de
Baco que, segundo Camões, fixou-se em Portugal. Os eruditos da
Renascença relacionavam esse nome com Lusitânia. O geógrafo
latino Plínio fala de um filho de Baco chamado Lysias ou Lysa e o
y dito grego é transcrito em latim ora como i, ora como u. O pró-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 105

prio Camões faz alusão à dupla grafia:

Esta foi Lusitânia, derivada


De Luso ou Lysa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela estão os íncolas primeiros. (Lus., III, 21)

Alcides é um dos nomes de Hércules, descendente de Al-


ceu. Camões assim se refere ao herói em diferentes passos do
seu poema: III, 137; IV, 49, 80; IX, 57. Os soberanos espanhois se
apresentavam como descendentes de Hércules: esse antepassado
mítico explica, por exemplo, a série de telas de Zurbarán sobre os
feitos de Hércules no grande Salón de los Reinos, criado por
Velázquez em 1635.
Por temor de Alcides, isto é, da invasão espanhola, Luso iden-
tificado com o dragão da casa bragantina, vigia sem dormir, defen-
dendo a árvore da terra.
Deitado ao pé da árvore central, como um anel protector, o
dragão lembra vagamente um ouroboros (cf. o ouroboros que cir-
cunda o retrato do novo rei na gravura 1). A árvore apresenta-se
vicejante com folhagem e frutos. À direita, no segundo plano, uma
outra árvore esgalhada e seca ergue-se: sugere a linhagem de D.
Manuel interrompida ou a morte simbólica da linhagem dos Filipes
em terras portuguesas.
A enxertia real viceja na nova árvore.A paisagem de terra
fértil lembra que o corpo do rei é o corpo da terra. No universo
tradicional, a saúde do rei é a saúde da terra e dos produtos da
terra. Um mau rei, ou um rei não legítimo, provoca a esterilidade
da terra. Por outro lado, a continuidade do sangue real permite
compreender a frase “O rei está morto, viva o rei”.
A oposição Alcides vs Lísio presente no texto latino reapare-
ce na oposição das árvores seca vs viva. Veja-se sobretudo a
importância do arquétipo da árvore nessa gravura. Para a árvore,
Mircea Eliade sugere sete interpretações no seu Traité de l’Histoire
des religions: elas se articulam todas em torno da ideia do Cos-
mos vivo em perpétua regenerescência. A árvore põe em contac-
to os três níveis do cosmos: o subterrâneo pelas raízes que serpen-
teiam no solo, aprofundando-se; a superfície da terra pelo seu
tronco e seus primeiros ramos; as alturas, pelos ramos superiores
e o seu cimo que se ergue em direção à luz do sol.
Essa árvore teve o seu cimo cortado, símbolo das perdas
106 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

sofridas e a sofrer durante a guerra com Espanha mas o tronco


mantém-se forte e verdejante. A árvore do dragão é uma árvore
cósmica e de vida, eixo do reino de Portugal.

Gravura nº 12, Livro III, Apêndice, p. 764 : O escudo das


armas reais de Portugal
Duas figuras de anjos ladeiam o escudo português encimado
por um capacete militar coroado, tendo por trás o dragão da Casa
de Bragança de grandes asas abertas. A legenda latina reza:

Lusiadum Regnum cujus vide stemmata Christi,


Mittit enim rebus Stemmata quisque suis.

(Vê o Reino dos Lusíadas com os estigmas de Cristo


Assim leve cada um os estigmas do que é seu)

Na página à direita o Capítulo III do Apêndice anuncia:

CAPUT III
Stemma Lu_itani Scuti declaratur.

O texto da inscrição merece certo desenvolvimento. Ele inci-


ta o espectador a contemplar o escudo português como objeto
sagrado pelas suas marcas (ou estigmas).
As armas do rei de Portugal são descritas, do ponto de vista
estricto da heráldica, por Anselmo Braamcap Freire da seguinte
maneira:
De prata, cinco escudetes de azul, postos em cruz e carrega-
dos cada um de cinco besantes do campo; bordadura de vermelho
carregada de sete castelos de oiro. Coroa de florões fechada de
dois meios círculos. Timbre: serpe alada, nascente, de oiro. Não
tem letreiro. Vol. I, p. 32)
Assim, tecnicamente, na heráldica, não se faz qualquer alu-
são a estigmas.
No entanto, a ideia difundida pelo ensino, até muito recente-
mente, de que o escudo português carrega as cinco chagas do
Cristo vem do facto de que os besantes de campo são vistos como
representações das chagas, ideia que sacraliza o país (e o Rei).
Essa ideia está já presente na inscrição latina da LL através do
emprego reiterado do sintagma “stemmata Christi”. Assim, acon-
selha a inscrição latina, “leve cada um os estigmas do que é seu”.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 107

À identidade Portugal=Israel já anteriormente analisada, sobre-


põe-se uma outra em que o corpo de Portugal existe simbolica-
mente à imagem do corpo de Cristo e o povo português torna-se o
povo eleito, ungido como o do Cristo e messiânico por excelência
no concerto das nações.
Mais ainda: como cada uma das quinas (ou escudetes) leva
cinco chagas (ou besantes), temos cinco vezes cinco chagas. É o
cinco elevado ao quadrado. Graficamente, o cinco se multiplica na
disposição dos escudetes em cruz com um ao centro, cada escudete
levando, repetimos, cinco besantes.
O número cinco tira o seu simbolismo do facto de ser, por um
lado, a soma do primeiro número par e do primeiro número ímpar
( 2+3) e, por outro lado, o meio dos nove primeiros números. É
signo de união, número nupcial diziam os Pitagóricos; número do
centro, da harmonia e do equilíbrio. As cinco chagas do Cristo
sacraliza o ensino clássico e o difunde em todo o Ocidente cristão.
A harmonia pentagonal dos Pitagóricos deixa a sua marca na ar-
quitectura das catedrais medievais. A estrela de cinco pontas, a
flor de cinco pétalas é colocada, no simbolismo hermético, no cen-
tro da cruz dos quatro elelemntos: é a quinta-essência.
Os dois anjos laterais justificam-se do ponto de vista teológi-
co: eles ladeiam uma representação metafórica do corpo de Cris-
to que é o corpo de Portugal. A Restauração de 1640 retoma e
confirma a disposição do escudo português na charola de Tomar.
A recente exposição realizada no Paácio da Ajuda, depois do res-
tauro das escuplturas, sob o nome de “A luz que vem do Norte”,
mostra claramente a continuidade da velha tradição portuguesa
da sacralidade do escudo nacional. Já em Tomar, no século XVI,
o escudo das cinco quinas ergue-se no centro de dois anjos.

3. Conclusão.

As gravuras da LL não são obra do Dr. António de Sousa de


Macedo: foram encomendadas para ilustrarem a sua argumenta-
ção jurídica e muito provavelmente executadas segundo sua ori-
entação e/ou supervisão. Elas fornecem ao leitor uma série de
imagens que resumem, anunciam, glosam, difundem ou transfigu-
ram em exemplos que falam à imaginação, figuras e aconteci-
mentos contemporâneos. Por outro lado, as ilustrações criam um
eixo diacrónico em que momentos fortes da história de Portugal
articulam-se de forma coerente segundo um projeto divino e hu-
108 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

mano. Sobretudo, essas gravuras ajudam a fundar no espírito do


público leitor a iconografia do novo rei e da nova casa reinante.
Para tal, as imagens lançam mão da retórica característica
da época: a Fénix que renasce das cinzas é a imagem do país que
renasce da servidão; a vitória das armas portuguesas estava es-
crita nos astros, etc. Figuras mitológicas como Alcides ou Luso
são invocadas para justificar a oposição Espanha vs Portugal.
No entanto a própria escolha paradigmática é reveladora. Dos
reis de Portugal anteriores a D. João IV são citados apenas três: o
fundador do Reino (Afonso Henriques em 2 gravuras), D. João I (o
vencedor de Aljubarrota e o iniciador da dinastia de Avis) e D.
Manuel com sua numerosa descendência à moda do Jessé bíblico.
Observe-se que não há nenhuma imagem de D. Sebastião, nem do
Africano, por exemplo, ou de qualquer outro rei português.
Várias gravuras implicam uma evidente intertextualidade de
cunho religioso: D. Manuel surge como o patriarca Jessé,
antepassado do Messias, ou seja, do Esperado. O próprio Cristo
dirige-se ao rei fundador estabelecendo uma promessa que passa
pela mulher. Esta não é, no texto latino que comenta a gravura, a
Virgem Mãe, mas D. Catarina de Bragança, que ganha assim
conotações religiosas de nova Eva. A vitória da casa de Bragança
reflete a acção divina. Portugal repete o destino de Israel como
terra de Deus. O exemplo mais interessante de todos, no caso, é a
ideia veiculada pelo texto latino de que Portugal (ao mesmo tempo
Rei e Reino) leva, no seu corpo simbólico, os estigmas de Cristo.
Por outro lado, os animais míticos, a heráldica e a astrologia
fornecem um outro fio de articulação e de leitura, unindo várias
ideias: o dragão de Bragança defendeu-se e por ser justa a sua
causa, venceu o leão de Castela; a vitória estava escrita no céu
e nas estrelas; as armas portuguesas são e serão vitoriosas. Todo
o anexo final do volume, consagrado às profecias, reitera o elo
entre o fado (que não pode ser revocado porque é promessa
divina e Fatum) e o aspecto inquestionável da independência
portuguesa. O próprio nome escolhido para o volume - Lusitania
liberata e Restauração - implica em saída da servidão e retorno
ao estado de direito.
Assim a LL fornece a iconografia do novo rei através da sua
efígie, sua sagração, seu triunfo sobre o trono móvel (que é o
cavalo) e o reconhecimento da sua grandeza pelo monumento
final com as trombetas da fama. Os louvores ao novo Rei e à
nova casa reinante estão também inscritos de forma imperecível
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 109

nos corações portugueses.


Obra de propaganda e de defesa de uma tese, a LL desen-
volve a sua argumentação a partir de um determinado universo
simbólico ligado ao messianismo português.

Bibliografia:
ABREU, Ilda Maria Assunção e Silva Soares de. Simbolismo e ideário
político. A educação ideal para o príncipe ideal seiscentista. Disserta-
ção de Mstrado em História Cultural e Política. Universidade Nova de
Lisboa, 1997.
BUESCU, Ana Isabel. O milagre de Ourique e a História de Portu-
gal de Alexandre Herculano. Lisboa, INIC, 1987.
CHEVALIER, Jean et GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des
symboles. Édition revue et augmentée. Paris, Laffont, 1982.
COLUNGA -TURRADO. Biblia Vulgata. Biblioteca de autores
cristianos. Madrid, 1977.
ELIADE, Mircea. Traité d’histoire des religions. Paris, Payot, 1964.
FREIRE, Anselmo Braamcamp. Brasões da Sala de Sintra. 3 vol.
Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1973.
GÁLLEGO, Julián. Visión y símbolos en la pintura española del
Siglo de Oro. Madrid, Aguilar, 1972.
HATHERLY, Ana. A experiência do prodígio. Bases teóricas e anto-
logia de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII. Lisboa,
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1983.
HAUCOURT, Geneviève d’ et DURIVAULT, Georges. Le blason. 5e
éd. Paris, PUF, 1970.
PANOFSKY, Erwin. O significado nas artes visuais. Lisboa, Presen-
ça, 1986.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. O Tempo dos Filipes em Portugal e no
Brasil (1580 - 1668). Estudos históricos. Lisboa, Ed. Colibri, 1994.
SERRÃO, Joel. Dicionário de História de Portugal. Dirigido por. IV
tomos. Iniciativas editorias, s/d.
VIEGAS, Antonio Pais. Principios del Reyno de portugal. Con vida
y hechos de Don Affonso henriques su primero Rey. Lisboa, Off. Paulo
Craesbeeck, 1641.
110 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Notas
1
Catálogo das obras impressas no século XVII. A Colecção da
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Lisboa, 1994. Apresentação do
Professor Doutor José V. de Pina Martins. Introdução, organização, bibli-
ografia, catalogação e índices por Júlio Caio Velloso. Indicado daqui em
diante por LL.
2
Sobre o assunto veja-se BUESCU, Ana Isabel. O milagre de Ourique
e a História de Portugal de Alexandre Herculano. Lisboa, INIC, 1987.
3
VIEGAS, Antonio Pais. Principios del Reyno de portugal. Con
vida y hechos de Don Affonso henriques su primero Rey. Lisboa, Off.
Paulo Craesbeeck, 1641, f. 2vº e 3.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 111

A Língua Espanhola e a sua função


na obra catequética no Brasil
Nicolás Extremera Tapia,da
Universidade de Granada

Quando conclui, provisoriamente, as minhas investigações so-


bre os aspectos da obra de Anchieta que me têm interessado,
ficou-me uma interrogação, que quase me atreveria a dizer que
são duas: por que razão os jesuítas, començando pelo Padre
Anchieta, escrevem parte da sua obra poético-religiosa em espanhol
e por que razão os investigadores não exploraram ainda com
profundidade esta questão?
É possível encontrar uma longa presença da Língua Espanhola
nos textos literários jesuíticos desde os primórdios da literatura no
Brasil até ao ano de 1698, no qual o P. Luis Vicencio Mamiani,
publica o seu? Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica
da nação kiriri1 .
Para expor o problema nos seus termos mais concretos,
darei por boa a relação que Luiz Soares de Lima faz das poesias
do manuscrito de Anchieta, o fundador da poesia religiosa no Bra-
sil e mais globalmente da literatura brasileira, “organizadas de acordo
com a língua ou as línguas em que foram escritas”.2

a) Composições unilíngües

Em Português 12
Em Espanhol 34
Em Tupi 18
Em Latim 2
_
66
112 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

b) Composições bilíngües

Em Português e Espanhol 1
Em Português e Tupi 2
Em Português e Latim 2
_
5

c) Composições trilíngües

As composições em Português, Espanhol e Tupi são dois autos


de catequese, intitulados: “Na Festa de São Lourenço” e “Na
Festa do Natal”.
Neste corpus poético anchietano podemos observar um
elevadíssimo número de composições em espanhol. Cioranescu,
sublinha que no “livrinho de várias poesias salta a la vista el peso
excepcional de las composiciones en español, casi la mitad del con-
junto; son también las mejores y, junto con los párrafos españoles del
teatro, las de mejor nivel conceptual”3 . Para sistematizar a nossa
exposição distinguiremos primeiro entre teatro e poesia.
Dentro desta podemos distinguir também dois sectores rela-
tivamente bem diferenciados: a sua produção contrafactística e
a sua produção poética plenamente original. Em geral a motiva-
ção e a finalidade de toda essa actividade literária são rigorosa-
mente apostólicas. Interessa-me sublinhar a subordinação que, na
poesia jesuítica em geral e na de Anchieta em particular, encon-
tramos de qualquer outro elemento de índole formal ou estética a
este zelo missionário. A idéia de apostolado, de utilidade para le-
var a bom fim a sua missão é a predominante em todo o processo
de criação poética de Anchieta.
Alguma coisa de semelhante acontece em toda a actividade
literária dos jesuítas não só no Brasil, em língua tupi, mas também
em guaraní e, em geral, em todas as línguas indígenas.
O padre Meliá chega mesmo a perguntar-se se não será pos-
sível identificar na América “género didáctico” com “género cris-
tão”4 :
Le corpus des écrits en langue guarani du
temps des réductions permet de prime abord un
jugement sévère à ce sujet; sauf quelques lettres
des indiens, tout le reste peut être facilement
rangé sous la rubrique du genre didactique;
catéchisme, explications du catéchisme,
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 113

sermonnaires, manuels de confession, livres de


piété, voire une histoire à intention “édifiante”.
Le genre didactique serait-il le genre “chrétien”
par excellence?

Para resumir o processo ou os processos que os jesuítas se-


guiram para exercer o seu apostolado citarei uma tão excelente
como breve síntese feita por Alexander Marchant5 .

Converter o gentio significava que os


índios deviam saber o que era o cristianis-
mo e isso não seria possível sem doutrina-
ção. As dificuldades no caminho de um es-
forço consciencioso para a conversão
eram, no entanto, muito grandes. Os jesuí-
tas e os índios deviam, antes de mais nada,
entender-se em sua linguagem, o que sig-
nifica que os jesuítas tinham de aprender
as línguas indígenas ou os índios, o portu-
guês. Com o contrapeso da dificuldade de
linguagem, os jesuítas deviam levar avante
a instrução religiosa para preparar os na-
tivos para o batismo. A educação, incluin-
do o idioma, indispensável à conversão,
não podia ser um assunto casual, tratado
ao acaso. Nóbrega teve dois caminhos a
escolher, indo ao encontro dos índios para
educá-los. Um seria ir para as aldeias in-
dígenas e ali instruí-los. Outro, compelir os
indígenas da região a se concentrar num
determinado ponto onde os jesuítas pudes-
sem ensinar a todos. A espécie de estabele-
cimento nesse determinado ponto depen-
dia da modalidade da instrução conside-
rada necessária. Para a instrução religio-
sa geral, usavam casas. Para dar a alguns
índios e portugueses uma educação mais
completa também sobre outros assuntos,
criaram os jesuítas colégios. A mais preci-
sa diferenciação entre casas e colégios está
em que casa era para instrução dos não-
114 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

batizados, enquanto o colégio destinava-


se à educação dos cristãos. Logo depois
de desembarcar na Bahia, já Nóbrega reu-
nia numa casa duzentos indígenas, e de-
pois, ao criar o primeiro colégio, mais de
vinte submetidos a esse regime de instrução.
Os jovens índios eram arrolados nos colé-
gios, destacados dentre os conversos e ali
aprendiam ao mesmo tempo o idioma e as
idéias - o idioma, para habilitá-los a viver
entre os portugueses, as idéias, para
prepará-los a ajudar os jesuítas na con-
versão de outros tantos pagãos. Juntamente
com eles estavam alguns jovens portugue-
ses de Portugal e do Brasil, e, dentro de
pouco tempo, alguns mestiços. Alguns des-
ses meninos (como eram chamados os jo-
vens dos colégios) obtinham licença para
entrar na Companhia. Viviam nos colégios
e, estudando verbos com sua Vulgata,
devassavam, sob as farfalhantes folhas de
palmeira, os intrincados segredos do latim.

A ideia de utilidade, de zelo apostólico, reveste-se, por isso,


no Brasil, dumas características muito particulares pela natureza
peculiar do público, ou melhor, dos públicos, a quem é dirigido o
apostolado. Os jesuítas têm além de dois públicos três aulas: a da
selva, a das casas, a dos colégios. Para cada uma das aulas escre-
ve-se numa ou em várias línguas
Vejamos agora, para tentar definir o papel do espanhol no
processo de apostolado, qual é o uso que Anchieta faz de cada
uma das línguas em que escreve.

No teatro:

O uso do tupi exclusivamente nas obras de Anchieta deter-


mina o conteúdo, o programa, a forma da instrução. No caso dos
Autos, o uso da língua tupi é condicionado por toda uma interrelação
com outro código. De aí a sua rebuscada elementaridade. O docere
apenas começa a conjugar-se.
Entre as composições em Tupi há três autos de catequese, a
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 115

saber: “Dia da Assunção, quando levaram sua imagem à Reritiba”;


“Dos mistérios do Rosário de Nossa Senhora” e “Na aldeia de
Guaraparim”.
“Dia da Assunção, quando levaram sua imagem à Reritiba”,
em 103 versos encena uma discussão entre um anjo e um diabo,
uma dança e um pequeno discurso dum anjo.
Algo maior, com 124 versos e mais complicado é “Dos mis-
térios do Rosário de Nossa Senhora”.
Paula Martins6 descreve-o assim:

[...] As meditações do rosário repre-


sentam alguma cousa de mais abstrato na
meditação popular. Instituição existente em
várias religiões e baseada num princípio
de contagem numérica, verificável , em
povos primitivos, na forma de colares de
dentes, pedras, sementes, etc., faz parte
da Igreja Católica desde 1208 [...]. A in-
tenção principal do rosário era divulgar
a saudação angélica simbolizada na “Ave
Maria”, repetida e com intervalos, onde
um Padre Nosso periodizava a série. Esse
tipo de devoção calava no espírito, tanto
pela frequência, quanto pelo ritmo da re-
petição.
[...] Os chamados “mistérios” consti-
tuíram quadros de valor teatral, com a
vantagem de não impressionarem apenas
pelo aspecto doloroso da sequência ob-
servada na Via Sacra, pois se enriquece-
ram com mistérios “gozosos” e “glorio-
sos”, sugestivos e edificantes.

As meditações do rosário deviam cons-


tituir motivo especialmente aproveitável no
teatro catequético, pois ensinavam, através
desses quadros, descritivos e objetivos, as
virtudes teologais.

Num nível sensivelmente superior há que situar “Na aldeia


de Guaraparim”. Esta é a mais longa peça do caderno de Anchieta
116 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

escrita exclusivamente em língua tupi 806 versos.


“Apresenta uma personagem original para o teatro indígena -
a Alma- e uma provável cena celestial, indícios de época avança-
da na catequese. Contém elementos de outras peças, o que suge-
re arranjo organizado à pressa e fixa a sua composição em data
posterior à delas.
Fornece dados etnográficos, como o comportamento dos
casais, a adoção de muitos nomes, à moda indígena, e indicações
geográficas, como a de aldeias não conhecidas na ocumentação
da época.
Lingüísticamente, revela flexibilidade na linguagem, rapidez
no diálogo e vocabulário relativamente mais rico que o das peças
tupis anteriores.”7

O uso do tupi e do português

As suas composições em Português e Tupi são: “A Dança


dos Reis” e “Recebimento, que fizeram os índios de Guaraparim
ao Padre Provincial Marçal Beliarte”.
A primeira, formal e conceptualmente poderia estar perfeita-
mente incluída entre as peças mais elementares do grupo anterior:
de facto, compõe-se de dez estrofes de cinco versos das quais só
uma está en português. É talvez uma das peças mais ingénuas de
Anchieta, mais para um público primitivo de índios que não que-
rem ser escravos.
A segunda, o “Recebimento, que fizeram os índios de
Guaraparim ao Padre Provincial Marçal Beliarte”, é uma peça de
289 versos, cujo conteúdo Martins resume assim “ No porto de
Guaraparim o P. Marçal Beliarte é recebido com um discurso de
agradecimento pela visita e boas-vindas à aldeia. Na igreja, dois
diabos mostram que os habitantes da aldeia são seus adeptos, tor-
nando inútil a visita do Provincial. O Anjo promete guardar o local,
expulsa os diabos e um índio quebra-lhes a cabeça. Dançam, em
seguida, dez meninos índios.”8
Esta última peça, embora conceptualmente esteja,
inclusivemente, a um nível inferior que “Dos mistérios do Rosário
de Nossa Senhora” e “Na aldeia de Guaraparim”, representa um
passo à frente no processo didáctico, pois dirige-se a um público
de índios capaz já de compreender o português.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 117

O uso do tupi, do português e do espanhol

São dois autos de catequese as composições em Português ,


Espanhol e Tupi, intitulados: “Na Festa de São Lourenço” e “Na
Festa do Natal”. A segunda é na realidade uma adaptação redu-
zida da primeira. “Na Festa de São Lourenço” “é a mais longa e
rica peça do caderno de Anchieta. Tanto a extensão do seu texto,
quanto o aparato literário e técnico de que se reveste, explicam o
êxito a ela atribuído, justificam uma sua adaptação reduzida e atra-
em, ainda hoje, a atenção dos estudiosos da história e da língua
nacional”, entre outras razões porque é “o mais longo documento
de tupi da costa até agora conhecido e efetivamente praticado em
fins do séc. XVI”.9
O auto começa com uma canção em castelhano. Seguem-se
as acostumadas cenas de diálogos entre anjos, santos e demónios
em tupi, tupi-português e tupi-castelhano. E no acto 4, por ocasião
do enterro de São Lourenço, surgem dois discursos catequéticos,
dirigidos sem dúvida a um público já muito instruído na religião
cristã. O primeiro em português, em oito estrofes de cinco versos,
e o segundo de 278 versos em castelhano, que constituem o nú-
cleo doutrinário desta obra que conclui com uma dança indígena.

O uso das línguas peninsulares

O uso exclusivo duma, doutra ou de ambas as línguas penin-


sulares situa-nos já noutro mundo: o mundo do colonizador. Aí
habitam os filhos dos colonos bem estabelecidos e os índios selec-
tos aculturados: é a universidade dos colégios do Brasil.
Entre as composições em Português há um auto de catequese
intitulado “Auto de Santa Ursula” ou, como consta do Caderno,
“Quando no Espírito Santo, se recebeu uma relíquia das onze mil
Virgens”. Diz o P. Hélio A. Viotti a respeito desta composição:
“Da produção dramática anchietana é a peça melhor elaborada.
Cheia de vivacidade e bom humor, encerra os ensinamentos de
uma longa vida de govêrno e conhecimento dos homens”. “Possui
incontestável dramaticidade e reflete bem, não apenas a forma-
ção mental e espiritual do autor, mas igualmente o nível intelectu-
almente mais refinado do auditório, a que foi apresentada, muito
diverso do ambiente das aldeias, a que foi destinado, por exemplo,
o Auto de S. Lourenço.”10
118 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Seus atores parecem ter sido estudan-


tes da escola dos Jesuítas e membros da
Confraria de S. Mauricio, sediada na igre-
ja de Santiago, em cujo adro se represen-
tou a parte principal do auto.”1 (p. 99)

Entre as composições em Espanhol há um auto de catequese


intitulado “Na Visitação de Santa Isabel”.

[...] é a última peça que Anchieta es-


creveu, toda em castelhano, cerca de um
mês antes de sua morte [...]
É um auto completamente diferente dos
outros, mais próximo dos de Gil Vicente: o
diálogo é mais longo e a parte do
espetáculo menor. Naturalmente teve em
vista o auditório e a conjuntura especial
para o qual o escrevia.12

O uso do latim.

O uso do latim era um exercício imposto aos eleitos para o


apostolado. Diz o Padre António Blazquez, numa carta datada da
Bahia em 1564:
“O estudo nunca nesta terra andou com tanto fervor (en-
tendendo-se entre os nossos Padres e Irmãos, que a gente de fóra
pouco se dá disso). Tem os nossos as suas conclusões nos sabbados
á tarde e a ellas se acham presentes o Padre Provincial com ou-
tros Padres. No outro sabbado veiu o Bisbo vel-os e tambem ar-
gumentar com elles, e, pela bondade do Senhor, para estudantes
Brasis fazem-n’o muito bem. São por todos, entre Padres e Ir-
mãos, onze, e porque a todos se désse o tempo necessario para os
seus estudos, lê o irmão Luis Carvalho pela manhã uma hora de
poesia do livro 2º da Eneida aos mais adiantados, posto que tenha
accidentes costumados; mas a caridade e necessidade fazem com
que tome em seus hombros esta carga ainda que seja tanto á seu
custo e trabalho, esperando que V. Revma., vendo esta falta, se
resolva a mandar-nos dessa provincia alguns Irmãos latinos que
ajudem aquelles que pouco podem”.13 O uso do latim escapa de
momento ao nosso interesse.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 119

Na Poesia

Vou-me limitar dentro da poesia à actividade contrafactística,


talvez a mais elucidativa do que pretendemos dizer. Para Anchieta
tanto vale a poesia tradicional, como a poesia culta, a poesia margi-
nal, ou as danças; tudo pode ser usado para a sua missão apostólica.
Anchieta compõe os seus poemas à margem de qualquer pretensão
artística; isso, evidentemente, não quer dizer que os seus poemas
não sejam apreciáveis sob uma perspectiva estética, mas a sua be-
leza não provém duma intencionalidade prévia.
Em geral, os poetas divinizadores apropriam-se das composi-
ções mais conhecidas do seu tempo. Isto é válido na Europa, mas
não o parece tanto entre os índios brasileiros que, naturalmente,
não conheciam nenhuma das composições.
Em trabalhos anteriores distinguíamos entre as composições
que têm como únicos destinatários os índios e as dirigidas aos
colonos. No primeiro caso, quando a cantiga é exclusivamente
dirigida ao público indígena que não pode em caso nenhum esta-
belecer relações entre o contrafactum e o seu modelo profano, os
jesuítas utilizavam não tanto cantares populares, mas outros pouco
conhecidos, embora utilizados nas suas escolas, nos quais o ele-
mento aproveitável e aproveitado é a música.
No segundo caso, tratava-se, em geral, de composições em
espanhol ou português que têm como origem uma cantiga muito
popular na Península porque se dirigem, como dissemos, a um
público de colonos ou a um público de colegiais da Companhia,
bem filhos de colonos ou índios, que podem estabelecer pontos de
contacto emocionais entre o pensamento exposto no poema pro-
fano e a significação religiosa do contrafactum..
Isto acontece, como dissemos, naqueles contrafacta de
Anchieta cuja origem temos podido determinar. Refiro-me aos
poemas intitulados: Cantiga por o Sen Ventura a Nosso Senhor
(Tupã ci porãgete) (25), Cantiga por el sin Ventura
(yanderubete Iesu) (26), Venid a suspirar con Jesús amado
(12v), El que muere en el pecado (18v) cujo original resõa tam-
bém em alguns fragmentos dos Autos: Na Vila de Vitória e da
Visitação, Mira Nero (94), Los que muertos veneramos (95v),
cujo metro está presente em outras composições, Já furtarão ao
moleiro o pelote domingueiro (158v), Polo Moleiro (Pitãgi
morauçubara) (169v).
120 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Resumindo sucintamente o que já foi exposto:


Os poemas podem-se reunir em dois grupos principais: os
dirigidos aos índios que não guardam relação com o poema origi-
nal, que são contrafacções incompletas, e os dirigidos a um públi-
co de colonos ou de colegiais, que são contrafacções completas
ou quase completas. Entre ambos os grupos situa-se um terceiro
no qual o poema original sofre diferentes tratamentos, de acordo
com o público ao qual vai dirigido.
Ao primeiro grupo (os dirigidos aos índios, que não guardam
relação com o poema original e que são contrafacções incompletas)
pertencem: Cantiga por o Sen Ventura a Nosso Senhor (Tupã ci
porãgete), Cantiga por el sin Ventura (yanderubete Iesu). Ao
segundo grupo pertencem os poemas Venid a suspirar, El que
muere en el pecado, Mira Nero e Los que muertos veneramos.).
Ao terceiro grupo (no qual o poema original sofre diferentes
tratamentos segundo o público ao qual vai dirigido) pertencem: Já
furtarão ao moleiro o pelote domingueiro, Polo Moleiro (Pitãgi
morauçubara); baseados nas glosas ao tema:

Já furtaram ao Moleyro
Seu Pelote domingueiro

obra de três autores, a primeira sem especificar e as seguintes


de António Leitão, Luís Brochado e João de Couto respectivamente.

Até aqui apresentámos um breve resumo das conclusões que,


até agora, à luz dos originais encontrados, nos tem sido possível
estabelecer. Mas não quero concluir esta contribuição sem
extrapolar estas conclusões a outros poemas cuja origem não con-
seguimos localizar. Refiro-me, em princípio, àqueles que come-
çam: Do Santíssimo Sacramento (O que pão, o que comida)
(9), S. Tomedemira O Dios infinito) (13), Cantiga & querendo
o alto Deus (yande canhemira yande rauçupa) (25v), Canti-
ga polo tom de Quien tiene vida en el cielo (Taçori yande
raira) (74v), Sobre el ciego amor (El buen Jesús me prendió)
(94v), Outra pola mesma toada. Esta se cantou estando S.
Lourenço nas grelhas (Por Jesú mi salvador) (95), Por graci
gco gte (Quando la muerte quería) (131), Por graci gco gte
(Eua yandeci ipi) (147v).
Ao primeiro grupo, (os dirigidos aos índios, que não guardam
relação com o poema original e que são contrafacções incomple-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 121

tas) pertenceriam: Cantiga & querendo o alto Deus (yande


canhemira yande rauçupa) (25v), Cantiga polo tom de Quien
tiene vida en el cielo (Taçori yande raira) (74v); ambos poe-
mas, em tupi, têm como referentes declarados dois poemas: Que-
rendo o alto Deus e Quien tiene vida en el cielo que têm toda
a feição de serem canções religiosas cantadas nos Colégios da
Companhia. Não é preciso dizer que não encontramos, e não te-
mos demasiadas esperanças de encontrar os originais.
Por graci gco gte (Quando la muerte quería) (131), Por
graci gco gte (Eua yandeci ipi) (147v) pertenceriam ao terceiro
grupo, no qual o poema original sofre diferentes tratamentos se-
gundo o público ao qual se dirige. Encontramos assim um tão cu-
rioso quanto involuntário paralelismo com os poemas baseados no
Moleiro, (que também pertencem ao terceiro grupo dos que têm
referente conhecido).
No segundo grupo, (poemas dirigidos a um público de colo-
nos y colegiales, contrafacções completas ou quase completas)
poderiamos incluir: Ó que pão, ó que comida, um precioso hino à
Eucaristia, cujo referente provável é um chapirón que Diego
Sánchez de Badajoz traduz para o divino14 :
Otro cantar para los muchachos cantar y bailar en el
mismo día (Corpus) al ritmo del chapirón.

Dios del cielo en pan se muestra


Oh que divino manjar

S. Tomedemira (O Dios infinito) (13), cujo referente talvez


seja preciso procurar, (embora não o tenha encontrado) nas can-
ções que cantavam os romeiros que visitavam a igreja de Sto
Tomé, perto de Coimbra, nos anos em que Anchieta aí estudava.
Sobre el ciego amor (El buen Jesús me prendió) (94v), y
Outra pola mesma toada. Esta se cantou estando S. Lourenço
nas grelhas (Por Jesú mi salvador) (95), são dois poemas em
espanhol, dirigidos também provavelmente a um público de colo-
nos, cujo poema original profano não conseguimos encontrar, em-
bora eu não tenha ainda perdido a esperança.
Até aqui, graças aos originais profanos, pudemos estabelecer
uma série de hipóteses em volta da intencionalidade dos contrafacta
e do seu processo de produção. Essas hipóteses, como no caso do
teatro, também polarizam em dois blocos: línguas peninsulares/lín-
guas indígenas as implicações que tem o uso duma determinada
122 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

língua. E contribuem complementarmente com a obra dramática,


para definir qual é o papel do espanhol na estratégia evangelizadora
da Companhia de Jesus no Brasil nos primeiros séculos da colónia.
Observando o conceito de utilitas desde uma outra perspec-
tiva, complementar àquela que até agora deduzimos dos proces-
sos de contrafacção de Anchieta, verificamos que dos contrafacta
que têm o seu

Destino em tupi (6),


procedem do espanhol (4)
procedem do português (2).

Dos quatro que procedem do espanhol, um, incluído no Auto


de S. Lorenzo e não recolhido por Cardoso, é um aleluya primiti-
vo e procede duma clara canção religiosa; dois são canções, ou
melhor orações em tupí, uma a Jesús e outra a Maria, procedentes
duma cancão áulica de tema clássico, de pouca difusão, limitada
provavelmente aos seminários da Companhia em Portugal. Só uma,
Por graci gco gte., que partilha o seu destino com outro poema
em espanhol, parece proceder dum romance laico e popular, tal-
vez pertencente ao ciclo de Los Infantes de Lara.
Dos dois que procedem do português, um é uma canção em
louvor de Maria procedente de outra, Querendo o alto Deus,
provavelmente limitada aos seminários da Companhia em Portu-
gal. A outra, que tem um paralelismo com o caso anterior de Por
graci gco gte porque partilha o seu destino com outro poema em
português, intitula-se polo Moleiro e procede dum poema laico e
popular. Quer dizer que nesse total de 6 poemas com destino em
tupi, encontramos dois cujos modelos espanhol e português
producem, além do resultado em tupi, outro na língua de origem e
curiosamente ambos são de tema e feição populares e laicos.
Assim podemos afirmar que todas as canções com destino
exclusivo em tupi têm como modelo também exclusivo canções
religiosas ou áulico-religiosas conhecidas no ámbito da Companhia.

Destino em português (2)


procedem do português (2)

Um poema com destino em português é polo Moleiro, que


acabamos de descrever. É uma alegoria dirigida à comunidade
portuguesa entre quem a música devia ser muito popular: Lem-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 123

bremos que há três versões populares do mesmo tema e a sua


frequência de uso levou possivelmente a Anchieta a criar outra
versão em tupi para que os índios aproveitassem a música que,
sem dúvida, pela sua frequência de uso conheciam.
A outra, um canto à Eucaristia, dirigida também à comunida-
de portuguesa, é mais culta, de origem profana. Refiro-me a “O
que pão...” da qual falarei mais tarde.

Destino em espanhol

Pelo contrário, do resto, as seis que têm a sua origem e o seu


destino exclusivamente em espanhol, (repare-se no rotundamente
revelador das cifras) são na sua totalidade canções populares de
amplíssima difusão na unidade cultural peninsular.
Das outras duas, uma tem a sua origem numa canção de ro-
meiros a Sto Tomé de Mira e a outra num romance cavalheiresco,
recuperando essa qualidade na versão espanhola, embora a perca
na tupi.
A conclusão imediata é que, tanto na origem como no destino
a maior parte dos contrafacta identificados total ou parcialmente
são em espanhol e de origem e conteúdo cultos.

Resumindo:
Todas as canções com destino exclusivo em tupi (4) têm como
modelo também exclusivo canções religiosas ou áulico-religiosas
conhecidas no âmbito da Companhia.
Todas as canções com destino exclusivo em português (2)
são de origem popular dirigidas à comunidade portuguesa onde
deviam ser muito populares música e letra.
A imensa maioria (7) dos contrafacta identificados total ou
parcialmente são em espanhol e de origem e conteúdo cultos.
A conclusão mais evidente que podemos tirar da obra lírica
de Anchieta, seja esta contrafactística ou não, é que as composi-
ções em espanhol predominam em quantidade, em popularidade e
em qualidade tanto na origem como no destino.
A qualidade destas composições em espanhol em relação ao
resto da produção literária de Anchieta seria um elemento distinti-
vo duma finalidade superior no plano didáctico.
Esta actividade situar-se-ia no ponto culminante da instrução
catequética destinada aos filhos dos colonos e aos índios que teri-
am merecido aceder a uma formação conducente ao ingresso nos
124 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

colégios da Companhia.
Deste modo deveremos entender a carta de Nóbrega ao Padre
Mestre Simão datada em 1552:

[...]
Já tenho escripto por vezes a Vossa
Reverendissima como nestas partes
pretendiamos criar meninos de Gentio, por
ser elle muito, e nós poucos, e sabermos-
lhe mal fallar em sua lingua, e elles de tan-
tos mil annos criados e habituados em
perversos costumes, e por este nos parecer
meio tão necessario á conversão do Gentio:
trabalhamos por dar principio a casas, que
fiquem para emquanto o mundo durar,
vendo que na India isso mesmo se pretende,
e em outras partes muitos collegios, em que
se criem soldados para Christo.15

Dizíamos anteriormente que os jesuítas têm, além de dois


públicos, três aulas: a da selva, a das casas, a dos colégios. Para
cada uma das aulas escrevem em uma ou várias línguas.
Era pois nestes colégios, onde se criavam soldados para Cristo,
onde apreendiam juntamente com a doutrina o uso das línguas
peninsulares: o português, ensinado também nas casas, e o espa-
nhol, mais limitado aos futuros soldados de Cristo. O espanhol
cumpria assim uma função catequética superior e pretendia am-
pliar as possibilidades de apostolado dos novos irmãos.
Uma parte da sua educação, provavelmente a última, antes da
latina, complementar das línguas peninsulares, mas com uma finali-
dade menos prática. A estes estudiosos do latim parece destinada
toda a obra latina de Anchieta e especialmente os poemas
catequéticos.

Poemas catequéticos:

Dentro de toda esta actividade literária há um subgénero,


amplamente practicado por Anchieta e pela Companhia, que são
os chamados poemas catequéticos, que desempenhavam uma
função particularmente específica no processo de educação dos
futuros sacerdotes. Estes poemas catequéticos de Anchieta tive-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 125

ram uma larguíssima difusão nos estádios superiores da catequese,


ilustrando os temas centrais do dogma cristão e associados
logicamente aos catecismos.
Os primeiros catecismos que circularam pelo Brasil foram
primeiro o fruto dum processo de tradução iniciado já em 1549,
ano em que os jesuítas chegaram ao Brasil. Afirma o Padre Meliá:

Il est normal que les premières


traductions qu’on fait dans une langue
étrangère soient à revoir par la suite. Les
prières traduites par le Père Navarro furent
bientôt améliorées par le Frère Antonio
Rodrigues, qui dit-on parlait la langue tupi
mieux que les indiens eux-mêmes. Vers 1574,
Leonardo do Vale, qui était lecteur de
langue tupi au collège de Bahia, avait écrit
une “Doutrina na Língua do Brasil”,
traduction et adaptation de celle, très
fameuse à cette époque lá au Portugal, du
Père Marcos Jorge. Auparavant on parle
déjà en 1565 d’un catéchisme en forme de
dialogue du Père Braz Lourenço, qui servait
pour la catéchèse des indiens. Dialogues
sur la doctrine chrétienne, chants,
explications de l’évangile...étaient la for-
me ordinaire de cette prèmiere catéchèse en
langue brésilienne. De cette période rien
n’a été imprimé; le premier catéchisme
complet est celui de Araujo, qui est déjà
l’aboutissement de longues annés d’efforts
et d’essais souvent anonymes.16

Este catecismo de Araújo, publicado em 1618,17 e reeditado


em 1686,18 é o resultado dos esforços colectivos para adaptar o
catecismo “que nesta lingoa antigamente escreverão alguns padres
doctos e bons lingoas” às novas circunstâncias. Inclui, no começo
umas Cantigas na lingoa, pera os mininos da Sancta Doctrina.
Feitas pello Padre Christouão Valente Theologo, & mestre da
lingoa, estão escritas em tupi e dedicadas aos temas principais da
lírica catequética anchietana e em geral dos jesuítas. São as titula-
das: Do nome santissimo de IESV, Ovtra em louvor da Virgem,
126 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Ovtra do Anio da Guarda, Ovtra do Santissimo Sacramento.


Naturalmente o tema do Santíssimo Sacramento é o assunto
fulcral da religião cristã e pode perfeitamente servir de exemplo
para aquilo que estamos a dizer.
Da sua continuidade no labor catequética dirigida aos colegiais
da ideia o facto de que Anchieta utilizou esta canção para contrafa-
ze-la, partindo duma versão a lo divino em espanhol. Refiro-me a
Ó que pão, ó que comida citado supra, no grupo dos poemas
dirigidos a um público de colonos e de colegiais, (contrafacções
completas ou quase completas). O seu referente provável é um
chapirón, dança de provável origem portuguesa, redigida em espa-
nhol e que Diego Sánchez de Badajoz traduziu para o divino19 :
Otro cantar para los muchachos cantar y bailar en el
mismo día (Corpus) al ritmo del chapirón.

Dios del cielo en pan se muestra


Oh que divino manjar

Anchieta, além de o contrafazer para o português, tradu-lo, a


partir da sua própria versão, para o latim.20

DIVINUM PANEM

Divinum panem, caelestia pocula nobis


Sacra reis omni porrigit ara die21 .

O seguinte catecismo que se publica no Brasil é obra do Pa-


dre P. Luis Vicencio Mamiani: Catecismo / da Doutrina / Christãa
/ na Lingua Brasilica / da Nação Kiriri, (bilingue português -
kiriri), publicado em 1698, inclui antes do prólogo umas CANTI-
GAS NA LINGUA KIRIRI22 para cantarem os Meninos da Dou-
trina com a versão em versos Castelhanos do mesmo metro.23
São as tituladas: Do nome Santissimo de IESVS, Em louvor
da Virgem Santissima Mãy de Deos, Do Santissimo Sacramento
da Eucharistiae paralela e curiosamente outra em latim, O Stabat
Mater dolorosa, vertido na Lingua Kiriri Sobre nossa Senhora ao
pé da Cruz. Isto dá-nos ideia da continuidade do espanhol como
língua franca de catequese pois, juntamente com o latim, está em
plena vigencia ainda nos finais do século XVII. Tanto o espanhol
quanto o português serviram simultaneamente de línguas francas
entre os colegiais e padres e irmãos da Companhia na America
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 127

hispana. Não devemos esquecer que a primeira missão dos jesu-


ítas no Paraguay se fez pelos Padres Juan Saloni, catalão, Tomás
Field, irlandês, e Manuel Ortega, português. Chegaram a Asunción
a 11 de agosto 1583.

Quand les Pères Saloni, Field et Ortega


sortirent du Brésil en 1586, le travail
linguistique que les jésuites de cette
province avaient accompli était
considérable. Le principe d’après lequel la
catéchèse doit être faite dans la langue des
indiens y étsit pleinement acquis. Le tupi se
présentant comme la lingoa geral, parlée et
comprise par la plupart des indiens avec
lesquels les jésuites étaient entrés en
contact, on porta tous les efforts sur cette
langue.24

Sobre esta missão, o padre Meliá revela-nos o seguinte:

Un motif dórdre linguistique est à


l’origine de cette mission. Le Père Barzana
de la province du Pérou était en train
d’apprendre aux Pères récemment arrivés
du Brésil les langues lule et tonocote, qui
devaient les rendre aptes pour les ministères
auprès des indiens de la région, quand il
tomba malade et ne put poursuivre sa tâche;
or ces Pères connaissaient assez bien la
langue dite générale du Brésil, c’est-à-dire
le tupi, peu différente de la langue guarani
parlée par le groupe ethnique le plus
nombreux du Paraguay; ici donc la langue
ne leur serait pas un obstacle.
Pendant quelques années les Pères
Ortega et Field surtout, le Père Saloni
restant davantage dans la ville de
Asunción, parcourront les forêts
paraguayennes, et en même temps qu’ils
visitent les bourgades des espagnols
jusqu’a Ciudad Real et Villarrica,
aujourd’hui territoire du Brésil, ils essaient
128 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

de convertir les indiens que habitent ces


contrées et instruisent ceux qui, bien que
baptisés en hâte par un prêtre de passage,
ignorent tout de la religion chrétienne. Il
n’y a pas de doute qu’ils employaient la
langue indienne pour la prédication et la
catéchèse.25

Assim - em palavras de Arno Alvarez Kern26 - “Respectiva-


mente um português, um catalão e um irlandês [...] representam a
universalidade de nações que caracterizou à Companhia de Jesus,
bem como posteriormente a história das Missões Guaranis.”

Notas
1
Serafim Leite, no tomo V, da sua História da Companhia de Jesus
no Brasil, afirma: “A esta Aldeia andam unidas a Gramática e o Catecismo
Kiriri, feitos pelo P. João de Barros, mas que nesta Aldeia estudou e prepa-
rou para a imprensa o P. Mamiani, sob cujo nome correm mundo”. p. 326.
2
Lima, Luiz Soares de - “Anchieta: o Poliglota, o Gramático e o
Escritor nos Nossos Começos”, in VV.AA. - “Estudos universitários de
língua e literatura. Homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo
Filho. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. 267-289 (pp. 268 y 269)
3
Cioranescu, A. José de Anchieta, escritor. La Laguna, Instituto de
Estudios Canarios, 1987. p. 13.
4
Vid. Meliá, Bartolomeu, S. J. La création d’un langage chrétien
dans les réductions des guarani au Paraguay I Thèse pour le doctorat
en sciences religieuses. Université de Strasbourg. Faculté de Théologie,
1969. p. 118.
5
Marchant, Alexander, 1912- Do escambo à escravidão: as rela-
ções econômicas de portugueses e índios na colonização do Brasil,
1500-1580. Tradução de Carlos Lacerda.- 2. edição.- São Paulo: Ed. Na-
cional; [Brasília]: INL, 1980. p. 82
6
José de Anchieta , S.J. Poesias . Manuscrito do séc XVI, em
português, castelhano, latim e tupi. Transcrição, traduções e notas de
M. de L. de Paula Martins. São Paulo, 1594. p. 583.
7
Ibidem. p. 603.
8
Ibidem. p. 665.
9
Ibidem. p. 681.
10
Cit pelo P. Armando Cardoso, in P. Joseph de Anchieta S.J. Tea-
tro de Anchieta, Obras Completas 3. volume. Originais acompanhados
de tradução versificada, introdução e notas pelo P.....São Paulo, Edições
Loyola, 1977. pp. 98-99
11
Vid. P. Joseph de Anchieta S.J. Teatro de Anchieta, Obras Com-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 129

pletas 3. volume. Originais acompanhados de tradução versificada, in-


trodução e notas pelo P. Armando Cardoso. op. cit. p. 99
12
Ibidem. p. 107.
13
Cartas avulsas. 1550-1568 / Azpilcueta Navarro e outros. Belo
Horizonte. Itatiaia. São Paulo. Editora Universidade de São Paulo, 1988.
Carta do Padre Antonio Blasquez do Collegio da Bahia de Todos os
Santos do Brasil Para Portugal e Escripta a 13 de Setembro de 1564. p. 454.
Acrescenta em nota: “Esse irmão Luis Carvalho veiu em 63 com o Pe.
Quiricio Caxa e os irmãos Balthazar Alvares e Sebastião de Pina (Carta LI)
por doente, e não logrando saude, tornou a Portugal em 65. Era “latino”
como diziam os padres (Carta LV) pois que lia, ou era lente, dando aula, de
poesia, do 2º. livro da “Eneida”, Vergilio, no Brasil, em 1564.” p. 459
14 Recopilación en metro, 156.
15
Vid. Nóbrega, Manoel da. Cartas do Brasil, 1549-1560. Belo
Horizonte, Itatiaia, São Paulo,. Editora da Universidade de São Paulo,
1988. p. 137
16
Vid. Meliá, Bartolomeu, S. J. La création d’un langage chrétien
dans les réductions des guarani au Paraguay I. op. cit. p. 39.
17
ARAÚJO, António de - CATECISMO / NA LINGOA /
BRASILICA, NO QVAL / SE CONTEM A SVMMA / DA DOCTRINA
CHRIS-/ tã. Com tudo o que pertence aos / Mysterios de nossa sancta Fè
/ & bõs custumes. / Composto a modo de Dialogos por Padres / Doctos,
& bons lingoas da Compa- / nhia de IESV. / Agora nouamente concerta-
do, orde- / nado, & acrescentado pello Padre Antonio d’ Araujo Theologo
/ & lingoa da mesma / Companhia. / [...] / Em Lisboa por Pedro Crasbeeck,
ãno 1618,
18
ARAÚJO, António de - CATECISMO / BRASILICO / Da Doutri-
na Cristãa, / Com o Ceremonial dos Sacramentos, & / mais actos
Parochiaes. / COMPOSTO / Por Padres Doutos da Companhia de / JE-
SUS, / Aperfeiçoado & dado a luz / Pelo Padre ANTONIO DE ARAUJO
/ da mesma Companhia. / Emendado nesta segunda impressão / Pelo
P.BERTHOLAMEU DE LEAM / da mesma Companhia. / LISBOA. / Na
officina de MIGUEL DESLANDES / M. DC. LXXXVI,
19 Recopilación en metro, 156.
20
Anchieta, Pe Joseph de, S.J. Lírica Portuguesa e Tupi. Obras
Completas-. volume-I. Originais em Português e em Tupi Acompanhado
de Tradução Versificada, introdução e anotações ao Texto pelo Pe. Ar-
mando Cardoso, SJ. São Paulo, Edições Loyola, 1984. p. 102
“[...] A estima que A. lhe votava o levou a traduzir ele próprio esta sua
composição em latim culto, parafraseando-a ao lado daqueles hinos (cfr.
Poemas Eucarísticos). Particular significativo: é a única poesia portuguesa
avulsa que se encontra em autógrafo. [...] Sua estrofe e sistema de rimas
são singulares, talvez invenção de A., pois ele os reproduz no Poemeto da
Assunção em ritmos medievais latinos (cfr. Poemas Eucarísticos).”
21
Anchieta, P. Joseph de S.J. Poemas Eucarísticos e Outros. De Euca-
130 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

ristia et aliis. Poemata Varia. Obras Completas, 2. Volume. Originais Lati-


nos, Acompanhados de Tradução Portuguesa, Introdução e Notas Pelo
Padre Armando Cardoso S.J. São Paulo, Edições Loyola, 1975. (pp. 74-85).
22
Vid. FR. BERNARDO DE NANTES, Capuchinho frances. Missi-
onário Apostólico no Brasil. KATECISMO / INDICO / DA LINGVA
KARIRIS, / ACRESCENTADO DE VARIAS / Praticas doutrinaes, &
MORAES ADAPTA_ / das ao genio, & capacidade dos / Indios do
Brasil, / PELO PADRE / Fr. BERNARDO DE NANTES, / Capuchinho,
Prégador, & Missionario / Apostolico; / OFFERECIDO / AO MUY ALTO,
E MUY PODEROSO REY / DE PORTUGAL / DOM JOAÕ V. / S.N. QUE
DEOS GUARDE, / LISBOA, / Na Officina de VALENTIM DA COSTA /
Deslandes, Impressor de Sua Magestade. / M.DCCIX.
No prólogo Ao Leytor diz:
“Ver o titulo deste katecismo, poderà ser , Amigo Leytor, te pareça
logo ser obra inutil à vista de outro katecismo na mesma lingua, qual pou-
cos annos ha sahio a luz, porêm se quizeres tomar o trabalho de combinar
hum com o outro, mudaràs logo o parecer; porque veràs que como ha em
Europa nações de differentes linguas, com terem o mesmo nome, assim
tambem os ha no novo Orbe, como são os Kariris do Rio de S. Francisco no
Brasil, chamados Dzubucua, que são estes, cuja lingua he tão differente da
dos Kariris chamados Kippea, que são os para quem se compoz o outro
Katecismo, como a lingua Portugueza o he da Castelhana...”
Este catecismo também traz uma cantiga sobre o Santíssimo Sacra-
mento
Pelo Padre Fr. Martinho de Nantes
conditor alme syderum.
Capuchinho.
Iheclite no Padzuârè Martinho Capuchinho.
da qual copiamos a primeira estrofe[pp.152-167]

Cântico Sobre o Mysterio da Kamara espiritval tvpam, mo


Encarnação do Verbo Divino, jvviclite nhinho do dse ho mo
Igreja, katsea, mo wo kabamara

I I
Cantemos, Christãos, alegres Dokamara Christãos han y,
A Deos Filho mil louvores, Inhûra túpam diwjli
O qual de Maria Virgem o dsého do quemâplea
Por nòs nasce, & se fez homem. Mo imuddhu Virgem Maria.
23
Sobre Mamiani escreve Inocéncio: “Segundo uma das interes-
santes notas que acompanham a descripção das obras d’este auctor na
Bibliographia da lingua tupi ou guarani, pelo sr. Valle Cabral 9 p. 14), o
padre Luiz Vicencio Mamiani della Rovere pertencia a uma illustre familia
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 131

de Pesaro, nascêra a 20 de janeiro de 1620 e entrára na companhia de


Jesus da provincia de Veneza a 11 de abril de 1668. Depois de concluidos
os estudos, partira para o Brazil, e ahi se entregára a conversão dos
povos selvagens e particularmente dos denominados kiriris. Constava
que ainda vivia em Roma por 1725.”
24
Vid. Meliá, Bartolomeu, s. J. La création d’un langage chrétien
dans les réductions des guarani au Paraguay I op. cit. p. 38
25
Vid. Meliá, Bartolomeu, s. J. La création d’un langage chrétien
dans les réductions des guarani au Paraguay. I pp. cit. pp. 36-37.
26
Vid. Arno Alvarez Kern. Ações evangelizadoras e culturais de
missionários portugueses e espanhóis no Rio da Prata. In Actas do
Congresso Internacional de História Missionação Portuguesa e Encon-
tro de Culturas. Vol. II. Braga, 1993. p. 476.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 133

O primitivismo literário de influência


brasileira na poesia de Angola
Salvato Trigo,
da Universidade Fernando Pessoa

As relações entre Angola e o Brasil começaram por ser pauta-


das, numa primeira fase, pelo negócio negreiro, especialmente ba-
seado em arimos diversos, discretamente ligados a alguns missioná-
rios em sintonia com os movimentos brasileiros de defesa da isen-
ção do índio do trabalho escravo, a que outros missionários aí em-
prestavam a sua voz. A partir de 15 de agosto de 1648, essas rela-
ções passaram a ter uma importante vertente política, militar e religi-
osa, criando uma considerável dependência de Angola relativamen-
te ao Brasil, pelo menos até ao célebre governo de Francisco
Inocêncio de Sousa Coutinho, iniciado em 1764.
Na verdade, a intervenção da armada de Salvador Correia
de Sá, (da família do famoso Estácio de Sá), vinda do Rio de
Janeiro, para libertar Angola dos Holandeses que a dominavam,
desde 1641, permitiu que a Fortaleza de S. Miguel de Loanda
fosse resgatada, restabelecendo-se, assim, a soberania portugue-
sa nessa colónia, em 15 de Agosto de 1648. A coroa de Lisboa,
enfraquecida aqui pela resistência ao domínio filipino, passou, por
assim dizer, para o Brasil a responsabilidade de intervir em Angola
e, assim, resolver um problema à época crucial para a já próspera
economia brasileira do ciclo do engenho, qual era a necessidade
de permanente abastecimento de mão-de-obra escrava.
Esse abastecimento, prejudicado pelo domínio holandês, era, sem
dúvida, vital para o Brasil e, por extensão, para Portugal.
Não vamos, por não estar nos horizontes deste estudo, ocu-
par-nos destas questões mais históricas do relacionamento de
Angola com o Brasil. Para os fins que perseguimos importa-nos
sobretudo rastrear a influência política e cultural que o Brasil terá
134 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

exercido sobre Angola a partir desses meados do séc. XVII até


ao último quartel do séc. XVIII, a que se seguiu um interregno de
quase meio século ate à Lei Áurea.
Tal influência política e cultural traduzia-se, designadamente,
pela interferência directa do Brasil na nomeação de governadores
- gerais e de responsáveis militares, mas também na subordinação
de algumas terras de Angola à autoridade religiosa de certas cida-
des brasileiras. Se, até ao último quartel do séc. XVIII, as rela-
ções angolano-brasileiras tinham uma base essencial e exclusiva-
mente económica que, como se disse, o tráfico negreiro sustenta-
va, a partir daí entra-se na fase de um relacionamento também
cultural, na mais lata acepção do conceito de cultura. Na realida-
de, parece ter sido com os exilados da Inconfidência Mineira, ex-
pulsos para Angola, que irá dar-se início a um interesse mais cul-
tural pelo Brasil, o que, aliás, Gregório de Matos, o satírico poeta
baiano, também ele exilado no séc. XVII, havia tentado sem gran-
de sucesso. Desta feita, porém, ou porque tivessem vindo mais ou
porque as condições contextuais fossem melhores, o interesse pela
cultura e pela literatura do Brasil crescerão exponencialmente. É
que uma boa parte dos inconfidentistas idos para Angola era de
intelectuais esclarecidos e letrados que, por força desse estatuto
agitaram a morrinha da vida cultural angolana que, nesse tempo,
teria como principais protagonistas alguns militares e um que outro
funcionário da administração pública.
Não obstante, os resultados desse contágio cultural poderem
ter sido consideráveis, a verdade é que ele (o contágio) não foi
responsável pelo despertar serôdio de uma consciência cultural e
política nacional que, no caso de Angola, só emergería no séc.
XIX já num contexto mais claro.
O governador-geral Sousa Coutinho, dando mostras de visão
estratégica sustenta a necessidade de reduzir, se não neutralizar, a
pesada influência económica e política que o Brasil exercia em
Angola. Conseguiu parcialmente os seus objectivos afirmando uma
autoridade praticamente incontestada, na defesa de interesses pró-
prios da colónia, fora da lógica da cooperação com o Brasil. Aliás,
este assomo de angolanismo colonial tinha já um precursor em
João Fernandes Vieira, o governador “brasileiro” que, modelando
a sua administração pela do Brasil, procurou sanear o governo dos
“germes deletérios da governação ultramarina” porque sabia que
“não poderia manter-se o domínio (português de Angola) sem bases
económicas estáveis”. Era, todavia, visto no Brasil como um
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 135

indianista confesso, tendo, por isso mesmo, dado um impulso con-


siderável ao movimento dos “resgatados africanos” que atraves-
saram em barcos negreiros o Atlântico sul. Destinava-se essa
política a obter fortes recursos financeiros para o desenvolvimen-
to local da colónia e, assim, diminuir paulatinamente a sua depen-
dência económica do Brasil. Diga-se, entretanto, que Fernandes
Vieira beneficiou, para o efeito, da acção desenvolvida pelo seu
antecessor, Luís Martins de Sousa Chichorro, o homem que, em
12 de Outubro de 1656, recebeu a submissão da celebrada Rainha
Jinga, da Matamba, personagem que alimentou até aos nossos
dias o imaginário poético de muitos dos escritores angolanos.
Esta política de afirmação de uma autoridade local própria
seguiu-a também um outro governador “brasileiro”, André Vidal
de Negreiros, o estratega da defesa de Angola contra os ataques
da pirataria que se acentuaram, após a expulsão dos Holandeses,
e que punham em causa a estabilidade da vida económica da co-
lónia e a sua ligação comercial ao Brasil.
A coroa portuguesa ficava, entretanto, um pouco à margem
deste relacionamento económico Angola-Brasil e dos seus efeitos
na colónia africana, especialmente aqueles que se sentiram no
hinterland centro-sul da região de Benguela, durante a governação
de João Fernandes Vieira que, de alguma forma, facilitou o apareci-
mento de grupos locais fechados muito ligados a congéneres
brasileiros e que serviram de semente ao futuro movimento dos
Kuribekas benguelenses, nos séc. XVIII e XIX, espécie de exten-
são local da maçonaria brasileira. A coroa portuguesa despertaria,
entretanto, e não da melhor forma, para a administração directa da
colónia, quando D.Afonso VI nomeou governador Tristão da Cu-
nha, cuja administração foi catastrófica na relação com os sobados
gentios, fontes insubstituíveis de abastecimento de “peças” para a
pujante economia brasílica. Dois anos após a sua posse, Tristão da
Cunha é obrigado a fugir de Angola devido a uma sedição militar,
sendo, então, substituído, em 4 de Novembro de 1668, pelo Conde
de Alvor, Francisco de Távora, que aos 22 anos passa a ter respon-
sabilidade de capitão-general e de governador de Angola.
Francisco de Távora exerceu um governo extremamente
positivo para os interesses da colónia que realinhou de novo com o
Brasil. Mereceu bem o cognome de “Menino Prudente” com que
os sectores económicos e políticos de Angola o brindaram, teste-
munhando o equilíbrio com que conduziu a sua administração. A
braços com sublevações várias dos nativos, herdadas em grande
136 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

parte do governo do seu antecessor, Francisco de Távora, ele e o


governador e capitão-general do Brasil, Afonso Furtado de Cas-
tro de Rio e Mendonça, primeiro Visconde de Barbacena, organi-
zaram uma expedição militar, vinda do Rio de Janeiro, durante o
ano de 1673, para submeter sobas rebelados contra a estratégia
negocial dos negreiros que enxameavam o território angolano,
apresando mão-de-obra para as plantações de açúcar.
Esta vinculação de Angola com o Brasil e o entretecimento de
relações políticas, económicas e militares daí advenientes, seria con-
tinuada e aprofundada pelos governadores a vir, normalmente à
media de um cada triênio. Refira-se que esse aprofundamento teve,
de novo uma boa expressão com Lourenço de Almada, que, em 20
de novembro de 1705, tomou posse do governo de Angola que
deixou em 4 de outubro de 1709, para partir para o Brasil para
exercer idêntico cargo, a partir de 1710. O sucessor de Lourenço
de Almada, que em Angola ficou conhecido como moralizador dos
negócios e dos costumes e por isso incómodo para a burguesia das
duas margens do Atlântico Sul, foi António de Saldanha de
Albuquerque Castro de Mesquita Lobo de Andrade de Ribafria,
outro brasileiro que se distinguiu, sobretudo, pela luta contra a pirata-
ria e contra as guerras tribais e do Kuata-Kuata desenfreado.
Poderíamos continuar a fazer o inventário destas ligações
administrativas de Angola ao Brasil que tiveram em Rodrigo César
de Meneses, antes governador de São Paulo, João Jacques Ma-
galhães e António Almeida Soares Portugal Alarcão Eça e Melo,
Conde de Lavradio, os últimos três protagonistas, antes que se
entrasse no chamado período do fomento pombalino iniciado com
António Álvares da Cunha, Conde da Cunha, em 1753. Não vale-
rá, porém, a pena, porque já temos matéria suficiente para
contextualizar o ambiente político-cultural angolano-brasileiro que
poderia potenciar uma influência no domínio da expressão literá-
ria, que, todavia, não existiu naquela colónia de África, se uma
influência no domínio da expressão literária, que, todavia, não existiu
naquela colónia de África. se não a partir de 1845, pela introdução
tardia do prelo pelo Governador Pedro Alexandrino da Cunha.
Doutro modo, não se compreenderia por que motivo Gregório de
Matos, degredado em Angola nos últimos anos da sua vida, não
teve seguidores ou epígonos de uma poesia, como a sua, burlesca
e satírica quanto bastava, e cáustica na crítica à política de admi-
nistração colonial e militar portuguesa.
Aliás, Gregório de Matos, estando em Loanda, em 1694, pôde
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 137

testemunhar uma insurreição militar de tropas mal pagas e maltra-


pilhas com que teve de lidar o governador Henriques Jacques de
Magalhães. Esse testemunho serviu-lhe para vergastar com a sua
fácil verve poética a degenerescência política e moral da colónia
de Angola, por semelhança, aliás, com o que havia feito em diver-
sas ocasiões quanto ao governo da Bahia e do Brasil. Se Gregório
de Matos não deixou epígonos, pelo menos conhecidos, em Ango-
la, isso também pode significar que a indigência cultural no seu
tempo de degredo, seria muito grande e, por isso, os grupos com
alguma capacidade para as musas (militares missionários e um
que outro funcionário. Isto é, não haveria em Angola destes finais
do sec. XVII condições culturais para a emergência de uma acti-
vidade literária por parte dos filhos da terra, o que, aliás, transparece
claramente da História Geral das Guerras Angolanas (séc.XVII)
de António de Oliveira Cadornega, que, tendo aí vivido por mais
de meio século, desde o governo de Pedro César de Meneses
(1639) até a administração de D. João de Lencastro (1691), não
conseguiu registar dessa actividade mais do que a Décima (1647)
do capitão António Dias de Macedo, filho da terra, que não foi
além de um hesitante texto crítico-satírico sobre a arrogância de
alguns administradores de segunda linha.
Uma explicação possível para essa indigência poderá ser tam-
bém o facto de, então, não existir em Angola ainda uma sociedade
de base mulata ou parda como a que existia no Brasil e da qual
Gregório de Matos foi, seguramente, o primeiro poeta, pondo em
destaque as suas qualidades, designadamente, as intelectuais e de
beleza, para exasperação dos europeus:

É parda de tal talento,


Que a mais branca e a mais bela,
Poderá trocar com ela
A cor pelo entendimento.

Mas, se, por um lado, os promovia poeticamente, por outro


lado, também os criticava:

Muitos mulatos desavergonhados,


Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Era, assim, descrita a Bahia degradada nos costumes políti-


138 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

cos e sociais da época, minados por uma fidalguia que o mesmo


Gregório de Matos, aliás, nascido numa abastada família de senho-
res de escravos, filho de Gregório de Matos, fidalgo da série de
Escudeiros em Ponte de Lima, e de D. Maria da Guerra, “matrona
da Bahia”, zurziria no célebre soneto “A Fidalguia do Brasil”:

Há cousa como ver um Paiaiá


Mui prezado de ser caramuru,
Descendente do sangue de Tatu,
Cujo torpe idioma é cobé pá? (cobessa)

A linha feminina é Carimá,


Moqueca, pititinga, caruru,
Mingau de puba, vinho de caju
Pisado num pilão de Pirajá.

A masculina é aricobé
Cuja filha Cobé um branco Paí
Dormeu no promontório de Pacé.

O branco era um Marau, que vejo aqui:


Ela era uma Índia de Marí:
Cobé pá, aricobé, cobé, paí.

Regressado a Pernambuco, onde lhe autorizaram ir morrer,


não deixou, então, Gregório de Matos verdadeira semente poética
em Angola que germinasse antes da primeira metade do século
XIX, desta feita já por intermediação de Castro Alves, de quem
terá sido verdadeiro precursor. De facto, mulatizada já considera-
velmente Angola, sobretudo em Loanda e no hinterland
benguelense (o que, aliás, deu a Benguela o epíteto, também poé-
tico, de Praia Morena) a plêiade de nativistas contestatários iria
inevitavelmente surgir. Isso mesmo se constata, por exemplo, num
relatório de Nicolau de Abreu Castelo Branco, governador e capi-
tão-general do reino de Angola, onde se insurge contra “as ideias
subversivas dos Demagogos, (que) têm chegado a toda a parte do
Mundo, influindo segundo as conveniências aos diferentes indiví-
duos, que os inspiram”, juntando-se em “clubes muito recônditos”,
sendo o maior número de adeptos os mulatos, e onde, então se
forjava a revolução na colónia, a fim de se unirem “à causa do
Brasil” recônditos”, sendo o maior número de adeptos os mula-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 139

tos, e onde, então se forjava a revolução na colónia, a fim de se


unirem à causa do Brasil”.
Era, como vimos atrás, o fenômeno Kuribeka a funcionar liga-
do estreitamente à maçonaria brasileira, impulsionada, aliás, por uma
profunda crise que, desde os finais do século XVIII, tinha tomado
conta de Loanda e de Angola, acentuando-se por toda essa primei-
ra metade do séc. XIX. É neste cenário de crise que as influências
literárias brasílicas, especialmente as de cariz mais nativista e exóti-
co do que propriamente as de cariz social (estas só emergirão pelo
início do século XX, para se manifestarem amadurecidas apenas
nos anos 40 e 50), começaram a notar-se mais em Angola.
Será José da Silva Maria Ferreira, nascido em 1827 e embar-
cado para o Brasil em 1834 acompanhado por duas irmãs para
seguir estudos, no dizer do historiador angolano Carlos Pacheco, o
introdutor na literatura de Angola, por influência do Brasil, do
“nativismo como precursor do nacionalismo” que brotaria, a partir da
década de 50, com o movimento da Vamos Descobrir Angola. A
estada no Rio de Janeiro permitiu a Maia Ferreira o contacto com
os meios intelectuais e literários locais, sobretudo através das lojas
maçônicas que vieram a originar os tais “clubes recônditos”, valen-
do-se da experiência e da leitura dos vates brasileiros para escrever
um poema a cantar a sua terra com glosa conhecida:

Minha terra não tem os cristais


Dessas fontes do só Portugal,
Minha terra não tem salgueirais,
Só tem ondas de branco areal.
(...)
Não tem vates por Deus inspirados,
Que decantem um Gama, um Moniz,
Que em seus feitos com loiros ganhados
Deram lustre ao nativo país.
(...)
- Mas que, minha terra
Não ten vate por Deus inspirado,
Não é pátria do divo Camões
Tão poeta, quão bravo soldado.

Não é pátria dos vates da América


Que em teus cantos, com maga harmonia,
Na Tijuca em seu cume sentado
Decantaste em tão bela poesia.
140 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Nada tem a minha terra natal


Que extasie e revele primor,
Nada tem, a não ser dos desertos
A soidão que é tão grata ao cantor.

E tu, Poeta bem fadado,


Que na gentil Guanabara
Tantos cantos tens cantado
À tua pátria preclara,

Recebe este meu canto


De amargor e de pranto,
Sem belezas, sem encanto,
À minha pátria tão cara.

Leitor seguramente de O Uraguay de José Basílio da Gama


e outros, Maia Ferreira evidencia em toda a sua poesia uma sintonia
com os ideais de liberdade e do liberalismo político de que o Rio de
Janeiro era, no seu tempo, autêntico cadinho. Pelo início do século
XX, em Angola, em Lourenço do Carmo Ferreira e em Jorge
Rosa, encontramos expressão poética desses ideais moldados na
poesia brasileira de cariz nacionalista. Mas estas vozes de ango-
lenses nacionalistas seriam eclipsadas por quase meio século, para
darem lugar a uma poesia angolana de orientação nitidamente
colonial que vai buscar grande parte da sua inspiração em Gonçal-
ves Dias e Casimiro de Abreu, não pelo que tinham de mensa-
gem, mas pelo exotismo semantico revelado. É assim que o
indigenismo das paisagens física e humana do Brasil capta mais a
atenção de poetas menores como João Baptista Pereira que, nos
anos 40, glosa a célebre “Canção do exílio”:

Nos parmêra do Brasil


Canta, canta o sabiá;
Seja em Março ou em Abril
Passa os dias a cantá.

Dizem que canta a soidade


Coisa triste como o luto –
Deste branco da cedade
Que não mais voltou ao Puto.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 141

E os gentes sonha ao ouvil


O sabiá do Brasil!

Castro Alves, entretanto, irá repercutir na poesia da geração


da Mensagem da Literatura Angolana, sendo só expressamente
convocado por João Maria Vilanova, um poeta angolano heterónimo
mais do que pseudónimo, na sua “Canção do Navio Negreiro”, já
na década de 70. Aliás, João Maria Vilanova preferiu o regresso à
genuidade romântico-revolucioária de Castro Alves, não seguin-
do, portanto, os caminhos do Modernismo Brasileiro que Maurício
de Almeida Gomes e Geraldo Bessa Victor anunciavam como os
mais adequados para modelarem a poesia de Angola, desde Ma-
nuel Bandeira e Ribeiro Couto a Jorge de Lima que Viriato da
Cruz invocaria. Mário António de Oliveira, esse, preferiu Jorge
Amado para inspirar-lhe o poema sobre Jubiabá e António Balduíno,
na linha da Terra Nova, lá na Luanda dos muceques.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 143

O léxico arcaico na história


da Língua Portuguesa
Telmo Verdelho,
da Universidade de Aveiro

A Língua Portuguesa, esta língua que hoje põe em comunica-


ção quase 200 milhões de falantes é favorecida por uma longa e
preenchida memória escrita que se aproxima dos 800 anos. Temos
dois textos autênticos do princípio do século XIII, que prolongaram e
conservaram, até aos nossos dias, na sua configuração material,
esses gestos instituidores que fizeram do romance falado no noroeste
da Península Ibérica uma língua escrita. O Testamento de D. Afonso
II,1 que se preserva mesmo em duplicado, é de 1214, e a Notícia de
Torto,2 não estando embora datada, deve ter sido escrita pela mesma
altura. Cerca de trezentos anos depois, foi esta língua escrita pela
primeira vez no Brasil, num texto igualmente instituidor e, de algum
modo paralelo do Testamento de D. Afonso II, que é a Carta do
“achamento desta vossa terra nova”, escrita por Pero Vaz de
Caminha.3 500 anos depois, é justamente essa língua, que ainda
falamos e escrevemos, que nos reune aqui, como um lugar de
encontro, simultaneamente natural e cultivado, língua materna e
fraterna, pátria por sobre as pátrias, na qual depositamos as nossas
complacências e a esperamça de que a nossa voz chegue longe.
Gostaria de propôr uma breve apreciação do ritmo de varia-
ção diacrónica, estabelecendo uma comparação entre os primei-
ros 300 anos de escrita da Língua Portuguesa (desde o Testamen-
to de D. Afonso II até ao séc. XVI), e o percurso histórico cor-
respondente aos últimos 500 anos, desde a Carta do achamento
do Brasil, até aos nossos dias.
Para um falante do português, hoje, a Carta do séc. XVI
oferece uma grande transparência e uma quase total legibilidade.
É obviamente muito mais legível do que os dois textos do início do
144 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

séc. XIII. Somos levados a imaginar que seria muito fácil comuni-
carmos nós actualmente com Pero Vaz de Caminha, se ele pudes-
se tornar à Terra de Santa Cruz, passados 500 anos, e falar-nos
nesta assembleia. O mesmo não aconteceria certamente com el
Rei D. Afonso II e com os seu notários, ou com os poetas que
naquele tempo cantavam amores. Provavelmente, o próprio Pero
Vaz de Caminha teria mais dificuldade em entender o português
falado 300 anos antes do que entender esta língua que nós fala-
mos 500 anos depois.
Quer dizer, a degradação arcaizante da memória da língua
parece atenuar-se ao longo dos últimos séculos, estaremos peran-
te um abrandamento do processo de envelhecimento da língua.
A hipótese fundamenta-se sobretudo na observação do ritmo
de sedimentação lexical.
No séc. XVI, os leitores da língua escrita portuguesa encon-
trariam mais arcaísmos no texto patrimonial a que tinham acesso,
do que nós encontramos hoje no texto produzido durante os cinco
séculos subsequentes.
Será necessário distinguir, por um lado, a massa lexical arcai-
ca, constituída por um conjunto de formas que poderemos consi-
derar completamente obliteradas como os verbos “filhar”, “leixar”,
que perderam qualquer ligação com o vocabulário activo, e por
outro lado, as palavras desusadas e todo o conjunto lexical carac-
terizado por conotações arcaizantes mas que mantêm em relação
à língua moderna uma espécie de motivação interna que facilita a
sua interpretação.
São sobretudo as primeiras, as palavras que perderam qual-
quer ressonância no sistema lexical do português contemporâneo,
que podemos designar de arcaísmos profundos e que marcam a
ruptura de intercompreensão no percurso da memória linguística.
Ainda neste âmbito são particularmente determinantes as formas
que foram de uso mais frequente e especialmente as partículas de
ligação ou de significação gramatical como os pronomes, os ad-
vérbios, as preposições e as conjunções.
No séc. XVI pode marcar-se com uma certa precisão o limi-
te entre um dicionário arcaico e um dicionário do português mo-
derno. Todos os estudiosos da periodização da língua assinalam
esta fronteira diacrónica. Logo no século XVII, Jorge Cardoso no
Agiológio Lusitano (1657, t.II) e Frei Manuel do Sepulcro, na
Refeiçam Espiritual anotam (cito deste último): “E naõ ha duvida
que maior mudança fez a lingua Portugueza nos primeiros vinte
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 145

annos do reinado de Dom Manoel, que em cento & sincoenta


annos dahi para cà: como o vemos pollos ecrittos, em verso &
prosa, de hüs & outros tempos” (Refeiçam Espiritual , parte hiemal,
Lisboa, 1669, p.11)
Mas já antes, os humanistas tiveram a percepção, uma espé-
cie de consciência metalinguística, dessa substancial mudança da
memória lexical. Um primeiro testemunho, certamente entre mui-
tos outros que se perderam, encontra-se no esboço de um Voca-
bulário de nomes antiguos que se guarda na Biblioteca da Aju-
da e que remonta à primeia metade do século XVI,4 trata-se é
certo de um vocabulário de nomes de especialidade referentes
exclusivamente à actividade administrativa e elaborado certamente
por um cronista, mas é nos textos administrativos e tabeliónicos
que se guarda a memória linguística mais próxima da vida para o
português medieval.
Interessante também e mais esclarecedor ainda, é o teste-
munho de Aquiles Estaço (1524-1581), contemporâneo de Camões
que deixou entre os seus manuscritos em Itália (depositados na
biblioteca dos Oratorianos, em Roma, actualmente designada
Vallicelliana), um brevíssimo apontamento com palavras de
Portugues velho explicadas em latim ou em português.5
Anota entre outras:
— a palavra “mais” com o equivalente latino “sed”, isto é
com o significado da adversativa “mas”
— a forma “seente” com o equivalente latino “sedens” e a
glosa “seente nüa cadeyra”
—”quite de peccado” e a explicação “livre”
—”guisa” que traduz por “maneyra”
—”esguardamento” que traduz por “conspectus”
— e ainda entre várias outras formas, as partículas “pero”,
“hy”, “acá”, “de suso”, “entonsce”.
Ora é sobretudo pelo abandono destas partículas de ligação
ou de significação gramatical e pela obliteração de alguns verbos
de grande frequência que se torna sensível essa estranheza de um
português velho, de leitura muito mais difícil do que o português
pós-camoniano.
Vale a pena considerar, ainda que em breve listagem, natural-
mente incompleta, algumas dessas partículas obsoletas que tecem
o texto arcaico. Por ordem quase alfabética, e sem detenças
classificativas, lembrarei:
acá, adur, al, ar / er (re), atá, ca (quia), cas (en cas de), chus,
146 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

crás, desi, en, ende, dende, por ende, ensembra, i (ibi - y, hi), guisa,
juso / suso, mais (mas), oi, oimais, ormais, ogano, pero, empero, de
pram, ren, samicas, tamalavez, toste, u/hu (ubi).
Deve notar-se que esta instrumentação gramatical tornou-se
muito mais estável ao longo dos últimos quinhentos anos e quase
não se encontram mais formas perdidas.
Há também um conjunto de verbos que sofreram uma forte
obsolescência e, porque muito provavelmente tinham uma eleva-
da frequência no português medieval, a sua presença ou ausência
repercute-se de maneira sensível no horizonte lexical destes dois
momentos da história da língua.
Citarei apenas alguns:
acaecer, apartar, cousir, departir, enader, esguardar, filhar,
gaançar, guarir, guisar, iguaar, leixar, liar, osmar, nembrar/renembrar,
prasmar, quitar, retar, rezoar, saar (sanare), seer, talhar, tolher, traer.
Cada um destes verbos têm a sua história e o seu percurso
diacrónico. Quase todos eles se apagaram da memória lexical
portuguesa activa antes do século XVI.
Destacarei entre eles os verbos filhar, leixar e guisar, que
no século XV eram verbos de ocorrência bastante frequente.
Em Fernão Lopes, na Crónica de D. Fernando, o verbo
“filhar” tem 23 ocorrências; “guisar” tem 8 ocorrências e guisa
têm 290; “leixar” tem 127 ocorrências e a forma moderna “dei-
xar” não tem nenhuma; “Filhar” e “guisar” obliteraram-se mais
cedo e não chegaram a entrar no séc. XVI, mas “leixar” foi subs-
tituído pelo meio desse mesmo século.
Pero Vaz de Caminha, em 1500, traz ao Brasil ainda e ape-
nas a forma “leixar”.
Na primeira edição do Auto da barca do inferno (1518) ocorre
sempre o verbo “leixar”, mas na edição da Compilaçam preparada
por Luís Vicente, ocorre 3 vezes o verbo “deixar” e 2 “leixar”6
Damião de Góis que viveu entre (1502 - 1572) na Crónica
do Príncipe D. João alterna “deixar” e “leixar” com predomínio
de “deixar” (21 oc.) sobre “leixar” (12 oc.).
Garcia de Resende (1470-1536) em Vida e feitos de D. João
II, escrito em 1533 usa “deixar” - 46 vezes e 3 vezes apenas “leixar”.7
André de Resende (1498-1573) que era um fervoroso
latinizante, na Vida de Frei Pedro, publicada em 1570, recusou a
forma “deixar” e usa apena “leixar”, meticulosamente grafada
“lexar”, como quem pretende recuperar o étimo “laxare”.
Finalmente Camões que era pelo menos 20 anos mais novo
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 147

do que Damião de Góis e ainda mais do que André de Resende,


nunca usa o verbo “leixar” em “Os Lusíadas” e, no conjunto da
obra lírica que lhe é atribuída, registam-se duas ocorrências de
“leixar” contra 130 de “deixar”. Estas duas ocorrências de “leixar”,
únicas em toda a obra atribuída a Camões, encontram-se em dois
textos líricos, um soneto e uma glosa sobre uma “cantiga velha” e,
muito provavelmente, podem não ser da autoria do poeta.
Concluindo, quando a Língua Portuguesa chegou ao Brasil, ou
dizendo melhor, quando a língua portuguesa fez a sua trasumância
para o Brasil, estava a criar condições para manter uma recursividade
lexical interactiva e vivaz. A criação de um importante património
textual, a elaboração de dicionários e o alargamento da
intercomunicação diacrónica terão sido factores preponderantes para
a manutenção da memória disponível das palavras.
A língua evolui e envelhece, mas os falantes de todo o tempo
podem contribuir para que a língua continue a evoluir, mas que
envelheça cada vez menos. Foi isso que fez Pero Vaz de Caminha
ao escrever a sua famosa Carta. Contribuíu para que as suas
palavras continuassem a ser revitalizadas, e, na verdade, em todo
o seu texto, apenas 4 formas não vêm registadas nos dicionários
do português moderno, por serem consideradas arcaísmos:
“ca, leixar, senhos, tamalavez”.
Como quer que seja, nenhuma destas palavras ultrapassou o
século XVI, na memória do léxico activo português.

Notas
1
— V.: Avelino de Jesus da Costa, “Os mais antigos documentos
escritos em Português”, in Estudos de cronologia, diplomática e histó-
rico-linguísticos, Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais, Porto,
1992, p.169-256.
2
— V. Luís F. Lindley Cintra, “Sobre o mais antigo texto não-literário
português: A Notícia de Torto (Leitura crítica, data, lugar de redacção e
comentário linguístico)”, in Boletim de Filologia, t.XXXI (1986-1987),
Lisboa, 1990, p.21-77; e ainda Susana Maria de Figueiredo Tavares Pedro,
De noticia de torto, Dissertação de Mestrado de Paleografia e Diplomá-
tica, na Faculdade de Letras, Lisboa, 1994.
3
— V. Vocabulário da Carta de Pero Vaz de Caminha (seguido de
fac-símil e leitura diplomática do texto), Rio de Janeiro, Instituto Nacional
148 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

do Livro - Ministério da Educação e Cultura, 1964.


4
V. Telmo Verdelho, As origens da gramaticografia e da lexico-
grafia latino-portuguesas, Aveiro, INIC, 1995, p.385 e s.
5
A investigação na biblioteca Vallicelliana foi feita pelo Dr.
BelmiroPereira da Fac. de Letras do Porto, que generosamente me facul-
tou o acesso a esta informação.
6
I. S. Révah, Recherches sur les oeuvres de Gil Vicente, Lisboa,
1951, p.95.
7
Evelina P. Silva Verdelho, Livro das Obras de Garcia de Resende,
edição e estudo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 149

Tradução literária e
comunicação cultural: o
português do Brasil em Espanha
Xosé Manuel Dasilva,
da Universidade de Vigo

Numa recente visita à Galiza, logo de ser laureado com o Prémio


Nobel da Literatura, José Saramago manifestava com louvável sin-
ceridade que para optar a um triunfo internacional tão apetecido
uma das condições mais vantajosas, um requisito inescusável qua-
se, consiste em dispor de uma obra, além de valiosa em sentido
estético, traduzida para o maior número de línguas. Era uma afirma-
ção com certeza irrepreensível no caso do autor de Que farei com
este livro?, cujo património literário se estende por todo o mundo
através de variados idiomas, mais de trinta, do inglês, o alemão ou o
francês até ao russo, o turco ou o chinês, sem esquecer por anteci-
pado o sueco, língua para a que se traduziram quatro romances seus
num período de apenas quatro anos antes de receber o Nobel.
Saramago falava assim a partir da experiência privilegiada de ver
felizmente alargado o espaço da sua lingua original e não se mostra-
va ignorante, aliás, do amplo significado que a tradução possui para
a vontade de projecção de um autor, não em vão ele mesmo viveu
sacrificadamente muitos anos, longe ainda da consagração, de ver-
ter obras estrangeiras em português.
É boa verdade, por suposto, que o facto de um escritor ter
muitas versões dos seus livros noutros idiomas não garante a hipó-
tese de qualquer ano alcançar o Prémio Nobel da Literatura. Pau-
lo Coelho, nas redondezas da criação literária, cumpre a condição
apontada por Saramago com vinte milhões de livros vendidos em
muitos países, os quais permitem, mais do que nada, que ganhe
cada mês por direitos de autor à volta de um milhão de dólares.
Ora bem, nem por isso admite dúvida que a popularização interna-
150 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

cional desde há pouco tempo do nome de Saramago se tem firma-


do, em grande medida, num mecanismo da notoriedade tão efec-
tivo como o que constitui a capacidade divulgadora da tradução1 .
Perante a realidade desta circunstância, de natureza até esmagado-
ra, mesmo é plausível imaginar que o próprio autor de Memorial do
convento criasse os seus romances e ao mesmo tempo estivesse já
a pensar na sua imediata translação a outras línguas, o que poderia
ter até influência em certas escolhas estilísticas para o texto original.
Talvez esta suposição seja exagerada, mas não convém descartá-la
desde que uma voz tão esclarecedora como a do editor e narrador
português Luiz Pacheco lançasse, nesse sentido, a denúncia deste-
mida de Saramago e também Lobo Antunes utilizarem, com o pen-
samento posto generosamente nos seus tradutores, uma prosa já
não de genuína feição lusitana, mas sobretudo formada por traços
idiomáticos acessíveis de fácil adaptação a qualquer âmbito interna-
cional. Inserida num depoimento jornalístico, eis reproduzida na ínte-
gra a citada denúncia de Luiz Pacheco, corajosa verdadeiramente e
não isenta de relevo:

Queremos que digas o que quiseres. Há aqui


um problema grave, que é assim. O Lobo Antunes
e o Saramago não estão a escrever para vocês nem
para mim. Estão a escrever uma coisa género
standard, que é o romance internacional. Já não é
prosa portuguesa. Se eu amanhã estivesse traduzi-
do na China, na Alemanha, na Inglaterra, não podia
estar a escrever um texto com requintes poéticos
ou termos idiomáticos ou ir buscar palavras esqui-
sitas, porque isso, na tradução, o tradutor não se
vai chatear. (...). Como sabem que vão ser traduzi-
dos, têm de fazer uma linguagem o mais corrente
possível, mais linear, mais badalhoca. Desculpa,
mas quer o Saramago quer o Lobo Antunes não
são propriamente escritas assim tão simples. São
até barrocas, num certo sentido. Não sei como
será em tradução. Ó pá, hoje, um escritor, género
Saramago ou Lobo Antunes, está a fazer um livro e
a pensar no Prémio Nobel. Não está a pensar em
vocês nem em mim. É na tradutora sueca ou alemã.
Não está a fazer um romance, está a fazer um produ-
to. tem de escrever a pensar nisso: temas mais ou
menos de interesse universal, e depois serve-se
aquilo na prata da casa.2
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 151

Numa recente visita ao Brasil, logo da sua estada na Galiza,


Saramago propunha, com motivo da IX Bienal do Livro do Rio de
Janeiro, a necessidade de uma iniciativa similar luso-brasileira que
terminasse com o isolamento entre os escritores e os leitores de
ambos os países. Este apelo esperançoso estava destinado a cor-
rigir a dolorosa ignorância recíproca a respeito das duas literatu-
ras, mas cumpriria interpretá-lo, aliás, como medida indispensável
com o intuito de favorecer a tradução da literatura que se produz
em cada comunidade lusófona. Com efeito, como será possível
impulsar o conhecimento internacional das letras portuguesas e
brasileiras por meio de versões noutras línguas se a leitura de au-
tores de cada uma destas literaturas simplesmente não existe, com
a ressalva da massa universitária, tanto em Portugal como no Bra-
sil? É evidente, por antecipado, a conveniência de um conheci-
mento mútuo das duas literaturas, e isso porque, em primeiro lugar,
contribuiria para fortalecer os elos culturais entre as duas comuni-
dades, mas ainda seria muito útil também a fim de propiciar, por
outra parte, um bloco comum na conquista de leitores para lá das
fronteiras da lusofonia.
É muito ilustrativa, no que diz respeito a esta questão, a expe-
riência que se viveu há dois anos na Feira do Livro de Frankfurt,
na Alemanha, onde Portugal participou com sucesso na qualidade
de país-tema. Uma literatura como a portuguesa, periférica nas
grandes rotas editoriais, conseguiu então um importante reconhe-
cimento para afirmar-se no mercado internacional, prelúdio do
imediato Prémio Nobel que se outorgaria às suas letras. Se antes
existiam apenas sessenta e cinco livros de autores portugueses
traduzidos para alemão, a Feira do Livro de Frankfurt permitiu que
tão-só no período de um ano aparecessem as versões de mais
quarenta livros. Este sucesso não atingiu, contudo, do mesmo modo
a literatura brasileira nem, além disso, facilitou quando mais não
seja que a recepção dos autores de cada um dos dois países se
tornasse mais fluída no outro espaço. Foi exequível, pelo contrário,
verificar nesse evento a contradição de que a mesma língua, mais
do que a diversidade idiomática, possa chegar a ser um obstáculo,
ao menos em termos editoriais, na difusão correspondente das
literaturas portuguesa e brasileira. Efectivamente, o editor portu-
guês não comprava na Feira do Livro de Frankfurt os direitos de
edição de títulos brasileiros e a mesma era a atitude em sentido
inverso, isto é, o editor brasileiro no que diz ao livro português, de
maneira que se continuou a perpetuar assim a distribuição das
152 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

literaturas respectivas em ambos os países através de importado-


res, os quais não raro dificultam mais o trânsito literário entre fron-
teiras do que os tradutores.
Seja como for, é necessário revelar uma certeza incontestá-
vel quanto à projecção internacional das letras portuguesas e bra-
sileiras. Está-se a fazer referência à sua dissemelhante expansão,
visto que as primeiras alcançaram um grau de conhecimento mais
elevado ainda de cada vez, designadamente como consequência
do Prémio Nobel concedido a Saramago, que as letras brasileiras
não conseguiram, e isso com independência da rica qualidade que
oferece tanto uma literatura como a outra, sem nítidas diferenças
a este respeito. Se se adopta como ponto de partida o âmbito
espanhol, por exemplo, não é comparável o peso da presença por-
tuguesa e da presença brasileira entre os leitores deste país por
meio de traduções. Conquanto não se tenha chegado ao limite
mais satisfatório, é interessante registar o número de obras de
autores portugueses vertidas em Língua Espanhola, enquanto os
autores brasileiros se contabilizam ainda em quantidade pouco
suficiente. Realmente deve-se dizer que apenas é exequível ler
em espanhol a obra de autores assinalados da literatura brasileira,
mais uma excepção do que um acontecimento sistemático, graças
ao esforço teimoso de alguns tradutores a imporem as suas prefe-
rências perante as editoras.
Talvez não haja que rejeitar para esta desigualdade ser assim
a cercania, tanto em termos geográficos como culturais, de Portu-
gal com relação a Espanha e a distância do Brasil3 . Trata-se de
uma explicação aceitável que é adequado matizar, no entanto, com
outras notas de índole idiomática sobre a peculiaridade da língua
literária brasileira. Há que confessar, antes de mais, que fica longe
de qualquer intenção aqui encarecer a diversidade palpável, sem-
pre menor, aliás, do que a unidade, entre a modalidade americana
e a modalidade europeia da Língua Portuguesa. Não é difícil com-
preender sem prejuízos enfadonhos que a larga difusão do portu-
guês no mundo, a ocupar espaços muito afastados entre si, tivesse
como consequência a variedade legítima que o idioma apresenta
hoje em dia. Uma análise dos traços particulares de cada modali-
dade realizada de uma perspectiva restritamente filológica con-
duz, efectivamente, a fixar a sua natureza comum no conjunto do
mesmo sistema linguístico, e isso a despeito da existência de cor-
rentes, de forma paradoxal até a surgirem na antiga metrópole,
interessadas em traçar diferenças abertas e inconciliáveis entre
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 153

as diversas normas da Língua Portuguesa.


Ora bem, esta situação descrita, susceptível de ser examina-
da com conceitos filológicos transparentes, reclama uma aproxi-
mação mais pormenorizada do ponto de vista tradutológico. E é
que parece complicado negar em princípio a realidade de uma
língua literária brasileira singular, por vezes não ajustada às con-
venções da língua escrita comum, que encerra repercussões evi-
dentes, nem sempre de fácil abordagem, para a sua desembara-
çada circulação exterior por meio da translação a outros idiomas.
Como se sabe, cumpre estabelecer a vontade definitiva de criar
uma língua literária de signo nacional, após tentativas primigénias
no período romântico, especialmente a partir do Modernismo, cuja
revolução estética há-de significar o desejo irrefreável de renovar
a linguagem no território da criação literária. Para lá de excessos
ostensíveis de alguns autores, é por via de regra aceite que a ousa-
dia modernista supôs a vantagem de a literatura brasileira granjear
uma língua privativa pouco distante dos seus referentes mais vivos
e, aliás, de grande virtualidade artística. Bem certo é que na maior
parte dos primeiros modernistas apenas se percebem actos de
escrita individuais, arbitrários portanto e sem procurarem a
unicidade de uma norma no seio da língua literária, mas isso não
evita reconhecer, através das suas experiências tão versáteis, o
gérmen possante de um instrumento idiomático tão marcadamente
nacional quanto afastado da rigidez lusitana. Embora não seja agora
a melhor ocasião para aprofundar neste novo horizonte que o rom-
pimento modernista delineou no panorama literário brasileiro, sirva
ao menos como amostra o conhecido testemunho do poeta Raul
Bopp, tão revelador como os famosos versos de Manuel Bandeira
em idêntico sentido no poema “Evocação de Recife”:

Leis da gravidade do idioma e seus valores


incógnitos. A gramática atravessou o oceano e ins-
talou-se na Casa Grande, com as suas fórmulas
vernáculas, preocupada com purismos lusos na
maneira de dizer. Não ouvia as vozes de lá fora.
Mas o Brasil amansou o idioma... a linguagem, nas
suas múltiplas relações de cultura, foi-se
diferençando das usadas em livros de além-mar.4

Esse processo de nacionalização, por assim dizer, da lingua-


gem inerente às letras brasileiras contemporâneas favoreceu des-
de então, acima de tudo, a existência de um sistema literário com
154 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

fisionomia inconfundível, sem vínculos estreitos demais com a litera-


tura portuguesa. Mas primeiro o Romantismo e nomeadamente o
Modernismo mais tarde propiciaram dessa maneira, além disso, a
consolidação de um veículo expressivo que permite identificar um
certo pendor da língua literária brasileira. Com efeito, nessa linguagem
artística é preciso pôr em lugar de destaque a sua extremada liberdade
de sabor invulgar, repleta de flexibilidade e de imaginação verbal.
Tudo consistiu em sobrepor formas actuais às raízes já conhecidas
com anseio indagador, sem medo a misturar elementos de origem
variegada e até afortunados achados, o que determinou a constituição
de uma língua literária de complexo tratamento para ser traduzida
noutros âmbitos culturais. No mesmo campo da tradução, mas agora
no que diz respeito a essa linguagem como ponto receptor e não na
qualidade de fonte emissora, é oportuno trazer à baila as
experimentações de Augusto e Haroldo de Campos com a obra de
diversos nomes da literatura universal —Ezra L. Pound, James Joyce,
Mallarmé, Maiakovski, Paul Valéry, Goethe, Lewis Carroll,
Keats...— que revolucionaram a língua literária e, por essa razão,
deparavam um atraente repto de tradução5 . Não apenas inexistentes
em Portugal, mas também desditosamente irrealizáveis, tais
experimentações de Augusto e Haroldo de Campos desvendariam
uma atitude idiomática de semelhante carácter inovador, a alargarem,
neste caso, a dimensão da língua própria graças à influência da
língua estrangeira que se traduz.
Um experiente tradutor de textos lusófonos no âmbito hispâni-
co expunha, não há muito tempo, a reflexão de a língua literária
brasileira, por ele mesmo qualificada significativamente como modelo
das línguas do século XXI, ser um instrumento vulcânico de ímpeto
essencialmente renovador6. O seu magma seria um conjunto léxico
e uma modelação sintáctica de proporções trasbordantes, fruto de
uma realidade proteica que é um resumo do mundo e desafia o
tradutor com inúmeros segredos. Um universo original, enfim, com
uma cultura multiforme em que se torna saliente a sugestiva presença
de diferentes tradições, as quais se manifestam no vocabulário
através de um património opulento e na sintaxe por meio de uma
agilidade irreprimível. Este tradutor citado tem vertido em espanhol
várias obras de autores como João Ubaldo Ribeiro, Autran Dourado,
Clarice Lispector ou Rubem Fonseca, sempre a preservar o pendor
da língua literária brasileira embora por vezes esse esforço apenas
merecesse a derrota, como aconteceu com o romance Tebas do
meu coração, de Nélida Piñon, cuja tradução abandonou após um
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 155

ano de batalhas contra uma sintaxe que rompia premeditadamente


qualquer linearidade do pensamento. Tratar-se-ia de um fenómeno
expressivo análogo ao que surge na modalidade americana do
espanhol, manancial também de novo sangue que se transfunde, a
dar uma outra vida, para um idioma que é tão antigo como o
português7. É conveniente trazer à colação, a fim de perceber as
dificuldades paralelas que suscita a tradução da narrativa hispano-
americana, o seguinte depoimento sobre uma versão alemã da sua
obra feito pelo escritor guatemalense Miguel Ángel Asturias, também
Prémio Nobel da Literatura:

O tradutor de romances latino-americanos tem


que ter uma potência poética. Se ele, no fundo, não
é poeta, se ele não sabe traduzir euforicamente os
nossos livros, o leitor alemão nunca terá uma im-
pressão remota do que seja a nossa literatura. O
nosso espanhol é uma língua que se move numa
escala amplíssima, e esta escala que se permuta em
estações do sentir, do adivinhar, do pensar -
exatamente nesta ordem - requer que ela seja
traduzida na maneira em que se expressa no origi-
nal. O tradutor de nossa literatura tem que estar a
par do que acontece em nossas terras, ele tem que
saber que nossas obras são a resposta a esta reali-
dade viva e em transformação.8

Esse é um pensamento que Meyer-Clason, tradutor para ale-


mão de Guimarães Rosa, põe de relevo de caso pensado com o
alvo de patentear a complexidade tradutora da língua literária bra-
sileira e, mais em concreto, os abrolhos que levanta qualquer ver-
são noutro idioma do autor de Grande sertão: veredas. Guima-
rães Rosa, justamente, pode servir de valiosa ilustração para reve-
lar os efeitos tradutológicos da capacidade verbal dos autores bra-
sileiros, embora seja necessário aceitar, por suposto, que é um
escritor de grande singularidade nesse sentido. É verdade que a
obra literária de Guimarães Rosa representa, por si só, uma aven-
tura expressiva de génio excepcional no próprio panorama das
letras brasileiras, porquanto o seu estilo indefinível significa uma
audaz proposição que liberta a linguagem até ao infindo. Não se
está aqui, como bem se sabe, perante um instrumento comunica-
tivo de base colectiva, mas antes é um discurso de perfil abstracto,
quase de pura ficção, que mistura ingredientes naturais e artifici-
ais para explorar, com fôlego altamente criativo, as próprias possi-
156 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

bilidades do idioma português9. Consoante o seu axioma de que


tão-só renovando a língua é que se pode renovar o mundo10 , Gui-
marães Rosa enriquece a expressão, efectivamente, com critérios
intransferíveis que nascem sobretudo da sua subjectividade inaca-
bável. Foi dito quanto a isso, e é uma equação susceptível de ser
aceite, que o seu idiolecto dispõe de um alcance vivificador
equiparável à fertilidade que o discurso literário brasileiro fornece
ao sistema linguístico português11. Esse carácter solitário da expe-
riência estilística de Guimarães Rosa porventura seja a interpreta-
ção última que convem dar àqueles versos iniciais do poema “Um
chamado João”, de Drummond de Andrade, vindo à luz apenas
três dias após o falecimento do escritor: Sertão místico dispa-
rando / no exílio da linguagem comum?12
Apesar de o código de Guimarães Rosa ser uma descoberta
individual, a mágica revelação da sua linguagem representaria, to-
davia, uma amostra levada até ao extremo do gosto renovador tão
fecundo da língua literária brasileira13. É conhecido que as primeiras
experimentações modernistas implicaram mormente a transforma-
ção da língua no género poético, enquanto a prosa, por sua vez,
opunha mais resistência a qualquer mudança radical. Há-de
corresponder a Guimarães Rosa a propagação bem sucedida desse
alento vanguardista no campo da ficção, a dar lugar assim a uma
prosa de espírito inovador que acrescentava à radicalização vocabular
dos modernistas uma sintaxe revolucionária14. A capacidade supre-
ma do autor de Noites do Sertão para criar um estilo original vincu-
lar-se-ia, portanto, ao mesmo curso da história das letras nacionais e
seria uma prova deslumbrante, para lá da sua natureza privativa, do
poder verbal que não raro é traço comum na literatura brasileira.
Segundo se pode observar com clareza no seguinte depoimento,
Guimarães Rosa era consciente do vasto catálogo de recursos ao
dispor do escritor brasileiro, e não do escritor português, para desen-
volver uma língua literária de alargado signo criativo:

Deve-se apenas partir do princípio de que


há dois componentes de igual importância em mi-
nha relação com a língua. Primeiro: considero a
língua como meu elemento metafísico, o que sem
dúvida tem suas consequências. Depois, existem
as ilimitadas singularidades filológicas, digamos,
de nossas variantes latino-americanas do portu-
guês (...). Temos de partir do facto de que nosso
português-brasileiro é uma língua mais rica, inclu-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 157

sive metafisicamente, que o português falado na


Europa. E além de tudo, tem a vantagem de que
seu desenvolvimento ainda não se deteve; ainda
não está saturado. Ainda é uma língua Jenseits
Von Gut und Bösel —Além do Bem e do Mal—, e
apesar disso, já é incalculável o enriquecimento
do português no Brasil, por razões etnológicas e
antropológicas. (...). Naturalmente, tudo isto está
à nossa disposição, mas não à disposição dos
portugueses. Eu, como brasileiro, tenho uma es-
cala de expressões mais vasta que os portugue-
ses, obrigados a pensar utilizando uma língua já
saturada.15

Uma outra razão justificaria ainda a escolha de Guimarães


Rosa para desvendar as consequências tradutológicas da riqueza
expressiva dos autores brasileiros, e é a ampla difusão internacio-
nal dos seus livros através de um bom número de versões noutras
línguas16. Mesmo não é complicado registar o seu interesse pelo
fenómeno da tradução, graças sobretudo a alguns testemunhos
entre os quais se tornam especialmente salientes os contactos
epistolares com Meyer-Clason, já citado, tradutor para alemão
das suas obras, e com Edoardo Bizzarri, responsável de algumas
versões italianas17. Esse interesse de Guimarães Rosa cimenta-
va-se, por suposto, na sua multíplice competência linguística, a
abranger diferentes idiomas como o espanhol, o francês, o italiano,
o inglês, o alemão, o russo, o sueco ou o holandês. Também se
firmava, no entanto, numa perspicaz compreensão do processo
tradutor no território da literatura, mais ainda no que tem a ver
com uma obra de aclimatação tão intricada noutras realidades
culturais como era a dele18. Guimarães Rosa revelou, com efeito,
uma inteligência total da profícua comunhão entre criador e tradu-
tor, o que é frequente hoje em dia com excelente resultado na
maior parte dos casos mas que ainda na altura parecia esquisito19 .
Sabe-se que ele acompanhava a tradução das suas obras noutras
línguas, a contribuir valiosamente assim para esclarecer dúvidas
pontuais, nomeadamente de índole léxica, ou para iluminar passos
obscuros de leitura inacessível. Os abrolhos que os seus textos
deparavam ao tradutor foram chamados de procustos pelo enge-
nho irónico do próprio escritor, em alusão às conotações lancinantes
e tirânicas do leito de ferro em que Procues, assaltante da Ática,
torturava os viajantes20. Inclusivamente Guimarães Rosa, além
158 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

desta disposição cordial perante as hesitações dos seus traduto-


res, era capaz de reconhecer com generosidade a hipótese de
uma versão bem aprumada chegar a preencher o sentido da obra
original, como se sublinha nestas palavras de afervorada aprova-
ção a respeito das edições italianas feitas por Edoardo Bizzarri:

Sem piada, mas sincero: quem quiser realmen-


te ler e entender Guimarães Rosa, depois, terá de ir
às edições italianas.21

A fim de ter em vista o exemplo de Guimarães Rosa com o


objecto de demonstrar as particularidades de trasladar a língua literária
brasileira caberia aduzir, de resto, uma última motivação não menos
interessante. E é que ele responde à verdade de que, em última
instância, quase sempre não se traduz uma língua, mas sim um
escritor. Conhece-se com bastante pormenor, após demoradas
análises já realizadas por diferentes estudiosos22 , a dilatada colecção
de procedimentos expressivos que configuram a feição mais
revolucionária da prosa de Guimarães Rosa. À margem de
indianismos, regionalismos, latinismos, estrangeirismos23 , neologis-
mos ou, noutro plano, para além de recursos gramaticais de notável
profusão como o uso de sufixos e prefixos, a abreviação de palavras
ou a desarticulação da sintaxe, sem esquecer ainda os valores fónicos
da sua escrita24 , há um outro aspecto saliente que é muito significativo
no que diz à criatividade da sua linguagem. Trata-se da galecidade
léxica que está presente em certas obras através de palavras antigas
— amojar, chirimia, sanfona, orvalho, lusco-fusco...— , hoje
mortas ou ao menos moribundas no português europeu mais canónico
e ainda vivas no fundo vocabular da língua galega25.
Todos os procedimentos expressivos referidos, e mais outros
que seriam de interminável enumeração, convertem a linguagem
de Guimarães Rosa numa amostra elucidativa do zelo que exige
verter um texto literário brasileiro noutra língua. É prova disso, por
exemplo, o seu livro zenital Grande sertão: veredas, onde o lon-
go monólogo de Riobaldo, mais de quinhentas páginas, supõe um
convite tão aliciante como arriscado para qualquer tradutor. O
estorvo principal, como nem podia deixar de acontecer, é reprodu-
zir na tradução esse ar estilístico tão sobresselente que está inti-
mamente unido ao modo de dizer de Guimarães Rosa. Com efei-
to, a tarefa mais árdua consiste em transmitir a mesma sensação
de estranhamento que o leitor original, por seu turno, experimenta
em face da portentosa utilização da língua que se manifesta ao
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 159

largo da obra. Para isso a melhor estratégia tradutora tem de guardar


um cuidadoso equilíbrio entre o respeito às peculiaridades idiomá-
ticas do romance, de um lado, e a procura da sua inteligibilidade
por parte de receptores forâneos, de outro.
Grande sertão: veredas foi vertida em numerosas línguas
desde que veio a lume em 1956, mas nem sempre, verdade diga-
se, esse equilíbrio necessário se conservou na medida mais ajus-
tada26. Como modelo de tradução digno de não ser imitado cum-
pre citar a versão francesa, cujo título é simplesmente Diadorim27 ,
visto que o tradutor tende aqui a explicar demais os labirintos da
prosa de Guimarães Rosa ao leitor estrangeiro. Os esclareci-
mentos excessivos conseguem, isso sim, a compreensão da obra,
mesmo por vezes com indicações óbvias, embora seja à custa
de transformar a língua do escritor num francês coloquial que
fica longe da sensação de estranhamento que origina a leitura de
Grande sertão: veredas. Uma impressão equivalente suscita a
versão inglesa do livro, The Devil to Pay in the Backlands, de
novo com o título modificado sem razão aparente28 , onde se
regularizam de forma injustificável o vocabulário e a sintaxe da
obra com falsas correspondências pertencentes ao registo mais
convencional do idioma.
No ponto contrário em relação às traduções citadas situar-se-
ia a versão espanhola de Grande sertão: veredas, exemplo modelar
daquele equilíbrio antes reivindicado entre a singularidade do texto
original e a inteligibilidade do texto traduzido29. O acerto primeiro do
seu responsável, um critério essencial do princípio ao fim desta versão,
é perceber que a assombrosa linguagem de Guimarães Rosa não se
submete aos preceitos concertados da Língua Portuguesa e mesmo
possui matizes especiais no conjunto da língua literária brasileira. A
partir de aí o tradutor para espanhol tenta manter o ar estilístico de
Grande sertão: veredas, a utilizar para isso uma estratégia
translativa que se estriba em aplicar à Língua Espanhola o mesmo
repertório de efeitos expressivos que estão presentes na obra original30.
É um verdadeiro trabalho de recriação idiomática em que o leitor da
tradução consegue experimentar a mesma sensação de
estranhamento perceptível no romance de Guimarães Rosa e, além
disso, sem deixar de entender por inteiro a sua mensagem
excepcional. Veja-se a forma espanhola de Grande sertão: veredas
neste desfecho do monólogo de Riobaldo:

Cierro. Ya ve usted. Lo he contado todo.


Ahora estoy aquí, casi un barranquero. Para la
160 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

vejez voy, con orden y trabajo. ¿Sé de mí? Cumplo.


El Río de San Francisco —que de tan grande se
comparece— lo que parece es un árbol grande, en
pie, enorme... Amable usted me ha oído, mi idea ha
confirmado: que el Diablo no existe. ¿Pues no?
Usted es un hombre soberano, circunspecto.
Amigos somos. Nonada. ¡El diablo no hay! Es lo
que yo digo, si hubiese... Lo que existe es el
hombre humano. Travesía.31

Pode servir como indício da competência do tradutor a resolu-


ção que adopta no atinente ao título da obra, desatinadamente alte-
rado, como se viu, no caso das versões francesa e inglesa. A tradu-
ção para espanhol do romance intitula-se Gran sertón: veredas,
que transmite assim a partir da sua mesma designação, de elevada
transcendência semântica, um dos grandes conceitos do livro da
mesma maneira que se tinha feito já na versão alemã, publicada
com o título original Grande sertão32. É indubitável que o vocábulo
sertão, introduzido como neologismo na Língua Espanhola sob a
forma sertón, constitui uma holófrase, quer dizer-se, uma palavra
que faz referência a uma noção cultural privativa, sem correspon-
dência exacta noutras línguas. A decisão de traduzir tal holófrase
nunca permitirá exprimir o amplo sentido que o vocábulo possui na
língua a que pertence de forma original, nem tão sequer por meio de
uma pormenorizada explicitação, mas existiria ainda um outro desa-
certo se se decidir a sua substituição por um termo próprio na língua
receptora. Efectivamente, a eliminação da palavra sertão repre-
senta, em alguma medida, um gesto de desdém escusado diante de
um elemento decisivo na obra de Guimarães Rosa. O tradutor es-
panhol, com a sua resolução para o título do romance, mostra-se
consciente disso e reproduz o vocábulo original, a cumprir desse
modo um dos requisitos acima enunciados exigíveis para verter a
linguagem de Guimarães Rosa noutra língua. Mas nem por essa
razão o tradutor esquece o outro aspecto implicado no equilíbrio que
antes se reclamou, isto é, a inteligibilidade da obra, já que comenta o
significado de sertão, a par de outros termos igualmente susceptí-
veis de serem conservados, num glossário que aparece nas páginas
finais da edição espanhola. É muito provável que o próprio Guima-
rães Rosa tivesse autorizado esta estratégia translativa que se move
alternadamente do respeito à inteligibilidade, pois é a conclusão que
se tira do seguinte trecho que inseriu como “Prefácio” anteposto às
traduções de contos húngaros realizadas por Paulo Rónai33 , que ele
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 161

considerou, em sentido inverso, inteligíveis mas pouco respeitosas


com a substância dos textos originais:

Saudável é notar-se que ele [Paulo Rónai] não


pende para a sua língua natal, não imbui de modos-
de-afeto seus textos, que nem mostram sedimen-
tos da de lá; não magiariza. Antes, é um
abrasileiramento radical, um brasileirismo generali-
zado, em gama comum, clara, que dá o tom. A mim,
confesso-o, talvez um pouquinho, quem sabe, até
agradasse também a tratação num arranjo mais tem-
perado à húngara, centrado no seio húngaro, a
versão estreitada, de vice-vez, contravernacular,
mais metafrásica, luvarmente translatícia, sacudin-
do em suspensão vestígios exóticos, o especioso
de traços hungarianos, hungarinos —o ressaibo e
o vinco— como o tókai, que às vezes deixa um
sobregosto de asfalto. Mesmo à custa de, ou —
franco e melhor falando— mesmo para haver um
pouco de fecundante corrupção das nossas fór-
mulas idiomáticas de escrever.34

O desafio de traduzir Guimarães Rosa, modelo proeminente


do espírito tão feraz da língua literária brasileira, é complexo de-
mais, com certeza, mas não conduz inevitavelmente ao fracas-
so35. É necessário aceitar, de resto, que o amplo número de ver-
sões dos seus livros noutras línguas, além da sua incontroversa
altura estética, contribuiu definitivamente para fortalecer a exten-
sa projecção internacional do seu nome. O importante é estimular
o mesmo sucesso exterior da língua literária brasileira através de
traduções a diferentes línguas de mais autores em que se torne
patente, a todo o transe, o equilíbrio aqui requerido entre a
genuinidade expressiva da obra original e a inteligibilidade leitora
da respectiva versão. É difícil, com efeito, mas não impossível
conceber que a tradução é, primeiro que tudo, um acto de comu-
nicação cultural e de compreensão mútua, embora se vejam de
quando em quando experiências surpreendentes no próprio siste-
ma linguístico português que contradizem esse princípio. Por uma
parte, as edições brasileiras das obras de Saramago incluem uma
breve advertência destinada a expor a vontade terminante do es-
critor de que as suas obras se difundam no Brasil com ortografia
original36. Por outra parte, ao invés, as edições portuguesas de
dois autores tão assinaladamente brasileiristas como José Lins do
162 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Rego ou Graciliano Ramos apresentam profundas mudanças no


seu léxico patrimonial, enquanto um outro escritor como Jô Soa-
res, pertencente à actualidade literária, viu publicado em Portugal
o seu romance O Xangô de Baker Street37 , há pouco tempo,
com divergências mais do que ortográficas que prejudicam o en-
genhoso jogo idiomático a respeito da modalidade linguística lusi-
tana relevante na versão brasileira. Apesar de tudo afortunada-
mente Guimarães Rosa, por sua vez, dizia que traduzir é conviver,
uma sentença tão bela como verdadeira.

Notas
1
Vid. Carlos Reis. “José Saramago. Contador dos dias”. Jornal de
Letras, Artes e Ideias, 671, 3 Julho 1996.
2
Rodrigues da Silva e Ricardo de Aráujo Pereira. “Luiz Pacheco. A
velhice do guerrilheiro da escrita”. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 703, 24
de setembro de 1997.
3
Cf. Jacques Thiériot. “La traduction du roman portugais”. em VV.AA.,
Cinquièmes Assises de la Traduction Littéraire (Arles 1988). Arles, Actes
Sud, 1989, pp. 202-221.
4
Raul Bopp. Movimentos modernistas no Brasil. Rio de Janeiro, São
José, 1966, pp. 82-83.
5
Vid. Jorge Wanderley. A Tradução do Poema: Notas sobre a expe-
riência da geração de 45 e dos concretos. Rio de Janeiro, PUC, 1985.
6
Sol Fuertes, “La lengua del siglo XXI”. El País, Suplemento Babelia.
4 de Octubre de 1997.
7
Cf. Óscar Lopes. “Guimarães Rosa —intenções de um estilo”, em
VV.AA., Guimarães Rosa. Lisboa, Instituto Luso-Brasileiro, 1969, p. 31.
8
Apud Curt Meyer-Clason. “Guimarães Rosa e a língua alemã”.
Em VV.AA., Guimarães Rosa. Lisboa, Instituto Luso-Brasileiro, 1969,
pp. 51-52.
9
Vid. Leodegário A. de Azevedo Filho. “O discurso de ficção em
Guimarães Rosa”. Colóquio-Letras, 15, 1973, p. 28.
10
Vid. Inês Oseki-Dépré. “A tradução francesa das Primeiras Estóri-
as de João Guimarães Rosa”. Colóquio-Letras, 87, 1985, p. 44.
11
Luciana Stegagno Picchio. “Guimarães Rosa: le sponde
dell’allegria”. Strumenti Critici, IV, 1, 1970, p. 35.
12
Carlos Drummond de Andrade. “Um chamado João”, Correio da
Manhã, 22 de Novembro 1967.
13
Vid. Basilio Losada. “Guimarães Rosa y la experimentación idiomá-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 163

tica en el Brasil: los linderos de la posmodernidad”, em Joaquim Marco, ed.,


Actas XXIX Congreso del Instituto Internacional de Literatura
Iberoamerica, t. III, Barcelona, PPU, 1994, pp. 377-380.
14
"Quando Guimarães Rosa publica em 1946 seu volume Saragana,
o Modernismo, até então carente e incompleto na prosa, reencontra o
espírito de vanguarda e se propaga coerentemente no plano da ficção. Em
1956, com a dupla presença rosiana, Corpo de baile e Grande sertão:
veredas, o Modernismo brasileiro cria definitivamente sua prosa e projeta
todo um novo universo ficcional para a literatura do país” (Sílvio Castro, A
Revolução da palavra (Origens e estrutura da literatura brasileira mo-
derna), Petrópolis, Vozes, 1976, pp. 219-220).
15
José Carlos de Vasconcelos. “Gostaria de ser um crocodilo...”.
Jornal de Letras, Artes e Ideias, 700, 13 Agosto 1997.
16
Vid. Paulo Rónai. “A Fecunda Babel de Guimaraes Rosa e os seus
tradutores”. O Estado de São Paulo, Suplemento Literário, 30 Novembro
1968; “Guimaraes Rosa e os seus tradutores”, O Estado de São Paulo,
Suplemento Literário, 10 Outubro 1971; “Itinerario de João Guimarães Rosa”,
Revista de Cultura Brasileña, 35, 1973, pp. 21-36.
17
Vid. Paulo Rónai. “Unha correspondencia singular”. Grial, 51, 1976,
pp. 109-111.
18
Vid. Stephanie Merrin. “In the wake of the word: Translating Gui-
marães Rosa”. Dispositio, VII, 1982, pp. 209-215.
19
Cf. Isabelle Vanderschelden. “Authority in literary translation:
collaborating with the author”. Translation Review, 56, 1998, pp. 22-31.
20
Paulo Rónai. Escola de tradutores. 5ª ed., Rio de Janeiro, Educom,
1976, p. 23.
21
João Guimarães Rosa. João Guimarães Rosa —Correspondência
com o tradutor italiano. São Paulo, Instituto Italo-Brasileiro, 1972, p. 24.
Certamente Guimarães Rosa nunca poupou louvores, justificados aliás, no
atinente à actividade tradutora de Edoardo Bizzarri: “Que nenhum tradutor
até aos dias de hoje foi tão euforicamente elogiado pelo autor que traduziu
como o foi Edoardo Bizzarri por Guimarães Rosa, é uma verdade tão firme
que sobre ela se pode apostar, sem receio, dobrado contra singelo” (José
Alves Pires, João Guimarães Rosa —Uma literatura almada, Braga -
Lisboa, Editorial A. I. - Edições Brotéria, 1993, p. 162).
22
São interessantes de modo muito especial os seguintes contributos:
M. Cavalcanti Proença, Trilha do Grande Sertão, Rio de Janeiro, Serviço
de Documentação do M.E.C., 1958; Oswaldino Marques, Ensaios Esco-
lhidos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968; Irlemar Chiampi Cortez,
“Narración y metalenguaje en Grande Sertão: Veredas”, Revista
Iberoamericana, 43, 1977, pp. 199-224; Julio E. Miranda, “Modos, lenguaje
y sentido en Gran sertón: veredas, de João Guimarães Rosa”, Revista de
Cultura Brasileña, 21, 1967, pp. 161-170.
23
Cf. por exemplo William M. Davis. “Japanese Elements in Grande
sertão: veredas”. Romance Philology. 29, 1976, pp. 409-434.
164 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

24
Vid. Vítor Manuel Aguiar e Silva. “Visão do mundo e estilo em
Grande sertão: veredas”, em VV.AA., Guimarães Rosa. Lisboa, Instituto
Luso-Brasileiro, 1969, pp. 76-77.
25
Foi Paz-Andrade, polígrafo galego, quem pôs de relevo essa di-
mensão da linguagem de Guimarães Rosa: “Elementos galegos que perderan
vixencia no portugués, maormente no literario, ou que dentro da mesma
área da comunidade lingüística viñeran a menos, se non ficaban esmoreci-
dos, recobran a súa plenitude ou a súa pristinidade na obra rosiana.
Regroman nos tecidos do idioma con insospeitados valores expresivos,
con beleza reconquerida” (Valentín Paz-Andrade, A galecidade na obra
de Guimarães Rosa, Sada-A Coruña, Ediciós do Castro, 1978, p. 84). Cf.
ainda Salvador Lorenzana, “Un mergullo pasadío na obra de Guimarães
Rosa”, Grial, 98, 1987, pp. 433-443; Eduardo Moreiras, “Vivencias galegas
nas narracións de Guimarães Rosa”, Grial, 48, 1975, pp. 168-174.
26
Vid. Pilar Gómez Debate. “Notas sobre las versiones y traducciones
de Grande sertão: veredas”. Revista de Cultura Brasileña, 21, 1967, pp.
188-208.
27
João Guimarães Rosa. Diadorim. Paris, Editions Albin Michel, 1965.
Trad.: Jean-Jacques Villard.
28
João Guimarães Rosa. The Devil to Pay in the Backlands. New
York, Alfred A. Knopf Publisher, 1963. Trad.: James L. Taylor e Harriet Onis.
29
João Guimarães Rosa. Gran sertón: veredas. Madrid, Alianza
Editorial, 1999. Trad.: Ángel Crespo. A 1ª ed. foi publicada em Barce-
lona, por Editorial Seix Barral, no ano 1965. Vid. também Ángel Cres-
po, “Breve antología de Guimarães Rosa”, Revista de Cultura
Brasileña, 21, 1967, pp. 107-160. Há ainda mais traduções de Guima-
rães Rosa para espanhol: Primeras historias, Barcelona, Seix Barral,
1982. Trad.: Virginia Fagnani Wey. A 1ª ed. foi publicada em 1969;
Manolón y Miguelín, Madrid, Ediciones Alfaguara, 1981. Trad.: Pilar
Gómez Bedate; Noches del sertón, Barcelona, Editorial Seix Barral,
1982. Trad.: Estela dos Santos; Urubuquaquá, Barcelona, Editorial
Seix Barral, 1982. Trad.: Estela dos Santos.
30
Ángel Crespo. “Nota del traductor”, em João Guimarães Rosa, Gran
sertón: veredas. Madrid, Alianza Editorial, 1999, pp. 15-18.
31
Guimarães Rosa. Gran Sertón:..., p. 605.
32
João Guimarães Rosa. Grande sertão. Colonia, Kiepenheur &
Witsch, 1964. Trad.: Curt Meyer-Clason.
33
João Guimarães Rosa. “Prefácio”, em Paulo Rónai, Antologia do
conto húngaro. 3ª ed., Rio de Janeiro, Artenova, 1975.
34
Apud Paulo Rónai. A tradução vivida. Rio de Janeiro, Educom,
1976, p. 114.
35
Cf. Haroldo de Campos. “Da tradução como criação e como crítica”
e “A linguagem do Iauaretê”, em Metalinguagem & Outras Metas. 4ª ed.
revista, São Paulo, Editora Perspectiva, 1992, pp. 31-48 e pp. 57-63.
36
Cf. Levantado do Chão. Lisboa, Editorial Caminho, 1980; São Paulo,
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 165

Difel, 1982. Memorial do convento, Lisboa, Editorial Caminho, 1982; São


Paulo, Difel, 1983; Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 7ª ed., 1989; São Paulo,
Círculo do Livro, 1987. O ano da morte de Ricardo Reis, Lisboa, Editorial
Caminho, 1984; São Paulo, Companhia das Letras, 1989. A jangada de pe-
dra, Lisboa, Editorial Caminho, 1986; São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
37
Jô Soares. O Xangô de Baker Street. Rio de Janeiro, Companhia
das Letras, 1997; Lisboa, Editorial Presença, 1997.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 167

Parte II
Comunicações especiais
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 169

Análise contrastiva da
variedade da Língua Portuguesa
no Brasil e em Portugal
Alessandra Dias Gervasoni,
da Universidade de Assis, SP
Em homenagem ao magnífico
lingüista Eugenio Coseriu

Introdução

Propõe-se, na presente comunicação, apresentar a Língua


Portuguesa ao mesmo tempo na sua unidade e na sua diversida-
de. Para tanto, aplicar-nos-emos os postulados teóricos básicos do
texto “Sistema, Norma e Fala”, de E. Coseriu, ao nosso corpus,
constituído por estruturas extraídas da prática cotidiana de comu-
nicação entre os falantes.
Existem diferenças entre o português de Portugal e o do Bra-
sil. Essas diferenças abrangem todos os aspectos da língua - foné-
tica, léxico, morfologia e sintaxe. A própria ortografia não está
ainda totalmente unificada. Assim, cada uma das duas formas que
toma a língua escrita e falada deve ser considerada, no seu domí-
nio geográfico próprio, como a única válida e “correta”. Há por-
tanto duas normas do português, cada uma das quais forma um
sistema autônomo e coerente. Apesar de todas essas diferenças,
serão analisados somente os níveis morfológico e sintático.

1. Pressupostos Teóricos
Segundo Saussure, a língua é uma instituição social, exterior
ao indivíduo, a este não cabe nem criá-la nem modificá-la, uma
vez que existe como um contrato estabelecido entre os vários
membros de uma mesma comunidade. Somente com o auxílio da
aprendizagem, e, de maneira lenta, a criança vai aprendendo o
170 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

funcionamento da linguagem.
O estudo da linguagem abrange dois aspectos fundamentais:
um, tem por objeto a língua, refere-se àquilo que é essencial e que
apresenta o caráter social da linguagem, sendo de natureza pura-
mente psíquica. O outro aspecto, por sua vez, já tem por objeto a
parte individual, referindo-se à fala, à fonação propriamente dita e
psicofísica. Essas duas modalidades da linguagem, denominadas
língua e fala, são interdependentes.
O lingüista romeno Eugenio Coseriu propôs uma divisão
tripartida segundo o modelo abaixo (1979, p.56), por achar insufi-
ciente a bipartição saussuriana:
Parole uso
langue
(norma intermediária) (sistema funcional)
A divisão de Coseriu vai do mais concreto (parole) ao mais
abstrato (langue), passando por um grau intermediário: a norma.
Com a divisão tripartida, ficam melhor esclarecidos os funda-
mentos dos vários aspectos, tendências e orientações da lingüística.
Assim, esta pode dedicar-se à análise do falar – teoria da lingua-
gem – ou ao estudo das línguas – lingüística histórica. Ao conside-
rar a linguagem, pode estudar e valorizar a originalidade expressi-
va do falante – estética –, pode estudar a norma – história da
cultura –, ou o sistema gramática pura.
Portanto, a única realidade lingüística é o falar concreto (=
linguagem). Nesse falar concreto, nessa atividade lingüística Coseriu
distingue gradualmente três conceitos já citados: Fala (ou falar): atos
de criação inédita por corresponder a intuições inéditas, mas (são)
ao mesmo tempo – dada a condição essencial comunicativa da lin-
guagem – atos de recriação; não são invenções ex novo e totalmen-
te arbitrárias do indivíduo falante, mas estruturam-se sobre modelos
precedentes. Norma: o falante utiliza modelos, formas ideais que
encontra no que chamamos de ‘língua anterior’ (sistema preceden-
te de atos lingüísticos). Ou seja, o indivíduo cria sua expressão numa
língua, fala uma língua, realiza concretamente, na sua fala, moldes,
estruturas da língua da comunidade. Num primeiro grau de
formalização, essas estruturas são simplesmente normais e tradici-
onais na comunidade, constituem o que chamamos de norma. Siste-
ma: mas num plano de abstração superior, derivam-se delas mes-
mas uma série de elementos essenciais e indispensáveis, de oposi-
ções funcionais: o que chamamos de sistema.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 171

2. Análise contrastiva
Resumindo, o sistema é um conjunto de oposições funcionais;
a norma é a realização “coletiva” do sistema, a qual contém o pró-
prio sistema mais os elementos funcionalmente “não-pertinentes”,
mas normais no falar de uma coletividade; o falar é a realização
concreta da norma que contém a própria norma (conseqüentemen-
te também o sistema) mais a originalidade expressiva dos falantes.
Com respeito especificamente à Língua Portuguesa, o “sis-
tema” é o aspecto de unificação da língua e a “norma”, o aspec-
to de diversificação da mesma. O estabelecimento de uma nor-
ma lingüística parte geralmente da consideração das variedades
literárias e socioculturalmente mais prestigiadas da língua em
causa. Porque não é possível legislar sobre a evolução lingüística,
que se tem de aceitar como um fato com suas conseqüências,
torna-se naturalmente inevitável estabelecer a norma portugue-
sa e a norma brasileira.
Segundo Coseriu, “na linguagem é importante o pólo da vari-
edade, que corresponde à expressão individual, mas também o é o
da unidade, que corresponde à comunicação inter-individual e é
garantia de intercompreensão. A linguagem expressa o indivíduo
por seu caráter de criação, mas expressa também o ambiente
social e nacional, por seu caráter de repetição, de aceitação de
uma norma, que é ao mesmo tempo histórica e sincrônica: existe o
falar, porque existem indivíduos que pensam e sentem, e existem
‘línguas’ como entidades históricas e como sistemas e normas
ideais, porque a linguagem não é só expressão, finalidade em si
mesma, senão também comunicação, finalidade instrumental, ex-
pressão para outro, cultura objetivada historicamente e que trans-
cende ao indivíduo” (La geografía linguística).
Não menos importante é o objetivo prático, ou seja, o de ela-
borar um trabalho útil tanto para o professor como para o aluno,
um trabalho que possa demonstrar – através de alguns exemplos
– as diferenças da Língua Portuguesa de um país para outro, e a
praticidade que a teoria funcionalista permite ao seu estudo.
Através da análise, quando um exemplar particular, uma pala-
vra, uma forma ou uma grafia pertencem exclusivamente a uma
das duas normas, indicamo-lo pelas abreviaturas P ou B, demons-
trando a variedade da Língua Portuguesa na Europa e no Brasil.

2.1. Emprego dos pronomes de tratamento da 2ª pessoa


O tratamento é o modo pelo qual aquele que fala se dirige ao
172 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

interlocutor (ou aos seus interlocutores).


O português tinha originalmente um sistema de tratamento
idêntico ao do francês, baseado na oposição de tu e vós.
A partir do século XVI um novo sistema veio sobrepor-se a
este: o tratamento da 3ª pessoa. Usou-se nessa altura: Vossa Se-
nhoria, Vossa Mercê e outras formas do mesmo tipo.
Daqui resultou, na língua moderna, um sistema complexo que,
além disso, não é o mesmo em Portugal e no Brasil. Exemplos:
Tu foste à Universidade. (P)
Tu: muito vivo e geral como tratamento familiar.
Vós: sobrevivência literária; fora de uso da língua falada, na
maior parte do País.
Você foi na Universidade. (B)
Tu: já não existe senão no extremo sul e no extremo norte.
As formas te, ti, contigo ouvem-se no entanto na linguagem fami-
liar, misturadas com você.
Vós: como em Portugal, desapareceu completamente da lín-
gua falada.
No Brasil, tu e vós continuam evidentemente a pertencer à
tradição literária.
Segundo a Gramática Brasileira, você é uma forma de trata-
mento indireto de 2ª pessoa que leva o verbo para a 3ª pessoa.
“Em quase todo território brasileiro, foi ele substituído por
você como forma de intimidade, como tratamento de igual para
igual ou de superior para inferior...” (Celso Cunha & Lindley Cintra,
pág. 294).

2.2. Utilização e colocação das formas casuais dos pro-


nomes pessoais
Eu vi ele na rua. (B)
Eu vi-o na rua. (P)
Os pronomes átonos o, a, os, as têm um emprego mais limita-
do no Brasil do que em Portugal.
Mas a maneira mais comum de evitar os pronomes átonos
o(s), e a(s) consiste em substituí-los pelas formas tônicas ele(s) e
ela(s), como o exemplo citado acima.
Embora esta construção tenha raízes antigas no idioma, pois
se documenta em escritores portugueses dos séculos XIII e XIV,
deve ser hoje evitada.
Segundo a Gramática Brasileira, o pronome ele, no portugu-
ês moderno só aparece como objeto direto quando precedido de
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 173

todo ou só (adjetivo) ou se adotado de acentuação enfática, em


prosa ou verso: “Só eles conservam o português”.
Diz-se e escreve-se assim no Brasil: “Me parece que...” “Se
sentou...”
Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra, a colocação do pro-
nome átono não está incorreta, pois em relação ao verbo, o mes-
mo pode estar enclítico, proclítico e mesoclítico. Mas, sendo o
pronome átono objeto direto ou indireto do verbo, a sua posição
lógica normal é ênclise.
Eu me calei. (B)

2.3. Funções do pronome se


O autor Evanildo Bechara cita três funções sintáticas:
1) sujeito de infinitivo (com auxiliares causativos, mormente
deixar):
Deixou-se ficar à janela (B e P).
2) objeto direto (com verbo transitivo direto na voz reflexiva):
Ele se feriu. (B)
Ele feriu-se. (P)
3) objeto indireto (com verbo transitivo indireto na voz refle-
xiva, ou com verbo acompanhado de dois complementos):
Elas se correspondem freqüentemente. (B)
Elas correspondem-se freqüentemente. (P)
Pode ainda o pronome se juntar-se a verbos que indicam:
1) sentimento: admirar-se, esquecer-se, lembrar-se, queixar-
se, atrever-se, etc.
2) movimento ou atitudes da pessoa em relação ao seu pró-
prio corpo. Exemplos:
João se levantou (B) – movimento
João levantou-se (P) – movimento
Desta forma, o uso brasileiro está incorreto, pois o pronome
se junta-se a um verbo de movimento (levantar). Enfim, o uso
característico do português do Brasil, ou seja, o lugar do pronome
é constante qualquer que seja a construção da frase.

2.4. Utilização de preposições


O na é amálgama de em + a. Só deve ser utilizado no espaço
e na noção, por exemplo, “O jantar está na mesa” (B e P).
A preposição em amalgama-se com artigo definido (na, no,
etc.) e indefinido (num, etc.). Exemplos:
Fui na cidade. (B) – De acordo com a Gramática Tradicio-
174 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

nal, está incorreto.


Fui à cidade. (P)

2.5. Construção aspectual


Ela estava brincando. (B)
Ela estava a brincar. (P) .
A construção de estar (ou andar) + gerúndio, preferida no
Brasil, é a mais antiga no idioma e ainda tem vitalidade em dialetos
centro-meridionais de Portugal (principalmente no Alentejo e no
Algarve), nos Açores e nos países africanos de Língua Portuguesa.
No português padrão e nos dialetos setentrionais de Portugal
predomina hoje a construção, de sentido idêntico, formada de es-
tar (ou andar) + preposição a + infinitivo, que aparece, uma vez
por outra, na pena de escritores brasileiros. Estar + gerúndio foi o
uso corrente em Portugal até séc. XIX. Só a partir de então surge
estar + a + infinitivo, porém, os brasileiros não se modernizaram,
pois continuam até hoje usando o gerúndio.

2.6. Morfologia do Verbo na linguagem popular do Brasil


Na linguagem popular do Brasil a morfologia do verbo sofreu
grandes simplificações. Apenas subsistem as primeiras e tercei-
ras pessoas do singular e do plural (o tratamento por você, etc.,
torna inúteis as segundas pessoas). As desinências foram
simplificadas, quer pelo desgaste fonético (queda do r final, por
exemplo cantá por cantar), quer pela unificação dos paradigmas
(supressão da desinência –mos da primeira pessoa do plural). Por
exemplo, a conjugação simplificada do verbo devê (dever) no pre-
sente do indicativo e do conjuntivo será:
eu devo eu deva
ele deve ele deva
nós deve nós deva
eles deve eles deva
(indicativo) (conjuntivo)

3. Conclusão
A norma de Portugal é fácil de definir, pois é objeto de um
vasto consenso e foi estudada muitas vezes. A do Brasil, pelo
contrário, põe um problema específico, pois está longe de ser uni-
versalmente reconhecida pelos próprios brasileiros. Enquanto no Brasil
não se estabeleceu um consenso como em Portugal, o enunciado da
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 175

norma brasileira será, por vezes, necessariamente vago e impreciso.


Com relação ao extensíssimo território brasileiro da Língua
Portuguesa, a insuficiência de informações rigorosamente científi-
cas sobre as diferenças de natureza fonética, morfo-sintática e
lexical que separam as variedades regionais nele existentes não
permite classificá-las em bases semelhantes às que foram adotadas
na classificação dos dialetos do português europeu.
Estas características, são do nosso ponto de vista, as coorde-
nadas sociais e culturais que não só os justificam, mas também os
condicionam. Porque, em verdade, tudo faz crer que estamos no
limiar de uma era sociopolítica em que as grandes línguas nacionais
tendem a apresentar progressivamente uma coesão mais profunda,
uma unidade superior, fruto da disseminação do ensino e, sobretudo,
da consciência cada vez mais viva da nacionalidade.
Nossas aventuras linguísticas pelo português terminam aqui.
Nossa viagem para dentro do túnel definitivamente começou so-
mente quando constatamos que o português, como termo genéri-
co, poderia apresentar ramificações dentro do túnel: ou o portugu-
ês europeu, ou o português que falamos hoje no Brasil. Realiza-
mos, então, resumidamente, um percurso pelo sistema morfológico,
sintático, etc., procurando resgatar as principais modificações que
o português teria sofrido a partir do latim.
Do túnel, entretanto, não poderemos sair. Nossa língua-mãe,
o português, dentro dele nos aprisiona e nos cativa; através dela,
essa “última flor do Lácio, inculta e bela”, nos expressamos, falan-
do ou escrevendo. E além disso, quão estimulante é a simples
constatação de que, em um futuro remoto, nós também seremos
visitados por novos aventureiros, mas, como nós, eterno apaixona-
dos pelo funcionamento desse sistema de comunicação. Presos e
cativos estamos, sim, mas livres para variar e mudar esse sistema
em novas formas e novas funções.

Referências bibliográficas
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sintática. Rio de Janeiro, Grifo.
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neiro, Ao Livro Técnico S/A.
CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley (1985). Nova Gramática do
português contemporâneo. 2ªed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
176 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

SAUSSURE, Ferdinand (1972). Curso de lingüística geral. 4ªed.,


São Paulo, Cultrix.

O autor Eugenio Coseriu afirma que a possibilidade e a ne-


cessidade de distinguir entre norma e sistema surgiu-lhe da pró-
pria obra de Saussure e se propõe voltar a ela para encontrar a
origem das dificuldades, contradições e incoerências contidas nos
vários enunciados acerca da língua e da fala. Pretende nela en-
contrar também possíveis sugestões que levem a uma solução
mais aceitável do problema. Não atribui à doutrina de Saussure
uma incoerência fundamental, mas acha que sua concepção ofe-
rece, sim, dificuldades de interpretação, pois não foi suficiente-
mente desenvolvida.
Podemos notar que a norma brasileira distingue extremamente
da linguagem escrita padrão culta, enquanto a norma portuguesa
está mais próxima dessa linguagem.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 177

José de Alencar e a língua nacional


Ana Lucia de Souza Henriques,
da UERJ

A necessidade de consolidação ou de preservação de cultu-


ras nacionais levou escritores do Romantismo a valorizar determi-
nados elementos que queriam como típicos de seus países, dentre
eles a língua nacional. A conquista da independência fez com que
nações jovens, como o Brasil, defendessem a idéia da existência
de uma cultura própria.
O movimento romântico chega ao nosso país na década
seguinte à da independência. A nação recém-independente co-
meça a pensar a sua história, a resgatar suas tradições, buscan-
do-as por isso em suas origens. Havia, pois, a necessidade de
consolidar a cultura nacional, de fundar uma literatura própria,
como também de afirmar, frente a Portugal principalmente, o
espírito nacional brasileiro.
O momento histórico-social de então tem, portanto, extrema
relevância para que se compreenda o sentimento nacionalista que
iria surgir, acompanhado da importância de se criar a imagem de
um país coeso, unido nacionalmente. Após a conquista da inde-
pendência política, cabia lutar pela liberdade nas artes. Nossos
escritores desejavam construir uma literatura que estivesse em
harmonia com a natureza americana, que servisse como um ins-
trumento de valorização do país.
Na verdade, o que pode ser observado nesse período é a inten-
sificação de um processo de afirmação de nossa nacionalidade, cuja
origem é anterior ao Romantismo e à independência do país. Dessa
forma, o início desse processo surge ainda no Brasil colonial. Suas
sementes vão sendo plantadas pelos árcades brasileiros, tanto
neoclássicos quanto pré-românticos. Mesmo ainda estando presos
178 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

a moldes universalistas, esses escritores voltaram-se para temas e


sentimentos nossos. (Cf. CÂNDIDO, 1971, vol. II, p. 9-10)
Durante toda sua carreira, José de Alencar valorizou a litera-
tura nacional. Em prefácios, posfácios, cartas de advertência, dei-
xaria sempre clara a preocupação em propagar e defender suas
idéias em relação ao rumo a ser tomado pela literatura brasileira, o
que conseqüentemente significou também a defesa do estilo
adotado por ele em suas obras.
Ainda jovem, fala sobre a literatura nacional nascente nas crí-
ticas que tece ao poema épico indianista A confederação dos
tamoios, de Gonçalves de Magalhães, publicado em 1864 às
expensas do imperador D. Pedro II. Magalhães pretendia que seu
texto fosse considerado o poema épico nacional por excelência, pois
glorificava o passado histórico da nação e o sentimento antilusitano.
Alencar causou uma polêmica ao questionar, em suas Car-
tas sobre a confederação dos tamoios, a inadequação do poe-
ma de Magalhães em relação ao que ele se propusera cantar.
Essas críticas se referem a um poema que se queria nacional, não
a um poema qualquer. E é, sob esse ponto de vista, que dirige suas
críticas, enfatizando constantemente a idéia de que a literatura
nacional nascente deveria estar de acordo com a nossa terra e
nossa gente. (ALENCAR, vol. IV, p. 914)
Na concepção alencariana a respeito da maneira apropria-
da para cantar a paisagem e o povo brasileiros de uma forma
original mais adequada aos tão buscados traços nacionais, pode-
se observar que não caberia o emprego de modelos pré-estabe-
lecidos, nem tampouco a repetição pura e simples de costumes e
vocábulos indígenas.
Assim, nas Cartas sobre a confederação dos tamoios,
Alencar não apenas critica o poema épico de Magalhães, como já
dissemos, mas também vai, à medida que fundamenta suas críti-
cas, fornecendo dados a respeito do que acreditava ser necessá-
rio à criação de uma obra dentro de um estilo que pudesse ser
típico da literatura nacional nascente.
Essa sua maneira de pensar levou José de Alencar a conside-
rar o romance a forma apropriada para escrever seu poema nacio-
nal. Iracema é, então, escrito nessa nova forma por ele sugerida, e
Alencar, servindo-se da temática do indianismo, participa conscien-
temente da fundação de uma literatura nacional que retrata o país,
fazendo-o de uma forma original e valendo-se de uma linguagem
que acredita ser bem próxima ao português falado no Brasil.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 179

A originalidade da língua e do estilo alencarianos foi motivo


de crítica variada. O escritor não deixou de falar em defesa de
seus romances, apresentando argumentos bem fundamentados,
típicos de quem estudara o assunto de que tratava. Segundo ele,
suas opiniões a respeito de gramática fizeram com que fosse to-
mado tanto como um inovador quanto como um escritor incorreto
e descuidado. (ALENCAR, 1958, vol. III, p. 312)
Assim, em sua resposta à crítica que o literato português Pi-
nheiro Chagas fez sobre a falta de correção na linguagem portu-
guesa em Iracema, o escritor cearense refuta as acusações afir-
mando que não se tratava de uma mania de nossos escritores
querer tornar o “brasileiro” uma língua diferente do velho
português. (ALENCAR, 1958, vol. III, p. 314)
Segundo Alencar, a origem das mudança estava no falar
de um povo que, além de separado politicamente, encontrava-se
em um continente de características próprias. Mais tarde, em
1872, em Bênção paterna, ensaio que antecede o primeiro capí-
tulo do romance Sonhos d’ouro, Alencar perguntaria: O povo
que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode
falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do
povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?
(ALENCAR, 1959, vol. I, p. 702)
Essas transformações na linguagem seriam, segundo sua
maneira de pensar, conseqüência de vários fatores combinados,
como as condições climáticas, a contribuição dos primitivos habi-
tantes e a influência recebida pelos estrangeiros que aqui viviam.
Todos, enfim, participariam desse processo, que ele considerava
um aperfeiçoamento, uma adequação da língua ao espírito do povo.
José de Alencar revela no estilo por ele utilizado em Iracema
que suas pesquisas abrangeram também o campo da linguagem,
pois o preocupavam questões como o vocabulário, a ortografia, a
acentuação e a gramática da Língua Portuguesa falada no Brasil,
a língua nacional.
Após tecer considerações acerca de algumas das escolhas
lingüísticas que faz, o escritor deixa evidente sua determinação
em procurar escrever de uma maneira mais adequada à língua
nacional. Uma das questões de que trata é a do pronome se, que,
em suas palavras, zune em torno da frase como uma vespa
teimosa. (ALENCAR, 1958, vol. III, p. 315) Alencar demonstra
ter pesquisado o tema, pois afirma que procurara e encontrara na
gramática uma solução para o uso adequado de pronomes. Co-
180 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

menta o assunto e, em seguida, passa a tratar da colocação dos


pronomes pessoais oblíquos átonos. Sobre eles, escreve no Pós-
escrito de Iracema:

É também matéria de escândalo a colocação


dos pronomes pessoais que servem de comple-
mento ao verbo, me, te, lhe e se. Entendem que
nós os brasileiros afrancesamos o discurso, fa-
zendo em geral preceder o pronome, quando em
português de bom cunho a regra é pospor o pro-
nome.
Tal regra não passa de arbítrio que sem fun-
damento algum se arrogam certos gramáticos. Pelo
mecanismo primitivo da língua, como pela melhor
lição dos bons escritores, a regra a respeito da
colocação do pronome e de todas as partes da
oração é a clareza e elegância, eufonia e fidelidade
na reprodução do pensamento. (ALENCAR, 1958,
vol. III, p. 316-317)

Em relação a isso, no livro a Gramática de José de Alencar,


Cândido Jucá Filho tece vários comentários e aponta, em trechos
retirados de obras diversas do autor de Iracema, a maneira pela
qual os pronomes foram ou deixaram de ser empregados.
Gladstone Chaves de Melo, em Alencar e a “língua brasi-
leira”, afirma que Alencar colocou pronomes regular (aqui a
palavra tem sentido gramatical lusitano) e irregularmente,
levado pela eurritmia da frase. Gladstone chama a atenção para
o fato de o escritor ter feito mudanças em relação à posição de
pronomes na segunda edição de Iracema, nas quais colocações
regulares passaram a ser irregulares. (MELO, 1972, p. 104)
Em seu ensaio Alencar e língua do Brasil, Evanildo Bechara
ressalta que o autor de Iracema, ao falar em defesa de seus usos
lingüísticos, faz antecipações que já apontavam para estudos cien-
tíficos da língua que viriam a ser realizados anos mais tarde. Co-
mentando a atualidade das afirmações de Alencar, Bechara cita
Said Ali e comprova a grande semelhança existente entre o que
dissera o autor de Iracema e o que diria, anos mais tarde, esse
renomado filólogo.
Consideramos ainda relevantes os comentários de Cândido
Jucá sobre os recursos lingüísticos utilizados por Alencar quando
procura mostrar a forma com que o estrangeiro fala a Língua
Portuguesa. Devemos entender por estrangeiro todo aquele que
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 181

não tem o português como língua-mãe. Daí o índio em Alencar


também demonstrar certa dificuldade em se expressar num idio-
ma que não é o seu. Sobre essa questão, diz o crítico:
O Índio nem sempre se ajeita em usar, falan-
do de si, os pronomes da primeira pessoa. Expri-
me-se como as crianças, ainda não adestradas, na
terceira pessoa:
“– A filha de Araquém é mais forte que o
chefe dos guerreiros – disse Iracema travando da
inúbia. – Ela tem aqui a voz de Tupã, que chama
seu povo” (Iracema, p. 41.). Ou seja: “– Eu sou
mais forte que o chefe dos guerreiros. Eu tenho
aqui a voz de Tupã, que chama seu povo”.

Um outro recurso lingüístico comentado por Cândido Jucá é


o da utilização das formas depoentes dos verbos, segundo o críti-
co, Alencar as adotava para conseguir um tom estranhável ou
solene, de prática de estrangeiros, ou de linguagem
envelhecida: O irmão de Iracema anuncia que é chegado aos
campos dos Tabajaras”. (Iracema, p. 48)
Cândido Jucá também comenta o fato de Alencar ter inven-
tado palavras, ter introduzido palavras novas e ter feito com que
algumas outras voltassem à circulação. Dentre os vários vocábu-
los citados pelo crítico, citemos, por exemplo, o verbo onomatopaico
rugitar, que, segundo Cândido, foi introduzido pelo autor de Ira-
cema. Este verbo, de acordo com o que diz, surgiu do termo latino
rugitus, que significa particularmente o borborigmo
(burburinho), ou o roncar do ventre. (JUCÁ, 1966, p. 118)
Ainda a respeito da seleção vocabular presente na obra
alencariana, Gladstone Chaves de Melo ressalta o uso de
tupinismos e brasileirismos, apresentando noventa e oito exemplos
colhidos apenas em Iracema. Constam dessa seleção palavras
como carnaúba (Iracema, p.1), graúna, jati, tabajara (Irace-
ma, p. 5), cauim (Iracema, p. 272), ubiratã (Iracema, p. 71),
tacape, araçóia, jenipapo, mandioca (Iracema, p. 133), zabelê
(Iracema, p. 93), dentre outras.
Com relação ao Português do Brasil, Alencar também cha-
ma a atenção para o gênio musical do povo brasileiro, ressaltando
que esse era o fator responsável pela maior sonoridade e brilho do
idioma aqui falado. Ao comentar o estilo de Alencar, Gladstone
Chaves de Melo afirma que quem lê com atenção e com a alma
182 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

os escritos literários de Alencar sente para logo a música de


sua frase. (MELO, 1972, p. 58)
José de Alencar diria que em Iracema seriam encontradas
suas idéias sobre literatura nacional e também a poesia inteira-
mente brasileira, haurida na língua dos selvagens.
(ALENCAR, 1958, vol. III, p. 307) A respeito da maneira em que
deveria ser expressa a língua dos aborígenes, diz Alencar:

Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de


traduzir em sua língua as idéias, embora rudes
e grosseiras, dos índios; mas nessa tradução
está a grande dificuldade; é preciso que a lín-
gua civilizada se molde quanto possa à singe-
leza primitiva da língua bárbara; e não repre-
sente as imagens e pensamentos indígenas se-
não por termos e frases que ao leitor pareçam
naturais na boca do selvagem.
O conhecimento da língua indígena é o me-
lhor critério para a nacionalidade da literatura.
Ele nos dá o verdadeiro estilo, como as imagens
poéticas do selvagem, os modos de seu pensamen-
to, as tendências de seu espírito, e até as maiores
particularidades de sua vida. É nessa fonte que
deve beber o poeta brasileiro; é dela que há de
sair o verdadeiro poema nacional, tal como eu o
imagino.
Cometendo, portanto, o grande arrojo, apro-
veitei o ensejo de realizar as idéias que me flutua-
vam no espírito, e não eram ainda plano fixo; a
reflexão consolidou-as e robusteceu. (ALENCAR,
1958, vol. III, p. 307)

Após mencionar que não conseguira realizar em versos a


obra desejada, Alencar justifica a sua opção pela prosa, em parte
pelo fato de ela oferecer maior elasticidade, o que, segundo afir-
ma, facilita o emprego de imagens indígenas. (ALENCAR, 1958,
vol. III, p. 307) Dessa forma, podemos observar que, em Irace-
ma, ele se preocupa com a questão da autenticidade em uma obra
que deseja adequada ao que o país tem de mais tipicamente seu.
Logo, procura utilizar uma linguagem que acredita ser brasileira
como um importante elemento marcador de nacionalidade para
cantar nossas origens em seu poema nacional.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 183

Referências bibliográficas
ALENCAR, José de. Obras completas. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1958/1960. 4 v.
BECHARA, Evanildo. José de Alencar e a língua do Brasil. In:
MATTOS, Elsa Savino de et alii, eds. Linguagem. Niterói: Ceuff, n. 1, 1978,
p. 105-22.
CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos
decisivos. São Paulo: Martins, 1971. v. 2.
CASTELLO, José Aderaldo, org.. Textos que interessam à história
do romantismo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1961.
COUTINHO, Afrânio. Ainda e sempre a língua brasileira. In:––.
Impertinências. Niterói: EdUFF, 1990, p. 165-205.
JUCÁ (filho), Cândido. A gramática de José de Alencar. Rio de Janeiro:
Colégio Pedro II, 1966.
MELO, Gladstone Chaves de. Alencar e a “língua brasileira”. Rio
de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972.
SILVA NETO, Serafim da. Introdução. In: ––. História da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1970, p. 13-53.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 185

Duarte Nunes do Lião


e a saudade do latim
Antônio Martins de Araujo,
da ABF e UFRJ.

1. A querela entre conservadores e inovadores

Recuemos à Paris de 1529. Nesse ano, o livreiro-editor fran-


cês Geofroy Rory publicou uma obra sua intitulada Champ fleury,
que deflagrou uma verdadeira revolução na ortografia francesa.
A fim de evitar a algaravia em que se constituíra a escrita medie-
val daquele idioma, Tory propôs tirar partido dos recursos aportados
pela incipiente caixa de tipos móveis da imprensa para melhorar e
simplificar a escrita daquele idioma.
Suas lúcidas sugestões caíram logo na aceitação geral e se
incorporaram aos usos do francês escrito de então. Abriram ca-
minho principalmente para que os gramáticos e os ortógrafos de
seu tempo, como Dubois, Louis Meigret e Jacques Peletier du
Mans, estabelecessem o formato de uma das mais estáveis orto-
grafias românicas.
Não obstante o sucesso que alcançaram esses primeiros ajus-
tes ortográficos do francês quinhentista, como era de esperar-se
nesses casos, encontraram eles sérias resistências, como as de
Robert Estienne, impressor do rei, que era a favor da ortografia
tradicional de base latina, com um número enorme de grafemas
sem qualquer valor fonológico.
Segundo a obra do doutor Kukenhein em que colhemos as
informações acima1 , é grande o interesse de filólogos italianos, fran-
ceses e espanhóis, principalmente nos séculos XV e XVI, em esta-
belecer as normas ortográficas dessas três línguas vulgares em face
do latim. Em pouco mais de dois séculos, esse tema ensejou cerca
186 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

de 76 obras e documentos afins de 60 filólogos italianos, 61 outras


de 42 filólogos franceses, e 39 outras de 35 filólogos espanhóis.
Não é de admirar tão prolífica fortuna crítica do tema orto-
grafia naqueles dois séculos, justamente quando estava em jogo o
embate entre a necessidade da racionalização da escrita desses
idiomas em face das inúmeras transformações por que passaram,
e o ideal do retorno às fontes greco-romanas pregado pelo
Renascimento na Europa Ocidental, a partir do movimento que,
nesse sentido, partiu da Itália quatrocentista.
Para a análise dos dados e para o esboço das conclusões a que
chegaremos, contentar-nos-emos com nossas duas primeiras gra-
máticas, a de Fernão de Oliveira2 e a de João de Barros3 , e com
nossos dois primeiros tratados de ortografia, o de Pêro de Maga-
lhães de Gandavo4 e o de Duarte Nunes do Lião5 . A seleção dos
vocábulos foi feita a partir dos vocábulos com consoantes em posi-
ção implosiva medial encontrados no tratado desse último ortógrafo.
O interesse principal desse tema para nós reside no fato de
que o suruabácti de apoio a essas consoantes no uso oral distenso
brasileiro do idioma comum, transforma em sobredáctilos ou
biesdrúxulos trissílabos propararoxítonos, como técnica e rítmi-
co; ou deslocam para a nova sílaba a subtônica de palavras, como
a de abissolutamente. Esse dengue reflete-se no uso literário,
como nas quatro sílabas da palavra ignóbil, destes versos do épi-
co I Juca Pirama, de nosso poeta maior: “Contudo os olhos de
ignóbil pranto / Secos estão; / Mudos os lábios não descerram
queixas / Do coração.”6

2. O corpus em face das metas

E por que estes não outros? Além do valor testemunhal de


suas obras fundadoras num século de profundas mudanças por
que passou o português, poder-se-á lembrar, entre outras razões,
as que ora apresentamos.
Fernão de Oliveira, “um dos gramáticos mais originais (em
certo sentido o mais original” e “o mais importante foneticista da
Renascença na România”, segundo Eugênio Coseriu7 , pela sua
moderna compreensão da mudança lingüística explicitada neste
passo:
“e muy poucas [são] as cousas que duram por todas as ida-
des em hu) estado, quanto mais as falas que sempre se conformão
cõ os conçeitos ou os entenderes, juizos e tratos dos home)s: estes
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 187

home)s entendem, julgão e tratão por diversas vias e muytas, as


vezes segundo quer a neçessidade, as vezes segundo pedem as
inclinações naturaes.”8

Quanto a João de Barros, já bastaria sua preocupação em


criar um sistema próprio de acentuação para refletir o timbre das
vogais de seu tempo. Muito mais do que mero continuador da
Gramática de Antônio de Nebrija em Portugal, valha-nos, por agora,
esta reflexão de Leonor Buescu sobre a obra polimorfa do tam-
bém novelista e poeta JB:

Para além e acima do historiador, do filósofo,


do pensador, do crítico da sociedade e do homem
do Paço, está o sopro renascentista que
condicionou a Gramática no seu conjunto peda-
gógico-didático e fez do seu autor um dos mais
relevantes espíritos do Humanismo português.9

Em relação à de Barros e de Oliveira, é reduzida a bagagem


de Pero de Magalhães de Gândavo. Sua inserção, todavia, aqui
também se impõe, por sua nítida percepção da interação pragmá-
tica entre a pronúncia e a escrita das palavras, consubstanciadas
neste passo:

[...] com saberem [os Portugueses] escrever,


saberião bem pronunciar os vocábulos, & com os
saberem bem pronunciar, ficaria a mesma lingua
parecendo melhor aos naturaes que a professam.
Por onde não avia de aver pessoa que se prezasse
de si, que não trabalhasse por saber algu) latim,
que nisso consiste o falar bem Portugues. e desta
maneira facilme)te euitarião todos estes erros, e
serião perfectos em guardar a orthographia
cõforme á ethymologia e pronunciação dos
vocabulos.10

Finalmente, a Orthographia de Duarte Nunes revela-nos


um homem dividido entre a inovação portuguesa e a tradição lati-
na. Embora, por mais de uma vez, recomende que não se devem
acrescentar ou mudar, na escrita, letras que violentem o uso oral,
pelo menos no tema de que nos ocuparemos aqui, seu sistema
ortográfico está preso a este seu postulado:
188 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

A Vltima regra, que na lembrança deue ser


a primeira seja, que trabalhemos sempre, por in-
vestigar a orige) dos vocabulos. Porq[ue] pela
etymologia delles, se sabe a orthographia, & pela
bõa orthographia a etymologia. E essa he a fonte
& a raiz de fallarmos, & escreuermos bem, & pro-
priamente, ou mal11

Como esse ortógrafo é o que mais prodigamente utilizou con-


soantes em posição implosiva medial, a seleção dos vocábulos de
nosso corpus foi feita a partir daquela sua obra. O cotejo dessas
obras pioneiras de nossa filologia com Os lusíadas 12 nos mostra-
rá se a norma ortográfica de Camões foi inovadora ou conserva-
dora no uso daquelas consoantes. O objetivo principal deste estu-
do, portanto, é mostrar em que graus esse retorno ao latim se
cristalizou nessas cinco obras portugueses quinhentistas. Para tal
demonstração, porém, procedemos a um rigoroso corte
epistemológico. Procuraremos quantificar e qualificar esse retor-
no ao latim, exclusivamente quanto ao apagamento e à recupera-
ção das consoantes /t/, /d/; /p/, /b/; e /k/, /g/, em posição implosiva
medial. Vistas que foram as metas e as razões do corpus, entre-
mos em nosso assunto.

3. As consoantes /t/ e /d/ em posição implosiva

A regularidade com que FO e JB escrevem ajetivo e auerbio


sem o <d> latino parece atestar a fragilização, ou mesmo o apaga-
mento dessa oclusiva linguodental sonora em posição implosiva
medial nos meados do século XVI em Portugal. Com saudades do
latim, DNL recuperaria para o uso aquele grafema que, naquelas
palavras, até hoje resiste gozando da contrapartida fonológica. Por
isso, será mero eufemismo chamar-se de mudas a essas conso-
antes assilábicas. Vejamos o quadro I:

Quadro 1 - Consoante oclusiva linguodental sonora em


posição implosiva medial
F ERN ˆ O D E JOˆ O D E LU˝S VA Z D E P ERO D E DUA RT E
O LIVEI RA (15 36 ) BA R ROS ( 154 0) C A M ES ( Os M A GA LH ˆ ES D E NU N EZ D O
lu s ad as ) (1572) G´ N DA VO (1574) LIˆ O (1 576 )
ajetiu o (s ) 5 v aietiu o(s ) 26 v ad jectiuo 2 v

au Ørb io(s ) 1 5 v ad uerbio (s ) 14 v


au erb io(s ) 8 v au erb io(s ) 3 v 
ad uØrbio (6 0.9)
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 189

Sem o /t/ implosivo, JB grafa o helenismo arisméticos 139.4;


mas DNL, por duas vezes, grafa com o <th> latino arithmetica.
Abramos aqui um parêntese para mostrar a curiosa a sobrevida
do theta grego e do taw (ou tav) hebraico em nosso corpus. Como
oclusiva plena, em início de sílaba, transformou-se hoje em <t>
simples aquele dígrafo nos antropônimos Tamar e Mateus. Em
posição implosiva medial, essa consoante desapareceu na evolu-
ção de Bethlee) 50.23 para Belém; porém, simplifica-se em <t>
na atualização de Bethphagee (ibid.) e Bethsabel (ibid.). E, como
a história das línguas “tem razões que a própria razão desconhe-
ce”, em posição final, após passar pelo crivo do grego e do latim,
os desdobramentos do dígrafo <th> oriundo do grafema hebraico
tav ocorrem meio à la diable. Ou simplifica-se em <-t-> seguido
de um <-e> paragógico em Judite e Rute; ou vira <-s>, valendo /
sà/ ou /s/ conforme a região, em Golias; ou simplesmente apaga-
se em Nazaré e Jafé.
Duarte Nunes também grafa com <-d-> assilábico admirativo
3 v, admittir 10 v, aduertir 10 v, e os antropônimos Ariadna e
Cadmo 37.14. A regularidade desse grafema nos hábitos ortográ-
ficos desse escritor parece testemunhar a presença da consoante
em seu uso oral à época, uso que vem atravessando os tempos até
nossos dias.

4. A consoante /p/ em posição implosiva medial

A evolução da consoante oclusiva bilabial surda em posição


implosiva medial não é muito diversa da história do /t/ que vimos
de examinar. JB já não a representa graficamente em corruçám
126.14; mas, pelo menos a partir de Os Lusíadas, o <-p-> latino
se reinscreve não só naquele substantivo como também nos seus
cognatos corrupto e corruptor; prossegue em PMG e DNL, e
chega incólume até nós. Examinemos o quadro 2:

Quadro 2 - Consoante oclusiva bilabial surda em posi-


ção implosiva medial
FERNˆ O DE JOˆ O DE LU˝S VAZ DE (1574)P ERO DE DUAR TE NUNEZ
OLIVE IR A BARRO S (1540) CAM ES (Os MAG ALHˆ E S DE DO LIˆ O (1576)
(1536) lus adas) (1572) G´ NDAVO
corru Æm corrup ª o 2 v corrup ª o (23.1 ) corrup ª o 15 v
(126.14)
corrupto e fl.5 v corruptamente corrupto e fl. 20 v
corruptorVIII40 (23.10)
escrito(s) 2 v escrito(s) 2 v escripto e fl. 3 v escripta 2 v scripto e fl. 13 v
escritura 8 v escritura 10 v escriptura 4 v escriptura(s) 6 v scriptura(s) 48 v
escriptura (19 .1)
190 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

O mesmo não ocorreu com escrita, e seus cognatos, assim


grafados por FO e JB. Reinstalado por Camões e, depois, por
nossos dois primeiros ortógrafos, esse <-p-> latino não sobreviveu
aí nem em seu cognato escritura.
Se esse <-p-> etimológico em posição implosiva inicial, usado
por DNL em pneuma 37.7 se conserva até hoje; cai, todavia, em
psalmo 37.10, forma com que ele desejava banir salmo, então já
popularizada. Outrossim, resulta frustrada sua tentativa de reinseri-
lo em muitas outras palavras, como baptismo 70.4; baptizar 70.3;
concepto 72.6; malscriptas 61.9; Neptuno 60.5; precepto 52.23
ou preçeptos 1.4; preceptor 52.24; scriptores 2v; septil 43.20; e,
ainda, no antropônimo latino Hiempsal 37.10, e no topônimo helênico
Terapne (ibid.)

5. A consoante /b/ em posição implosiva medial

Quanto a esse tópico, não contemos com a ajuda de PMG.


Nenhum dos cinco vocábulos de nosso corpus se encontra em
suas breves Regras. Enquanto FO, JB e LVC preferem o adj.
escuro, DNL considera-o corrupto, e prefere o erudito obscuro e
o italianizado oscuro. Analisemos o quadro 3:

Quadro 3 - Consoante oclusiva bilabial sonora em po-


sição implosiva medial
FERNˆ O DE JOˆ O DE LU˝S VAZ DE (1574)PERO DE DUARTE NUNEZ
OLIVEIRA (1536) BARROS (1540) CAM ES (Os MAGALHˆ ES DE DO LIˆ O (1576)
Lus adas) (1572) G´ NDAVO
escuro(a) 3v. escura(s) 2 v. escuro e flex. 30 v escuro (70.6)
.
obscuro 3 v
oscuro (70.6)
sogeita (60.2) sogeita v. (116.12) sujeito e fl. 9 v, subjecto 2 v
sogeyta(s) 2 v subjeito (III.127),
sujeitar e fl. 7 v
sugeitar (VII.33)
sojυ)tivo (37.30) suiuntiuo (106.1) subjunctiuo 2 v
suiυ)tivo (96.12)
sustantiuo 3 v substantiuo 3 v
sustª tiuo 4 v substª tiuo (52.14)
sustancia 6 v substancia (5.4)
sustancial (80.14)

Enquanto FO e JB preferem o adj. e particípio sogeita com


<-og->, Camões prefere-os com <-uj->, forma que se imporia.
Aqui, mais uma vez, DNL sacrifica aos numes latinos: grafa
subjecto, com duas consoantes assilábicas. Assim, continua esse
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 191

ortógrafo a opor-se à ortografia fonética dos nossos dois primeiros


gramáticos. FO usa soiuâòtivo, JB suiuntiuo e suiu)tiuo. Ainda
sem o <b> latino, FO grafa nada menos que 7 v sustantiuo, e JB
6 v sustancia, com o sentido de força física.
Das práticas fonético-ortográficas de DNL não pegou o
latinismo absente, que ele dá como variante de ausente neste
passo: “E nos dizemos absente, & ausente, & abano, & auano,
& aljaba, & aljaua, & faba, & fava, & tabula, & tauoa [...]”
4.11. Os demais bês etimológicos por ele mantidos na posição que
estamos examinando sobreviveram até nossos dias, a saber:
Adbera 37.4; obstar 2.3; obstinados 4.1; subterfugio 38.2 e
obtuso 2v.

6. A consoante /g/ em posição implosiva medial

Decididamente DNL extrapola na revoada em direção ao


latim, no tocante ao uso do grafema <g> no fim de sílaba medial.
Olhemos o quadro 4.

Quadro 4 - Consoante oclusiva velar sonora em posi-


ção implosiva medial
FER N ˆ O DE JO ˆ O D E L U ˝S V AZ D E (15 74)P E R O D E D U AR TE N U N EZ
O L I V E IR A B AR R O S (1 54 0) C AM E S (O s M AG ALH ˆ E S D O L Iˆ O ( 1 5 7 6 )
(15 36) L us adas ) (1 57 2 ) D E G ´ N D A VO
a u m e n t o (4 3 .6 ) a u m e n t o (9 4 .1 6 ) aum e nto 3 v augm e nto 2 v
aum e ntatiuo 2 v a u m e n t a t i u o (s ) 5 v
d i n o s ( 5 5 .1 2 ) digno e fl. 8 v d i g n o ( 3 4 .1 6 ) digno e fl. 3 v
dino e fl. 1 5 v
i g n o r a n d o ( 3 4 .2 ) ig no r ar e f l. 3 v
i n o rª te s ( 7 5 .8 ) ig no r ante 4 v ig no r anc ia 3 v
re yno 4 v re yno(s) 2 v re yno(s) 12 v re gno 2 v
r e i no (s ) 8 9 v
s i n i fi c a r 2 6 v s i n i fi c a r e f l . 1 1 v s i g n i f ic a r e f l . 9 v s i g n i f ic a r e f l . 1 8 v

s i n i fi c a ª o 6 v s i n i fi c a a m 3 v, s i g n i f ic a ª o 4 v s i g n i f ic a ª o 2 2 v
s i n i fi c a ª 3 v
s i n i fi c a Æm 3 v
s i n i fi c a ı e s ( 1 1 2 .9 )
s i n i fi c a d o 6 v s i n i fi c Æd o ( s) 5 v s i g n i f ic a d o (1 7 .1 5 ) s i g n i f ic a d o 4 v

Sem esse <g> latino, que, segundo tudo leva a crer, já não
mais se pronunciava, FO, JB e Camões escreveram aumento e
seus cognatos, e mais reyno, esta última já com a omissão da
implosiva velar e o conseqüente desenvolvimento do yode em
semivogal. FO usa a forma dinos, uma só vez, em 55.12; e Camões
prefere-a sem a implosiva. Usa-a 15 vezes contra apenas 8 com o
<g> etimológico. A coexistência das duas formas em Os Lusíadas
parece apontar para a transição da mudança lingüística em favor
192 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

da forma erudita digno, preferida aliás por PMG 34.16 e DNL 3


v. Além disso, a grafia inorãtes em FO 75.8 revela o apagamento
dessa consoante naquela posição, mas vai ser reabilitada por
Camões 4 v, por PMG em ignorando 34.2 e por DNL em igno-
rar 3 v e ignorancia 3 v.
À vista desses elementos, se excluirmos augmento e regno,
cujas grafias à latina parecem divorciar-se da prática oral da épo-
ca, temos de reconhecer que a reinserção do <g> etimológico em
digno, ignorar e significar com seus cognatos, gerou conseqü-
ência fonológica duradoura. É nítida a reabilitação dessa consoan-
te em posição implosiva a partir dos nossos dois ortógrafos do
último quartel do século XVI. Enquanto FO e JB a silenciam em
27 ocorrências; PMG e DNL a reabilitam em 31 outras.

7. A consoante /k/ em posição implosiva medial

Caso extremo é a infrutífera tentativa de PMG abandonar as


formas já ditongadas de perfeito (fl. e der.) e respeito(s), consa-
gradas pelos três antecessores seus aqui estudados, no sentido de
forçar-lhes a realidade morfonológica, grafando perfecto 3v e
respectos 14.8, já obsoletos àquela altura. Cegamente lhe seguiu
os passos, dois anos depois, DNL não só nessas duas lexias, como
também na preferência a lector(es), e lectura, lexias inexistentes
no corpus dos dois gramáticos e de Camões. Debalde DNL tenta
reintegrar aos hábitos manuscritores daquele século, o <-c->
implosivo latino, que não teve sobrevida fonológica, em palavras
como auctor, conjunctas, no subst. contrato (sobreviveu no adj.
participial contracto e fls. [= contraído]), dicto e fls., distincto,
lectores(es) e practica. Exploremos agora o Quadro 5.

Quadro 5 - Consoante oclusiva velar surda em posição


implosiva medial
FERNˆ O DE JOˆ O DE LU˝S VAZ DE PERO DE DUARTE NUNEZ
OLIVEIRA(1536) BARROS (1540) CAM ES (Os MAGALHˆ ES DE DO LIˆ O (1576)
Lus adas) (1572) G´ NDAVO (1574)
autor (30.2) autor(es) 3 v. autoridade 2 v autor 1.9 auctor 2 v.
autoridade 2 v. autoridÆde 2 v. authoridade VII.59 authoridade (36.16)
conjunto (90.18) conjunctas (51.18)
cı jυ)ta 2 v conunctiuo 2 v
contrÆ tas adj. contrato subst. 3 v contracto(s) 3 v .s.
(89.20) cı tracto 2 v s., adj.
ditas 2 v. dita (86.14) dicta 22 v
dito 6 v dito X.5 dito 2 v dicto 22 v
ditoso e fls. 12 v dictos 12 v
distinta(os) 2 v distintos 2 v distinto II.1 distincta(s) 3 v
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 193

distitamente distintamenteX.109
114.18
doutos 2 v douto(s) 2 v douto 3 v doctos 6 v
effeito (15.31) effeitos (122.16), effeito 6 v effecto 6 v
mas effectiuo (79.3) efeyto VIII.81
lector 4 v lector(es) 4 v
lectura (19.9)
perfeyta(s) 3 v perfeito(a) 5 v perfeito(s) 7 v perfectos 2 v perfecto 3 v
perfectamente perfectamente perfectamente 3 v
(116.22) (22.14)
pratica 4 v pratica 2 v practica 4 v
respeito 7 v respeito (71.24) respeito(s) 9 v respectos (14.8) respecto 7 v
respeyto 2 v
sancto (6.27) sancto(s) 44 v sancta (3.2) sancto 3 v
santo(a) 4 v
sojeitas (60.2) sogeitar fl. (106.12) sujeito(a) 9 v, sub- subjecto (subst.)2 v
sogeyta(s) 2 v jeito 1 v, sugeitar e
fl. 6 v, sujeitar 1 v
sojυ)tiuo (37.30) suiuntiuo(106.1) subjunctiuo 2 v
suiυ)tiuo (96.12)
tratar e fl. 11 v tratar e fl. 6 v trayto 6 v tratar 3 v tractar e fl. 8 v
tratada 2 v tracto 2 v tractado 3 v

Por interessantes, impõe-se destacar três casos pontuais


ocorrentes neste tópico, a saber: 1) O uso, só por parte de Camões,
da variante trayto 6v, com ditongação, ao lado da forma culta
tracto 2 v. 2) Isolada é a tentativa de DNL tentar recuperar essa
implosiva no latinismo docto 6 v, ao que tudo indica, sem nenhuma
contrapartida fonológica, à revelia da variante evoluída douto, com
ditongação, já consagrada pelo uso e reconhecida pelos seus
antecessores. 3) Com exceção apenas de JB, é consensual entre
os outros quatros autores aqui estudados, a forma alatinada sancto,
mas a presença de quatro variantes sem a implosiva em Camões
já nos sugere, pelo menos, possível vacilação da pronúncia dessa
palavra ao tempo.
É diante de alguns fatos como os aqui estudados que Mattoso
Câmara Jr advertia: “[...] devemos voltar os olhos para a língua
geral escrita e especialmente para a língua literária, onde a padro-
nização não poucas vezes se afasta da realidade lingüística diária,
e às vezes passa a influir sobre ela. ”13
Por amor à brevidade, silenciaremos sobre outras três deze-
nas de tentativas frustradas de DNL no sentido de reconduzir o <-
c-> com valor implosivo, até à revelia da própria história da língua,
como aquele terrível anoctescer 40.14, com que tenta desbancar
o parassintético anoitecer. A bem da justiça, porém, temos de
reconhecer uma vitória de DNL. Com exceção apenas de Os
194 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Lusíadas, enquanto todos os outros textos do corpus assinalam o


apagamento do /k/ implosivo latino de dictione[m] nas variantes
portuguesas dição / diçam e seu plural dições, as 43 ocorrências
de dicção e as 72 de dicções (um total, portanto, de 115 evidências
na Ortografia do licenciado) são até hoje as formas preferidas em
todo o mundo da lusofonia. Tanto aqui, como em Portugal, e em
África, a semente lionina pegou e deu frutos duradouros.

8. Conclusões

À vista do exposto, eis algumas das conclusões que podere-


mos estabelecer.
1.Na esteira das liberalidades grafemáticas da scriptologia
medieval portuguesa, em que se projetaram os múltiplos dialetos,
falares e idioletos da primeira metade do séc. XVI, indubitavelmente
FO e JB espelharam em suas normas ortográficas o habitual apa-
gamento das consoantes latinas em posição implosiva medial, àque-
la altura, nos 36 vocábulos e nos cognatos selecionados no corpus.
2.Embora algumas dessas consoantes reconduzidas à escrita,
no decorrer da segunda metade dos anos quinhentos, não tenham
gerado conseqüência fonológica duradoura (como em augmento,
auctor e escripto/-ura); outras se revelaram de intensa vitalidade
e chegaram até nós (como em corrupção; substantiuo, substancia;
digno, ignorar, significar).
Sob a palavra de ordem renascentista de retorno às formas, ao
estilo e aos temas da cultura greco-romana, embora já se insinue
discretamente em Os Lusíadas a recuperação gráfica de algumas
dessas consoantes latinas na posição estudada (como em corrupção
e ignorante), essa prática recuperatória se intensifica nas Regras de
Gândavo e se torna constante e homogênea na Ortografia de Duarte
Nunes do Lião. Por isso, mister se faz creditar a este último as láureas
de subverter o preceito de que só à língua escrita cabe espelhar o uso
oral, e assim haver ajudado a mudar os caminhos da história.

Agradecimento
Desejamos expressar nossos agradecimentos ao Prof. Toru
Maruyama por nos haver permitido consultar os Índex Alfabético(s)
do(s) Vocabulário(s) das gramáticas de Fernão de Oliveira e João de
Barros, bem como os dos tratados ortográficos de Pero de Magalhães de
Gândavo e Duarte Nunes do Lião, pertencentes ao acervo da Universi-
dade de Nanzan, da cidade de Nagoya (Japão). Sem tal privilégio, seria
impossível alcançar os objetivos da presente pesquisa.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 195

Notas
1
KUKENHEIN, Dr. L. Contribuitions à l’histoire de la grammaire
italienne, espagnole et française à l’époque de la Renaissance. Amsterdão,
Noord-Hollandsche Nitgevers-Maatschappij, 1932. p. 22-23.
2
OLIVEYRA, Fernão de. Grammatica da lingoagem portuguesa. Fac-
simile da l.ª ed. (Lisboa, Germão Galharde, 1536). Lisboa, Imprensa Nacio-
nal, 1981.
3
BARROS, João de Barros. Cartinha (1539). Grammatica da lingua por-
tuguesa com os mandamentos da santa madre igreja. Dialogo da viçiosa
vergonha (1540). Repr. facsimilada, leitura, introd. e anot. por Maria Leonor
Carvalhão Buescu. Lisboa, Univ. de Lisboa, 1971.
4
GANDAVO, Pero de Magalhães de. Regras que ensinam a maneira de
escrever a orthographia da lingua Portuguesa, com hum Dialogo que
adiante se segue em defensam da mesma lingua. (Lisboa, Antonio
Gonsalves, 1574) Introd. de Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa, Bibli-
oteca Nacional, 1981.
5
LIÃO, Duarte Nunes de. Orthographia da lingoa portuguesa. Lisboa,
Ioão de Barreira impressor del Rei N. S., 1576.
6
DIAS, Antônio Gonçalves. Poesia completa & prosa escolhida. Org. e
estab. de texto por Antônio Houaiss. Rio de Janeiro, Aguilar, 1959. p. 360.
7
COSERIU, Eugenio. Língua e funcionalidade em Fernão de Oliveira.
Rio de Janeiro, EDUFF, 1991. p. 47.
8
op. laud. p. 50, linhas 2-8.
9
BUESCU, Maria Leonor Carvalhão. Historiografia da Língua Portugue-
sa. Lisboa, Sá da Costa, 1984. p. 32
10
Op. laud., p. 8.
11
Op. laud., p.61 verso.
12
CUNHA, Antônio Geraldo da, et alii. Índice analítico do vocabulário
dos Lusíadas. 3 v. Rio de Janeiro, MEC/ INL, 1966.
13
CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dispersos. Rio de Janeiro, Fundação
Getúlio Vargas, 1975, p. 83.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 197

Língua e História do Brasil seiscentista


em um manuscrito lusitano
Carla da Penha Bernardo,
da UFRJ.

Teceremos algumas considerações a partir da leitura do No-


ticiário maranhense, descrição do Estado do Maranhão, suas
contendas e peregrinas circuntâncias, de 1685, de João de Souza
Ferreira,1 fazendo-o dialogar com outras antigas crônicas. O tex-
to, cedido pelo professor Antonio Martins de Araujo (UFRJ), foi
copiado a partir do microfilme do recém-falecido lexicógrafo An-
tônio Geraldo da Cunha, que, por sua vez, fizera cópia do manus-
crito original que pertencera ao bibliófilo francês J. J. Renoux,
também já falecido.
Todos os que se referiram ao Noticiário chamaram a atenção
para seus problemas, sobretudo para sua oscilação ortográfica, tan-
to que Francisco Barata, que editou o texto em 1919, afirmou:
“Manuscripto singular é o que ahi vai por cópia! /..../ Tem defeitos e
erros tão numerosos, que quasi se pode dizer não haver nelle uma
palavra portuguezmente escripta”. Não se pode deixar de notar, no
entanto, o valor documental da obra. As idéias nela presentes, quan-
do lidas junto com as de obras contemporâneas, permitem uma melhor
compreensão de importantes fatos históricos do país.
O Noticiário maranhense é uma forma de angariar a simpatia
real para as terras brasílicas, em especial as do antigo Estado do
Maranhão e Grão-Pará. O texto mostra as adversidades enfrentadas
pelos portugueses em uma terra desconhecida, de climas e hábitos
completamente diversos dos seus, repleta de matas, índios violentos,
doenças, animais ferozes, mas também de bens naturais e de rique-
zas, cujo principal produto, o pau-brasil, oferecia o lucro de 500%.
No livro, defende-se o cativeiro indígena como solução para
eliminar os problemas do norte do país, visto que a mão-de-obra
198 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

negra, além de mais cara, era difícil de ser adquirida no Estado – é


isso o que o autor tenta provar em suas 236 páginas manuscritas.
Havia, de um lado, a proibição do cativeiro defendida pelo
Reino e pelos jesuítas, por isso era preciso não apenas mostrar a
necessidade de submeter os Tapuias ou índios, como os europeus
os chamavam, mas sobretudo prová-la com fatos. Isso foi motivo
de muitos conflitos no Maranhão, o que levaria o povo local a se
revoltar, a perseguir e a expulsar os jesuítas. Sequer o padre Antô-
nio Vieira escaparia.
A dependência do português em relação ao indígena era to-
tal, ‘comendo o branco por sua mão’ e sendo salvo, pelos nativos,
das matas desconhecidas onde os europeus morriam por não po-
derem encontrar a saída:

Demais que, se há razão para se captivarem


pretos, desterrando-os de suas terras, menos
escruplo, parece, se podia fazer de pessuir Tapuias
captivos, ficando no seu natural senhores de suas
plantas e criações os que delas querem tratar, como
se não fossem captivos; nem tal captiveiro se po-
dia tomar pelo reputado dos teologos na Europa,
onde há tal fome e frio, que vestem e comem o que
seus senhores lhes dão; e no Brasil vai tanta dife-
rença, que, baste saber-se, não há fome, nem frio:
comemos por sua mão, e quando eles querem. (p.
176-7).

Nem esse fato, no entanto, foi suficiente para permitir que a


maioria dos brancos visse no índio um semelhante. À época,
homens simples ou nobres, seculares ou religiosos não viam nos
nativos senão um animal, o que já ocorrera com os negros.
Ainda em 1720, Rafael Bluteau, renomado autor do Voca-
bulário latino-português, escreveria, a respeito dos negros, as
seguintes linhas, representantes do pensamento da época:

Tem o [salvagem] cara quasy da feyção de


homem, com o nariz chato, & revolto, cabeça gros-
sa, peyto sem cabello, & as costas cubertas de
cabello negro. Tem este animal muyta força, &
muyta agilidade. Sabe porse em pé, & quasi sempre
anda direyto. Ha salvagem macho & salvagem
femea; esta tem peytos, & ventre a modo de mulher
/..../. Em Hollanda trouxerão ao Príncipe Frederico
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 199

Henrique hua salvagem femea do tamanho de hua


rapariga de tres annos, ainda que gorda,& repleta,
era muyto agil, bebia & comia com aceyo, & dormia
em cama com lençois como gente.

Esse pensamento acerca dos negros e dos índios também se


apresenta no Noticiário em vários pontos. Havendo um grupo
destes sido levado a Lisboa, diante da repugnância manifestada
pelo povo, que “se retirava, ou pelo menos intojava, não lhe saben-
do o nome, mais que de ‘papa gente’” (p. 173), J. S. Ferreira
conclui como Bluteau: “/..../ os Indios, tão alheios dela [são, i. é: da
capacidade], que, de gente, parece, não têm mais que a similhança
/..../”. (p. 173).
O mesmo tipo de exposição se daria com seis indígenas leva-
dos a Paris, anos antes, onde receberam nomes franceses e se
casaram com francesas. Três deles teriam morrido, segundo
Malherbe, “pelo ar não lhes ser saudável”.
Séculos passados, parece-nos tristemente risível o exotismo
e a exploração desses europeus que tudo nos levavam, desde “pa-
pagaios sabendo algumas palavras de francês”, até nossos ho-
mens. Portugueses e franceses, portanto, davam o mesmo trata-
mento aos maranhões brasilianos. Assim, pode-se delinear uma
resposta à pergunta tantas vezes feita sobre os resultados de uma
colonização, no Brasil, realizada por povos que não o lusitano.
Pode-se dizer que enquanto os primeiros pretenderam, de
certa forma, criar a Nova Lusitânia imaginada por Gândavo, os
últimos fundaram sua efêmera França Equinocial. Os próprios
brasílicos, com o tempo, puderam percebê-lo. Por isso, diante do
armistício entre franceses e portugueses no Maranhão, os índios
tomam uma lúcida atitude: “/..../ os índios /..../ manifestavam a
intenção de fugir /..../; nas aldeias, espalhara-se o rumor de que,
se os brancos haviam chegado a um acordo, era para reduzi-los,
todos, ao cativeiro /..../.” (Apud PIANZOLA).
Em pleno século XVI, vivia-se no Brasil um atemporal
medievalismo, falando-se em “liberdade sujeita”, em servos, em dis-
tribuição desigual de terras, problemas que se estenderiam aos sé-
culos seguintes. Não se pode, pois, deixar de admirar a forma mais
moderna e humana de colonização adotada pelos religiosos, sobre-
tudo os jesuítas, o que levaria os habitantes da Colônia a persegui-
rem-nos, fato que se repetiria em outros países. As palavras de
alguns religiosos, no entanto, dão conta de sua idéia de conversão,
como nos lembra J. G. Merquior: “Anchieta acha os silvícolas ‘sem
200 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

engenho’; desenganado, chega a recomendar ‘espada e vara de


ferro, que é a melhor pregação”. Quanto a Nóbrega, seu desabafo
é franco: ‘São tão bestiais, que não lhes entra no coração coisa de
Deus’”. (Apud MERQUIOR, p. 18).
Apesar disso, o tratamento atribuído aos indígenas no Grão-
Pará, como indica Souza Ferreira, se podia ser de extrema cruelda-
de, também podia ser mais humano, sobretudo quando comparado
ao que era dado aos negros. Contudo, nem isso foi suficiente para
impedir que os índios fossem tachados de “naturalmente preguiço-
sos”, ainda que até suas crianças fossem forçadas ao trabalho.
Esse bom tratamento dado aos índios era uma necessidade,
caso contrário, como se indica no Noticiário, eles morriam – natu-
ralmente ou por vontade própria – ou se rebelavam, matando os
brancos, o que, pouco a pouco, também os seculares perceberam.
As crônicas da época mostram que o indígena jamais se sub-
meteu espontaneamente. Mesmo os curumins fugiam diante da pri-
meira oportunidade. Muitos, incapazes de lutar, preferiam a morte
de formas variadas e “desasperadas”, como indica Ferreira, fato
que a literatura romântica apresenta com menos idealismo do que
hoje se imagina:

/..../ muitos que, desno principio da conquista


estavam servindo aos Portugueses por amigos e
companheiros; outros que, quando buscavam a
paz, que com sinal de cristandade se lhes havia
premetido, então se achavam com a liberdade ren-
dida, e assim permaneciam, como se expirimentava,
matando aos senhores e fugindo; outros comendo
terra e morrendo; e as femeas tomando medecina
para não gerarem; e se alguas chegavam a ter fructo,
lhe faziam, como me succedeo, que, comprando
duas Indias com ua cria, se meteram pelo mato, e,
daí a tres dias, voltaram fartas, mas sem o filho,
ensinando outros a comer carvão, cinza, cascas de
pao, terra e outras desasperações, com que uns e
outros se malogravam. (pp. 178-9).

Por que teriam os índios ‘escapado’ ao jugo, ao contrário


dos negros? Por muitas razões, mas, principalmente, porque,
como vimos, os brancos deles dependiam e porque, eles, ao
contrário dos negros, escapavam com facilidade pelos matos:
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 201

Nem estas terras eram como as do Brasil, onde


todos os meses lhes entravam [sic] cantidade de
negros, o que não tinha o Estado do Maranhão,
por suas deficuldades, e que, se os estilos das ter-
ras faziam lei, não eram estas capazes, ainda que em
algu tempo tevessem pretos, para se viver só com
eles, e sem alguns Indios para guias e pilotos dos
mares, por não haver outras estradas de que os
pretos nem a si se saberiam livrar, quanto mais aos
brancos, e menos entrarem e saírem dos matos com
a caça, de que no Estado se vive, pelo menos no
Pará /..../. (p. 48).

Apesar desse conhecimento geográfico e do fato de


muitos conhecerem a língua túpica ou geral ao lado da sua, os
índios sucumbiram. Os negros, por outro lado, resistiram, mas
ainda hoje se reflete o tratamento de séculos idos.
A abolição da escravatura só se deu quando esta era já
um fato. E os libertos de então, sem meios de subsistência,
tinham poucos caminhos: vinganças contra os senhores, assal-
tos em estradas, roubos a fazendas ou nova sujeição aos se-
nhores. Aptidão para o crime e subserviência, diriam alguns,
palavras que são repetidas irrefletidamente, passados mais de
cem anos. E esclarece o samba contemporâneo que o negro hoje
está “livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela” por
problemas que refletem os do passado. No Noticiário, contudo,
fala-se principalmente da causa índia.
No que diz respeito à religião, Ferreira indica “/..../ assim
como não há nenhu [índio] que reze de sua devação [devoção]
mais que enquanto os fazem repetir o que se lhes ensina; da mes-
ma maneira, é necessário, para fazerem algua cousa, estar-se-
lhes sempre apontando com o dedo” (p. 205).
Também os franceses reconhecem que “ensinam” práticas
aos índios, inclusive as religiosas e que eles, segundo Yves d’ Évreux,
“embora não compreendam nada /..../, avançaram tanto que dir-
se-ia que viveram toda a sua vida entre os franceses” (Apud
PIANZOLA, p. 159). E, apesar das evidências, o padre Yves d’
Évreux concluiria que a terra estava conquistada “não pela força,
mas pelo amor” (id., p. 163).
Diferença foi e continua a ser sinônimo de estigma. Por isso,
em relação à língua túpica, acreditaram os portugueses – inclusive
João de Souza Ferreira – não possuir o F, o L e o R entre seus
202 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

fonemas por se tratar de gente “sem Fé, nem Lei, nem Rei”.
Dessa idéia, não escaparia sequer o lúcido e competente Franco
Barreto em sua Ortografia da lingua portuguesa.
Mas o preconceito lingüístico não se ateve ao século de
Ferreira. Acreditou-se que a pretensa “preguiça natural” dos na-
tivos se devesse também ao calor tropical, que atingiria, inclusive,
sua pronúncia. Em texto de Caldcleugh, de 1825, transcrito em “A
vitória do português no Brasil colonial”, de J. H. Rodrigues, lê-se:

O português falado pelos brasileiros /..../


distingue-se facilmente do português de Portu-
gal. O modo de falar é muito mais vagaroso, uma
particularidade que se nota em todas as colônias,
e pode somente ser atribuído ao clima, ao privar
seus habitantes da atividade de espírito, da qual
não há deficiência na Europa, produzindo de fato
considerável lassidão.

Apesar da idéia de lassidão e subserviência que os brancos


passaram acerca dos índios, o que se observa nas crônicas antigas
é seu desejo de escapar ao jugo de todas as formas, até mesmo
asfixiando-se, provocando o aborto e comendo terra. Isso ocorre,
por exemplo, com uma índia prestes a ser devorada por uma tribo
inimiga, a qual, liberta pelos portugueses, segundo João de Souza
Ferreira, “/..../ vendo que a desamarravam, voltou o contentamento
em lagrimas, mostrando que queria mais morrer e deixar nome em
tão celebrada festa do que ser escrava dos brancos” (p. 209).
Anos antes, no mesmo Maranhão, houve conflitos entre os
próprios índios em razão de alguns se renderem aos franceses. Nesse
momento, uma índia lhes gritaria: “Não, não /..../, jamais nos rende-
remos aos tupinambás, eles são traidores. Eis que nossos principais
estão mortos e morreram por essas bocas de fogo [os mosquetes],
coisa que nunca vimos. Se for preciso morrer, morreremos /..../.”
(Apud PIANZOLA, p. 138).
Há inúmeros casos de violência dos indígenas, apresentados
não só no Noticiário maranhense, mas também nas várias crônicas
da época. Ao lado dessa, ocorre a violência dos portugueses, narra-
da por Souza Ferreira, como o sacrifício público de índios diante da
boca do canhão (pp. 37-38). Por vezes, Ferreira critica seus compa-
triotas, inclusive os religiosos, de forma extremamente dura, como
aqui: “/..../ na verdade, mui odioso era o [titolo] de captivos dos
brancos aos Indios, pela falta de justiça”, ou aqui:
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 203

/..../ Porém, sendo este o tempo em que se


deviam fazer as jornadas de conducções pelo rio
das Almazonas, não davam repetidas ambições
lugar a esperar monção [estação apropriada] por-
que todo o tempo lhe parece pouco [ao coloniza-
dor], sendo que no inverno são aquelas jornadas
matadoras, assim pelo ruim tempo e pouco
sostento que se acha, como pela agoa que então
se bebe, turba, das terras que as enchentes vão
quebrando e envolvendo, alimpando os lagos e
matas que vêm batendo, de que saem nuves de
pragas a beberem o sangue da gente: de dia, mui-
ta mosca, e, de noite, mosquitos, tantos, e taes,
que por melhor que ua pessoa se cubra, tudo pas-
sam por chegarem ô couro e carne, que atraves-
sam sem darem lugar a que se possa dormir, a que
os pobres Indios remeiros fazem descuberta bar-
reira, de que, suposto adoecem brancos e negros,
destes morrem mais tanto quanto com maior dife-
rença lhes custa.
Mas, muito sadio é o Almazonas naquele
tempo, quando as agoas apuradas correm, retira-
das de toda a praga, e as praias providas de todo
bom agasalho, cinco meses de bõa monção; se se
subisse pelo natal, e descessem de setembro por
diante, serviria de recreação o que servia de ruína,
e tudo, assim, aproveitaria, mediante o Creador /
..../. (pp. 214-5).

Pelo que se vê, houve violências e equívocos entre brasílicos,


portugueses e franceses no Estado do Maranhão. A antiga colo-
nização se mostra como a grande responsável pelas desigualda-
des sociais hoje vividas no Brasil. O problema da distribuição de
terras, o preconceito racial, o subemprego dos descendentes dos
negros, a redução dos grupos indígenas, os apadrinhamentos –
tudo isso está contado nas velhas crônicas, inclusive no manus-
crito tricentenário de João de Souza Ferreira. O Noticiário
maranhense é um dos documentos que, lido junto aos demais,
serve de subsídio para a História do Maranhão passado e de
seus reflexos no Brasil contemporâneo.
Vale a pena lermos textos brasileiros de 300, 400, 500 anos em
todos os tempos e não apenas em uma data, sem dúvida memorá-
vel, como a que se anuncia. Se, de fato, queremos nos conhecer e
aprender com o já ido, que haja cada vez mais espaço para a pesqui-
204 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

sa desses textos e dessa língua na Universidade brasileira.

Bibliografia
BARRETO, Ioam Franco. Ortografia da lingua portuguesa. Lis-
boa: Officina de Ioam da Costa, MDCLXXI.
BERNARDO, Carla. Edição do manuscrito Noticiário maranhense,
descrição do Estado do Maranhão, suas contendas e peregrinas cir-
cunstâncias, de 1685, de João de Souza Ferreira. Dissertação de Mestrado
em Filologia Românica apresentada à Faculdade de Letras da UFRJ, 1996.
581 pp.
CÂMARA JR. Joaquim Mattoso. Introdução às línguas indíge-
nas brasileiras. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1965.
FERREIRA, João de Souza. Noticiario maranhense, RIHGB. Rio de
Janeiro, v. 81, 1919, pp. 289-352.
GÂNDAVO, Pêro Magalhães de. Tratado da província do Brasil.
Editado por Emmanuel Pereira Filho. Rio de Janeiro: INL – MEC: 1965.
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de
Janeiro: INL, Lisboa: Portugália, 1943. T. III.
LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon; apontamentos, notíci-
as e observações para servirem à História do Maranhão. Tomo II, 1.o
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MARICHAL, Robert. La critique des textes. In:___. L’ Histoire et
ses méthodes. Dir. de Charles Samaran. Paris: Gallimard, 1961.
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America abreviada, suas noticias e de seus naturaes, e em particular
do Maranhão, titulos, contendas e instrucções á sua conservação e
augmento muito uteis pelo padre João de Souza Ferreira. Rio de Janei-
ro. Ms do IHGB, 1888. 11 p.
MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. Rio de Ja-
neiro: Topbooks, 1996.
PIANZOLA, Maurice. Os papagaios amarelos; os franceses na con-
quista do Brasil/ Les perroquets jaunes; des Français à la conquête du
Brésil – XVIIe siècle. Trad. de Rosa Freire d’ Aguiar. São Luís do Maranhão:
Secretaria da Cultura do Estado do Maranhão: Alhambra, 1992.
RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil. São
Paulo: Cia das Letras, 1979. P. I.
______. A Vitória do Português no Brasil Colonial. Brasília, 1983, v.
I, 1983, v. I, n. 4, pp. 21-41, jul.-set., 1983.
TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. Trad. de Celso
Cunha e Claire de Oliveira. Lisboa: Sá da Costa, 1984.
VARNHAGEN, A. História geral do Brasil; antes de sua separa-
ção e independência de Portugal. Revisão e notas de Rodolfo Garcia.
São Paulo: Melhoramentos, MEC, 1975, T. III.
VERNEY, Luís Antonio. Verdadeiro método de estudar. Valensa:
Oficina de Antonio Balle, MDCCXLVI. T. I. Carta I.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 205

VASCONCELLOS, Simão Leite de. Crônica da Companhia de Je-


sus no Brasil. 3. ed. Petrópolis: Vozes; INL: 1977, v. I.

Nota
1
As páginas citadas dizem respeito à edição do manuscrito feita por
nós e indicada na bibliografia.

Carla da Penha Bernardo - Mestra em Filologia Românica e doutoranda


em Literatura Portuguesa (UFRJ).
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 207

Os utensílios de cozinha: português


europeu do séc. XVI em confronto
com o português do Brasil no séc. atual
Celina Márcia de Souza Abbade,
da UNEB/ BA/ BRASIL, PPGL-UFBA

1. Apresentação

Ao iniciar o Mestrado na Universidade Federal da Bahia,


na área de Lingüística Histórica, no primeiro semestre de 1996,
sob a orientação da professora Célia Marques Telles, esco-
lheu-se trabalhar com o estudo de alguns aspectos lexicais das
receitas encontradas no Livro de cozinha da Infanta D. Ma-
ria, manuscrito português do século XVI, a partir da edição
crítica de Giacinto Manuppella.1
O interesse pelo estudo do vocabulário quinhentista relati-
vo à cozinha, surgiu primeiramente da curiosidade despertada
ao se entrar em contato com o primeiro livro manuscrito de
cozinha portuguesa conhecido até o momento: o Livro de co-
zinha da Infanta D. Maria que provavelmente pertenceu ao
final do século XV e princípios do século XVI2 .
Ao deparar-se com tais receitas, reconhecem-se de ime-
diato as diferenças em relação às atuais: o vocabulário utiliza-
do na época, tanto pode diferir do atual, como pode ser manti-
do até os dias de hoje.
Um estudo diacrônico desses vocábulos mostraria a evo-
lução de cada um deles, ou a sua permanência na língua resis-
tindo às modificações através dos tempos. O presente estudo,
entretanto, pretende apenas demonstrar como, apesar de os
tempos modernos terem trazido novos utensílios que não exis-
tiam na época, grande parte deles permanecem, utilizando ape-
nas, algumas vezes, uma nova “roupagem” seja ela na expres-
são ou no objeto material.
208 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Trata-se de um estudo lexicológico, e, portanto, serão ob-


servados apenas os aspectos relativos ao léxico, restringindo-
se o enfoque ao campo dos “utensílios”. Sabe-se, porém, como
é a história de um povo, através do seu vocabulário.
Como textos de base, serão utilizados o Livro de cozinha
da Infanta D. Maria (para os utensílios utilizados no século
XVI) e O livro de cozinha de Pedro Archanjo com as me-
rendas de Dona Flor (para os do século XX). A partir des-
ses textos, mostrar-se-á a evolução ou permanência dos uten-
sílios encontrados em ambos os textos.

2. Dois livros de receitas

2.1. O Livro de cozinha da Infanta D. Maria

O Livro de cozinha da Infanta D. Maria é o manuscrito


I-E-33 da Biblioteca Nacional de Nápoles. Teria pertencido a
uma Infanta portuguesa de cultura notável: a Infanta D. Maria
de Portugal, filha de D. Duarte (1515/1540) duque de Guima-
rães, neta do rei D. Manuel e sobrinha de D. João III. Moça
letrada e culta, lida em grego e latim, que ao casar-se com
Alexandre Farnésio (duque de Parma, Placêncio e Castro),
vai, em 1565, morar em Parma. O manuscrito que teria sido
levado para a Itália pela Infanta, faz parte de um grupo de
cinco tomos de origem farnesiana, doação vinda da família
Farnésio. Consta de setenta e quatro fólios, divididos em qua-
tro cadernos com setenta e quatro receitas. Um códice que,
apesar dos problemas paleográficos e cronológicos que apre-
senta, é deveras valioso, contribuindo não só para o vocabulá-
rio histórico da linguagem nacional, como também mostrando
um lado importante da vida social que é a arte de cozinhar e
bem comer, numa época da história nacional portuguesa de
que muito pouco se conhece e cujo mais antigo documento de
receitas culinárias publicado não é anterior a 1680, que é “A
Arte de Cozinha” de Domingos Rodrigues.3

A edição de Giacinto Manuppella do Livro de


Cozinha da Infanta D. Maria, inicia-se com a edi-
ção crítica do manuscrito e em seguida é feita a
leitura diplomática nas páginas de números pa-
res, junto a leitura em ortografia moderna, nas
páginas de números ímpares. Ao final do livro,
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 209

encontram-se dois índices que são de interesse


para o estudo do léxico: índice de palavras que
ocorrem no códice (p. 165-244) e índice de assun-
tos versados nas receitas (p. 247-249). Como al-
guns vocábulos são desconhecidos da maioria
dos leitores, fez-se também um glossário das pala-
vras que ocorrem no códice, o que serviu para
colaborar no levantamento lexical pretendido.

O Livro de cozinha da Infanta D. Maria é composto de


67 receitas distribuídas em quatro cadernos e mais seis recei-
tas avulsas que não tratam especificamente de culinária, mas
de receitas diversas de uso doméstico. O primeiro caderno é o
Caderno dos manjares de carne com 26 receitas (numera-
das de 4 a 29); o segundo, Caderno dos manjares de ovos,
com 4 receitas (numeradas de 30 a 33); em seguida encontra-
se o Caderno dos manjares de leite com 7 receitas (numera-
das de 34 a 40); e, finalmente, o Caderno das cousas de
conserva com 24 receitas (numeradas de 41 a 64).

2.2. O Livro de cozinha de Pedro Archanjo com as


merendas de Dona Flor4

Em 1987 resolvi estudar a obra do meu pai, o escritor Jorge


Amado, para fazer um livro de cozinha. Fiz a leitura de seus
romances em ordem cronológica para sentir a evolução da pre-
sença e da importância da comida e da bebida nos seus livros.
Dei-me conta que o material é muito mais rico do que imaginava
e que valeria à pena identificar não somente os pratos da culiná-
ria baiana, mas tudo que se come e bebe, seja vatapá, acarajé,
jaca, cachaça, champanhe, seja terra, rato, gente.5

Assim nasce A comida baiana de Jorge


Amado ou O livro de cozinha de Pedro Archanjo
com as merendas de Dona Flor. Pedro Archanjo
e Dona Flor, são personagens de romances de
Jorge Amado. Foi Pedro Archanjo quem inspirou
Paloma Amado a organizar esse livro de receitas.
Manual de culinária baiana é o título dado por
Pedro Archanjo, personagem de Tenda dos mila-
gres6 , a seu livro de cozinha. Nas palavras de
Paloma Amado:
210 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Pedro Archanjo é um obá de Xangô, Oju Obá cheio de


conhecimento e sabedoria. Conhece o povo mestiço da Bahia
como a palma de sua mão, seus hábitos, sua cultura. Através
de Archanjo pode-se ter a noção exata da delicadeza e da
força, da simplicidade e da sofisticação desta culinária que tam-
bém é fruto da miscigenação, que junta o dendê africano à
mandioca do índio e ao azeite de oliva português.7
Dona Flor é a personagem central de Dona Flor e seus
dois maridos8 que, do ponto de vista alimentar, é também um
livro de cozinha baiana. Utilizando novamente as palavras de
Paloma Amado, pode dizer-se desse romance que:

Além de dar receitas - todas corretas e


factíveis - mostra o jeito de comer da Bahia; expli-
ca os carurus de Cosme e Damião; ensina o que
servir num velório; explica como fazer uma grande
merenda à tarde Em Dona Flor e seus dois maridos
se encontra uma relação das comidas de candom-
blé, com os pratos preferidos de cada santo e as
quesilas ¾ o que os santos e seus filhos não podem
comer e às vezes nem pronunciar o nome.9

Após fazer o levantamento de todo o material, Paloma Amado


afirma ter, inicialmente, caído na tentação de fazer um estudo
sobre a alimentação através de um ponto de vista antropológico
ou sociológico, mas resiste e faz a opção pelo livro de cozinha,
devido ao grande número de material encontrado. Divide esse
material por temas e resolve fazer vários livros. Esse é o primeiro
deles e divide-se em duas partes: a primeira, O livro de cozinha
de Pedro Archanjo, refere-se aos pratos utilizados nos almoços e
jantares baianos. Na segunda, com As merendas de Dona Flor,
lembra os pratos não apenas servidos entre as refeições principais,
mas que compõem os cafés da manhã e os jantares baianos10 .
Mais dois livros se seguirão posteriormente, um das comidas de
candomblé e outro sobre as frutas devido a enorme variedade
delas e a importância que têm na alimentação. Esses dois não
serão tratados no presente estudo.

3. Utensílios de cozinha: do séc. XVI ao séc. XX

Pelo fato de as técnicas culinárias no séc. XVI não se


mostrarem excessivamente complexas (assar, cozer, fritar, es-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 211

tufar ou afogar eram as principais técnicas empregadas), pou-


cas variedades de utensílios se tornavam necessárias:

para levar os ingredientes ao fogo usavam-


se tigelas, panelas, tachos, púcaras ou púcaros;
o peixe era frito em frigideiras e sertãs; bacias e
bacios serviam para lavar os alimentos, misturá-
los e os levar ao lume; as panelas eram cobertas
com tapadeiras, testos, telhadores ou sapadeiras;
colheres, garfos e facas, geralmente de ferro, as-
sim como escumadeiras, jueiras, graais, rolos,
furadores, machadinhas, carretilhas auxiliavam
os cozinheiros. À mesa, levava-se alimentos em
pratos, escudelas, tachos etc. Desde a Idade Média
que se usavam nas mesas toalhas e guardana-
pos. Nesse período, a faca era instrumento por
excelência, desconhecendo-se garfos e utilizan-
do-se com pouca freqüência a colher. Para beber
usavam-se copos um pouco maiores dos que os
atuais. Embora se recorresse às escudelas para
sopas e outros alimentos líquidos, comia-se
inicialmente a carne e o peixe em cima de grandes
rodelas de pão, substituídas mais tarde pelo
talhador de madeira e, depois, por escudelas que
serviam para duas pessoas11 .

No Livro de cozinha da Infanta D. Maria encontram-


se quarenta utensílios diferentes: agulha, albarada de bico,
alfinete, algujdar (alguydar), bacia, bacio, borcelana,
caninhas (canynhas), canyuete, canudo, capadeira,
carretilha, colher(es), escudela(s) (escudella), escumadeira,
fogareiro (ffogareiro, fugareiro), furador, fuso (ffuso), gral,
jueira (juejra), lagia, machadinha, panela(s) (panella),
pano(s), pao rrolyco, peneira (pineira, pinejra, pineyra,
pyneyra(s)) , prato(s), púcara (pucaro(s), pucoro, pucaros),
rrapadoura, rrolo(s), sesto, sertã (sartãa, sertãa, sartam,
sertam, certãa), tacho, tapadeira, tauoa, telhador, testo, ti-
gela [tejalla, tegela(s), tigella(s), tijella, tyjela, tijela, tijella] ,
toalha, vasilha (vasylha, vazilha).
A comida baiana de Jorge Amado traz uma variedade
de quarenta e seis utensílios a saber: assadeira, batedeira,
braseiro, caldeirão(zinho), caneca, churrasqueira, colher
(de pau), compoteira, concha, copo, cortador, cumbuca
212 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

de barro, cuscuzeiro, escovinha, escumadeira (espumadeira),


espátula, espeto, espremedor, faca, folha de bananeira, fôrma,
forminhas, forno, frigideira, garfo(ão), geladeira, grelha,
liqüidificador, martelo de carne, moedor de carne, molheira,
palito, panela(lão), pano, papel absorvente, peneira, prato,
rolo, tábua (de carne), tabuleiro, tampa, travessa, tigela,
urupema (peneira de palha bem fina), vasilha, xícara.

Atualmente, algumas técnicas mais requinta-


das podem ser utilizadas após a invenção de bate-
deiras, liqüidificadores, multiprocessadores, fornos
elétricos, forno de microondas, dentre outros. Mas
basicamente, continua-se cozinhando, assando e
fritando os alimentos, como se fazia no século XVI.
A variedade de utensílios utilizados na cozinha atual
é maior, mas nada tão distante daqueles tempos. É
importante lembrar que, já no século XIV, Leonardo
da Vinci, com suas experiências culinárias e sua
mente criativa, já fazia desenhos de maquinários e
utensílios que poderiam contribuir e facilitar as co-
zinhas da época. Ele já imaginava picadores de car-
ne, máquinas de lavar, descascadores de nozes
mecânicos e coisas semelhantes. Com o tempo, seus
desenhos transformam-se em objetos reais.12
Se no Livro de cozinha da Infanta D. Maria
foram encontrados 40 utensílios, no livro A comi-
da baiana de Jorge Amado encontram-se 46. À
primeira vista, a diferença é bem pequena, apenas
seis utensílios a mais. No entanto, apenas dez de-
les são encontrados em ambas as épocas (colher,
escumadeira, panela, pano, peneira, prato, rolo,
tábua, tigela, vasilha). Os demais trinta e seis uten-
sílios do livro A comida baiana de Jorge Amado
não citados no Livro de cozinha da Infanta D.
Maria, poderiam até não existir no século XVI. Mas
dos trinta utensílios restantes do Livro de cozinha
da Infanta D. Maria, que não são citados em A
comida baiana de Jorge Amado, apenas sete de-
les não são mais utilizados atualmente (albarada,
caninha, gral, sertã, sapadeira, tapadeira,
telhador). Os outros vinte e três apenas não se
encontram no livro em questão, mas existem
atualmente, mesmo que sejam de pouco uso (agu-
lha, alfinete, alguidar, bacia, bacio, canivete, canu-
do, carretilha, cesto, escudela, fogareiro, furador,
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 213

fuso, joeira, lage, machadinha, pau roliço, porce-


lana, púcara(o), rapadeira, tacho, testo, toalha)13 .

Isso esquematizado, dará o seguinte:


FO N TE U TEN S˝LIO S U TEN S˝LIO S U TEN S˝LIO S
EN C O N TR AD O S EM C O M U M D IFER EN TES
L i vr o c . 40 10 30
i nf. D .
M ari a
A 46 10 36
co mida
b. de J.
A mado
FO N TE U TEN S˝LIO S U TEN S˝LIO S U TEN S˝LIO S
U TILIZ AD O S P O U C O U SO SEM U SO
L i vr o c . 27 9 7
i nf. D .
M ari a

Partindo do Livro de cozinha da Infanta D. Maria pode


observar-se, portanto, que lexias como agulha, alfinete, ba-
cia, canivete, canudo, carretilha, cesto, colher,
escumadeira, fogareiro, furador, laje, machadinha, pane-
la, pano, peneira, prato, porcelana, rolo, tábua, tigela,
toalha, vasilha são utilizados atualmente, mantendo o mesmo
significado. Outros - como alguidar (vaso em forma de tronco
invertido), escudela (tigela de madeira, pouco funda),
fuso(instrumento roliço e pontiagudo que serve para fiar),
joeira (peneira que serve para separar o trigo do joio), pau
roliço (qualquer pedaço de madeira em forma de rolo),
púcara(o) (pequeno recipiente com asa, ordinariamente desti-
nado a extrair líquidos de outros recipientes maiores), rapadoura
(instrumento próprio para rapar), tacho (recipiente largo e pouco
fundo, em geral com asas), testo (tampa) - existem ainda, po-
rém são de muito pouco uso. Algumas unidades lexicais achou-
se documentadas no Estado da Bahia: alguidar, tacho, testo
e púcaro foram registrados por Nilton Vasco da Gama no
município de Marogogipe, no Recôncavo Baiano.14 Porcela-
na está documentada em toda a região do “falar baiano” no
Atlas prévio dos falares baianos15 . Em todos os casos, man-
tém-se o sentido do século XVI.
Albarada, caninha, gral, sertã, sapadeira, tapadeira,
telhador não mais existem no vocabulário atual. Para caninha
214 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

utiliza-se caniço, para gral usa-se cálice, para sertã tem-se


frigideira ou torradeira e sapadeira, tapadeira e telhador
foram substituídos por tampa. Bacio tinha o mesmo sentido de
bacia hoje.

4. Considerações finais

Estudar o léxico de uma língua é descobrir um mundo com


inúmeras possibilidades de mudanças e pode dizer-se que essas
mudanças fazem parte da nossa própria evolução como seres
humanos.
Através dos tempos os utensílios de cozinha, assim como
as coisas do mundo, vão se transformando, vão surgindo ou-
tros, melhoram-se os já existentes, que permanecem em cons-
tantes mudanças. Porém, mais importante que as mudanças, é
a capacidade humana de poder realizá-las ou não.

Referências bibliográficas:
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cozinha de Pedro Archanjo com as merendas de Dona Flor. São Paulo,
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uma variante lingüístico profissional em Maragogipe. In I Encontro
Nacional de Lingüística. Conferências/ PUC-RJ, p.406-433.
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Portugal. Códice português I.E.33 da Biblioteca Nacional de Nápoles,
Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda.
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versidade Federal da Bahia – Faculdade de Filosofia - Laboratório de
Fonética. Instituto Nacional do Livro: Carta 46.
ROUTH, S. y J. 1996. Notas de cocina de Leonardo da Vinci.
Compilación y edición. Traducción de Marta Heras. Madrid, Temas de
Hoy SA.

Notas
1
Cf. Giacinto MANUPPELLA. Livro de cozinha da Infanta D. Ma-
ria: Códice português I. E. 33. da Biblioteca Nacional de Nápoles. Lis-
boa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986.
2
Cf. id. ibid., p. XVI.
3
Cf. Domingos RODRIGUES Arte de cozinha.. Lisboa: Imprensa
Nacional / Casa da Moeda,1987. Leitura, apresentação, notas e glossário
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 215

por Maria das Graças Pericão e Maria Isabel Faria.


4
Cf. Paloma Jorge Amado COSTA. A comida baiana de Jorge
Amado ou O livro de cozinha de Pedro Archanjo com as merendas de
Dona Flor. São Paulo: Maltese, 1994.
5
Cf. id. ibid., p. xi.
6
Cf. Jorge AMADO. Tenda dos milagres. São Paulo: Martins,
1969. (Coleção Obra de Jorge Amado, Vol. 18).
7
Conf. Paloma Jorge Amado COSTA. Ob. Cit. p. xxv.
8
Cf. Jorge AMADO. Dona Flor e seus dois maridos. São Paulo:
Martins, 1966. (Coleção Obra de Jorge Amado, Vol. 17).
9
Conf. Paloma Jorge Amado COSTA. Ob. Cit. p. xxiv-xxv.
10
A comida baiana de Jorge Amado é dividida em várias partes
além das duas principais. Começa com umas introdução onde se faz um
histórico do surgimento e utilização da comida baiana nos romances de
Jorge Amado. Segue com O livro de cozinha de Pedro Archanjo dividi-
do em onze capítulos: (Dos Tira-Gostos (p.3), Dos Grandes Pratos da
Comida de Azeite (p.31), Das Frigideiras (p.57), Das Moquecas (p.75), Da
Rampa do Mercado (p.95), Das Aves (p.113), Do Mar e do Rio (p.135),
Dos Assados de Carne (p.151), Das Carnes-Secas (p.165), Das Caças de
Tição Abduim (p.179), Dos Doces (p.189). Em seguida, As Merendas de
Dona Flor se divide em cinco partes: De Beiju e Cuscuz (p.221), Dos
Bolos (p.233), Dos Mingaus (p.253), De Legumes e Frutas (p.267), Dos
Biscoitinhos e de Outras Coisas (p.279). O livro termina com os índices
de Receitas, Livros e Personagens; de Pratos e Ingredientes e de Pesso-
as e Restaurantes Citados.
11
Cf. João Pedro FERRO. Arqueologia dos hábitos alimentares.
Dom Quixote: Lisboa, 1996. P.37.
12
Cf. Shelagh y Jonathan ROUTH. Notas de cocina de Leonardo
da Vinci. Compilación y edición. Traducción de Marta Heras. Temas de
Hoy S.A: Madrid, 1996.
13
Os utensílios marcados em ítálico, são aqueles considerados de
“pouco uso”.
14
Cf. Nilton VASCO DA GAMA. Breves considerações sobre o voca-
bulário de uma variante lingüístico profissional em Maragogipe. In: I
Encontro Nacional de Lingüística. Conferências/ PUC-RJ, 1976. P.406-433.
15
Cf. N. ROSSI. Atlas prévio dos falares baianos. Universidade
Federal da Bahia – Faculdade de Filosofia - Laboratório de Fonética.
Instituto Nacional do Livro: Salvador, 1965. Carta 46. Registra-se também
no Estado de Sergipe.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 217

É uma Língua Portuguesa, com certeza


Claudio Cezar Henriques,
da ABF e UERJ.

“À vista do que fica exposto, a Comissão reconhece e


proclama esta verdade: o idioma nacional do Brasil é a LÍN-
GUA PORTUGUESA. E, em conseqüência, opina que a de-
nominação do idioma nacional do Brasil continue a ser: Língua
Portuguesa.”
Assim terminava o relatório apresentado ao Ministro da Edu-
cação e Saúde pela Comissão nomeada para cumprir a determi-
nação contida no art. 35 do Ato das Disposições Transitórias,
apenso à Constituição de 18 de setembro de 1946, onde se lia: “O
Governo nomeará comissão de professores, escritores e jornalis-
tas, que opine sobre a denominação do idioma nacional.”
Seu relator, Sousa da Silveira, Presidente da Academia Bra-
sileira de Filologia, encerrava sua longa exposição de motivos afir-
mando que tal denominação, além de corresponder à verdade dos
fatos, tinha a vantagem de lembrar, em duas palavras, “a história
de nossa origem e a base fundamental da nossa formação de
povo civilizado”.
Portanto, começamos nossa breve exposição sobre o tema
desta mesa-redonda, que trata da implantação e da oficialização
do português do Brasil como língua nacional, relembrando o docu-
mento institucional que marca essa definição lingüística, associada
muita vez em nossa história a posicionamentos políticos nem sem-
pre dos mais isentos.
Não é improvável, porém, encontrar ainda algum defensor
intransigente da proclamação de uma independência terminológica
que venha a “corrigir” o citado parecer. Foi o que ocorreu em
1986, quando Afrânio Coutinho se manifestou contrariamente a
218 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

um outro parecer, sobre Diretrizes para o aperfeiçoamento do


ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa, do Conselho Federal
de Educação. O acadêmico insistia na tese de que a norma culta,
defendida pelos filólogos como um dos componentes obrigatórios
do ensino, corresponde à norma portuguesa. E afirmava:
“Pretender submeter a massa brasileira à norma culta de
Portugal, que os gramáticos portugueses e brasileiros teimam em
estabelecer, é um crime de leso-patriotismo e de lesa-ciência
lingüística.”
Voltemo-nos, então, para a transplantação do Português para
o Brasil, que ocorreu vinculada a uma colonização em massa, o
que não foi em verdade um fenômeno novo na história lingüística
da humanidade. Como nos outros casos, também aqui se precisa-
ria fazer uma avaliação das condições sociais e lingüísticas espe-
cíficas que envolveram as relações desse contato.
Desde a época da independência política brasileira, as inicia-
tivas em busca do estabelecimento de uma norma lingüística fun-
damentada no uso geral do Brasil tomavam como foco algumas
preferências locais quanto ao uso de construções sintáticas –
notadamente a questão da colocação pronominal – e ao vocabulá-
rio brasileiro. É o que se nota nas idéias defendidas pelo Visconde
da Pedra Branca em 1926 e, alguns anos mais tarde, no que Macedo
Soares também sustenta: “Já é tempo de escrevermos como se
fala no Brasil e não como se escreve em Portugal.”
No campo literário, Gonçalves de Magalhães e José de Alencar
foram dos primeiros a incluir o tema em suas manifestações escri-
tas. Ao longo do tempo, tal atitude, porém, não se manifestaria de
uma maneira muito lúcida e firme, variando – conforme o caso e o
autor – da atitude conservadora light ao radicalismo extremo de se
defender a tese da existência de uma língua brasileira, distinta da
portuguesa, a partir de teorias sobre causalidade e evolucionismo,
biologismo, vocabulismo ou nacionalismo, que englobavam a refe-
rência a empréstimos (e não substratos) lingüísticos indígenas e afri-
canos, entre outros argumentos.
Consideremos que, hoje, esse tema da língua nacional falada
no Brasil se mostra como conseqüência amadurecida e superada
em torno de adesões ou rejeições à matriz européia (e seus mode-
los?). Afinal, como já foi dito por filólogos conceituados nos dois
lados do Atlântico, não é uma ficção falar num português america-
no, em bloco, em face do bloco do português europeu – isto sem
incluir o que se passa com os demais países da comunidade
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 219

lusofônica. Esses dois grandes dialetos, o lusitano e o brasileiro, por


sua vez se diferenciam numa multiplicidade de subdialetos e ex-
põem características específicas de influências e preferências
sintáticas, morfológicas ou lexicais e acentuadas marcas de pronún-
cia – e é aqui que reside a principal diferença entre as duas princi-
pais maneiras de falar a Língua Portuguesa. No caso brasileiro, a
língua comum se confirma nas variedades regionais, sociais e indivi-
duais, ao contrário do que apregoavam os argumentos “pan-
brasileiristas”.
Contra qualquer defesa que se possa fazer sobre a chamada
“língua brasileira”, pode-se recorrer às conclusões de Raimundo
Barbadinho Neto, Sobre a norma literária do Modernismo (Ao
Livro Técnico, 1977), que confirmam ser “o sistema da língua do
Brasil, em seu conjunto, ainda o mesmo da de Portugal, sem em-
bargo das leves diferenças de norma e da nítida existência de um
estilo nacional americano e um estilo nacional português.”
Para encerrar, fiquemos com as palavras de Barbosa Lima
Sobrinho em A Língua Portuguesa e a unidade do Brasil (José
Olympio, 1977 – a 1a edição é de 1958):
“No dia em que se quebrasse a disciplina da língua escrita e da
língua literária, para que prevalecessem os falares regionais, teria
também desaparecido a unidade lingüística, que é um dos funda-
mentos de nossa unidade política e de nossa unidade nacional.”
Ou as de Edith Pimentel Pinto, em A língua escrita no Bra-
sil (Ática, 1992 – série Fundamentos):
“O esgotamento das posições que pleiteavam o estatuto de
dialeto ou de língua autônoma para o português do Brasil
corresponde, no plano dos especialistas, à divulgação de teorias
lingüísticas capazes de iluminar melhor a questão; e, por parte dos
não-especialistas, ao sentimento, estimulado pela escola, de per-
tencerem ao mundo lusófono, do que resulta, hoje, um consenso a
respeito da língua materna dos brasileiros. Isto significa que a rede
de oposições funcionais, características de um sistema, é, rigoro-
samente, a mesma em Portugal, no Brasil ou na África.”
A norma culta brasileira, por sua vez, está consignada nas
obras literárias contemporâneas e na imprensa de prestígio. Na
escola, já não se tem a imposição de uma norma artificial, preva-
lecendo as propostas que privilegiam o ensino das modalidades da
Língua Portuguesa, da gramaticalização brasileira e do saber
metalingüístico. Quando isso não acontece, as causas – infeliz-
mente – podem ser atribuídas à política institucionalizada de des-
valorização do magistério.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 221

Qual é a “língua brasileira”


a se aprender na escola?
Darcilia Simões,
da UERJ.
Não há uma língua mais correta do que outra, porque não há uma
língua típica. No seu desenvolvimento, uma língua pode ser mais ou
menos opulenta, porém, nunca mais ou menos correta. Não se trata, pois,
de elogiar ou vituperar, a linguagem de Portugal ou a do Brasil. De
resto, um povo fala e traja como quer (seria mais certo do dizer como
pode) e os pedantes da língua se parecem com os pedantes da moda. 2

Pôr na mesa de discussões a questão do português brasileiro,


sua implantação e sua oficialização levou-me a refletir sobre pen-
samento do estudioso SÍLVIO ROMERO acerca da questão da
correção lingüística que, no foro do ensino da língua é matéria de
destaque. Polêmicas acirradas se desenrolam, mas as divergênci-
as continuam vivas. Afinal, quem está com a razão acerca da
língua certa do povo? E mais: quais os critérios de definição de
língua certa (ou errada)?
O fragmento em epígrafe integra texto datado de 1916 e, em
1999 (83 anos depois), continua-se a discutir o tema com o mesmo
calor de antanho.
O advento da Lingüística trouxe-nos a dicotomia descrição
& prescrição que, em primeira instância, parecia resolver a ques-
tão, uma vez que definia os papéis dos lingüistas e dos gramáticos:
estes com a responsabilidade de apontar os modelos adequados;
aqueles com o compromisso de explicar a sistemática das línguas.
No entanto, retomando a idéia de SILVIO ROMERO quanto à
questão da moda e dos pedantes, creio que a solução do certo e do
errado em língua do ponto de vista do ensino vai perpetuar-se tal
222 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

como o dilema do ovo e da galinha. Isto porque a definição do


modelo ideal da língua – dito correto – deságua numa questão de
poder que, por sua vez, leva-nos ao status quo que, a seu turno,
assevera a relação entre língua e homem. Logo, se a língua é um
fato social, por conseguinte, construído pela inter-relação humana,
estará aquela sujeita aos ires-e-vires da vaidade humana e de suas
conseqüências na estruturação do poder.
A elitização das formas de dizer acaba por gerar uma idéia
distorcida a respeito do domínio da língua nacional. É comum ou-
vir-se algo como “a gente fala tudo errado mesmo!” se a gente
quiser falar de acordo com a gramática fica muito difícil”,
etc. E essa distorção é intensificada pela atitude escolar que de-
termina a variante padrão (ou norma culta) como a única forma
correta de usar a Língua Portuguesa. Isto promove um
distanciamento absurdo entre o que se ensina da língua e o que se
usa da língua. Chega-se a pensar que aprender o português dito
correto é tão difícil quanto aprender uma língua estrangeira.
Esse problema é histórico, pois a escola no Brasil nasceu por
força de necessidades políticas completamente afastadas do aten-
dimento a interesse popular. E até hoje o que se vê é uma gestão
escolar elitista, preocupada com quadros estatísticos de fachada,
completamente distante da realidade vivida pela população. Logo,
a política do ensino do idioma nacional não corresponde aos anseios
lingüísticos da população, uma vez que sonega a variedade decor-
rente das dimensões continentais de nosso país, olvidando a ca-
racterização de um povo plural na cor, no credo, nos usos e costu-
mes, enfim, na forma de viver.
Não quero fazer apologia de um ensino anarquista em que a
variante padrão seja posta de lado, mas um ensino de fato demo-
crático em que não se faça hierarquização dialetal.
É preciso situar claramente a variante padrão no âmbito só-
cio-político, para que o estudante tome consciência da necessida-
de dessa modalidade de língua em benefício da comunicação am-
pla entre os usuários do português do Brasil. Sem alimentar a idéia
de que um uso lingüístico possa ser melhor ou pior que outro, a
variante padrão pode passar a ser buscada pelo estudante, ao in-
vés de imposta pela escola. Para tanto é preciso demonstrar, atra-
vés dos textos e de seu compromisso comunicacional, a necessá-
ria adequação de registro e a variedade estrutural decorrente da
pluralidade de estilos à disposição do falante.
Entendo que a política do ensino da língua para o terceiro
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 223

milênio tende a ser eminentemente semiótico-estilística, sem aban-


donar os domínios gramaticais, mas privilegiando a forma e seus
efeitos expressivo-comunicativos. Destarte, a atitude elitizante daria
lugar a uma postura interacional, e a estilística não mais seria vista
como antagonista da gramática, mas como sua coadjuvante, uma
vez que viria ao texto todas as vezes que houvesse necessidade
de um contorno expressivo especial e indispensável ao seu apuro
expressivo-comunicativo.
Minha preocupação maior, enquanto estudiosa do vernáculo,
tem sido o ensino e, durante minhas pesquisas, descobri que o
estudo do texto abarca a dualidade que o define como objeto de
significação e objeto de comunicação. Por isso, o estudo do
texto com vistas à construção de seu (seus) sentido(s) só pode ser
entrevisto como o exame tanto dos mecanismos internos quanto
dos fatores contextuais ou sócio-históricos de produção do sen-
tido. Convém observar que a tomada dos mecanismos internos é
justamente a preocupação de natureza gramatical, enquanto os
fatores contextuais ou sócio-históricos ficam por conta das
abordagens semióticas e estilísticas.
Para ilustrar minhas palavras quanto a essa ótica metodológica
sobre a abordagem dos conteúdos vernáculos, esclarecemos que as
relações estabelecidas entre os signos lingüísticos perpassam por
vários níveis de construção de sentido. Os que têm interessado à
observação no projeto que venho desenvolvendo são o nível
semiótico: por que isto significa o que significa? E o nível
estilístico: o que isto pode provocar no leitor, enquanto impres-
são ou sugestão? Para tanto, há que se atinar para o potencial do
signo lingüístico, como material disponível para o falante nativo
(estamos tratando de língua materna – L1), por meio do qual ele
interagirá com os seus pares.
Nessa ótica, o ensino do idioma ganha contornos bastante
diversos do que nos legou a escola tradicional. Proponho hoje
um ensino não apenas normativo, mas interacionista, progressis-
ta, produtivo. Observando-se os valores funcionais dos signos e
as conseqüências estilísticas e semióticas de seu emprego nos
enunciados, a gramática não será trazida de fora para dentro,
mas emergirá dos textos e das necessidades comunicativas.
Portanto, vincular-se-á aos atos de fala (cf. SEARLE, John R.
1981. Os actos de fala) e terá valores ajustados e ajustáveis às
necessidades enunciativas.
Trata-se de um trabalho em que a gramática vai ao plural e
224 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

será estudada em conformidade com a modalidade de texto em


que estiver inserida. É um estudo gramatical contextualizado. É
um estudo que não tem a nomenclatura como fim, mas como con-
seqüência. É um estudo que não visa às classificações absolutas,
mas a uma relativização funcional dos elementos da língua, de suas
relações e de seus mecanismos. Trata-se, portanto, de uma propos-
ta metodológica em que nada é proibido desde que seja oportuno.
Ilustrando: Estudar tipos de sujeito, de predicado, classes gra-
maticais, etc. deve ser o atendimento de uma necessidade de en-
tendimento de relações, como: “A gente somos inútil!”
Por que tal enunciado soa mal em nossos ouvidos? Porque
estamos habituados a ouvi-lo como A gente é inútil ou Nós so-
mos inúteis. Logo, a dissonância causada pelo desrespeito à con-
cordância – seja verbal seja nominal – é o dado problemático.
Portanto, cumpre aproveitar para examinar os valores: flexão no-
minal - singular/plural; flexão verbal – número-pessoal; concor-
dância verbal e nominal: verbo/substantivo & substantivo/adjetivo,
respectivamente; etc.
Observe-se que à escola cabe informar das melhores manei-
ras de expressão levando em conta a indispensável adequação
contextual. Por isso, trago ao texto algumas palavras de Celso
Cunha (In Língua, Nação, Alienação, 1981: 15):

O próprio status da modalidade lingüística de


que nos servimos não está claramente definido, ou
melhor, as conceituações propostas se fundam em
razões extralingüísticas, de regra eivadas de pre-
conceitos historicistas ou nacionalistas. Daí as de-
nominações variadas que vão desde as jacobinas
(do tipo língua brasileira) às subservientes (como
dialeto brasileiro). Isso sem falar nas neutras,
anódinas (a exemplo de língua ou idioma nacio-
nal), que mais de uma vez têm valido para acalmar
zelos patrióticos, mas que, em verdade, deixam a
língua inominada, pois não há país soberano que
não possua o seu idioma nacional.

Como é possível depreender do excerto, todo radicalismo sobre


esta ou aquela variante seria uma atitude leviana ou intempestiva,
uma vez que as fronteiras entre as variações lingüísticas não pas-
sam de cortinas de fumaça, por isso, são tênues e flutuantes, em
geral. Logo, a impermeabilidade lingüística não é uma atitude pe-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 225

dagógica adequada, sobretudo em tempos de globalização, onde


tudo é de todos e para todos. Por que não a língua?
Na obra citada, o ilustre gramático já se indagava sobre: Como
classificar o português do Brasil? E qual a metodologia de
que nos devemos servir para descrevê-lo e explicá-lo?(Id. Ib.)
Verifica-se, então, que o enfrentamento das questões relati-
vas à descrição e à explicação da língua – e ao ensino, por exten-
são – são preocupações históricas que vêm sendo trabalhadas
pelos filólogos, gramáticos, literatos, professores, compositores,
políticos, etc. Logo, não se trata de questão simples de ser aborda-
da, tampouco resolvida por um modelo qualquer de trabalho didático,
sobretudo. No entanto, é preciso considerar-se que, dos modelos
pedagógicos praticados podem emergir rotulações danosas para
os estudantes (usuários do vernáculo), pelo simples fato de não
dominarem a dita norma culta (ou padrão), apesar de comunica-
rem-se satisfatoriamente em suas variantes lingüísticas originais.
A responsabilidade da escola em propiciar meios e modos
em que o educando se assenhorie progressivamente do dialeto
prestigiosos sem que seja violentado com a desorganização
ou a destruição do seu vernáculo (CUNHA, Celso. 1985. A
questão da norma culta brasileira. [p. 47]) é patente. Entretan-
to, os excessos precisam ser combatidos, e os olhos da escola
precisam ser abertos para a necessidade de uma comunicação
lingüística plural, extensiva a todos os falantes de uma língua, inde-
pendentemente de localização geográfica ou social.
O ensino eficiente da língua, portanto, deve calcar-se no uso
desta; é o texto quem orienta um ensino produtivo, já que aquele é
meio de veiculação das idéias; e é por meio do texto (oral ou
escrito) que a comunicação é efetivada. O texto também traz
consigo os compromissos do contexto: o que falo? para que
falo? com quem falo. Dessa tríade de indagações surge uma de
importância capital: como devo falar?
Aí ressurge a estilística como a grande organizadora dos di-
tos, dos enunciados. É por meio da estilística que se tem acesso a
um conjunto de “instruções” sobre o funcionamento eficaz das
formas de dizer. Não basta pensar no autor defunto & defunto
autor de Memórias póstumas de Brás Cubas, ou nos olhos de
ressaca de Capitu em Dom Casmurro, assim como nas vozes
veladas veludosas vozes de Cruz e Souza, como matéria para a
análise estilística. É de interesse estilístico também a escolha do
registro que, por sua vez vai determinar a seleção vocabular e as
226 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

combinações sintagmáticas que mais se adaptem à formulação


textual pretendida.
Ao lado da estilística vem a semiótica, tomando os signos
verbais ora como ícones, como índices ou como símbolos (clas-
sificação genérica) e viabilizando a seleção da seleção e a
recombinação mais oportuna e eficaz, associando a necessidade
expressiva à interpretabilidade do texto.
Não devendo prolongar as reflexões sobre o tema em função
da natureza desse trabalho - uma fala em mesa-redonda, decidi
conclui-lo retomando a pergunta-título Qual é a língua brasileira
a se aprender na escola? e reapresentar a questão substituindo
aprender por ensinar, apontando o adjetivo brasileiro não como
um índice de jacobinismo, mas de soberania; lembrando da impor-
tância do domínio mais amplo possível das variedades da Língua
Portuguesa do Brasil, como condição de eficiência comunicacional
e de competência cidadã; alertando os docentes sobre a importân-
cia de uma metodologia interacionista, funcional, dinâmica, onde a
estilística seja de fato trabalhada como ciência do estilo, e a semiótica
seja convidada a participar da festa do idioma (classes de portu-
guês), atuando como “bússola” para a composição dos melhores
textos e, por conseguinte, para a leitura destes.
Por isso, a escola deverá apetrechar o aluno, se não com o
uso imediato de qualquer variante, mas pelo menos com a disponi-
bilidade de interagir com qualquer delas sem atitude preconceituosa
ou discriminatória. A partir do convívio sistemático com a
multiplicidade de usos lingüísticos e a observação cuidadosa dos
valores expressivo-comunicativos dos componentes textuais, o
usuário tornar-se-á versátil diante das potencialidades da língua e,
conseqüentemente, estará preparado para desempenhar valioso
papel social no BRASIL adulto do terceiro milênio.
Nota
2
(Palavras SÍLVIO ROMERO. Estudos sobre a poesia popular. p. 310
Apud in VIRGÍLIO DE MEMOS – O problema dialetológico. In PINTO,
Edith Pimentel. O português do Brasil- Textos críticos e teóricos – 1820-
1920 – Fontes para a teoria e a história. Rio de Janeiro: Textos técnicos e
científicos; São Paulo: EDUSP.)
Darcilia Simões - Doutora em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa)
pela UFRJ, tendo defendido tese sobre a aplicação da semiótica ao ensi-
no da redação. É professora adjunta do Programa de Mestrado em Lín-
gua Portuguesa do Instituto de Letras da UERJ, atuando como
subcoordenadora do Curso e coordenadora da Pós-graduação lato sensu.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 227

A defesa da fé no
púlpito transdisciplinar
Geysa Silva,
da UFJF.

O progressivo deslocamento dos estudos literários, para outras


áreas além da teoria mesma, implica a absorção de elementos de
natureza diversa, que apontam para a cultura como centro irradiador
de pesquisas e de publicações referentes ao assunto. Essa mudan-
ça de enfoque trouxe uma nova postura diante do texto e liberou a
crítica para penetrar em várias disciplinas, usando-as como
contraponto a sua especialidade e, assim, melhor lidar com os múl-
tiplos aspectos que a leitura do literário oferece. Nestas condições,
não devem surpreender a ninguém relações entre literatura e reli-
gião, ou entre literatura e música, pois tão agudas quanto as mudan-
ças de gêneros são as mudanças teóricas que os analisam.
Considerando-se que palavra e música são em essência
imbricadas pelo som e que a ligação entre elas remonta às origens
líricas, possível é observar como se dão essas referências que se
manifestam no tecer das estruturas dessas formas de arte. Por ou-
tro lado, a religião, ao invocar a persuasão retórica para atrair e
convencer os fiéis, deu, muitas vezes, a seus sermões um ritmo e
uma melodia facilmente identificáveis.
De início, poder-se-ia dizer com Empédocles1 que, no literário,
“o tornar-se um é ele mesmo um múltiplo, o concentrar-se é
separar-se”, pois do literário não se pode afirmar de modo enfático
o que é, só se pode declarar do que se trata; trata-se da manta que
encobre as afirmações religiosas e do mantra que se invoca e se
repete no ato litúrgico da escritura. No discurso religioso, os rastros
do literário vão denunciando os enigmas que se ocultam e se mos-
tram na cena musical e ambígua da linguagem, pois a religião como
a música é duplicável, é som (palavra) e silêncio, construção e
228 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

desconstrução, uma forma de inferência e de representação, uma


lente através da qual não se vê, mas se concebe a vida e o homem.
Por trabalhar com concepções, a crítica literária hoje escapa à
tradição racionalista do ocidente, interpretando Saberes e permitin-
do que a literatura se amplie, ocupando o terreno transdisciplinar,
numa operação de deslizamento que vai da harmonia dos vocábulos
aos apelos impactantes de uma religiosidade aflita.
Falar da experiência religiosa significa recuperar uma tradição
determinada, desprezando a razão para adotar componentes
emotivos e intuitivos na apreensão do que é dito e vivido. No caso
particular desse trabalho o que se pretende é pegar os fios de dife-
rentes meadas e trançá-los, para tentar apreender a herança cultu-
ral de uma cidade, suas crenças, seus medos e desatar o nó de suas
memórias. O tripé - literatura, música e religião - constitui, portanto,
a complexa arquitetura com que serão examinados alguns discur-
sos do Padre Júlio Maria, redentorista que abalava o comodismo de
católicos do século XIX e princípios do século XX, na cidade minei-
ra de Juiz de Fora.
Quem era esse Padre Júlio Maria, que pregava um catolicismo
vigoroso e atacava a mescla de sagrado e profano, observada nas
festas religiosas de Juiz de Fora, no início do século? Nascido em
Angra dos Reis, bacharelou-se em Direito, em São Paulo; militou na
política e exerceu cargos de magistratura em Minas Gerais. Ao
enviuvar pela segunda vez, foi para Mariana, onde estudou Teologia
e ordenou-se padre, em 1891, indo para Juiz de Fora. Ficou famoso
por seus sermões, que traduzem um esforço de situar-se entre o
religioso e o literário, na dinâmica das relações que integram forma
e conteúdo. Dele nos fala Murilo Mendes, em A idade do serrote,
como alguém que tem visão diferente do catolicismo e, assim, influ-
enciava os fiéis:
O Padre Júlio Maria já me vacinara contra a religião pi-
egas das beatas1 .
Ao transformar o discurso religioso em literário, o Padre Júlio
Maria lhe atribui o imperativo de representar, ser imagem, um uni-
verso em outra dimensão. E suas palavras vão ganhar traços musi-
cais, visto que a música repousa sobre a relação triática: homem/
obra/transcendência, daí a importância do ritmo, do tempo construído
pelo artista que transfigura o real. A fala performática, que do púlpi-
to imprecava contra os fiéis, é atravessada por uma melodia
monocórdia, análoga à monofonia do canto gregoriano, que o rigor
eclesiástico conduziu ao máximo de perfeição expressiva, permitin-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 229

do que até hoje ouvintes se deliciem com sua beleza. Essa monodia
(segundo alguns) ou monofonia (segundo outros) limita as opções
de representação, todavia permite centrar a atenção no orador e,
por conseguinte, em suas palavras, conforme se constata neste tre-
cho de O Deus desprezado:

Eu sigo os trilhos que o Senhor me riscou;


dou os combates a que me convidou;
acompanho a estrela que Ele fez brilhar nas
trevas da minha mocidade1 .

Em música, a melodia é o universo semântico da obra, o espa-


ço (no sentido amplo do termo), onde se desenham imagens orde-
nadas pela harmonia e onde o musical adquire materialidade. Esta
música-linguagem é captada pelo leitor que percebe as relações
entre essas duas formas expressivas e pelo autor que pretende a
integração do homem com a totalidade absoluta. É preciso notar,
contudo, que totalidade aqui não significa uma forma de organiza-
ção e, sim, uma vivência plena do Santíssimo Sacramento, mostran-
do que o homem pode e deve aspirar a esse estado último da hierar-
quia cristã, mesmo sem desprender-se de suas obrigações cotidia-
nas. O Padre Júlio Maria não receita a irracionalidade, mas percebe
que o desapreço pelos valores espirituais constituía-se em grave
ameaça ao catolicismo. Ao notar as “doenças” de uma cidade que
começava a mergulhar na era da técnica e a entregar-se aos exces-
sos do pragmatismo, o vigário vai tentar “salvá-la” para Deus, pro-
pondo uma prática de vida que se opunha à superficialidade da fé.
Assim, entre os extremos da fé desencaminhada e um ateís-
mo transformado em réu de um processo de animosidade contra a
Santa Madre Igreja, o Padre Júlio Maria procurou um espaço no
qual a razão se unisse ao sentimento. Nessas condições, modifica
a melodia de seus discursos, que invocam testemunhos, colocam
em disponibilidade várias vozes, não como diálogo polifônico, por-
que as vozes não se contrapõem, porém como expressão de uma
mesma idéia.
Os santos são, em relação a Jesus Cristo, diz com muito
feliz comparação, Augusto Nicolau, como prismas em rela-
ção à luz2 .
230 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Ou ainda:

S. Vicente de Paulo [...] aos padres exprobava esta triste


decadência da religião e dizia: “Somos nós, os padres, a cau-
sa principal da deplorável diminuição da fé1 .

Admitir a culpa dos padres traz, para a discussão, o tema da


recompensa e do castigo, do mérito e do demérito. Há nessa religi-
osidade o imperativo categórico kantiano, uma escuta anterior - o
dever que a consciência impõe ao sujeito que é visto como imagem,
modelo a ser seguido pelos leigos. Para exortar os padres a
vivenciarem o Santíssimo Sacramento e a disseminarem essa devo-
ção (tal como fazem os carismáticos contemporâneos), o Padre
Júlio Maria organiza seu discurso em perguntas retóricas, no mais
puro estilo de Vieira. No final de século XIX, a atmosfera de angús-
tia e de pessimismo exemplificada por Schopenhauer provocava,
em contraponto, a vontade hedonística de aproveitar cada momento
da existência; por isso muitos preferiam os prazeres dos sentidos
aos prazeres intelectuais ou aos prazeres místicos. Os padres demi-
tiam-se do dever de estudar e adotavam o improviso como prática
oratória. Contra isso investe o Padre Júlio Maria:
Pode saber pregar quem não procura no
Divino Mestre da palavra a alma, a inspiração,
o fogo da eloqüência sagrada?!
[...] A palavra de Deus não precisa, para
trazer frutos de talentos oratórios; precisa ape-
nas ser reproduzida pelo padre com decoro, fi-
delidade, gravidade2 .

Os sermões se sucedem, organizados em suíte que, após vari-


ações esporádicas, executam o ritornello da adoração ao Santíssimo,
como condição sine qua non para a beatitude ser alcançada. Essa
estrutura de repetição, que lembra o estribilho, combina-se com a
linguagem metafórica e com os inúmeros similes e comparações
encontradas nos discursos.
Em música, ao contrário do texto verbal, nenhuma combinatória
da conta do texto específico, pois é impossível encaixar os sons em
sintagmas. Entretanto, os movimentos de um discurso podem ser
apreciados como os de uma obra musical. É assim com os sermões
de O Deus desprezado. Iniciam-se com um adágio grave, ao
qual se seguem fórmulas dramáticas que lembram as árias operísticas
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 231

ou os recitativos acompanhados de elementos musicais. Essa técni-


ca leva o ouvinte num crescendo para ancorá-lo num tempo que
permanece até no silêncio depois da última palavra (ou última nota)
e que se faz na dialética entre stasis e kinesis. Vejam-se alguns
fragmentos do vigésimo quinto sermão:

Início: Quanto ao ensino em geral, é uma


tristeza a doutrinação das paróquias.

Meio: O sermão! Ele revela a degeneração


do culto, o falseamento das devoções e o divórcio,
em muitos, da fé eclesiástica com a Teologia.

Final: Assim, no sermão há de haver o provei-


toso da fruta, o formoso das flores, o vestido das
folhas[...], mas tudo isso nascido e formado de um
só tronco, e esse levantamento no ar, senão funda-
do nas raízes do Evangelho1 .

A macro-estrutura desses sermões é a segmentação didática


tradicional: apresentação, desenvolvimento, conclusão e por con-
seguinte, a mesma estrutura da sonata. A tonalidade do desen-
volvimento contrasta com a da apresentação, enquanto a última
parte retorna a primeira, porém num ritmo vibrante não usado
anteriormente.
O final apoteótico desses sermões, em O Deus desprezado,
faz a negação do lado trágico da vida e substitui a gratuidade e a
insignificância de nossa existência pela crença na redenção. Assim
como a vontade de potência é, para Nietzsche, a força maior que
nos possibilita uma jubilação trágica, o culto de Cristo presente na
Eucaristia é a devoção principal que permite ao Senhor humilhar-se,
repetir o sacrifício do Calvário e oferecer-se de novo como Salva-
dor. Em Juiz de Fora do início do século, o Padre Júlio Maria se
assombra com uma religiosidade que não consegue aceitar, com
uma fé que não conduz a nada e, então, ele elabora meios de enca-
rar esse nada de frente; constrói, em seus sermões, uma ética em
que a religião é capaz de assumir a vida em sua integridade. Se, em
A origem da tragédia, Nietzsche pensa o trágico não como convi-
te à paralisação, mas como proximidade com Dionísio e como meio
de penetrar no Eterno Retorno, em O Deus desprezado, o Padre
Júlio Maria pensa que a tragédia da morte pode ser superada pela
presença de Cristo encarnado que leva o crente à glória inefável.
232 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

A presença real! A permanência de Jesus Cristo na terra!


A sua perpétua coabitação com os homens! [...] O espírito que
se fortalece neste mistério quase que sente despedaçados os
grilhões da carne e vai, nas regiões do infinito, pedir aos anjos
que cantem a fortuna e a glória da humanidade!1

A literatura, através do discurso religioso, presentifica um tem-


po distante, permitindo que a imaginação percorra o texto, desvele
sua geologia para alcançar o contemporaneidade. A obra, assim,
deixa de ser apenas o documento que indica o passado de modo não
proposital, para transformar-se em monumento. Com as inúmeras
diguras de linguagem, encontradas em O Deus desprezado, ergue-
se uma Juiz de Fora ansiosa por viver as delícias da “belle époque”
que se formava; um catolicismo entregue a festas e comemorações
que mais divertiam do que doutrinavam; um clero dividido por ques-
tões pessoais ou por divergências teológicas.
Quais são as enfermidades que desunem muitos pa-
dres? ressentimentos,rivalidades, egoísmos, vaidades. Ora,
que ressentimento alheio pode resistir a um ato de amor de
nossa parte2 ?
Fato social e mônoda, a obra, segundo Benjamim, é cristaliza-
ção das tensões sociais e alegoria do outro de sua época, mostran-
do a História como poderia ter sido e como legado do que foi, en-
quanto o murmúrio barthesiano da linguagem transmuta os elemen-
tos que afloram no texto e revela a face oculta da palavra, que
penetra no entrevisto e no entretido, exibindo os fractais de outros
Saberes, diferentes do literário.
Musical, religioso, literário, o discurso de O Deus despreza-
do sobrepõe a tudo o problema da crença. Crer na salvação, numa
época caracterizada pelo esquecimento de Deus, significa susten-
tar uma referência a um sentido. É esse sentido que o poeta Murilo
Mendes, menino ainda quando ouvia as pregações do Padre Júlio
Maria, vai retornar, já adulto, ao encontrar-se com Jorge de Lima
e Ismael Nery. Crer, para o padre e para o poeta, não é apenas
aceitar as certezas oferecidas pela religião institucional. Crer é
compartilhar a vida com o Verbo Encarnado e viver na angústia
do silêncio de Deus.

Geysa Silva - Professora de Teoria da Literatura da UFJF.


BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 233

Bibliografia
MENDES, Murilo. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguila,
1994.
NIETZSCHE, Friederich. O nascimento da tragédia no espírito da
música. In: Nietzsche. São Paulo: Abril Cultural. Coleção. Os pensadores,
1978.
PADRE JÚLIO MARIA. O Deus desprezado. Rio de Janeiro: Livraria
Boa Imprensa, 1905.

Notas
1
Empédocles (1973), p.232
1
Mendes (1994), p.94
1
Padre Júlio Maria (1895), p.102
2
Padre Júlio Maria (1895), p.34
1
Idem, p.26
2
Idem, p.86
1
Padre Júlio Maria (1905), p.91
1
Padre Júlio Maria (1905), p.106-107
2
Idem, p.84
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 235

A indeterminação do sujeito
no falar culto do Rio de Janeiro
Hilma Ranauro

1. Introdução

O sujeito formalmente expresso pode ou não estar indefinido


ou definido, indeterminado ou determinado, semanticamente, o
que depende de o falante poder ou não identificá-lo, ou mesmo que-
rer ou achar relevante fazê-lo. Pode ele atribuir o que afirma à
massa humana indiferenciada, falando de um modo geral, sem refe-
rir-se a alguém em especial. Nesses casos, pode haver ou não,
formalmente expresso, um termo-sujeito, que seria, do ponto de
vista semântico, indeterminado.
Nosso corpus, retirado de dois Inquéritos do Projeto NURC/
UFRJ, dá mostra de vários recursos da Língua Portuguesa do Bra-
sil, mais especificamente do Rio de Janeiro, utilizados, na fala oral
considerada culta, para a chamada indeterminação do sujeito: você,
a gente, nós, eles, a(s) pessoa(s), alguém, eu, além das
registradas pelas gramáticas normativas (verbo na 3ª p. pl. ou
verbos na 3ª p. sing. + se), muitas vezes em coocorrência, em
distribuição livre. Muitos são os contextos em que a ocorrência de
diferentes formas, em diferentes momentos e contextos, revelam
que o falante vem a incluir a si mesmo e/ou seu interlocutor no que
seria o sujeito dito indeterminado.
É importante que se esclareça ser característica do informante
do Inquérito 193, o que se depreende do seu discurso, uma atitude
liberal quanto a padrões e valores sociais. A informante do Inquérito
373 manifesta pontos de vista tradicionais e conservadores em algu-
mas de suas colocações. Até que ponto isso se estaria refletindo em
suas opções lingüísticas?
236 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

O informante do Inquérito 193, um homem, tinha, à época da


entrevista, 45 anos de idade; a informante do Inquérito 373, uma
mulher, 58 anos. Até que ponto todos esses dados, além da profis-
são de cada um (não constante dos inquéritos) estariam a determi-
nar opções e/ou número de ocorrências? Caberia levantar um mai-
or número de inquéritos para que se pudesse ousar em termos de
interpretações nesses níveis.
Que se registre que o inquérito de n.º 193 data de 1973 e o de
n.º 373 de 1978. Apresentam, porém, usos que são facilmente
observáveis nos nossos dias. O número de ocorrências de cada
uma das formas levantadas - em cada inquérito e no total - está
registrado na tabela apresentada ao final.

2. Os inquéritos 193 e 373 do Projeto NURC2

2.1 - VOCÊ (74 ocorrências - 64 no inquérito 193 e 10 no


inquérito 393)
Sabemos ser comum, entre os falantes do português do
Brasil, o emprego de você, onde se indetermina (indefine) o sujeito,
ou, como já colocamos, se o generaliza.
Em relação ao falar do Rio de Janeiro, temos, a comprova-
rem essa afirmação, exemplos coligidos a partir dos inquéritos 193 e
373 do Projeto NURC:

Inquérito 193:

Mas era um maiô de duas peças que você


via... três dedos de...barriga, né? (p.19); O efeito é
que você tem toda uma ligação espiritual, quando
você vê aquela imagem de mulher grávida dá sem-
pre um carinho.. uma ligação espiritual...com...
com o lado espiritual e... e... estético. (p.11); Peru-
ca, por exemplo, é...bonito. Você...Você não tem a
sensação de postiço, né? (p.20); Antigamente você
não usava uma jóia falsa, era ridículo, você usar
uma jóia falsa, né? Ou você usava uma jóia
raríssima, ou você não usava nada. (p.25); Lá
você............., você tem que...que...se vestir de acor-
do com o local, né? Lá na Europa, em Paris, tinha
tanta roupa de lã, tinha que botar agasalho. Não
botava gravata que também lá usa pouco grava-
ta. (p.28). (São nossos os grifos).
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 237

No último exemplo, observa-se o emprego do verbo na 3ª p. do


sing. sem o pronome se: “...tinha que botar agasalho. Não bota-
va gravata que também lá usa pouco gravata”. Pelos padrões con-
siderados cultos pela norma vigente, caberia dizer: “...tinha-se que
botar agasalho. Não se botava gravata que também lá se usa
pouco gravata.” Observa-se, aqui, o emprego de você, e, após, o
de outra forma para indeterminar o sujeito. Isso é comum neste
Inquérito 193:

...você não nasce com roupa. É uma neurose,


não é nem complexo, é neurose mesmo. Você não
nasce com roupa. Com duas horas, três horas de
nascido, te põem uma roupa em cima e você não
consegue tirar nunca mais. (p.01); Se você está
dependente dele, pra...pagar sua comida, pra pa-
gar teu almoço, pagar não sei o que, você não
quer contrariar, não quer criar caso... (p.25)
(No último exemplo, observa-se o emprego
de pronome possessivo referente à 3ª p. e o refe-
rente à 2ª).
Não, não há relação entre você ficar nu*,
com o erotismo, com coisa nenhuma. Você apren-
de isso quando acontece o fato e de repente você
vê que não tem a menor importância. Que é um
drama, não é? Você imagina...é...o fato de você
ficar nu,* você (espera aí um instantinho) você
dramatiza, é uma coisa terrível. Você acha que
pela primeira vez você vai ficar nu* em tudo na
frente das pessoas, te cria um drama, e até um
trauma, já aconteceu isso, eu já vi gente assim de
não conseguir ficar, não conseguir tirar a rou-
pa. (p.02).

Observe-se que, se o pronome se referisse ao interlocutor, no


caso, uma mulher, ele teria dito “você ficar nua (fem.)”. Percebe-
se, aí, a consciência de que você não se refere diretamente à pes-
soa com quem se fala, mas às pessoas de um modo geral, incluindo-
se a com quem se fala. O mesmo ocorre nos exemplos dados a
seguir, também do Inquérito 193:

Da importância que é a pessoa poder tirar a


roupa, poder ficar nu na frente dos outros. (p.01);
Você na zona norte não fazendo nada... vai fazer o
quê? Vai ficar sentado num banco de praça ou
238 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

ficar trancado em casa? (p.12); Não aceita mais


subordinação, que antigamente você, eu tinha fa-
lado isso há pouco tempo, você, a mulher era cri-
ada pra...prendas domésticas, né, e isso significa-
va apenas você transferir porque a mulher antes
de se casar ela era dependente dos pais... (p.22).

Registra-se uma mudança de atitude do informante, na medi-


da em que toma consciência de que o que vai falar não pode ser
atribuído a todos, de um modo geral, indiferenciadamente, como
vinha fazendo. Está ele, agora, referindo-se a uma condição espe-
cífica da mulher. Isso o faz retomar o início do pensamento, das
conjecturas e retificar-se:

...antigamente você, eu tinha falado isso há


pouco tempo, você, a mulher era criada pra... pren-
das domésticas etc.

Inquérito 373:

No Inquérito 373, p. 23, a partir da linha 07, registra-se o em-


prego do pronome de primeira pessoa do singular, eu, juntamente
com o emprego de você. O falante se coloca na situação, parte da
generalização para a identificação com a situação a que se refere:

Porque você vê, um pagamento bancário que


você tenha com aquele prazo, se eu passar um dia,
um dia, você vai pagar...

Na página 22, linhas 14 e 15, registra-se:

Está meio...de...depositar todo mês, que se


eu parar de depositar, então já...

Foi também registrada a coocorrência de você e a(s)


pessoa(s) (item a seguir).

2.2 - A(S) PESSOA(S) (7 ocorrências - 3 no Inq. 193 e 4 no Inq.


373).

É comum a coocorrência da forma no singular e no plural em


ambos os Inquéritos:
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 239

Inquérito 193:

Da importância que é a pessoa poder tirar a


roupa, poder ficar nu na frente dos outros. (p. 02)

Inquérito 373:

Agora o que as pessoas fazem pra levar aque-


le dinheiro pra dentro de casa... (p.25); Agora, a
pessoa também tem que ser um pouquinho esper-
ta, né? (p.28); Então a pessoa... É um trabalhão.
Tem que ter agenda pros pagamentos, pras coi-
sas. Você tem que estar escrevendo aquilo, duran-
te o mês tem que fazer: dia tal pagar o banco, dia
tal, tal banco (inintelegível). Porque se você se
atrasa, vai pagar juros. (p.13). (Atente-se para a
coocorrência de você).

2.3 - A GENTE (10 ocorrências - 3 no Inq. 193 e 7 no Inq. 373)

Gladstone Chaves de Melo cita, dentre as formas de exprimir


o sujeito indeterminado, “o sujeito materialmente constituído pela
expressão ‘a gente’, de valor indefinido” (MELO, 1980,p.122).
Já Evanildo Bechara, na 9ª edição da sua Moderna Gramática
Portuguesa, aponta como uma das formas de indeterminar o sujei-
to o emprego do pronome se junto ao verbo “de modo que a ora-
ção passe a equivaler a outra que tem por sujeito alguém, a
gente ou expressão sinônima” (BECHARA, 1964, p.247).

No exemplo que se segue, colhido do Inquérito 193, percebe-


se a coocorrência de a gente e do verbo na 3ª p. sing. + se, a
confirmar a correspondência semântica entre ambos os empregos
quanto à indeterminação do sujeito
:
E agora a gente usa uma calça de, de boca
larga e...e se lembra a calça de boca sino, acha
ridículo, né? Ou tem uma antiga que bota e acha
ridículo. Mas também já houve um tempo em que
...usava-se boca larga e depois virou de boca sino
e se achava ridículo a boca larga. Isso é modismo.
(Inq. 193, p.05); É uma calça tipo... calça justa que
a gente usou. (ibid:29).
240 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

No Inquérito 373, ocorre, por exemplo:

Se ele tem um bom emprego, a gente


calcula...calcula logo que é o emprego que está
sustentando aquilo, né? (p.15); Cla...claro, cader-
neta de poupança a gente tem. Tem que ter, né?
(p.22).
2.4 - NÓS (10 ocorrências - todas no Inq. 373).

Outro fato observado é o emprego do pronome nós,


correspondendo a a gente, como sujeito indeterminado. As dez
ocorrências se encontram no Inquérito 373. Não registramos ne-
nhuma no Inquérito 193:

DOC E (inteligível) se a gente for comparar


com com a televisão brasileira, né...
LOC Se nós formos fazer isso a tele...as televi-
sões... (Inq. 373, p.32).

Registramos, aqui, o emprego de a gente pelo documentador


(DOC). Oberve-se que, curiosamente, o informante, que vinha
empregando a gente, usou nós.

No exemplo apresentado a seguir, registra-se coocorrência do


emprego da forma verbal na 3ª p. do sing. + se e de nós:

...não se pode dizer que é...as mulheres este-


jam mais...não sei. Isso agora está variando mui-
to. Talvez que há algum tempo nós pudéssemos
dizer que a mulher juntava primeiro pra comprar
depois. (Inq. 373, p.27).

Se ocorre o emprego de a gente onde se indetermina o sujeito,


é natural que se empregue nós, já que, semanticamente, ambos se
correspondem (a gente = nós)1 .

2.5 - ELES (9 ocorrências - todas no Inq. 373).

Registra-se, também, uma tendência que se observa comumente


entre nós: o emprego de eles onde se empregaria uma das formas
gramaticais de indeterminação do sujeito:
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 241

Que você vê, toda hora eles estão mostran-


do um negócio...; Eu sei que nos Estados Unidos,
eles já estão olhando muito essa parte...; Eles es-
tão chegando a esta conclusão. (Inq. 373, p.33).

A forma pronominal, cabe esclarecer, não se reporta a ne-


nhum referente anteriormente mencionado. O documentador per-
guntara: “Vai haver agora alguma espécie de modificação, né?
No funcionamento da caderneta?” A informante respondeu ini-
cialmente: “É, se... eles dizem que vai ha..., vai, não. // É outro
tipo de poupança que eles estão pensando em fazer.”

2.6 - O PESSOAL (2 ocorrências, uma em cada Inquérito):

Via de regra, o pessoal todo além de não


fazer nada...também tá...tá liberto de uma série de
compromissos... (Inq. 193:12); Será que o pessoal
quer mesmo? Se se marcar uma reunião, uma pa-
lestra sobre isto, será que vai-se ter público pra...
(Inq.373, p.29)

2.7 - ALGUÉM (1 ocorrência no Inquérito 373):

“É verdade que...agora alguém pode argu-


mentar: ah, mas é...agora o nível de vida...”
(Inq.373, p.4).

Foi comum, entre gramáticos mais antigos, a discussão quanto


a terem enunciados desse tipo sujeito indeterminado ou sujeito
“claro”. No cerne dessa questão, estava a confusão entre os pla-
nos morfossintático e semântico. Do ponto de vista morfossintático,
o sujeito é alguém, semanticamente indeterminado (indefinido para
Said Ali). É “claro” por ser formalmente expresso, mas não o é
semanticamente.

2.8 - VERBO NA 3ª P. PL. (1 ocorrência no Inquérito 193).

Quanto às formas apontadas pela gramática normativa para a


indeterminação do sujeito, observamos que a forma de 3ª pessoa
do plural aparece só uma vez, no Inquérito 193, mesmo assim,
após o Documentador tê-la empregado, o que nos leva a concluir
que o informante deve ter sido influenciado pelo registro de seu
242 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

interlocutor.

DOC Se batessem na porta e você tivesse


que se levantar rapidamente?
INF ...Se batessem e ...eu tivesse que sair da
cama, eu enfiava uma calça. (Inq. 193, p.24).

2.9 - VERBO NA 3ª P. SING. + SE (17 ocorrências) e/ou


- SE (16 ocorrências) (Inquérito 193: 7 ocorrências com se e 14
sem o se; Inquérito 373: 10 ocorrências com o se e 2 sem o se).

Inquérito 193:

No Inq. 193, chegamos a registrar a construção com o se e,


imediatamente, a sem o se:

Antigamente se durava dois ou três anos para


separar, agora leva cinco anos. (Inq.193:21); Não
se usava cores vivas, nem em gravatas.
Depois...começaram a aparecer camisas floridas
de influência americana, não é? Aí, de repente,
liberou tudo. (Inq. 193, p.04); Aí liberou tudo. (Inq.
193, p.05).

Lembremos, aqui, o exemplo de Gladstone Chaves de Melo


“Quebrou a compoteira.” Por “Quebrou-se a compoteira.”,
como uma das formas de se indeterminar o sujeito. (MELO, 1980,
p.120)

Lá você , você tem que, que... se vestir de


acordo com o local, né? Lá na Europa, em Paris,
tinha tanta roupa de lã, tinha que botar agasalho.
Não botava gravata que também lá usa pouco gra-
vata. (por “tinha-se que botar agasalho”; “Não
se botava gravata que também lá se usa pouco
gravata”). (Inq. 193, p.28).
Inquérito 373:

Ah! só paga daqui a dois meses (por


só se paga). (Inq. 373, p.29).

No exemplo que damos a seguir, colhido no Inquérito 193, ob-


servamos que nem o fato de o documentador empregar a constru-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 243

ção com o se leva o informante a fazê-lo. Observemos:

DOC Em relação à roupa interna, de mu-


lher e homem, o que se usava antes, o que que se
usa agora, ou não se usa?
INF Usava e não usa? Sutiã! Pelo menos a
grande maioria não usa, né? Parece até que as
fábricas estão...falindo. Não usava sutiã, hoje não
usa sutiã. Hoje não usa sutiã. Calça continua usan-
do. (por “usava-se”, “não se usa” “continua-se
usando”). (Inq.193, p.23).

Este fato é comum entre nós, principalmente no falar mineiro.


(cf. A perda dos pós-clíticos no dialeto mineiro, Dissertação de
Mestrado de Alair da Cruz Cavalcante D’Albuquerque/UFRJ/1982).

2.10 - Coocorrência de várias formas para a indeterminação


do sujeito.

A construção com verbo na 3ª p. sing. + se ocorre 10 vezes


no Inquérito 373. Na maioria das vezes, há uma oscilação: ocorre,
por vezes, o emprego concomitante dessa forma e de outras em
que se registra formalmente um sujeito (você, nós, a(s) pessoa(s),
a gente, etc.). Isso comprova a correspondência semântica entre
aquela construção e as que tenham esses termos, ou outros simila-
res, como sujeito claramente expresso. Vejamos:

É verdade que...agora alguém pode argu-


mentar ah, mas é...agora o nível de vida... Está
certo, eles pagam caro. Eles pagam caro isto...esta
possibilidade que eles têm agora. Eu
não...não...não...não...não...não...não acredito que
seja de se... de se isolar esse pensamento, não. Eles
estão, realmente, pagando um preço muito alto.”
(Inq. 373, p.04). (Eles, nesses contextos, reporta-se
a “os estudantes”). “Só se pensa em trabalho pra
ter dinheiro.” (Inq.373, p.26).

O último enunciado conclui uma fala que se inicia na p.25, linha


15, em que a informante emprega as pessoas:

Agora o que as pessoas fazem pra levar aque-


le dinheiro pra dentro de casa... (Inq.373,p.25, li-
244 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

nha 17); As pessoas têm dois, três, quatro empre-


gos. (p.25, linha 19); ...influi dentro de casa. Desde
o humor da pessoa... (não mais as pessoas). (p.26,
linhas 2 e 3). Só se pensa em trabalhar pra ter
dinheiro.( E não: “A(s) pessoa(s) só pensa(m) em
trabalhar pra ter dinheiro”).

Nesses contextos, não inclui a informante a si mesma nem sua


interlocutora. Emprega as pessoas e verbo na 3ª p. sing. + se.
Por vezes, passa ela a incluir sua interlocutora e a si mesma:

...não se pode dizer que é...as mulheres este-


jam mais...não sei. Isso agora está variando mui-
to. Talvez que há algum tempo nós pudéssemos
dizer que a mulher juntava primeiro pra comprar
depois. (Inq.373, p.27). (Emprego do verbo na 3ª p.
sing. + se e da 1ª p. pl.).

Inclui ela a si mesma e a interlocutora no que vinha atribuindo


a um sujeito indeterminado. Comparemos esse exemplo com os
que damos a seguir:

Será que o pessoal quer mesmo? Se se mar-


car uma reunião, uma palestra sobre isto, será
que vai se ter público pra... (Inq.373, p.29); Mas
nós nos deparamos logo com um problema: nós
não vamos ter um público para aquilo. (Inq.373,
p.31); Contrata-se uma pessoa, um economista,
um assistente social, um nutricionista e vamos fa-
zer uma série de palestras pra pessoa aprender o
que deve comprar e o que não deve comprar, vai-
se ensinar isso tudo, muito bem, né? (Inq.373, p.31).

Temos, onde se indetermina o sujeito, a coocorrência de o


pessoal, do verbo na 3ª p. sing. + se, do verbo na 1ª p. pl., com
ou sem a presença do pronome sujeito e de a pessoa. Percebe-se,
nessa oscilação, nessa variação, que a informante se inclui e inclui
sua interlocutora entre os que “marcariam uma reunião”, os que
“teriam ou não público”, entre os que “fariam uma série de confe-
rências” e “ensinariam tudo”, mas não entre os que “quereriam ou
não isso” (emprega o pessoal), nem entre os que “iriam ou não
responder à convocação” e os que deveriam “aprender a comprar”
(emprega ela a pessoa).
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 245

Esses exemplos estão a cobrar um levantamento maior e um


estudo mais profundo. Caberia verificar as várias formas de
“indeterminar” (indefinir?) o sujeito, verificando-se as escolhas do
utente da língua e o que subjaz a elas, o que estaria a motivá-las.
Cabe verificá-las em relação à inclusão ou não do emissor e/ou do
receptor.
No emprego de eles, parece clara, pelo menos no dito ou apa-
rentemente dito, a exclusão do emissor e do receptor. É sempre
bom lembrar que muitas vezes se atribui “aos outros” (eles) o que
se gostaria de dizer, ou se pretende dizer, do receptor ou a ele, nas
“indiretas”, no “jogar verde para colher maduro”, para ver se ele
“veste a carapuça”, como se costuma dizer. No emprego de a gen-
te e nós, percebe-se a inclusão do emissor. Haveria por vezes a
inclusão de ambos, emissor e receptor, o que se poderia depreender,
ou não (resta sempre o subliminar), da situação de enunciação e/ou
do contexto.
No Inquérito n.º 373, são vários os contextos em que a forma
que representa o sujeito do(s) enunciado(s) varia a cada afirmação:
ora ele, ora eles, ora eu, nós, a pessoa, a gente, etc... No que
apresentamos a seguir, o emissor passa do distanciamento de si
mesmo e do ouvinte para a inclusão, primeiro, de si mesmo, depois,
de ambos:

...eles também se perdem, eles não vêem que


no fim do mês eles vão ter que pagar aquelas
contas todas. E agora também há um fator: ah! só
paga (por só se paga) daqui a dois meses, três me-
ses, a pessoa: ih, daqui... eu compro em dezembro
vamos comprar porque só em março nós vamos
pagar. (Inq. 373, p.29).
(Após empregar eles, verbo na 3ª p. sing. sem
o se e a pessoa, a informante emprega eu (por in-
cluir a si mesma) e nós (por incluir a si e sua
interlocutora).

Essas oscilações são freqüentes no Inquérito 373 e não no


Inquérito 193. Neste, o informante emprega exaustivamente a for-
ma você, como já registramos. Raros são os contextos em que
emprega o verbo em 3ª p. sing., na maioria das vezes sem o
pronome se.
246 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

2.11 - EU (1 ocorrência no Inquérito 373).

No trecho dado a seguir, ocorre também o emprego de eu,


alternando com as demais formas. É interessante observar que,
nesse trecho, ocorre, também, o emprego de eu (formas não assi-
naladas), reportando-se à 1ª p. sing., à 1ª p. do discurso como sujeito
dito “claro”, não “indeterminado”. O mesmo ocorre em relação a
você.

Nós já temos tanta papelada pra olhar os


prazos, se não olhar o prazo, vai pagar juros, vai
pagar juros de mora, vai pagar imposto, tanta coi-
sa; agora mais um negócio na cabeça da gente
pra saber se...se vai botar...vai botar mil, ou se vai
botar mil e quinhentos. Espera aí”! Não acho que...
Não acho prático isso não, ouviu? Eu acho que a
coisa deve ser ah...facilitando, facilitar a vida.
Porque você vê, um pagamento bancário que você
tenha com aquele prazo, se eu passar um dia, um
dia, você vai pagar... (Você, em sua 1ª ocorrência
(sem negrito), reporta-se à documentadora). Eu
estou com um aqui que...que...que é um condomí-
nio, se eu me atrasar, vou pagar vinte por cento! É
um absurdo pagar vinte por cento. (Inq. 373, p.22-
23). (Eu, nessas últimas ocorrências, reporta-se à 1ª
pessoa do singular. A informante refere-se a si mes-
ma). A informante emprega nós (temos), a 3ª p.
singular – se, e a gente. Mais adiante, vem a em-
pregar você, eu e você.

Há uma identificação da informante com a situação. Ape-


sar de falar de um modo geral, ela acaba por colocar-se também
como sujeito, ou no sujeito. Observa-se a oscilação entre o emprego
de você (maior identificação com o receptor) e eu. Do mesmo
modo que o emprego de você, nesses contextos, corresponde se-
manticamente à indeterminação do sujeito, esse emprego do eu
também corresponderia. Não se trata do emprego de você e eu
com referência a uma pessoa do discurso - 2ª e 1ª do singular, res-
pectivamente - mas referindo-se a um você e eu gerais, universais,
empregados onde, numa linguagem mais cuidada, formal, se em-
pregaria a construção com o verbo na 3ª p. sing. + se:
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 247

...um pagamento bancário que você tenha


com aquele prazo, se eu atrasar um dia, um dia,
você vai pagar...
por ...um pagamento bancário que se tenha
com aquele prazo, se se atrasar um dia, vai-se
pagar).

3. TABELAS
VOC˚ A N S ELES A(S) ALGU M EU
GENTE PESSOA(S)
Inq. 193 64 3 − − 3 − −
Inq. 373 12 7 10 9 4 1 1
TOTAL 76 10 10 9 7 1 1

VERBO NA 3“ P. SING. VERBO NA


+ SE − SE 3“ P. DO PL.
Inq. 193 7 14 1*
Inq. 373 10 2 −
TOTAL 17 16 1

* Esse emprego de verbo na 3ª pes. pl., surge imediatamente após


seu emprego pela Documentadora ao formular a pergunta. Além
disso, é único nesse Inquérito. Esses fatos nos levam a concluir que
o Informante foi influenciado pela fala da Documentadora. Não
deve, pois, ser considerado.

4. Conclusão

A análise de dois Inquéritos do Projeto NURC (Inquérito 193 e


373) nos fez observar formas de indeterminação do sujeito para as
quais não se costuma atentar. Os vários níveis de envolvimento do
falante no que atribui a um sujeito dito indeterminado (indefinido,
para Said Ali) se vai revelando em seu discurso. Isso fica bem claro
em exemplos colhidos ao Inquérito 373.
Até que ponto o Informante se envolve e/ou busca envolver
seu interlocutor fica muitas vezes claro nas suas escolhas lingüísticas,
que apontam para aspectos da linha argumentativa que vem a im-
primir ao seu discurso. Isso se pode observar, nos Inquéritos estuda-
dos, com referência à indeterminação do sujeito.
248 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Restam questões a serem levantadas quanto aos processos e


formas de indeterminação do sujeito; no caso em estudo, especifi-
camente do falar culto do Rio de Janeiro. Qual seria a forma predo-
minante? Seria você, como nesses dois inquéritos? A que se pode-
ria atribuir isso? Qual a inovação mais recente? E mais: que outras
razões podem levar à indeterminação do sujeito? Por quê? Quais as
predominâncias por faixa etária, sexo, profissão, nível sociocultural,
etc.? Em que situações, e em que níveis, o falante se inclui e/ou seu
interlocutor no que seria o sujeito indeterminado? Quais as gradações
dessa inclusão? Que fatores a determinam e caracterizam?
Caberia a feitura de uma escala, com os vários graus de
indeterminação do sujeito. Parece que as pessoas é exemplo
prototípico de indeterminação do sujeito, cabendo-lhe, então, o mai-
or grau de indeterminação numa possível escala.
Caberia igualmente detectar as variáveis, por exemplo, nos di-
ferentes gêneros de discurso, com ênfase naturalmente, no discurso
dito argumentativo.
A língua, cabe dizer até a exaustão, é viva. Que se registrem
as normas do uso tido como culto, mas que se atente para o fato
de que há o uso culto oral e o uso culto escrito, nas seus vários
e diferentes níveis e registros. Isso é claro para nós, os estudiosos
e especialistas. Cabe esclarecê-lo, e sempre, aos usuários da língua
de um modo geral. Só assim se lhes apresentará o estudo da língua
como algo prazeroso e criativo, e não como algo distante e deles
independente.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 249

Hilma Ranauro - Professora universitária (UFF), Mestre em Letras pela


PUC/RJ e Doutora em Letras Vernáculas pela UFRJ. Autora de O falar
do Rio de Janeiro - Um estudo de caso e Contribuição à Historiografia
dos Estudos Científicos da Linguagem no Brasil – Sílvio Elia e João
Ribeiro. Membro da Academia Brasileira de Filologia.

Referências bibliográficas
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa - Curso mé-
dio - 9ª ed., São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1964.
CUNHA, Celso F. da. Gramática da língua portuguesa - 5ª ed., RJ,
FENAME, 1970.
D’ALBUQUERQUE, Aliar da Cruz C. A perda dos pós-clíticos no
dialeto mineiro - Dissertação de Mestrado, UFRJ, 1982.
MELO, Gladstone Chaves de. Gramática fundamental da língua
portuguesa - 3ª ed., RJ, Ao Livro Técnico S/A Indústria e Comércio, 1980.
OMENA, Nelize Pires de. “A Alternância entre NÓS e A GENTE em
Função do Sujeito”; in XIX Anais do Seminário do GEL, pp. 93/105, Cam-
pinas, 1987.
SAID ALI, Manuel. Gramática secundária da língua portuguesa,
6ª ed., Rio de Janeiro, Edições Melhoramentos, 1965.

Material que serviu de base para o levantamento do corpus


analisado:
- Inquérito 193 do Projeto NURC (n.º 59) Rio de Janeiro. / Tema:
vestuário. / Informante n.º 221. / Sexo: masculino. / Idade: 45 anos / Data:
29/11/1973. / Documentadores: Diana Maria Isente Calou e Maria do
Socorro Demais.
- Inquérito 373 - Projeto NURC (n.º 123) Rio de Janeiro. / Tema: Dinhei-
ro, Banco, Finanças, a Bolsa. / Informante n.º 459. / Sexo: feminino. / Idade:
58 anos. / Data: 02/03/1978. / Documentadores: Maria Cristina Rigoni e
Marco Aurélio Pires.

Nota
1
Sobre essa correspondência, consulte-se “A Alternância entre NÓS
e A GENTE em função do Sujeito”, de Nelize Pires de Omena - in XIX Anais
do Seminário do GEL, Campinas, 1987, p.93-105.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 251

As linguagens de Fernando
Pessoa e Manoel de Barros
Isaac Newton Almeida Ramos

Resumo
O presente trabalho tem por objetivo expor as peculiaridades
semelhantes constatadas, após diversas análises, sobre o discurso
poético de Fernando Pessoa e de Manoel de Barros. Ao compa-
rar as estruturas análogas, foi possível relacionar como expres-
sões comuns: a infância e a metalinguagem. Demonstraremos o
dialogismo poético entre os dois autores.

Unitermos: Fazer poético, imagem, infância, intertextua-


lidade e existência.

No presente artigo elegemos dois dos pontos abordados em


nosso projeto de pesquisa: a “Infância” e a “Metalinguagem”. Ou-
tros, tais como: o existencialismo, o surrealismo, a religiosidade e a
licenciosidade, ficarão para uma outra oportunidade. A união dos
dois, dialogicamente, não é ou foi casual, inclusive transformou-se
em um exercício crítico salutar. Propomo-nos a uma discussão mais
ampla sobre os dois poetas, no entanto, o espaço aqui não permite
outras considerações. Então, passemos ao texto em questão.
A volta à infância é uma das marcas da poesia de Manoel de
Barros e de Fernando Pessoa. A infância, idade da inocência,
apresenta-se como o lugar e tempo ideal da vida, configura-se
como experiência marcante do poeta. “A infância, soma das in-
significâncias do ser humano, tem um significado fenomenológico
próprio, um significado fenomenológico puro porque está sob o
signo do maravilhamento. Pela graça do poeta, tornamo-nos o
puro e simples sujeito do verbo maravilhar-se.”2 .
252 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Se “o poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendi-


mento”3 , podemos afirmar que a linguagem infantil é uma lingua-
gem sem entendimento para o adulto. Só que o poeta sabe ouvi-la e
recria-a para recontá-la e recortar a solidão de criança, que é a
mesma solidão dos poetas, os quais são salvos pela literatura. Ob-
servemos como isso ocorre numa poesia de Barros:

Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brin-


quedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:
De noite o silêncio estica os lírios. (LSN.,33)4

O poeta Manoel de Barros, através do eu-lírico na primeira


pessoa, faz um retorno à infância. Nesta tem-se a presença do
brinquedo e da figura materna, que aprova o que fez a criança,
que não é um brinquedo qualquer, é um “brinquedo com pala-
vras”; isto é, o EU afirma que com elas pode-se fazer o que qui-
ser, em face das mesmas serem imóveis, e só ganharem movi-
mento se o EU (sujeito) movê-las. No relacionamento entre ho-
mem, mundo e linguagem, a infância subleva-se como um estado
potencial de todas as invenções. E quando o adulto (no caso, o
poeta) vislumbra tais devaneios é porque reconhece que “a infân-
cia é o poço do ser”5. E o EU, por sua vez, move as palavras de
acordo com a sua vontade. Em seguida ele mostra qual foi o brin-
quedo que fabricou, trata-se de um ‘jogo’ de palavras, sendo que
elas atendem à lógica morfossintática; todavia rompem com a
semântica. Então, perguntamo-nos como pode “de noite o silêncio
(esticar) os lírios?” Primeiramente o silêncio se constitui em au-
sência de som e, além de tudo, isso não seria perceptível, muito
menos teria a capacidade de alongar os lírios posto que são flores
não suscetíveis de serem espichadas. Instaurou-se uma imagem
surreal. A partir de um acontecimento pictórico/natural da noite
ele inverte as expectativas, segundo a ordem natural das coisas, e
acaba por demonstrar realmente um brinquedo, ao mesmo tempo
que o eu-lírico não se preocupa em obedecer a essa mesma or-
dem natural das coisas. E sendo o brinquedo uma realidade que se
tem na infância, Barros ao citá-lo através de/com as palavras,
sempre o relaciona com a infância. Em Pessoa a infância é vista a
partir de um posto de vista sentimental e melancólico:
Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 253

Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,


Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti. (...)
(OP, 90:140)

Percebe-se que o eu-lírico se encontra numa idade madura, e


ao ouvir uma dada música recorda-se de sua infância e, dessa
forma, entrega-se à emoção. “Nos devaneios da criança, a imagem
prevalece acima de tudo. As experiências só vem depois.”6 Pode-
mos observar isso de uma maneira metafórica nos versos de Bar-
ros: “A última estrela que havia no céu/ deu pra desaparecer/ o
mundo está sem estrela na testa”. (GEC, 41) Ou nessa imagem
onomatopéica: “O menino caiu dentro do rio, tibum,/ ficou todo molhado
de peixe.../ A água dava rasinha de meu pé”. (GEC, 127)
Neste outro trecho de Pessoa, temos um exemplo de infân-
cia vista saudosamente a partir do olhar de um adulto:
O Luar quando bate na relva
Não sei que cousa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas. (...)
(OP,224:215)

“O poema nos faz recordar o que esquecemos: o que somos


realmente”.7 Aqui o eu-lírico exibe referenciais situados na nature-
za (luar e relva), os quais funcionam como ocasionadores da lem-
brança da infância do EU. “Para entrar nos tempos fabulosos, é
preciso ser sério como uma criança sonhadora. A fábula não diver-
te – encanta”.8 Depois de termos visto um cenário pessoano, veja-
mos o que Barros, nos revela com seu olhar infantil: “Meu avô
ampliava a solidão./ No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fun-
dos do quintal: Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra dentro”.
(LSN, 21) Já o poeta português nos conta: “Quando era criança,/
Vivi, sem saber,/ Só para hoje ter/ Aquela lembrança.”(OP, 171:174-
5) Blanchot afirma que: “(...) As lembranças são necessárias, mas
para serem esquecidas, para que nesse esquecimento, no silêncio
de uma profunda metamorfose, nasça finalmente uma palavra, a
primeira palavra de um verso.”9
254 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Em outro poema, do livro Poesias, cujo título é “Infância”,


Barros mostra-nos um eu lírico criança, em um dia de chuva, que
parece estar olhando através da vidraça, numa imagem bastante
singela e calma:
Coração preto gravado no muro amarelo.
A chuva fina pingando... pingando das árvores...
Um regador de bruços no canteiro.
Barquinhos de papel na água suja das sarjetas...
Baú de folha de flandres da avó no quarto de
dormir
Réstias de luz no capote preto do pai.
Maçã verde no prato. (...)
(GEC, : 110)

A partir de um ritmo “estilo crônica”, o eu-lírico apresenta-se


com verbos no presente descrevendo cenas corriqueiras da infân-
cia, as quais possuem desde brinquedos à presença de familiares.
Aqui é mostrado um prisma próximo da visão pessoana. Constata-
se isso em: A VOZ DE MEU PAI (GEC:103): “Os ventos levam-
me longe...” e (...) “entro na casa onde nasci”; uma típica volta ao
passado. E, num outro trecho, ao alternar o ato de abrir e fechar os
olhos, ele enxerga a realidade e sente a dor da perda das coisas,
inclusive a presença da figura paterna, que o chama docemente:
“Venha, meu filho,/ Vamos a ver os bois no campo e as canas ama-
durecendo ao sol,/”. Ao retornar à realidade, o eu-lírico sente a
solidão. “Estou só”, tendo em vista que não ouve a voz de seu pai.
Já Pessoa, mostra um eu-lírico arrependido pelo que deixou
de ser:
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.(OP, 700)

Barros, em Noturno do filho do fazendeiro, assim se apre-


senta: “Ia até a infância e voltava./ Gostaria mais se pudesse fi-
car/” (GEC,65). Neste verifica-se o desejo não apenas de voltar
à infância, como também de se enclausurar nela. Afinal, “a Infân-
cia é uma Água humana, uma água que brota da sombra. Essa
infância nas brumas e nas luzes, essa vida na lentidão dos limbos,
dá-nos uma certa espessura de nascimentos. Quantos seres te-
mos começado!”10 Vejamos como isso ocorre em outro livro:
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 255

Remexo com um pedacinho de arame nas


minhas memórias fósseis.
Tem por lá um menino a brincar no terreiro:
...............................................................................
O menino cangava dois sapos e os botava
a puxar o carrinho.
Faz de conta que ele carregava areia e pedras
No seu caminhão. (RAQC, 14:47):

Além disso, Barros coloca a infância situada num estágio de


primitivo, valioso para a construção da poesia, para ele, a criança é
mais poeta que o adulto; pois tudo expresso por ela é espontâneo,
contém pureza assim como o primitivo. “Nossas solidões de criança
deram-nos as imensidades primitivas.”11 Essas imensidades são dis-
cursadas pelo poeta dessa forma: “Para voltar à infância, os poetas
precisariam também reaprender a errar a língua”. (GA: 57) Em outra
obra ele já justificava que “crianças desescrevem a língua. Arrom-
bam as gramáticas. (Como um cálice lilás de beco!)” (LPC, 62)
Por outro lado, Alberto Caeiro questiona o dogmatismo e usa
as crianças como exemplo, pois segundo ele, são vítimas de
inculcações que geram crendices, todavia destaca que ao mesmo
tempo que são dogmáticas (deus doente), possuem capacidade de
discernimento (deus) para constatar como as coisas possuem exis-
tência, mesmo que seja apenas na imaginação:

A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas


Age como um deus doente, mas como um deus.
..............................................................................................,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em um ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.
(OP, 287:239)

Em Barros temos o olhar infantil, enquanto em Caeiro/Pes-


soa é o adulto que se manifesta (conforme o último trecho citado).
Esse adulto apresenta uma “moral”, mas não uma moral doentia,
ela é sobretudo reflexiva.
Quanto à metalinguagem afirmamos que ela ocupa posição
destacável na poesia dos dois autores. E tem por objetivo oferecer
ao leitor um ensinamento, um certo didatismo. Percebe-se, ainda,
que há uma preocupação de ambos com relação à leitura de suas
obras. Paul Valéry definiu o verso como “equilíbrio maravilhoso e
sensibilíssimo entre a força sensível e a intelectual da linguagem”.
256 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Esses dois poetas mostram claramente esse equilíbrio e têm consci-


ência do seu fazer poético. Neles, a busca ao leitor não é um exer-
cício insano, sobretudo apresenta-se como uma preocupação esté-
tica. A natureza dialógica de suas obras mostra que nelas opera
uma espécie de circularidade ou transitividade que as modificam
num processo contínuo e crítico com relação às próprias estratégias
de composição de cada um deles.
“(...) O escritor nunca sabe que a obra está realizada. O que
ele terminou num livro, recomeçá-lo-á ou destruí-lo-á num outro....”12 .
Ambos adotam essa postura de recomeçar ou destruir, repetindo-se
por vezes. Pessoa e seus heterônimos comunicam-se. Barros e
seus “eus líricos” festejam a comunicação intertextual. De um livro
ao outro eles promovem um verdadeiro interlúdio. Barros afirma
que o “poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina”.
(GA, 35) Pessoa, por sua vez, mostra que “o poeta é um fingidor”.
(OP, 143: 164) Temos dessa forma definições inter-relacionadas.
Ainda, Pessoa afirma que: “Dizem que finjo ou minto/ Tudo que
escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação”. (OP,
144: 165) Pode–se reparar que há uma oposição ao conceito que vê
o poeta como um fingidor, mas em seguida ele destaca que usa a
“imaginação”, e no mesmo poema ele continua: “Por isso escrevo
em meio/Do que não está ao pé,/Livre do meu enleio,/Sério do que
não é./Sentir? Sinta quem lê! (...)”.
Para Pessoa o seu fazer poético se dá fora das regras, pois
está fora do pé da letra e utiliza-se do adjetivo “livre” para dizer que
é livre do seu enredo. Usa o adjetivo “sério” para expressar certeza,
certeza do que não é, quer dizer do que não possui existência. Com
isso mostra que possui liberdade sobre seu enredo e consciência da
não-existência. “Assim como a poesia separou-se do coração, tam-
bém a forma separa-se do conteúdo. A salvação da poesia consiste
na linguagem, enquanto o conteúdo permanece em sua
insolubilidade.”13
Vejamos como isso ocorre em um verso-poema de Barros:
“Minhocas arejam a terra: poetas, a linguagem”. (LPC, 55) Neste
temos uma comparação entre um ser da natureza que tem a sua
utilidade pelo fato de arejar a terra, com um ser das letras, que por
sua vez é útil para a linguagem, pois a areja também. Dentro da
concepção de Barros, arejar a linguagem significa trabalhar com as
palavras, buscando sempre inová-las, tanto no sentido de criar no-
vas palavras, como no de encantar as já existentes, objetivando
“ressemantizar” a linguagem. Numa outra situação, Caeiro afirma
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 257

que: “Há poetas que são artistas/ E trabalham nos seus versos/
Como uma carpinteiro nas tábuas!” (OP, 241: 22) Isso mostra que
assim como o carpinteiro aparelha a madeira para a obra, sendo um
artífice que trabalha em artes grosseiras de madeira e faz da maté-
ria-prima o que deseja, fazendo dela a sua arte, da mesma forma o
poeta tem como matéria-prima as palavras, e com elas faz o que lhe
convêm, formando então os seus versos. “A poesia é uma arte da
linguagem. A linguagem, contudo, é criação da prática.”14
Caeiro também afirma: “Procuro encostar as palavras à idéia”.
Para Valéry a idéia é suscetível de ser observada, provocada e
manobrada, trata-se de um discurso interno, imagem, intenção, ou
percepção do espírito que, pode ser exprimida em palavras, se for
transformada e posicionar entre o pensamento produtor de idéias, a
atividade de resoluções internas, e depois os versos, que somente
atendem “às necessidades que devem ser criadas por eles mes-
mos”. O ato de encostar as palavras à idéia constitui-se no desejo
do eu-lírico em contrabalançar as palavras às idéias, a fim de que a
primeira venha equivaler, ou melhor, se identificar com a segunda.
Neste mesmo poema o eu-lírico ressalta o seguinte: “Procuro des-
pir-me do que aprendi,” na verdade isto configura-se na ação de
desaprender, tão mencionada por Barros. Um exemplo claro pode
ser apreendido no LI: “Desaprender 8 horas por dia assim ensina os
princípios”. Os princípios aqui empregados valoriza a atividade de
“desaprendizagem”. Pois para Barros: “Ao poeta faz bem/
Desexplicar—” . Penso em Barthes quando afirma que “a literatu-
ra é tão somente uma linguagem, isto é, um sistema de signos:...o
crítico não tem de reconstruir a mensagem da obra, mas somente o
seu sistema...”15 . E Barros parece apostar nessa afirmativa
barthesiana, não só porque ele tem pleno domínio da técnica de
fazer versos de maneira estranhada, mas também porque é a partir
da própria estrutura que a sua poesia se diferencia da de Pessoa.
Enquanto isso, Caeiro manda-nos um recado: “Não tenho
ambições nem desejos/ Ser poeta não é uma ambição minha/ É a
minha maneira de estar sozinho”. (OP, 206: 203) Para o eu-lírico,
ser poeta é um refúgio, uma forma de se isolar, de forma alguma
se refere a uma ambição, mas sim a uma condição. Barros de-
monstra esse mesmo pensamento: “Não tenho pretensões de con-
quistar a inglória perfeita”16 , o qual revela que não há por parte do
eu-lírico o desejo de se glorificar.
Para finalizarmos, vejamos alguns trechos de um dialogismo
entre Pessoa e Barros:
258 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

FP: “Procuro encostar as palavras à idéia.” (251)


MB: “Acho um tanto obtuso ter idéias.
Prefiro fazer vadiagem com letras.
Ao fazer vadiagem com letras posso ver quanto
é branco o silêncio do orvalho.” (RAQC., 51)
FP: “Procuro despir-me do que aprendi.” (251)
MB: “Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.”
(LI.,11)
FP: “A aprendizagem que me deram
...................................................
Uma aprendizagem de desaprender.”(456)
MB: “Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem.”
(GEC, 252)
FP: “Não me importo com as rimas
.....................................................
E a minha poesia é natural como
o levantar-se vento...”(219)
MB: “Sou puxado por ventos e palavras”.(LI., 41)
“Melhor que nomear é aludir. Verso
não precisa dar noção.” (LSN, 68)
FP: “Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.”(206)
MB: “Não tenho pretensões de conquistar a inglória per-
feita.” (LSN, 85)
FP: “Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada.” (456)
MB: “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só
a poesia é verdadeira.”(67)
FP: “Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.” (505)
MB: “Tem mais presença em mim o que me falta.
melhor jeito que achei para me
conhecer foi fazendo o contrário.” (LSN.,67)
FP: “Nada me prende a nada.” (452)
MB: “Poesia é a loucura das palavras.” (GEC., 186)
FP: “Não: toda a palavra é a mais. Sossega.
Deixa, da tua voz, só o silêncio anterior.” (680)
MB: “A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma ima-
gem.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 259

O antesmemente verbal: a despalavra mesmo.”


(RAQC., 53)
FP: “Uma flor acaso tem beleza?
Têm beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.” (231)
MB: “Beleza e glória das coisas olho é que põe. Bonito é
o desnecessário.” (GEC., 260)
FP: “Todas as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer ou nascer uma flor (...)
Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem
ciência?” (290)
MB: “As coisas que não levam a nada têm grande impor-
tância.” (GEC, 179)
FP: “Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.” (29)

Notas
1 1
Prof. Auxiliar junto ao Departamento de Letras da UNEMAT,
campus de Alto Araguaia, MT, especialista em Letras pela UNESP-As-
sis, coordenador do projeto de pesquisa “AS INFLUÊNCIAS DE
FERNANDO PESSOA NA POESIA DE MANOEL DE BARROS”.
2
BACHELARD, Gaston. A Poética do devaneio. São Paulo:
Martins Fontes, p.122, 1988.
3
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral.
Rio de Janeiro: Rocco, p.45, 1987.
4
Siglas utilizadas nesta comunicação: LSN (Livro sobre nada); OP
(Obra poética); GEC (Gramática expositiva do chão); RAQC (Retrato de
artista quando coisa); GA (O guardador de águas); ; LPC (Livro de pré-
coisas); LI (Livro das ignorãças).
5
BACHELARD, p,109.
6
Ibid, p.97.
7
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Saravy. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, p.133, 1982.
8
BACHELARD, Ibid., p.113.
9
BLANCHOT, Ibid., p.83.
10
BACHELARD, Ibid., p.106.
11
BACHELARD, Ibid., p.97.
12
BLANCHOT, Ibid. p.11..
13
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna (da metade do
século XIX a meados do século XX). Trad. Marise M. Curioni.. 2.ed. São
Paulo: Duas Cidades, p.40, l99l.
260 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

14
VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira. São
Paulo: Iluminuras, p.208, 1991.
15
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva,
p.162, 1982. (Debates,.24)
16
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record,
p.85, 1996.
17
BACHELARD, Gaston. A Poética do devaneio. São Paulo:
Martins Fontes, p.122, 1988.
18
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral.
Rio de Janeiro: Rocco, p.45, 1987.
19
BACHELARD, p,109.
20
Ibid, p.97.
21
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Saravy. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, p.133, 1982.
22
BACHELARD, Ibid., p.113.
23
BLANCHOT, Ibid., p.83.
24
BACHELARD, Ibid., p.106.
25
BACHELARD, Ibid., p.97.
26
BLANCHOT, Ibid. p.11..
27
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna (da metade do
século XIX a meados do século XX). Trad. Marise M. Curioni.. 2.ed. São
Paulo: Duas Cidades, p.40, l99l.
28
VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira. São
Paulo: Iluminuras, p.208, 1991.
29
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva,
p.162, 1982. (Debates,.24)
30
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record,
p.85, 1996.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 261

Edição diplomática de
Gregório de Matos Guerra

José Pereira da Silva,


da UERJ.
Introdução
Gregório de Matos Guerra nasceu na Bahia e viveu no sécu-
lo XVII como um advogado famoso, clérigo polêmico e poeta
contestador, inconformado com os costumes de sua época.
Sua rica poesia está esparsa em várias dezenas de códices,
muito bem guardados (a chaves) na Biblioteca Nacional (do Rio
de Janeiro), na Biblioteca Histórica do Itamaraty, na Coleção Prof.
Celso Ferreira da Cunha (da Faculdade de Letras da UFRJ), na
Biblioteca do Congresso (Estados Unidos), na Torre do Tombo
(Portugal) etc.
A requisitada edição crítica da obra poética do “Boca do In-
ferno” não poderá ser concretizada antes que se conclua a sua
edição diplomática, por ser absolutamente inviável a consulta direta
a todos esses códices manuscritos (alguns de três e de quatro
grossos volumes, como aquele de que o Imperador D. Pedro II
possuiu dois tomos (só agora encontrados, pelo cotejo da cópia
que nos trouxe de Portugal o Prof. Adriano Espínola), o que per-
tenceu a Celso Cunha (do qual está desaparecido o quarto tomo)
e o que se denomina códice Varnhagen (conservado na Biblioteca
do Itamaraty).
A edição diplomática consiste na transcrição mais fiel possí-
vel, sem qualquer tentativa de correção do que parecer erro do
manuscrito, de forma que os pesquisadores possam ter a confian-
ça de estar diante do que mais próximo se tenha conseguido che-
gar dos documentos mantidos com tanto zelo pelas instituições
que protegem.
262 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

O plano da edição

Este trabalho teve início em 1997, a partir da proposta que foi


apresentada pelo Prof. Dr. Emmanuel Macedo Tavares no 5º
Encontro Internacional da Associação dos Pesquisadores do Ma-
nuscrito Literário, realizado em Salvador no ano anterior, de se
fazer a edição diplomática do códice Celso Cunha, que se encon-
trava na Biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ.
Animado com a proposta do colega, apresentei-me como
colaborador para empreender tão simpática proposta e transcre-
vemos os três volumes que então foram encontrados daquela
coleção, pois o quarto havia desaparecido misteriosamente.
Nessa primeira etapa do projeto, coordenou-o o Prof. Dr.
Emmanuel Macedo Tavares, digitando pessoalmente o primeiro
tomo e revisando a cópia dos dois seguintes, digitados por mim,
que fiz a revisão do primeiro.
Enquanto preparávamos esses três volumes, indo diariamen-
te à Ilha do Fundão para cumprir nossa tarefa, sem qualquer auxí-
lio ou bolsa, preparava-se uma segunda etapa desse projeto, para
a publicação dos códices que se encontram na Biblioteca Nacio-
nal e, posteriormente, dos que estão guardados na Biblioteca His-
tórica do Itamaraty.
Ali foram encontrados 15 códices, que estão assim relacio-
nados:
Códice 1711 da Biblioteca do Congresso, em Washing-
ton (há uma cópia mircofilmada na Biblioteca Nacional), com
407 página e índices, das quais temos cópia em microfilme;
Códice 45 da Torre do Tombo, denominado por nós
CÓDICE DO IMPERADOR 3, com 257 páginas já digitado e
com duas revisões já concluídas, será disponibilizado na Internet
nos próximos dias, em www.filologia.org.br/textos (a cópia fac-
similar existente na Biblioteca Nacional foi oferecida pelo Prof.
Adriano Espínola);
Códice 46 da Torre do Tombo, denominado por nós
CÓDICE DO IMPERADOR 4, com 785 páginas já digitado e
com duas revisões já concluídas, será disponibilizado na Internet
nos próximos dias, em www.filologia.org.br/textos (a cópia fac-
similar existente na Biblioteca Nacional foi oferecida pelo Prof.
Adriano Espínola);
Códice 50,1,11 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE DO IMPERADOR 1, com 222 páginas já digitado e
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 263

com uma primeira revisão concluída;


Códice 50,2,1 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE CARVALHO, com 374 páginas já digitadas e com
duas revisões concluídas, disponível na Internet, em
www.filologia.org.br/textos;
Códice 50,2,1A da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE CAPITÃO-MOR, com 385 páginas já digitadas;
Códice 50,2,2 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE DO CONDE 1, com 445 páginas já digitadas e com
uma primeira revisão concluída;
Códice 50,2,2A da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE DO CONDE 2, com 416 páginas já digitadas;
Códice 50,2,3 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE AFRÂNIO PEIXOTO 1, com 363 páginas já
digitadas e com uma primeira revisão concluída;
Códice 50,2,3A da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE Nº 59, com 369 páginas, fora de consulta
Códice 50,2,4 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE CAMILO CASTELO BRANCO, com 650 pági-
nas, fora de consulta;
Códice 50,2,5 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE DO IMPERADOR 2, com 912 páginas, já digitado
até à folha 156, pois o restante não pertence a Gregório de Matos;
Códice 50,2,6 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE AFRÂNIO PEIXOTO 2, com 819 páginas já
digitadas e com uma primeira revisão concluída;
Códice 50,2,7 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE JOÃO RIBEIRO, com 1024 páginas já digitadas e
com uma primeira revisão concluída;
Códice 50,2,8 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE LINO DE MATOS 1, com 190 páginas já digitadas
e com uma primeira revisão concluída;
Códice 50,2,9 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE LINO DE MATOS 2, com 528 páginas já digitadas;
Códice 50,3,16 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE DE ÉVORA, com 68 páginas já impresso pela DIGRAF
e disponível na Internet, em www.filologia.org.br/textos;
Códice 50,4,1 da Biblioteca Nacional, denominado
CÓDICE DATILOGRAFADO, com 251 páginas digitadas e
com duas revisões concluídas
Códice L. 15-1 da Biblioteca Histórica do Itamaraty,
264 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

denominado CÓDICE NOVO por James Amado, tem 299 fo-


lhas, das quais temos cópia em microfilme;
Códice L. 15-2, 1º vol. da Biblioteca Histórica do
Itamaraty, denominado CÓDICE VARNHAGEN 1, tem 269
p. e índice, das quais temos cópia em microfilme;
Códice L. 15-2, 1º vol. da Biblioteca Histórica do
Itamaraty, denominado CÓDICE VARNHAGEN 1, tem 269
p. e índice, das quais temos cópia em microfilme;
Códice L. 15-2, 2º vol. da Biblioteca Histórica do
Itamaraty, denominado CÓDICE VARNHAGEN 2, tem 449
p. e índice, das quais temos cópia em microfilme;
Códice L. 15-2, 3º vol. da Biblioteca Histórica do
Itamaraty, denominado CÓDICE VARNHAGEN 3, tem 484
p. e índice, das quais temos cópia em microfilme;
Códice L. 15-2, 4º vol. da Biblioteca Histórica do
Itamaraty, denominado CÓDICE VARNHAGEN 4, tem 376
p. e índice, das quais temos cópia em microfilme.

Novas dificuldades – novas soluções

No início do ano passado, foi solicitado à FAPERJ um auxílio


para a publicação dessa obra, na forma de edição diplomática,
como estamos preparando. O auxílio foi negado, com a falsa ale-
gação de que o Prof. Fernando da Rocha Peres (na Bahia) e o
Prof. Francisco Topa (em Portugal) já desenvolviam o mesmo
projeto, o que caracterizaria duplicação de recursos para um mes-
mo fim. Como não pude reunir a documentação no tempo conce-
dido para recorrer, espero ainda consegui-lo noutra oportunidade.
Tendo-me reunido a um grupo de pesquisadores da UERJ
para, através do PROCIÊNCIA, solicitar os recursos do FAP
(Fundo de Apoio à Pesquisa), oferecido pela FAPERJ, consegui-
mos R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) que seriam destinados,
entre outras coisas, para montar um laboratório de informática
para edição em CD-ROM. Pelo que me consta, até ontem, a
FAPERJ ainda não havia liberado esse fundo.
Na seleção dos projetos para conseguirem bolsas de Inicia-
ção Científica, dois professores entraram com pedido de uma cota
cada um para a pesquisa da obra de Gregório de Matos. Nin-
guém conseguiu.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 265

Concluindo

Essa edição diplomática indicará em notas de rodapé todos


os vestígios percebidos de intervenção física (humana ou não) no
texto transcrito, tais como borrões, emendas e rasuras; furos ou
ruídos no papel, perda de folha, mudança do tipo de tinta ou de
outro instrumento da escrita, desenhos ou outros elementos deco-
rativos; informações complementares sobre os copistas e sobre
os proprietários anteriores das referidas cópias, características do
papel e da encadernação, assim como seu estado atual de conser-
vação.
Com todas as dificuldades relatadas, resolvemos começar a
publicar nosso trabalho pela Internet, de modo que o maior núme-
ro possível de interessados possa guardar cópias desse material
para que tal obra não se perca definitivamente. Para isto, tivemos
de fazer algumas adaptações naqueles textos ali disponibilizados,
para que ficasse somente o texto de Gregório de Matos, sem os
nossos comentários, que aparecem em notas nos arquivos em
disquete ou impressos.
Por volta de oitenta por cento do material já está disponível,
em Word para Windows, embora ainda não tenha recebido todas
as revisões necessárias. (Pretendemos cotejar o texto digitado
com o manuscrito pelo menos três vezes).
Os editores críticos, os organizadores de antologias, os estu-
diosos em geral da Literatura Brasileira do século XVII, assim
como os analistas dos usos e costumes daquela época de nossa
história política, eclesiástica e moral, já têm um rico material para
prosseguir em seus trabalhos.
Para que tenha o uso que pretendemos dar-lhes, os textos se-
rão fornecidos gratuitamente, em disquetes, aos pesquisadores que
se identificarem e o solicitarem, e alguns já estão disponibilizados na
Internet, na home page www.filologia.org.br/textos.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 267

Os sufixos tupi tyba ou tüba


identificados com o sufixo português al
Luiz César Saraiva Feijó,
da ABF e UERJ

São inúmeros os topônimos portugueses oriundos de elemen-


tos da língua tupi. A onomástica indígena no português do Brasil
apresenta sua marca do século XVII ao século XVIII em milhares
de termos, conforme pesquisa da professora Marina Vicentina de
Paula do Amaral Dick que registra mais de 10.000 termos levanta-
dos, comentados e analisados em sua significativa contribuição aos
estudos lingüísticos das línguas indígenas, no estado de São Paulo,
num mapeamento onomástico que está prestes a se concretizar.
Aqui, os nossos comentários dizem respeito aos topônimos
encontrados nas regiões sudeste e sul do Brasil, formados com os
elementos tupis tüba e tyba,1 que funcionam como sufixos, introdu-
zindo no radical, noção de coletivo, grande quantidade, abundância,
equivalente “à desinência portugueza em al” 2.

Por estarmos residindo na capital do Estado


do Paraná, lecionando nos Cursos de Graduação e
Pós-graduação em Comunicação Social da Facul-
dade OPET (Organização Paranaense de Ensino
Técnico), iniciaremos nossos comentários com
topônimos deste Estado, começando pelo nome
de sua capital.

1- Curitiba, do tupi ku’ri, pinheiro e tüba, sufixo coletivo, grande


quantidade. Do antigo nome Curituba ao atual Curitiba, verificou-se
a preferência por este último, uma vez que os sufixos tüba e tyba se
alternam 3 na formação de muitos outros topônimos. Assim, Curitiba
pode ser entendido como região de pinheiral, onde o sufixo – al –
268 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

apresenta a idéia de coletivo, grande quantidade, abundância. Os


sítios paranaenses 4 concentram enorme quantidade dos únicos pi-
nheiros do Brasil, conhecidos como araucária-do-Paraná (araucária
brasiliensis 5), encontrados nativos nas faixas de terras que vão do
centro-oeste do Paraná ao Chile, região de Arauco, donde o seu
nome. Por isso, o elemento tupi ku’ri é raro fora dessa região, como
topônimo. Como formador de substantivos comuns, ocorre em al-
gumas regiões do Brasil (Norte, Nordeste), como curiúva ( de ku-
ri , pinheiro + iwa, árvore). Encontramos, ainda, o elemento ybirá ,
que também significa árvore, muito comum na formação de nomes,
como, entre outros, o conhecido ibirapitanga (árvore vermelha, o
pau-brasil), primitivo nome de nossa terra.

2- Guabirutuba é um bairro da cidade de Curitiba. Do tupi


guabiru, rato pardo, menor que a capivara (do tupi kapi’xawa,
comedor de capim) e tüba, como sufixo coletivo.

3- Guaratuba é cidade do Paraná, do tupi wa’ra, garça e


tüba, abundância, muito. Outro topônimo com a mesma origem,
bairro no litoral sul da cidade do Rio de Janeiro é Guaratiba, onde
foi usado o sufixo tyba e não o sufixo tüba.

Na região sudeste, no Estado de São Paulo, encontramos


os seguintes topônimos:

4- Ubatuba – Cidade praiana. Do tupi u’ba, cana de


flecha, caniço e o sufixo coletivo tüba;

5- Caraguatatuba – Cidade praiana. Do tupi karawa’ta,


gravatá e o sufixo coletivo tüba;

6- Araçatuba – Cidade do interior de São Paulo. Do tupi


ara’as, araçá (fruta) e o sufixo coletivo tüba;

No Rio de Janeiro, há, também, alguns topônimos com o


sufixo coletivo tyba (tüba), da lígua dos tupinambás, que pelo litoral
deste Estado viveram:

7- Mangaratiba – Do tupi mâga’ra e tüba, sufixo coletivo,


o sítio dos mangarás. (Mangará é a ponta terminal da inflorescência
da bananeira; umbigo);
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 269

8- Sepetiba – Do tupi as’pê e sufixo coletivo tyba (tüba).


Sapezal;

9- Sernambetiba – Do tupi surunam’bi, sernambi


(molusco, concha branca) e sufixo coletivo tyba.

Portanto, os sufixos tüba e tyba corresponderiam ao sufi-


xo português – al – introduzindo a noção de coletivo, fartura, grande
quantidade etc. Contudo, nem sempre os sufixos tupi tüba e tyba,
agregados primitivamente a um sintagma tupi passaram a integrar
topônimos portugueses. É o caso de yby cuî tyba que significa
areal (tyba = al), pois yby é terra e cuî é farinha, pó, isto é, areia,
mais tyba, sufixo coletivo, areal. Mas o topônimo que ficou foi
ybycuî. Ibicuí, praia e distrito de Mangaratiba, no Rio de Janeiro.
Realmente este local não é caracterizado por extensa faixa de areia.
Não é um areal, logo não comportaria no topônimo o sufixo tupi
tyba, mesmo porque a faixa de areia branca, o grande areal está em
frente a Ibicuí, voltado para o mar aberto que banha a Restinga da
Marambaia 6. Ibicuitiba não existe como topônimo.

Outro comentário ligado a esta colocação sociolingüística, diz


respeito a uma observação de campo ocorrida em 1964, quando
lecionávamos no Colégio Estadual Barão do Rio Branco, em Santa
Cruz, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, bem perto de Sepetiba.
Naquela ocasião, durante uma festividade, em Sepetiba, comemo-
rando o dia de São Pedro, o pescador, verificamos que os já muito
idosos pronunciavam os topônimos Sepetiba, Mangaratiba,
Sernambetiba, Guaratiba (locativos constantes do vocabulário ativo
dos pescadores), com um fonema paragógico /s/, de plural. Volta-
mos diversas vezes à região e constatamos o fenômeno.
Pensamos que esses topônimos, assim pronunciados (Sepetibas,
Mangaratibas, Sernambetibas, Guaratibas), sejam formas pluralícias,
percebido o sufixo tyba como coletivo. É importante salientar que
todos os idosos eram caiçaras 7 . Uma semantização inconsciente,
perdida no tempo, materializada pelo /s/ paragógico ? Interessante é
que o normal na linguagem inculta, na fala descuidada, no falar da-
queles que não têm a língua adquirida, isto é, a língua que se aprende
na escola, é a redução, o não pronunciamento do /s/ de plural. Con-
tudo, parece que existe uma semantização inconsciente na compe-
tência do indivíduo falante, pois este /s/ paragógico poderia ser um
sinal de pluralização. Inconsciente, também, é a concordância de-
270 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

sastrosa da língua popular, encontrada em expressões do tipo “o


pessoal chegaram”, numa espécie de concordância ideológica,
silepse , portanto. Ainda para abonar esta teoria, não nos esqueça-
mos da consciência lingüística do indivíduo falante, materializada no
topônimo Ibicuí, comentado acima, sem a presença do sufixo “tyba”.
Por outro lado, é sempre oportuno salientar que muitos topônimos
com roupagem tupi nascem por criatividade da cultura do homem
branco, falante da Língua Portuguesa, já estabelecida como língua
nacional pela elite intelectual brasileira, desde os fins do século
XVIII, quando, por aglutinação, dois ou mais lexemas tupis criam
nomes de sítios, por essas regiões do interior de nossa pátria. Mas é
importante também lembrar que esta mesma elite intelectual, que
assumiu, definitivamente, no século XIX, a Língua Portuguesa, traz
do passado a prática vergonhosa do torpe extermínio de nossos
índios, que correm o risco de serem somente lembrados pela pre-
sença dos lexemas e morfemas de sua língua geral introduzidos no
português do Brasil.

Notas
1
Sem função distintiva (fonológica), com pronúncia da vogal /y/ sem
arredondamento e da vogal /ü/ com arredondamento dos lábios, segundo
a Profra. Yonne Leite, do Departamento de Antropologia do Museu Naci-
onal, da UFRJ.
2
Cf. DIAS, Gonçalves, Dicionário da língua tupi, chamada língua
geral dos indígenas do Brasil, Rio de Janeiro, Liv. São José, 1970, p.69.
3
Em muitos casos essa preferência foi da nossa cultura, a cultura do
homem branco.
4
Sítios banhados pelo rio Paraná e sítios do altiplano do Estado do
Paraná. Paraná vem do guarani pa’ra e nã, onde pa’ra significa mar e nã,
semelhante. Assim, Paraná = semelhante ao mar; rio grande; parente do
mar, Cf. NASCENTES, DELP, Rio, Vol. 2, p. 233, 1952.
5
Já no século XVI encontramos referência a este pinheiro e a nomes
indígenas do atual Estado do Paraná nos textos de Álvar Nuñes Cabeza de
Vaca, naufrágios & comentários.
6
Do tupi marã’bai, cerco do mar, recife. Nascentes discorda. Recife
é o que não há na Marambaia, o que existe é uma grande língua de areia
separando o mar aberto da baía de Sepetiba. Prefere mba’ra mbai, cerco do
mar. Cf. NASCENTES, Opus cit, p.190.
7
Do tupi kai’sara, estacada de proteção em voltas das aldeias; indi-
víduo natural de região praiana.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 271

A Língua Portuguesa no Brasil: papel


dos gramáticos na sua implantação
Manoel Pinto Ribeiro,
daUERJ, CEUAM e ABF

De início, queremos manifestar a alegria de ver, em discussão,


um tema há muito afastado dos debates nos congressos de Letras.
Esta rara oportunidade se deve à ampla visão lingüístico-filológica
do Prof. Leodegário A. de Azevedo Filho, que, há trinta e um anos,
organiza um evento que representa um recorde nos meios acadêmi-
cos. É necessário que ocorram outras oportunidades, a fim de que
se possa repensar o estudo de Língua Portuguesa no nível escolar e
no universitário.
Também queremos lembrar, com grande emoção, a ausência
de Mestres como os professores Sílvio Elia e Olmar Guterres da
Silveira, que marcaram suas vidas pela grandeza de espírito e por
um domínio incontestável dos estudos lingüístico-filológicos. Jamais
poderão ser esquecidos por todos quantos conviveram com eles.
Neste rápido encontro, nosso propósito é o de expressar a ex-
periência didática com um trabalho que vem sendo publicado há
vinte e três anos. É uma gramática para o ensino médio, com pe-
quenas incursões no ensino superior. Para isso, tivemos de analisar
compêndios escolares utilizados nos últimos trinta anos. Também se
tornou necessário o acompanhamento de muitos progressos da
lingüística geral e da lingüística aplicada à Língua Portuguesa.
Pelo que observamos nos últimos nove anos de nossa tarefa
em Cursos de Letras na UERJ e no Centro Universitário Augusto
Motta, poderíamos afirmar que a gramática precisa ser implantada
ou, quem sabe, reimplantada nos estudos de Língua Portuguesa,
pois se observa, nitidamente, que seu estudo tem sido praticamente
abandonado, o que vem causando um afastamento muito compro-
metedor da norma culta, não apenas entre os estudantes mas ainda
272 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

entre jornalistas e, até mesmo, professores de nível universitário.


Como exemplo desse desleixo, basta ler as matérias divulgadas nos
jornais ou nas universidades. Em 26 de julho de 1999, um conhecido
jornal estampava um comunicado em que dois advogados participa-
vam o reinício de suas atividades, em determinado escritório. De-
monstrando dificuldade na expressão verbal, o aviso, depois de uma
introdução, por sinal correta, complementava, sem qualquer pausa:
“... .que voltaram a trabalhar juntos no mesmo Escritório de
Advocacia como fizeram seus Pais e Avós, escritório este que
está às vésperas de completar um século de existência e, cujo ende-
reço é ...”. O elemento em negrito, além da vírgula que não devia
existir, mostra a insegurança no redigir o texto. Para o Mestre
Bechara, o falante domina o sistema de uma língua quando está em
condição de criar nela. Como se observa na mensagem, do ponto
de vista do registro dos autores do texto, a “criação” demonstra um
afastamento muito comprometedor do seu nível cultural.
Como se sabe, em Portugal a descrição gramatical começa
com a Grammatica da lingoagem portuguesa, de Fernão de Oli-
veira, em 1536. Esta obra foi analisada exemplarmente pelo Prof.
Olmar, em tese de concurso para o Colégio Pedro II. Em 1540,
surge a gramática de João de Barros.
No Brasil, iniciamos os estudos gramaticais com Antônio Al-
vares Pereira Correia, o Coruja, com a obra Compêndio de gra-
mática da língua nacional, em 1835. Rosa Virgínia Mattos e Sil-
va, no livro Contradições no ensino de português, citando Antô-
nio Houaiss, diz que Frei Caneca, em Recife, que viveu de 1779 a
1825, teria redigido a primeira gramática de brasileiros para brasilei-
ros, encampando as regras lusitanas. O segundo trabalho é de Fran-
cisco Sotero dos Reis que publicou Postilas de gramática geral
aplicada à Língua Portuguesa pela análise dos clássicos, em
1862, e Gramática portuguesa em 1886. Na Academia Brasileira
de Filologia, o Prof. Antônio Martins de Araújo é um excelente es-
pecialista em historiografia das gramáticas e da ortografia, e nos
forneceu indicações para que falássemos sobre o assunto da pales-
tra, mas infelizmente nosso tempo é limitado e aguardaremos uma
nova oportunidade para gramáticas e da ortografia, e me forneceu
indicações para que falássemos sobre o assunto da palestra, mas
infelizmente nosso tempo é limitado e aguardaremos uma nova opor-
tunidade para tratarmos da matéria. Outro especialista é o Prof.
Ricardo Stavola Cavaliere, que estudou a Gramática portuguesa
de Júlio Ribeiro, de 1881, além de outros autores, nos aspectos
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 273

fonológicos e morfológicos.
Hoje, o ensino de gramática está relegado a um plano de ab-
surdo e inexplicável desprestígio. O estudo de Língua Portuguesa
praticamente inexiste, fato que documentamos há vários anos em
nossas turmas, nos primeiros anos da faculdade de Letras. Apesar
da boa qualidade de nosso alunado, observa-se, ao começarmos o
curso, que não lhe foi passado um conteúdo adequado do funciona-
mento da Língua Portuguesa. Além disso, verifica-se também que
até a análise e a interpretação do texto são tratadas com muita
insegurança. O professor universitário tem, praticamente, de iniciar
o aluno em um aprendizado de como se estrutura o sistema lingüístico
do português, na variante formal.
Aqui, pretendemos mostrar o caminho que devemos percorrer
para uma visão adequada da gramática portuguesa. Observe-se
que não estamos propondo uma cega obediência à norma culta rígi-
da, que vem sendo criticada de forma indiscriminada, como se tudo
quanto a gramática normativa prescreve fosse um empecilho para
o aprendizado. De repente, após o notável trabalho do Prof. Eugê-
nio Coseriu, todos descobriram que a língua apresenta variações.
Graças a essa lição, em nosso livro abrimos um capítulo para tratar
do assunto, com o título de registros lingüísticos. Para Evanildo
Bechara, “a norma contém o que é tradicional, comum e cons-
tante, tudo o que se diz assim e não de outra maneira. O siste-
ma contém as oposições funcionais para que uma unidade da
língua não se confunda com outra”.
O que desejamos documentar é que o aluno não é levado a
entender como se estrutura, como funciona uma língua. Não se
trata, portanto, de prescrever regrinhas, mas sim de fazê-lo compre-
ender as várias oposições que existem em nosso sistema, para que
ele possa, então, organizar coerentemente suas mensagens.
Parece-nos que muitos aspectos contribuíram para o desprestígio
do ensino de nossa língua. Em primeiro lugar, a necessidade de uma
revisão da Nomenclatura Gramatical Brasileira. Aqui, temos a hon-
ra de contar com a presença do Prof. Antônio José Chediak, mem-
bro da comissão da nomenclatura organizada em 1957. Já em 1970,
o professor Celso Cunha sugeria que esse trabalho fosse rediscutido.
Por nossa sugestão, a Academia Brasileira de Filologia está inician-
do um reexame da questão, que deverá contar com o envolvimento
de todos os setores interessados no aprimoramento de um estudo
mais consentâneo com os avanços da lingüística.
Não se pode negar, porém, a grande utilidade da nomenclatura
274 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

no início de sua implantação, pois os termos empregados eram múl-


tiplos para representar um mesmo conceito. Exemplo disso era a
classificação de orações aditivas, também conhecidas como apro-
ximativas ou copulativas, nas gramáticas da época.
Não devemos esquecer que a Medicina, em recente congres-
so, de acordo com noticiário de jornais, resolveu unificar sua nomen-
clatura, em virtude os inumeráveis nomes por que um dado elemen-
to era estudado. Assim, o termo rótula foi substituído por patela,
que se origina do latim clássico. Cotovelo passa a ser cúbito. Daí
estarmos livres da dor de cotovelo, que “passará” a dor de cúbito.
Nas escolas de ensino médio, muitos sugerem a omissão do termo
gramatical, utilizando-se um substituto. Num determinado colégio,
em lugar de adjetivo passou-se a usar a expressão “palavra de
enfeite”. Imaginem quantas “palavras de enfeite” seriam necessá-
rias para elogiar os Mestres Bechara, Walmírio e Chediak.
Em todos os níveis da gramática, há necessidade de uma revi-
são, a começar pelos estudos de fonética e fonologia, já que este
último termo, dentre muitos, não se encontra no corpo de nossa
nomenclatura. Outras conquistas no nível fonológico deverão ser
agasalhadas, principalmente em virtude do trabalho de Mattoso
Camara Jr., a partir de sua tese de doutoramento em Letras, em
1949, sob o título de Para o estudo da fonêmica portuguesa.
Nesta pesquisa, bem como nos livros Problemas de língüística
descritiva, História e estrutura da Língua Portuguesa e Estru-
tura da Língua Portuguesa, a descrição do sistema fonológico do
português do Brasil se enriqueceu com lições primorosas que não
podem ser esquecidas por nossas gramáticas.
Ressaltamos a descrição do sistema de fonemas da Língua
Portuguesa, numa visão estrutural. No sistema vocálico, salienta o
grande Mestre a importância do quadro de vogais orais de acordo
com a posição na sílaba. Assim, do quadro de sete vogais na posi-
ção tônica, o número de vogais se reduz para cinco na posição
pretônica, a quatro na postônica medial e a três fonemas apenas na
posição postônica final, em virtude do fenômeno da neutralização.
Também põe em xeque a lição sobre vogais nasais, propondo
que se descreva o fato como vogal seguida de travamento nasal (o
arquifonema nasal: /N/). No estudo das semivogais, a nosso ver
resolve a questão de que a vogal é uma vogal assilábica, e não uma
consoante como muitos propuseram.
Em outro ponto reduz a importância da descrição dos encon-
tros consonantais e vocálicos no português do Brasil. Este assunto
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 275

foi objeto de nosso trabalho de monografia na Universidade Federal


Fluminense, quando tivemos a honra de ser examinado por Sílvio
Elia e por Walmírio Macedo, com a orientação do extraordinário
Mestre Olmar Guterres da Silveira, Mattoso nos mostra, que, no
português do Brasil, só existem quatro consoantes pós-vocálicas (/
R/, /N/, /S/, /I/), fato que impossibilita a descrição de muitos casos
como de encontros consonantais, em virtude da epêntese de uma
vogal, geralmente o /i/, que desfaz o encontro, como no par opositivo
apto /’apitU/ e apito /a’pitU/, cuja diferença se manifesta apenas
pela posição do acento tônico, um traço fonêmico supra-segmental.
Cabe lembrar um fato ocorrido em uma prova de Sociologia em que
um aluno escreveu o vocábulo sexo da seguinte forma: sequiço.
Indagado pela professora, o aluno pediu-lhe desculpa e disse-lhe
que “faltava” o acento. Apesar do desconhecimento da ortografia
do vocábulo, o aluno, dentro do que preceitua a lição de Mattoso
Camara, comprova o acerto da teoria do lingüista.
É de lembrar, ainda, a obra Iniciação à fonética e à fonologia,
de Dinah Callou e Yonne Leite, dentre outras, como uma excelente
contribuição para a matéria.
Enfim, apesar do abandono do ensino de fonética e de fonologia
no ensino médio, cremos ser tarefa de uma boa gramática a descri-
ção coerente do sistema fonêmico, ponto fundamental para a com-
preensão de como funciona uma língua.
Nossa experiência didática no ensino superior, em fonética e
fonologia, nos tem trazido gratas surpresas. Antes de iniciar o pro-
grama, estabelecemos um teste de diagnose, para ficar comprova-
do o que aluno conseguiu aprender no ensino médio. Como era de
esperar, o aluno demonstra um sério desconhecimento do nosso
sistema fonológico. Depois das primeiras lições, com o emprego
intensivo da transcrição fonológica, o discente passa a perceber a
diferença entre a camada fônica e a linguagem escrita. O último
resultado com uma turma de setenta alunos no Centro Universitário
Augusto Motta, depois de muito trabalho em sala de aula, trouxe-
nos uma satisfação incontida. Todos os alunos foram aprovados,
sem necessidade de nenhuma ajuda.
É de se lamentar, portanto, que esta parte essencial do ensino
de uma língua tenha sido retirada dos programas dos exames de
vestibular. Cabe também um protesto para o pouco caso que se
observa na maioria desses exames, com raríssimas questões envol-
vendo o conhecimento do sistema lingüístico. Além disso, quase
sempre os quesitos sobre gramática são mal formulados.
276 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Mesmo com alguns obstáculos da nomenclatura gramatical,


acreditamos que a contribuição de notáveis trabalhos universitários
é fundamental para dirimir as divergências em alguns pontos dos
estudos gramaticais. Sempre nos preocupamos em estabelecer o
conceito mais apropriado ao fato língüístico. Por isso, seguimos,
desde a primeira edição de nosso livro, em 1976, a lição de grandes
autores, com ênfase nos trabalhos do Professor Bechara, de Rocha
Lima, Celso Cunha, Gladstone Chaves de Melo, Othon M. Garcia,
Antônio José Chediak, Leodegário de Azevedo Filho, Castelar de
Carvalho e Walmírio Macedo. Também acompanhamos, desde a
antiga UEG, as irrepreensíveis lições do Prof. Olmar Guterres da
Silveira, que nos trouxe soluções perfeitas com suas teses de con-
cursos Prefixos e não-prefixos e Orações subordinadas sem
conectivo.
A leitura atenta desses dois trabalhos nos possibilitou esclare-
cimentos notáveis sobre dois aspectos fundamentais de lingüística
aplicada ao ensino de Língua Portuguesa. Como discípulo fiel do
Prof. Olmar, o Mestre Horácio Rolim de Freitas, uma das mais
perfeitas vocações para o magistério, pesquisador incansável, nos
brinda com Princípios de morfologia, obra que fornece resposta
adequada a muitos pontos da estrutura e formação de vocábulos,
principalmente no estudo da parassíntese e dos regressivos
(deverbais). Note-se que um artigo do Prof. Olmar nos esclarece
que não existem os chamados regressivos nominais, já que a classe
e a função dos vocábulos não se alteram na frase. Assim, delega e
delegado continuam a ser substantivos, desempenhando determi-
nada função sintática num contexto.
Na sintaxe, enfatizamos o estudo das orações subordinadas
sem conectivos, trabalho infelizmente esquecido pela maioria de
nossas gramáticas, fato que provoca a interpretação inadequada
de análise de variadas estruturas sintáticas do português. Dois
livros nos servem até hoje de guia: Moderna gramática portu-
guesa e Lições de português pela análise sintática, do Prof.
Evanildo Bechara. A obra Novas lições de análise sintática, de
Adriano da Gama Kury, da Ática, presta também relevante con-
tribuição ao bom entendimento da sintaxe portuguesa moderna na
variante culta brasileira.
Por isso não entendemos como jornalistas se perdem em fra-
ses como “São nesses momentos que devemos...” Em outra or-
dem teríamos, dentro do padrão formal, teríamos: “Nesses momen-
tos é que devemos...” Cria-se uma regra de concordância afastada
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 277

do registro culto. Também, num informativo de uma faculdade de


comunicação (sic) encontramos uma mensagem que dizia: “Apre-
sentaram-se, como expositores neste seminário, os professores
A, B e C, sendo que suas palestras foram gravadas em vídeos
e, nos debates posteriores, interessantes questões sobre con-
ceitos, currículos e metodologias de Comunicação foram sus-
citadas”. Em linguagem normal, demonstrando domínio da norma
culta, diríamos: “Apresentaram-se, como expositores neste semi-
nário, os professores A, B e C, cujas palestras foram gravadas
em vídeos. Nos debates posteriores, interessantes questões so-
bre conceitos, currículos e metodologias de Comunicação fo-
ram suscitadas”. Basta comparar os dois textos para se verificar
como houve uma dificuldade em redigir a mensagem dentro dos
padrões necessários à exposição da matéria.

Outro texto
“A metodologia a ser aplicada no encontro prevê a apre-
sentação de vídeos e, depois, abrindo-se para debates entre
docentes e discentes da unidade; assinalando-se que o evento
será considerado como atividade curricular e, portanto, com
presença obrigatória”. O texto deveria ser: “A metodologia a
ser aplicada no encontro prevê a apresentação de vídeos. Ha-
verá, depois, debates entre docentes e discentes da unidade,
assinalando-se que o evento será considerado como atividade
curricular, portanto com presença obrigatória”.

Evidentemente a culpa é da gramática, ou seja, da má formu-


lação gramatical, o que revela a “ingnorância” do redator. Por isso,
em virtude do terrorismo implantado contra o ensino de gramática,
propomos que esqueçamos a origem grega do termo e o substitua-
mos por “granática”, que, sem dúvida, é mais “explosivo”.
Modernamente, recebemos a contribuição de Iniciação à sin-
taxe do português, que discute admiravelmente o enfoque estrutu-
ralista, com soluções coerentes para muitos aspectos controverti-
dos. Seu autor é o Prof. José Carlos Azeredo que veio engrandecer
o corpo docente da UERJ. Da Profa. Flávia de Barros Carone te-
mos o livro Subordinação e coordenação.
De Othon M. Garcia, com o imprescindível Comunicação em
prosa moderna, obra que todos elogiam mas que tem sido pouco
utilizada, destacamos refulgentes lições que nos ensinam a pensar,
com apoio principalmente na estrutura sintática, o que nos leva a
278 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

dominar conscientemente o nosso idioma.


Com um selecionado número de pesquisadores, julgamos con-
seguir uma descrição gramatical sem complicações, sem precisar
apelar para complexas lições da lingüística, como infelizmente tem
acontecido em alguns setores.
Não poderíamos deixar de mencionar a obra O modernismo
brasileiro e a Língua Portuguesa, de Luiz Carlos Lessa, que tem
servido como base para exemplificação da fase atual do português,
visto que o autor fez um levantamento exaustivo da norma culta e
coloquial utilizada pelos autores modernistas. É exemplo sério, digno
de louvores pela exaustiva pesquisa, que revela, principalmente, quais
são os padrões frasais mais comuns no português do Brasil.
Com este roteiro aqui exposto, cremos que se realiza um raci-
onal curso de lingüística aplicada ao ensino da língua.
No IX Congresso de Língua e Literatura, em 1978, na UERJ,
sob o tema Panorama atual do ensino do português do Brasil,
o prof. Olmar questiona a preocupação sobre o ensino de nossa
língua em virtude do noticiário alarmante e da atitude exaltada que
a esse respeito assumem homens ilustres do país. Por essas opini-
ões, o ensino de Português vai mal naturalmente porque os pro-
fessores não o ensinam, ou não o ensinam bem. O Mestre rebateu
essas afirmações demonstrando que não é apenas a expressão
verbal que se documenta como deficiente, mas principalmente a
falta de cultura geral. Conclui mostrando que “a Educação de
massa, assentada no princípio de Escola para todos foi entre
nós transformada em Educação massificadora, situação que
se agrava com o desaparecimento total da Educação que visa
à formação das elites dirigentes”.

Uma outra palavra de importância é de Antônio Houaiss, em


uma reportagem na revista Prodoctor, em 1995. Ao falar sobre o
uso abusivo do coloquialismo na linguagem oral, ele esclarece que
isso “revela um relativo empobrecimento no uso da língua e de
seu vocabulário. E por uma razão muito simples: nunca no
Brasil o ensino primário, que é a base desta linguagem, foi tão
torpe quanto está sendo”. Diz ele que, “naturalmente, para as
meras relações de amor, de comer, de locomover-se, é possível
comunicar-se com um número reduzido de palavras. Mas, na
medida em que os jovens tiverem que entrar no mercado de
trabalho e numa função relativamente qualificada, os horizon-
tes verbais e gramaticais terão que se ampliar”.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 279

Iung dizia que achava muito estranho que ninguém veja o que
uma educação sem Humanidades está fazendo ao homem. Pensar
que o homem nasceu sem uma história dentro de si mesmo é uma
doença, concluiu o grande psicólogo. Por isso, é lamentável o pen-
samento radical de pessoas que tentam fazer tabula rasa de toda
uma cultura acumulada em séculos de civilização.
Mesmo em cursos de Letras, há os que consideram o estudo
de Lingüística, Latim, Filologia Romântica e até mesmo de Língua
Portuguesa como elementos sem qualquer utilidade para o estudan-
te. Cabe aos que preservam a dignidade da cultura nacional lutar
contra esse tipo de atitude, pois não se pode calar diante de afirma-
ções desprovidas de um mínimo de sensatez.

Concluindo, precisamos deixar claro que não se aprende gra-


mática apenas com a finalidade de expor mensagens de caráter
eminentemente normativo, mas, principalmente, para, com a ajuda
de uma metodologia adequada, fazer o aluno entender como o nos-
so sistema lingüístico funciona. Para o estudante de Letras se torna-
rá muito fácil a tarefa de se estudar qualquer outra língua, desde que
ele compreenda como funciona a nossa.

Brevis esse laboro, obscurus fio ( Esforço-me por ser breve


e fico obscuro), como disse Horácio na Arte Poética. Por isso, para
encerrar, façamos nossas as palavras de Clarice Lispector em De-
claração de amor à Língua Portuguesa:

Se eu fosse muda, e também não pudesse


escrever, e se me perguntassem a que língua eu
queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e
belo. Mas como não nasci muda e pude escrever,
tornou-se absolutamente claro para mim que eu
queria mesmo era escrever em português. Eu até
queria não ter aprendido outras línguas: só para
que a minha abordagem do português fosse vir-
gem e límpida.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 281

Clarice Lispector e Maria Gabriela


Ilansol: tentativas de descrever
sutilezas ou como dobrar a língua
Maria de Lourdes Soares,
da UFRJ.

À Lucia Helena e Roberto Corrêa dos Santos

1. Clarice1 : a arte de escrever palavras e silêncios a


bico de pena

E se tenho aqui que usar-te palavras, elas tem que


fazer um sentido quase que corpóreo, estou em
luta com a vibração última (AV, 11)

Em “Declaração de Amor”, Clarice Lispector manifesta a


convicção de “que queria mesmo era escrever em português”,
sabendo, no entanto, que a Língua Portuguesa

não é fácil. Não é maleável. E, como não foi


profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua
tendência é de não ter sutilezas e de reagir às vezes
com um verdadeiro pontapé contra os que
temeriamente ousam transformá-la numa lingua-
gem de sentimento e de alerteza. E de amor. A
Língua Portuguesa é um verdadeiro desafio para
quem escreve. Sobretudo para quem escreve
tirando das coisas e das pessoas a primeira capa
de superficialismo (...). Eu queria que a Língua
Portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos
(DM, 98).

A língua literária de Clarice revela os clichês (os signos esva-


ziados), retira a capa que imobiliza o dinamismo da linguagem e a
282 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

devolve revitalizada. Na lição do Mestre Caeiro2 , a clariceana


aprendizagem de desaprender exige o esquecimento do modo de
lembrar e de sentir que nos ensinaram.

A epifania revela-se um procedimento capaz


de despir a primeira capa de superficialismo da lin-
guagem pouco trabalhada pelo pensamento. Para
Olga de Sá, a presença do fenômeno epifânico cons-
titui o traço básico da escritura de Clarice, traço que
guarda algumas semelhanças com o
“estranhamento”, na acepção dada ao termo pelos
formalistas russos. Trata-se da visão poética que
nos liberta do automatismo perceptivo, devolven-
do-nos a sensação de deslumbramento de quem
vê o mundo pela primeira vez:

Ela é expressão de um momento excepcional,


em que se rasga para alguém a casca do cotidia-
no, que é rotina, mecanicismo e vazio. Mas é
também defesa contra os desafios das descober-
tas interiores, das aventuras com o ser. Por isso a
epifania é sempre um momento de perigo à borda
do abismo, da sedução que espreita todas as vi-
das. A vida protegida representa o domesticado,
o dia-a-dia, o casamento, as compras na feira, as
visitas e os aniversários. (...) Enfim, a epifania é
um modo de desvendar a vida selvagem que exis-
te sob a mansa aparência das coisas, é um pólo de
tensão metafísica, que perpassa e transpassa a
obra de Clarice Lispector3 .

Para as suas “tentativa(s) de descrever sutilezas” (DM, 431),


a herança recebida não lhe chega: “um Camões e outros iguais
não bastaram para nos dar sempre uma herança de língua já fei-
ta” (DM, 99). Sem rejeitar a herança recebida, sabe que na
assumpção criadora do adquirido há sempre uma margem para a
ruptura, para a inovação.
Em 1943, no artigo “No raiar de Clarice Lispector”, primeiro
estudo de relevo sobre a obra de Clarice, Antonio Candido4 já
assinalava que o compromisso da escritora é com a linguagem e
não com a realidade empírica.
O seu grande tema - a busca da palavra, da sua palavra, com
uma urgência vital – faz-se através do leal e constante combate
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 283

corpo-a-corpo, da contínua confrontação com a palavra, daí a sen-


sação de precariedade, de extrema fragilidade que a sua escrita
provoca no leitor.
Em lugar da plenitude ou do sujeito pleno, grande parte das
suas personagens e narradoras falam-nos da criação do mundo e
do sujeito fundados no vazio. Vazio ainda informe, mas expectante.
Mundo e sujeito não dados de antemão, mas em processo, sempre
se-fazendo, “espelhando o vazio existente no centro de cada indi-
víduo clariceano, o vazio que Clarice costuma vestir em metáfo-
ras, de claridade, de chama, de lucidez”5. A essa experiência do
ser, transfigurada através da linguagem artística, poderíamos cha-
mar talvez de plenitude do vazio:

Para isso são necessários os artifícios da dis-


tância, da disponibilidade, do esquecimento, e os
artifícios da língua: a escolha e o emprego exato
do vocábulo, a justa construção sintática (...) Os
recursos advindos de uma escolha e de um
remanejamento de valores de que se vai tecendo
o projeto escritural de Clarice que favorece a pas-
sagem da vivência à obra6 .

O que há de original na escrita de Clarice, o que individualiza


o seu estilo literário7, é ter encontrado, no “encontros de
confrontação”8 com a paisagem da língua, a forma adequada para
expressar a sua visão do mundo, a sua paisagem interior.
Valendo-se da estratégia do viés, Clarice contorna o desafio
de atravessar a paisagem agreste (porém não agressiva) da Lín-
gua Portuguesa. O esforço de sutilizar a língua, de torná-la dúctil,
corresponde à procura da “tessitura de viver”, sempre com “o
coração de esguelha”, à esquerda, “indireto” (DM, 42). “Nós so-
mos de soslaio” (AV, 71).
Vários trechos de Água Viva sublinham esse peculiar modo
de estar na escrita:

É que estou percebendo uma realidade


enviesada. Vista por um corte oblíquo. Só agora
pressenti o oblíquo da vida. Antes eu só via atra-
vés de cortes retos e paralelos. Não percebia o
sonso traço enviezado (AV, 70).

E eu vivo de lado – lugar onde a luz central


não me cresta. E falo bem baixo para que os ouvi-
284 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

dos sejam obrigados a ficar atentos e a me ouvir


(AV 72).

Não dirijo nada. Nem as minhas próprias pa-


lavras. Mas não é triste: é humildade alegre. Eu,
que vivo de lado, sou à esquerda de quem entra. E
estremece em mim o mundo (AV, 34).

Atravessar “essa vida insolitamente enviesada” (AV, 70) é o


móvel da escrita que se produz “à medida que”, “à beira de”:
“escrevo-te à medida de meu fôlego” (AV, 56); “meus dias são
um só clímax: vivo à beira” (AV, 12).
A sutilização pressupõe aceitar ou até mesmo preferir a
dissonância, a “harmonia da desarmonia”: “a dissonância me é
harmoniosa. A melodia por vezes me cansa” (AV, 67); “A harmo-
nia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que
tortuosamente ainda se faz” (AV, 12).
O estilo desse canto não será grandiloqüente, nem o som alto
e sublimado porque “todas as vidas são vidas heróicas” (AV, 68) e
“todo herói é herói de si mesmo. Quem vence está-se vencendo”.
Melhor “é cantar uma melodia sem palavras. Espécie de cantilena
extremamente plangente” (AV, 84), um “improviso constante” (AV,
95), à beira do silêncio.
Para a “narradora-autora” de Água viva, a escrita surge de
um profundo desejo de “querer falar”, embora escrever só lhe dê
“a grande medida do silêncio” (AV, 12).
Em Clarice, o silêncio não significa a morte da linguagem,
mas, de um modo geral, a contraparte do som, o que o torna
perceptível. De igual modo, também a imobilidade faz parte do
movimento, como percebe a autora, na crônica “Tentativa de des-
crever sutilezas”, ao contemplar a dança do bailarino hindu, que
“faz gestos hieráticos e pára”: “E muitas vezes a sua imobilidade
súbita é a ressonância do salto anterior: o ar parado ainda contém
todo o tremor do gesto” (DM, 431).
Talvez a mais bem sucedida de suas tentativas para descrever
sutilezas esteja em “Menino a bico de pena”, conto de Felicidade
clandestina também publicado como crônica em A descoberta do
mundo. “Como conhecer jamais o menino?” (DM, 256) Como
apreendê-lo nas malhas da linguagem sem o aprisionar irremedia-
velmente? Como dizer o outro não sendo o outro? Com a delicadeza
da poeta Cecília9 , Clarice sabe que tentar tocar com a pesada mão
humana as finas asas de uma borboleta é fatalmente condená-la à
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 285

morte. Conhece também – e respeita – a inacessibilidade do outro.


Só lhe resta então propor o não-desenho:

Não sei como desenhar o menino. Sei que é


impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico-
de-pena mancha o papel para além da finíssima
atualidade em que ele vive. Um dia o domesticare-
mos em humano, e poderemos desenhá-lo (FC,
256).

Enquanto escritora, como lembra Leila Perrone-Moisés,


Clarice “não acreditava nem um pouco na capacidade da lingua-
gem para dizer ‘a coisa’, para exprimir o ser, para coincidir com o
real”. Na verdade, o que ela procurava através da escrita, com a
seriedade de quem abraça uma missão ou com a resignação de
quem acolhe uma condenação, era pescar nas entrelinhas, “a pa-
lavra pescando o que não é palavra” (DM, 414):

O que ela buscava não era da ordem da re-


presentação ou da expressão. Ela operava emer-
gências de real na linguagem, urgências de verda-
de. Resta ao leitor receber suas mensagens em
branco, e ouvir o que de essencial se diz em seus
silêncios. “Você não acha que há um silêncio si-
nistro em tudo? Há sim. Enquanto se espera que o
coração atenda”10 .

2. Llansol11 : a língua impura da escrita

Por acaso tu já provaste a água quimicamen-


te pura, a água de laboratório, sem um grão de
poeira ou esterco, sem o pequeno excremento de
um pássaro, a água feita apenas de oxigênio e de
hidrogênio?
Nicolás Guillen

A água que move a ficção de Llansol não é a água pura das


nascentes, mas a que resulta do encontro de diferentes cursos de
água e de materiais diversos:

Todavia tivera um sonho, um sonho de tanta


pureza que matava a vida (de igual modo, por ser
tão pura, a água dos lagos, nas grutas, não permi-
286 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

te aos peixes a vida) (DPE, 212).

A água viva da escrita se alimenta da confluência de várias


fontes e cursos de água, conforme a própria ficção se define:
“uma ficção não pode ser simples, é o encontro inesperado do
diverso” (CA, 18).
Em Llansol, a língua impura da escrita liga-se sobretudo à coe-
xistência de registros discursivos (romanesco, lírico e reflexivo), à
contaminação entre os gêneros (narrativo, lírico), de que resulta o
embaraço, por parte da crítica, em classificar seus textos.
A sua trajetória ficcional é a textualização da recusa ao mo-
delo da escrita representativa, realista:

À medida que ousei sair da escrita represen-


tativa em que me sentia tão mal, como me sentia mal
na convivência, e em Lisboa, encontrei-me sem
normas, sobretudo mentais. Sentia-me infantil em
dar vida às personagens da escrita realista, porque
isso significava que lhes devia igualmente dar a
morte. Como acontece. O texto iria fatalmente para
o experimentalismo inefável e/ou hermético. Nes-
sas circunstâncias, identifiquei progressivamente
“nós construtivos” do texto a que chamo figuras e
que, na realidade, não são necessariamente pesso-
as mas módulos, contornos, delineamentos. Uma
pessoa que historicamente existiu pode ser uma
figura, ao mesmo título que uma frase (“este é o
jardim que o pensamento permite”), um animal, ou
uma quimera. O que mais tarde chamei cenas fulgor
(FP, 139-40).

Llansol propõe a potencialização do romance através da


mutação (conceito apropriado da Biologia), operação capaz de
provocar o deslizamento da desgastada paisagem da narratividade
para a paisagem fértil da textualidade:

É minha convicção que, se se puder deslo-


car o centro nevrálgico do romance, descentrá-lo
do humano consumidor de social e de poder, ope-
rar uma mutação da narratividade e fazê-la deslizar
para a textualidade um acesso ao novo, ao vivo,
ao fulgor, nos é possível (LL1, 120).
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 287

Esse deslocamento poderá abrir o “acesso ao dom poético,


de que o exemplo longínquo foi a prática mística”:

Sem o dom poético, a liberdade de consciên-


cia definhará. O dom poético é, para mim, a imagina-
ção criadora própria do corpo de afectos, agindo
sobre o território das forças virtuais, a que poderí-
amos chamar de existentes-não-reais (LL1, 120).

Ainda nas palavras de Llansol,

a textualidade é a geografia dessa criação


improvável e imprevisível; a textualidade tem por
órgão a imaginação criadora, sustentada por uma
função de pujança _______ o vaivém da intensi-
dade. Ela permite-nos a cada um por sua conta,
risco e alegria, abordar a força, o real que há-de vir
ao nosso corpo de afectos (LL1, 120-1).

Ao recusar-se a escrever numa língua de impostura, Llansol


dá impulso a um percurso de escrita que se assemelha à trajetória
de Témia, ou “a rapariga que temia a impostura da língua”, figura
que aparece em alguns livros da autora, como Um beijo dado mais
tarde.
Contrariando os conhecidos protocolos romanescos, o seu “tex-
to não avança por desenvolvimentos temáticos, nem por enredo,
mas segue o fio que liga as diferentes cenas fulgor” (FP, 140). Se-
guindo um dos mais fortes e constantes fios, chegamos a uma fas-
cinante cena fulgor, que se liga à procura da língua – a língua como
sujeito e objeto dessa escrita. “A língua, como sujeito do ‘olhar’ e da
‘meditação-contemplação’ em que essa escrita diz fazer-se”12 .
Ao partir de Portugal para ir viver na Bélgica, Llansol acolhe e
leva consigo uma herança de língua, bem inalienável:
não possuía do passado senão uma línguade
que nada, nem ninguém, conseguiriam separar-me.
E, hoje, sei que essa língua se tinha tornado
o meu único ponto firme – a minha âncora: o meu
real; o nó de certeza do meu corpo com o mundo
(LL1, 126).

A potência do texto de Llansol alimenta-se da fecundidade


do encontro: um lugar e uma língua, em sobreimpressão: a língua
288 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

da “ocidental praia lusitana” e as planícies da paisagem belga. O


título do texto “O extremo ocidental do Brabante” (LL1, 124) fala-
nos admiravelmente desse fértil encontro, constituindo um “aqui”
poderosamente sobreimpresso. Paisagem híbrida, compósita,
includente, em que os nomes dos sítios geográficos não assinalam
fronteiras demarcadas, mas pontos de apoio, a necessária e pre-
cária rede para que o texto não se esvaia.
A escrita-viagem põe “aqui” em movimento (vale lembrar
que “aqui” é o lugar de inserção da pátria na épica camoniana, e
que, na Mensagem de Pessoa, Ulisses “aqui” aportou):

eu vim aqui para me esquecer de como se


contam histórias e se constroem narrativas, pois
que recorrer sempre a essa escrita enfraquece a
vigilância da memória e apaga a imaginação do
espírito (SS, 68).

Com a sutileza da língua do contorno, o texto de Llansol “cir-


cula para romper o que está preso” (FP, 78), procurando desfazer
nós paradigmáticos ligados à sua cultura de origem: “queria desfa-
zer o nó que liga, na literatura portuguesa, a água e os seus maio-
res textos. Mas sei que este nó é muito forte, um paradigma fron-
talmente inatacável” (FP, 32).
Para trazer à fala o fio de água de si, Llansol sabe que há
escolhos a contornar: “Dobra a tua língua, articula, / Dobra a tua
língua, articula (FP, 8). Diferentemente de Clarice, que “queria
não ter aprendido outras línguas” só para que a sua “abordagem
do português fosse virgem e límpida” (DM, 99), a escritora portu-
guesa gostaria de dobrar “a Língua Portuguesa com o conheci-
mento de outra língua” (FP, 20).
Ao enunciar o desejo de escrever em português com o co-
nhecimento de outra língua, Llansol talvez se refira ao bilingüismo
(o francês e o português), presente sobretudo em Finita (Diário
2), ou ainda ao impulso de fazer correr a língua de Camões, Pes-
soa e de outros poetas, fontes gotejantes de escrita:

Eu escrevo em língua estrangeira dentro da


língua de Comuns [um dos nomes de Camões na
ficção de Llansol] e essa língua não tem um terri-
tório já povoado, só para ela (SS, 101).
O meu país não é a minha língua, mas levá-
la-ei para aquele que encontrar (FP, 47).
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 289

Em nome de um “poder de língua” (FP, 8), o texto de Llansol


exercita-se na lição da desescrita. A travessia de territórios
enclausurados, de formações sistemáticas, pressupõe deslocamen-
tos com sentido, lentas mutações. O texto mutante ou romance tex-
tualmente abalado afasta-se do “grande romance” e participa da
batalha “por uma literatura menor”, isto é, uma literatura que não
pretende tornar-se maior, mas que, revolucionariamente, afirma a
sua singularidade no seio da “grande literatura” ou da literatura
estabelecida13 .
Tal como a escrita de Clarice, a ficção de Llansol perturba a
ordem estabelecida, desloca o leitor da inércia do texto previsível ou
facilmente “digerível”, do conforto e da segurança do lugar-comum,
para a instabilidade de um lugar comum – o da comunidade dos
diferentes.
São João da Cruz, Tomás Müntzer, Pégaso, Coração do Urso,
Nietzsche, Eckhart e tantas outras figuras participam da comunida-
de instável e instabilizante baseada na diferença dos diferentes, no
esquecimento ativo: “um grande crepúsculo inundava a escrita, e
todos os factos e acontecimentos se inscreviam num contexto de
máxima originalidade” (RV, 44).
A comunidade errante que atravessa o espaço ficcional de
Llansol compõe-se não apenas de figuras humanas (históricas, ima-
ginárias, míticas, lendárias...), mas também de animais, como o cão
Jade, que corre nas cenas fulgor de Amar um cão, e de plantas,
como Prunus Triloba, o arbusto que floresce em texto em Finita.
Participar dessa comunidade heteróclita, essencialmente
inacabada, é correr o risco de perder-se, de devir-anônimo. O con-
vívio de personagens que, do ponto de vista do referente histórico,
remetem para épocas e nacionalidades distintas, configura uma es-
pécie de transnacionalidade. De maneira análoga, a sobreimpressão
de espaços e tempos diversos constitui o síncrono, a criação de um
espaço-tempo sincrônico para o qual convergem fragmentos textu-
ais provenientes de diversas ordens e mundos, aproximando-se da-
quilo que Foucault denominou “heterotopia”:

As utopias consolam (...) As heterotopias in-


quietam, sem dúvida porque solapam secretamente
a linguagem, porque impedem de nomear isto e
aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os
emaranham, porque arruinam de antemão a “sin-
taxe” (...); as heterotopias dessecam o propósito,
estancam nelas próprias, contestam, desde a raiz,
290 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

toda a possibilidade de gramática; desfazem os


mitos (...)14 .

Ler Llansol, tal como ler Clarice, é, portanto, aceitar o


“pacto do inconforto” (LL1, 12), pois que, para acercar-se da
morada do selvagem coração da vida/da língua, é preciso primeiro
pôr-se a caminho. Travessia sempre arriscada, de um perigo mor-
tal, mas apesar disso, ou por isso mesmo, tão fascinante:

a palavra “inconforto” é todavia capciosa,


indica incómodo e coração ansioso, à espera de
um amigo sereno. Devo reconhecer que o meu
texto, ao deixar inseguro o sujeito que enuncia, se
dirige, de facto, ao ansiar do coração, e o coloca
na sombra da dúvida. E, se o coração persiste em
ler, é porque há nele um fulgor estético que ilumi-
na o próximo passo, e o faz apoiar no detalhe justo
e irrecusável (LL 1, 12).

Amando através do “coração da inteligência” (CA, 91), a


escrita de Llansol deseja a figura do leitor, deseja o seu desejo,
causa amante. Com o ansiar do coração pelo texto de Llansol,
reencontramos aqui o texto de Clarice, escrita-pulsação do “pen-
sar-sentir” (AV, 91) “à espera que o coração atenda”. O laço que
as une é o fulgor estético que ambas perseguem, oferecendo àquele
que persistir na leitura de seus textos duas das mais belas traves-
sias da Língua Portuguesa literariamente trabalhada. A essa du-
pla promessa de felicidade também chamamos literatura.

Referências bibliográficas

ABREU, Maria Fernanda de. Maria Gabriela Llansol – um olhar à


procura da língua. Revista Internacional de Língua Portuguesa. Associ-
ação das Universidades de Língua Portuguesa. Lisboa, n. 8, p 47-56, mar.
1993.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka: Por uma Literatura
menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
DOUGLASS, Ellen. A busca feminista em Perto do coração selva-
gem. In: GOTLIB, Nádia Batella (org.) A mulher na Literatura. Belo Hori-
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zonte: Imprensa da Universidade de Minas Gerais, v. II, p. 71-9,1990.


FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1987.
GUERRA DA CAL, Ernesto. Língua e estilo de Eça de Queiroz. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.
MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1958.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1990.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. 7.ed. Rio de Janeiro, 1977.
SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes,
1979.
SANTOS, Roberto Corrêa. Artes de Fiandeira. In: LISPECTOR, Clarice.
Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 5-14.

Notas
1
Obras de Clarice Lispector referidas neste trabalho e siglas usadas
para as citar: Água Viva. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980 (AV); A
Descoberta do mundo. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992 (DM);
Felicidade Clandestina. 7.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991 (FC).
2
PESSOA, F., 1977, p. 226. “Procuro despir-me do que aprendi, /
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram / e raspar a
tinta com que me pintaram os sentidos”.
3
SÁ, Olga de, 1979, p. 106.
4
CANDIDO, A., 1977.
5
DOUGLASS, E., 1990, p. 77.
6
SANTOS, R. C., 1991, p. 6-7.
7
CAL, E. G., 1969, p. 51. “O estilo literário vai muito além do meramen-
te verbal. Ter um estilo não é possuir uma técnica de linguagem, mas
principalmente ter uma visão própria do mundo e haver encontrado uma
forma adequada para expressar essa paisagem interior”.
8
A expressão foi extraída de Um falcão no punho, de Maria Gabriela
Llansol. (cf. Nota 10)
9
MEIRELES, C., 1968, p. 487-8. Poema “Elegia a uma pequena borbo-
leta”.
10
PERRONE-MOISÉS, L. ,1990, p. 177.
11
Obras de Maria Gabriela Llansol referidas neste trabalho e siglas
usadas para as citar: Depois dos pregos na erva. Porto: Afrontamento,
1973 (DPE); A restante vida. Porto: Afrontamento, 1983 (RV); Causa
amante. Lisboa: A Regra do Jogo, 1984 (CA); Um falcão no punho. Diário
1. Lisboa: Rolim, 1985 (FP); Finita. Diário 2. Lisboa:Rolim, 1987; Da sebe
ao ser. Lisboa: Rolim, 1987 (SS). Amar um cão. Sintra: Colares, 1990; Um
beijo dado mais tarde. Lisboa: Rolim, 1990 (BDT). Lisboaleipzig 1. Lis-
boa: Rolim, 1994 (LL1).
12
ABREU, M. F. , 1993, p. 8.
13
DELEUZE, G., & GUATTARI, F., 1977, p. 28.
14
FOUCAULT, M. 1987, p. 7-8.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 293

Um olhar sobre O memorial do


convento - Saramago, primeiro
Prêmio Nobel da Língua Portuguesa
Marina Machado Rodrigues,
da UERJ.

Cada momento revolucionário impõe a ta-


refa de transgredir a história dos vencedores, ou
desarticulá-la, de imobilizar o seu fluxo, de ex-
trair do seu continuum os passados cativos, de
despertar de suas sepulturas os mortos que de-
pendem de cada presente, para que a vitória dos
opressores não seja definitiva. 1

O Memorial do convento traz à cena o texto da história


oficial para desconstruí-lo e reorganizá-lo, sob a luz do realismo
crítico-social, fundando o lugar do ubi-sunt, quando faz dialoga-
rem na ficção os discursos da história e da literatura.
A ficção corrói a versão hegemônica consagrada pela histó-
ria oficial, enquanto discurso do dominador, fazendo da literatura o
outro da história. Se por um lado, a desmistificação instaurada
pelo texto, desautorizando a versão oficial, se efetiva por meio de
uma atitude iconoclasta em relação aos eventos ocorridos no pas-
sado, a narrativa, como escombro, não pode deixar de veicular a
visão melancólica própria da alegoria histórica. Walter Benjamin
diz que “a história é sempre a história do vencedor”2 . Mas a sua
recriação pela e na literatura confere à escritura o estatuto de
verdade histórica possível. É no entrelugar da história e da litera-
tura que se opera a transformação efetivada por Saramago.
No romance, o passado não se faz letra morta e nisto reside
a revisão crítica da história, já que é com os olhos do presente que
o passado se organiza3 . O autor subverte a noção de temporalidade.
Mas ao se voltar para o passado, os olhos se fixam no futuro e,
294 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

tecendo o futuro, o narrador desconstrói o passado. Ao presente só


cabem olhos. O devir, no entanto, pode surgir como presente na voz
da enunciação que insere comentários ou acontecimentos desloca-
dos do contexto narrado, como a alusão aos efeitos da bomba atômica:

ontem se derrubavam muralhas e hoje se


desmoronam cidades, ainda ontem se extermi-
navam países e hoje se rebentam mundos, ainda
ontem morrer era uma tragédia e hoje é banali-
dade evaporar-se um milhão, 4

Ideologicamente, o Memorial do convento inscreve a crítica


e a corrosão de uma estrutura que tem sido responsável pela manu-
tenção dos privilégios de poucos e da conseqüente exploração da
maioria. Nada passa desapercebido aos olhos do narrador que tem
sob a mira os poderes institucionalizados e, como um franco atira-
dor, dispara em todas as direções. Pela ótica do narrador, por exem-
plo, surpreende-se a corrosão da liturgia e, por extensão, da crença
no milagre, do alcance da oração, que aliás como quase todo o
campo do sagrado se acha minado pela ironia e pelo deboche:

(...) esse é o mistério das orações, lançamo-


las ao ar com uma intenção que é nossa, mas,
elas escolhem o seu próprio caminho, às vezes
atrasam-se para deixar passar outras que tinham
partido depois, e não é raro que algumas se
acasalem, assim nascendo orações arraçadas ou
mestiças, que não são nem o pai nem a mãe que
tiveram, quando calha brigam, param na estra-
da a debater contradições e por isso é que se
pediu um rapaz e veio uma rapariga (...)5

O processo de desmistificação se opera em todos os níveis,


incluindo o discurso ficcional, já que a Literatura, diferentemente
da História, não se prende a “um único tipo de verdade”, como
se vê adiante:

Este diálogo é falso, apócrifo, calunioso e


também profundamente imoral, não respeita o
trono e nem o altar. 6

A propósito do trono, o narrador procede à dessacralização


BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 295

em nível metafórico e metonímico: tanto da instituição - quando


denuncia a penúria, a ignorância e a opressão do povo - quanto de
seu representante, como nesta passagem do texto em que se refe-
rindo aos maus ares que se respiravam no paço devido à morte do
irmão da rainha e à má saúde da mesma acrescentou, em lingua-
gem ambígua:

os ares não andavam bons no paço, como


ainda agora se averiguou ao dar el-rei um flato
rijo de que pediu confissão. 7

Ou ainda, de uma só vez, atacando trono e altar:

(...) de el-rei não falemos, que sendo tão moço


ainda gosta de brinquedos, por isso protege o
padre, por isso se diverte tanto com as freiras nos
mosteiros e as vai emprenhando, uma após outra,
ou várias ao mesmo tempo, que quando acabar a
sua história se hão de contar por dezenas os filhos
assim arranjados, coitada da rainha, que seria
dela se não fosse o seu confessor António Stieff,
jesuíta, por lhe ensinar resignação (...)8

Saramago faz do humor um poderoso instrumento de corro-


são. Através do riso, como já ensinara Bergson, “a sociedade se
vinga dos excessos cometidos contra ela”, e é contra o poder insti-
tuído que o autor descarrega suas baterias. Como Blimunda, a dos
olhos excessivos, os olhos do narrador tudo vêem e, se essa via do
avesso as pessoas, este do avesso podia ver e virar as verdades.
A tessitura do romance se faz da movência dos olhos e dos
significantes dos diversos olhares em movimento. Assim, o narrador,
a cuja subjetividade se submetem todos os personagens, cria uma
nova sintaxe textual. À Blimunda era dado ver por dentro, ao
narrador é dada a possibilidade de puxar os cordéis.
O romance privilegia os pequenos, que têm sua ação alargada,
em função das relações simbólicas que o texto engendra e, em
contrapartida, o estrato palaciano é vitimado por toda sorte de
ataques que desfazem a aura forjada pela história9 . Ainda se uti-
lizando da metáfora dos olhos, o narrador estabelece a diferença
entre ver e olhar; este último, como tradução da alienação do povo:
296 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

este é o dia de ver, não de olhar, que esse


pouco é o que os olhos tendo, são outras quali-
dades de cegos.10

Aliás, por serem cegos, é que o narrador denuncia as


injustiças sociais:

esta cidade, mais do que todas, é uma boca


que mastiga de sobejo para um lado e de escasso
para outros,11

Cabe também por este motivo outra advertência do narrador


de que:

usa cada qual os olhos que tem para ver o


que pode ou lhe consentem, ou apenas parte
pequena do que desejava, quando não é por
simples obra do acaso. 12

É a mesma voz que desmistifica a decadência dos costumes


numa sociedade, cujos valores morais se apóiam na ambigüidade
das ações:

é uma terra de ladrões, que olho vê, mão


pilha, e sendo a fé tanta, ainda que nem sempre
recompensada, maior é o descaro e a impiedade
com que se salteiam as igrejas.13

O olhar do narrador se volta ainda para a justiça dos homens,


que, parcial, defende os ricos e pune os pobres, apontando as
iniqüidades de que são vítimas os que “são outra qualidade de
cegos”. Além de vendas nos olhos, adverte os leitores de que os
pratos da balança da Justiça podem pender para um dos lados,
quando se trata de apadrinhados ou poderosos, apontando a cor-
rupção institucional:

a questão é ter padrinhos que desculpem o


homicídio e mil cruzados para pôr na balança,
nem é para outra coisa que a justiça a leva na
mão...14

Também a justiça divina traz os olhos vendados, pois,


BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 297

morreu afogado D. Miguel e se salvou D.


Francisco, quando honrada a justiça seria o
contrário.15

“O mundo de cada um é os olhos que tem”16 , entretanto, o


desvio do olhar implica um desvio da intenção. E é deste modo
que o narrador parece justificar os excessos a que são submetidos
homens e animais na construção do convento de Mafra. Não se
sabe se Deus não está olhando, ou se estará desviando os olhos de
propósito, já que “a obra é para a glória e serviço dele mesmo”17 e
os fins justificam os meios, concluiríamos nós, leitores.
A narrativa constrói a imagem de Deus à semelhança do
homem, atribuindo àquele a natureza deste. Como opera a inver-
são da ordem, a narrativa coloca em questão a própria essência
da divindade, segundo a ótica teológica cristã, já que tal procedi-
mento se inscrevia somente no âmbito das divindades pagãs. O
mesmo recurso serve à corrosão da aura do sagrado, como no
deslocamento herético a que tem lugar entre santos e homens:
estes castigam aqueles, que não se querem ver despojados de
seus bens materiais.
Em relação à Igreja, à Religião e ao clero, o processo de
dessacralização atinge o seu ponto mais crucial, não escolhesse a
ficção o período negro da história de Portugal em que a Inquisição
reinou absoluta. Assim, em referência à Igreja e à Companhia de
Jesus, o discurso do narrador assume o tom herético que perpas-
sa toda a narrativa:

Vem Santo Domingo e Santo Inácio, ambos


ibéricos e sombrios, logo demoníacos, se isto não
é ofender o demônio. 18

A paródia19 é outro recurso utilizado, por exemplo, na derru-


bada de mitos caros à cultura portuguesa. No romance de
Saramago, funciona como metonímia do processo de criação. É
através da paródia que o narrador atualiza a dicotomia identidade/
diferença entre o Velho do Restelo e um homem do povo, que é
morto ao explicitar a forma cruel empregada pelo poder no recru-
tamento dos trabalhadores para a construção do convento
franciscano. O autor, ao reler o texto camoniano, insere-o em nova
circunstância, deslocando-lhes significante e significado, já modi-
ficados pelo olhar que um outro tempo autoriza:
298 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

(...) acompanham-nos até fora da vila as


infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó
doce e amado esposo, e outra protestando, Ó
filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce
amparo desta cansada já velhice minha, não se
acabavam as lamentações, tanto que os montes
de mais perto respondiam, quase movidos de alta
piedade, enfim já os levados se afastam (...) en-
tão uma grande voz se levanta, é um labrego de
tanta idade já que o não quiseram, e grita subi-
do a um valado, que é púlpito de rústicos, Ó
glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó
pátria sem justiça, e tendo assim clamado, veio
dar-lhe o quadrilheiro uma cacetada na cabe-
ça, que ali mesmo o deixou por morto.20

O trecho explicita a dicotomia sublime/grotesco ao mesmo


tempo em que traz a oposição passado/presente, afirmada na de-
gradação do velho camoniano. Este se vê transformado num
labrego rústico, cujo púlpito é um valado e, ao invés do respeito
que autoriza o “saber só de experiências feito”, inspira o ódio
dos homens que estão a serviço do rei. O mito se desfaz em nome
da postura política assumida pelo discurso da enunciação.
É também pela via da paródia que o narrador procede à
dessacralização da liturgia, ao tomar a letra da oração ao Pai e
subvertê-la em dois níveis -“mãe nossa que na terra estais”21 ;
ou através do aforismo “Pater noster que non estis in coelis”22
– em que o efeito de corrosão é muito mais significativo, já que o
contraste provocado pela citação latina – que confere maior auto-
ridade à sentença – seguida da partícula non, nega e desautoriza
o seu sentido transcendente.
A narrativa explicita o contraste existente entre a posição de
superioridade de que goza a Europa culta e rica e a subserviência
de Portugal, pobre e analfabeto, que é desnudado aos olhos do
leitor segundo a ótica do poder. Assim é o povo português, segun-
do a visão de seu rei:

(...) e desta pobre terra de analfabetos, de


rústicos, de toscos artífices não se podem esperar
supremas artes e ofícios, encomendem-se à Euro-
pa, para o meu Convento de Mafra, pagando-se
com o ouro de minhas minas e mais fazendas, os
recheios e ornamentos, que deixarão, como dirá
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 299

o frade historiador, ricos os artífices de lá, e a nós,


vendo-os, aos ornamentos e recheios, admirados.
De Portugal não se requeira mais que pedra, tijo-
lo e lenha para queimar, e homens para a força
bruta, ciência pouca23

Neste mesmo tom, denuncia ironicamente a importação


indiscriminada de modelos culturais europeus. A crítica à
supervalorização do elemento espúrio na cultura portuguesa se
reflete, por exemplo, no pedido de Baltasar a S.Bento:

que mal tem que peça um soldado a S. Ben-


to uma inglesa ao menos uma vez, para não mor-
rer ignorante.24

Como o fogo prometeico, o saber, fruto proibido, é risco certo


em qualquer tempo. Assim, a chama sagrada para Baltasar acaba
por implicar sua própria condenação. Saber além, metáfora da cons-
ciência não-alienada, é delito não tolerado pela Inquisição ou pelo
Poder em qualquer tempo. Baltasar queimou na fogueira, no passa-
do, como tantos outros; no presente, o narrador sabe que a fogueira
pode assumir formas bem mais sofisticadas, e que este tipo de falta
certamente não ficará impune. O tratamento de corrosão dispensa-
do à Inquisição se faz também pela via da ironia, em discurso ambí-
guo, que acaba por chamuscar as imagens de Deus, a dos santos e
a de uma certa prática religiosa, comum ainda hoje:

(...) ao todo cento e trinta e sete pessoas,


que o Santo Ofício, podendo, lança as redes ao
mundo e trá-las cheias, assim peculiarmente,
praticando a boa lição de Cristo quando Pedro
disse que o queria pescador de homens.25

Mas nem só de desmistificação se faz um texto. O memorial


do convento também conta a história de amor entre Baltasar e
Blimunda que, com Frei Bartolomeu, formam a trindade humana.
A tensão criada pelo confronto de posturas destes personagens
com diferentes elementos dentro da narrativa possibilita, além da
crítica do real, a instauração do que o texto constrói como verda-
de. É, então, a partir da metáfora das vontades, que a enunciação
recusa à religião o papel messiânico que a própria sociedade lhe
confere, ao alimentar a cultura do milagre, pois da vontade e
300 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

pertinência dos três personagens depende o vôo, metáfora da li-


berdade. À fé se opõe outro mito. Se o corpo de Baltasar se
extingue, a vontade sobrevive ainda e se junta à de Blimunda, seu
complemento exato. O texto valoriza a crença no poder dos ho-
mens e a possibilidade de construção do futuro, quando recusa a
origem divina aos seres humanos – já que a alma não podia ser
vista por olhos que enxergavam por dentro. Por isso, as vontades,
sim, estas existiam tão concretamente que somente a partir delas
se poderia construir o sonho de liberdade dos três personagens. E
neste ponto se depreende a visão melancólica do texto, quando se
percebe que o sonho se restringe a três pessoas. As outras nunca
o tiveram, ou ainda não o acreditam possível.
Ao milagre da salvação representado pela trindade divina, a
narrativa apresenta a opção da trindade humana, como agencia-
dora da mudança. Mesmo quando dois dos três esteios são venci-
dos, o terceiro resiste, com a vontade redobrada, pois somada à de
Sete-Luas está a de Sete-Sóis. A esperança subsiste então.
A visão parodística da história pressupõe a criação de um
outro texto em que são construídas novas verdades. Na ficção, a
história é repensada a partir da crítica ao poder, à sociedade e a
seus valores. Os procedimentos utilizados pelo autor – como a
paródia, os aforismos, a ironia, o deboche desbragado – corroem a
versão oficial, questionando os valores das velhas estruturas res-
ponsáveis pela construção de um imaginário de época que, ao
introjetar as imagens do passado, deixou o futuro sem perspectiva.
Ao repensar e criticar a história e a cultura portuguesas,
Saramago desautoriza o discurso hegemônico e pela via da dife-
rença possibilita a busca da identidade de seu povo, deixando-nos
entrever o que poderia ter sido mas não foi.
À imagem e semelhança de Blimunda, o autor possui olhos
que sobejam. Contudo, a direção de um certo olhar, ao implicar o
desvelamento, revela também a “amargura que é o olhar dos vi-
dentes”.26
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 301

Notas
1
ibidem, p.21
2
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política, p.20
3
Segundo Nietzsche “o senso histórico exagerado levado ao seu extre-
mo lógico erradica o futuro porque destrói as ilusões e priva as coisas
existentes da única atmosfera em que podem viver”. Ao contrário, à
Literatura contemporânea cabe a possibilidade de virar do avesso a
História, como uma forma de engendrar o futuro.
4
SARAMAGO, J. O memorial do convento, p.286
5
Ibidem, p.71/72
6
ibidem, p.283
7
ibidem, p.49/50
8
Ibidem, p.91
9
Em O Memorial do Convento, o ponto de vista da narrativa parece
coincidir em parte com o conceito do historicismo realista, segundo o
qual, de acordo com Hayden White, “a tarefa do historiador era menos
lembrar aos homens suas obrigações com o passado que impor-lhes uma
consciência da maneira como o passado poderia ser utilizado para efetuar
uma transição eticamente responsável do presente para o futuro”, p. 61
10
SARAMAGO, J. O memorial do convento,p.79
11
ibidem,p.27
12
ibidem, p.84
13
ibidem, p.20
14
ibidem, p.189
15
ibidem, p. 190
16
ibidem, p.272
17
ibidem, 217
18
ibidem, 320
19
“A paródia se constrói como desmistificadora do discurso realista que
criou a ilusão de refencialidade, a suposta ligação da narrativa com a
realidade. A ficção contemporânea liberta-se, assim, da pretensão da
verdade e, minando a realidade, torna-se mais próxima dela, afirmando
uma cultura e definindo uma identidade.”
20
Saramago,idem, p.293
21
ibidem, p.161
22
ibidem, p.157
23
ibidem, p.228
24
ibidem, p.44
25
ibidem, p.95
26
ibidem, p.166
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 303

Tupinismos, africanismos,
asiaticismos e o Dicionário
Houaiss de Língua Portuguesa
Mauro de Salles Villar,
do IAH.

Muita gente se pergunta como se faz um dicionário. A crença


popular é a de que quem neles trabalha “sabe tudo”. Obviamente,
porém, tal coisa nem possível seria. A lexicografia é apenas o traba-
lho de lexicógrafos, não necessariamente super-homens intelectu-
ais. É técnica desenvolvida em muitos anos de labor humano. Bas-
taria referir que o primeiro dicionário conhecido foi produzido em
Ebla, um dos grandes centros urbanos da cultura proto-síria, há no
mínimo 4.300 anos.
Os lexicógrafos são basicamente redatores generalistas que
dominam as regras da metalinguagem empregada no fazer de dici-
onários, enciclopédias e afins. É por essa razão que, para elabora-
rem tais obras de referência, carecem necessariamente da contri-
buição de um conjunto de especialistas das mais diversas áreas do
saber e do fazer humanos, contingente capaz de suprir as lacunas
de informação técnica que ocorram nas definições.
As enciclopédias, os glossários, os dicionários, tais como exis-
tem hoje, são uma atividade de complexa estrutura, não podendo
mais ser obra de um grupo singelo de redatores auto-suficientes, por
mais abarcantes que sejam os seus conhecimentos. Humanistas
desse tipo não mais existem em nosso mundo, um tempo em que a
realidade se tornou de tal maneira multímoda no que respeita à sua
variedade e extensão, e em que as suas prospecções verticais mul-
tiplicaram-se tanto e atingiram tamanhas profundidades, especial-
mente no campo das ciências e da tecnologia, que uma visão
conspectiva absoluta é impossível, a não ser, de modo não mais que
aproximativo, como fruto de um vigoroso trabalho colegiado.
Por isso, um grande dicionário, como o Third New International
304 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Webster, lançado nos Estados Unidos em 1961 com 460.000 en-


tradas, contou com uma força-tarefa de 1 editor-chefe, 13 redatores
associados, 58 redatores assistentes, 66 assistentes editoriais, 31
assistentes de secretaria e 343 especialistas externos utilizados
como consultores. Em outras palavras, o numeroso grupo editorial
interno teve como adjutório forçoso o trabalho conexo de centenas
de especialistas, dentro e fora dos Estados Unidos, para levar a
cabo a sua missão.
Nos dicionários ditos de língua geral, a base das averbações
é de pala-vras da língua de “nível zero” – a não científica ou técnica,
a língua comum do dia-a-dia e a literária. Nesse campo, a compe-
tência básica é dos lexicógrafos – lingüistas, gramáticos e filólogos.
Mas o contingente numericamente funda-mental das línguas mo-
dernas é composto pela terminologia, sistema de palavras empre-
gadas numa disciplina particular (por exemplo, a terminologia bo-
tânica, ou da marinharia, ou da matemática). Foi nessa área que
explodiram quantitativamente as línguas de cultura no século XIX e
no XX, especialmente aquelas que contam com grande desenvolvi-
mento nas tecnologias de ponta. Todavia, como a nomenclatura téc-
nica é crescentemente universal, cada neologismo criado por força
de nova tecnologia ou descoberta é também, pelo menos potencial-
mente, palavra nova de qualquer outra língua cujos falantes dela
venham a se utilizar.
Para se ter uma idéia desse fenômeno de expansão lexical,
comparo os números da Língua Portuguesa na medievalidade com
aqueles de hoje. Calcula-se que o português medieval contasse com
cerca de 15 mil vocábulos. Em meados do século XVI, com a ex-
pansão marítima, esse total estaria entre 30 e 40 mil. No final do
século XIX, o registro em dicionários atingia a casa das 80-90 mil
unidades léxicas. Saltando daí para o início da década de 1980, o
corpus do Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de
Letras já registra cerca de 360 mil entradas.
Mas a dicionarização ou a vocabularização não representam o
cômputo exato do número de palavras de uma língua. Se o Oxford
English Dictionary, essa catedral da lexicografia internacional, traz
registradas mais de 615 mil unidades da língua inglesa, não se pense
que o seu léxico se esgota em tal quantitativo. Muito longe disto.
Os projetos de lexicografia, para se comporem, fazem uma
escolha dentre o extensíssimo material com que conta a língua, seja
determinando no tempo o período fechado sobre o qual focalizarão
o seu esforço de pesquisa, seja pré-fixando o número de entradas
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 305

sobre as quais irão versar. Os dicionários, especialmente os de lín-


gua geral, jamais se utilizam de modo exaustivo das nominatas
terminológicas. Nem poderiam fazê-lo. Qualquer língua moderna
conta, não com centenas de milhares de vocábulos, mas com mi-
lhões de palavras e sintagmas potencialmente dicionarizáveis. Cal-
cula-se, por exemplo, que só os vocábulos e locuções ligados à me-
dicina girem em torno de um total de 600 mil unidades. A termi-
nologia química e farmacológica atinge quase 2 milhões de vocábu-
los, total excedido pela zoologia, pois só a entomologia tem 2 milhões
de insetos classificados. Um registro abarcante da botânica uni-
versal não seria menos titânico. E se é verdade que a maior parte
das espé-cies, gêneros, classes, tribos etc. dessas classificações te-
nha denominação ape-nas no latim científico, seus nomes são todos
vernacularizáveis e, portanto, registráveis em dicionários, mesmo
naqueles de língua geral. E pensar que apenas 13% das espécies da
biodiversidade da Terra foram classificados até agora...
Em resumo, quanto à linguagem especial do tecnoleto, os lexi-
cógrafos têm mesmo de se valer do conhecimento de profissionais
de cada área. Quem trabalha em lexicografia saberá padronizar, no
estilo do dicionário que estiver fazendo, o material técnico recebido,
mas fica dependente da qualidade, exatidão e utilidade das informa-
ções prestadas pelo colaborador especialista.
Em línguas bem estudadas, o papel do lexicógrafo é aprofundar
a pes-quisa; é procurar exceler na definição dos conceitos das
unidades léxicas, tentando levá-las a uma eficácia e precisão cada
vez maiores. É também incluir, com critério, neologismos e a
neologia ligada às acepções. Se a questão for de etimologia ou
sobre a história de um vocábulo, é preciso ir além do que antes
havia sido feito.
A lexicografia, como registro da extensão horizontal e verti-
cal das vivências e cogitações de um povo através de sua língua, é
um processo de agregação, no tempo, de esforços, pesquisas e
resultados, um somatório de conquistas que se acumulam umas
sobre as outras. Um grande dicionário espelha e baliza a expan-
são e os limites do pensamento e das conquistas materiais dos
seus falantes. Por esta razão, tais obras são tão importantes para
a política cultural dos povos.
A Espanha, por exemplo, cedo adiantou-se às demais línguas
européias na intuição da importância dos dicionários com o seu
Tesoro de la Lengua Castellana y Española, de Sebastián de
Covarrubias. Publicado em 1611, ele precedeu de um ano o célebre
306 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Vocabolario degli Accademici della Crusca, de Florença, edita-


do em Veneza. No século seguinte, a Espanha foi além com o pri-
meiro Borbón, Filipe IV, monarca esclarecido que em 1723 destinou
por decreto uma renda anual, obtida por um imposto sobre o tabaco,
para a publicação do Diccionario de Autoridades da Real Aca-
demia Española, monumento da lexicografia desse país.
Na França, a consciência da importância decisiva do idioma
como uma espécie de “cola social” e ferramenta política de hegemonia
cultural é patente tanto historicamente quanto no conjunto de meios
e financiamentos postos à disposição de lexicógrafos para a elabo-
ração do Trésor de la Langue Française em 16 alentados volu-
mes – e isso numa língua que já contava com excelentes dicionários,
como os Littré, os Larousse, os Robert e os da editora Hachette,
para citar apenas quatro bons filos lexicográficos.
Mas que fazer quando aspectos da língua sobre a qual um
dicionário versa se encontram mal estudados, quando houve inter-
rupção nos esforços de compreendê-los, pesquisá-los e registrá-
los? Que fazer quando as informações especializadas sobre que
basear os esforços do registro lexicográfico são por vezes pouco
confiáveis, confusas, a exigir estudos que as retifiquem?
Os dicionários e enciclopédias congeminam em si duas nature-
zas: são produtos culturais e bens de comércio. Por esse segundo
motivo, sobre eles in-cidem as ubíquas pressões por produção, pra-
zos, contenção de custos, redução de grupos de trabalho, modera-
ção de pesquisa. Em outras palavras, acaba por faltar tempo para a
reflexão mais aprofundada, para as verificações mais minuciosas,
para as leituras superpostas do material trabalhado, a fim de que
ocorra uma filtragem dos deslizes advenientes do forte ritmo da
produção. Os dicionários, gravados por tais exigências alheias ao
seu processo, passam en-tão a se apressar, repetindo-se, copiando
definições, reproduzindo velhas soluções propostas para etimologias,
replicando tradicionais procedimentos técnicos, sem ânimo ou pos-
sibilidade de sugerir avanços, estabelecer características mais pes-
soais, pesquisar desenvolvimentos. O perigo disso é o de se acabar
fazendo sempre o mesmo dicionário, apenas cosmeticamente alte-
rado, com permanência de equívocos definitórios e reinclusão das
nefastas palavras de papel, que é como chamamos aquelas que
se encontram em vocabulários, léxicos e em outros livros de autori-
dade similar, mas sem curso real na língua – palavras originárias de
erros ortográficos, tipográficos, ou resultantes de má leitura de origi-
nais ou de pronúncia incorreta.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 307

Dentro desse quadro, vejamos a situação dos tupinismos,


africanismos e asiaticismos no Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa, obra em trabalhamos há nove anos (mais uma inter-
rupção de cinco por motivos financeiros) e que será entregue ao
editor para produção no Brasil em agosto do ano 2000.
Inicio pelo relato do que entendem por tupi algumas obras de
referência e dicionários que tratam da questão no Brasil.
O Tupi é um tronco lingüístico que faz parte do Macro-Filo
Andino-Equatorial. Na década de 1970, para a antropologia brasi-
leira, ele incluía sete famílias: a Família Tupi-Guarani, a família
Mundurukú, a família Jurúna, a família Arikêm, a família Tuparí, a
família Ramarâma e a família Mondé – cada uma destas com suas
línguas e dialetos específicos.
A palavra tupi denota, igualmente, uma língua específica da
família lingüística Tupi-Guarani. A constituição desta era, no citado
período, descrita como incluindo: o tupi (subdividido em tupi antigo
ou tupinambá e o tupi moderno ou nheengatu); o guarani (subdivi-
dido em guarani antigo e guarani moderno, o qual englobava o Kaiwá,
o Nhandéva, o Mbiá); o Xetá; o Tenetehára (que incluía o Guajajára
e o Tembé); o Asurini e o Suruí do Tocantins (Mudjeretíre); o
Apiaká do Tapajós; o Tapirapé; o Kamayurá; o Kawahib (que
abarcava o Parintintin, o Paranawát [Pawaté, Takwatép, Ipotewat],
o Wiraféd, o Tukumanféd, o Diahói, o Tenharín [boca negra], o
Júma, o Kayabí; o Urubu-Kaapór (que compreendia o Manajé
[Amanajé], o Anambé, o Turiwára); o Oyampi, o Emeriõ (Émerillon)
e o Karipúna do Uaçá; o Awetí; e o Mawé (Sataré).
O dicionário em que trabalhamos hoje registra o Tronco Tupi
como compreendendo, no Brasil, dez famílias vivas distribuídas por
14 estados. Nosso texto descreve o Tupi-Guarani como a família
lingüística do Tronco Tupi com a maior distribuição geográfica no
Brasil, estendendo-se por 13 estados e compreendendo 20 línguas
vivas que se caracterizam por pequena diferenciação interna.
O Guarani é uma língua da família lingüística tupi-guarani fala-
da pelo grupo indígena que habita Mato Grosso do Sul, e do Rio de
Janeiro ao Rio Grande do Sul, onde atualmente se divide nos
subgrupos kaiwá, mbiá e nhandéva.
Vejamos, porém, o que deixaram registrado alguns tupinólogos
brasileiros sobre a questão.
Para o celebrado professor sul-rio-grandense Frederico G.
Edelweiss, no ensaio denominado “O Indianismo ao Tempo do Im-
pério” (janeiro de 1955), constante da abertura da 4ª edição de O
308 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Tupi na Geografia Nacional, de Teodoro Sampaio, o tupi é a


“língua fixada pelos jesuítas no primeiro século da catequese” – o
tupi dos séculos XVI e XVII, ouvido diretamente dos indígenas des-
se grupo étnico. A língua geral ou nheengatu colonial, que ele
chama também de brasiliano, é o “desenvolvimento do tupi entre
os mestiços e no intercâmbio, sob a influência da Língua Portuguesa
e da colonização”. “É um tupi na primeira fase da sua progressiva
decadência, da qual nem textos possuímos.” Nheengatu ele classi-
ficava de “língua geral moderna, no estado em que ficou reduzida na
bacia amazônica”. Em Tupis e Guaranis (1947, p. 32), registrou
que tal dialeto “nunca foi falado por qualquer tribo não aculturada.”
Teodoro Sampaio chamava de tupi da costa ao tupi conside-
rado genuíno, tupi amazônico ao nheengatu e tupi-guarani ao
guarani. Registra Edelweiss (ob.cit.) que Sampaio abeberou-se no
Dicionário Português-Brasiliano e Brasiliano-Português, léxi-
co compilado por jesuítas que, no seu ponto de vista, versa não
sobre o tupi, mas sobre um estádio intermediário do tupi, modifican-
do-se em direção ao nheengatu (embora contenha também peculia-
ridades guaranis isoladas). As etimologias de Teodoro Sampaio
mesclam formas tupis, guaranis e nheengatus “sem a mínima distin-
ção”, diz Edelweiss.
Reproduzo a seguir um excerto do texto desse autor no citado
ensaio “O Indianismo”, a respeito de discrepâncias de conceito atri-
buídas às citadas palavras em diversos autores:

Desde 1823, Martius havia adotado o genéri-


co tupi para a família hoje designada por tupi-
guarani. Porto Seguro seguiu-lhe as pegadas, che-
gando mesmo a declarar nas obras guaranis de
Montoya por ele editadas que, ao invés de língua
guarani, fora preferível dizer língua tupi. Para Couto
de Magalhães, tupi e nheengatu eram sinônimos e
o guarani, um simples dialeto deles. Batista Caeta-
no só admitia a existência de um único idioma: o
guarani – e, a par de alguns termos locais, atribuía
as diferenças fonéticas marcantes ao tupi antigo,
quase exclusivamente à deturpação dos portugue-
ses. Para Barbosa Rodrigues, ao contrário, o
nheengatu, a despeito de corrompido, continuava
sendo, ainda em fins do século dezenove, o dialeto
mais próximo da língua-mãe e mais puro do que o
tupi de Anchieta e o guarani de Montoya. Declara
ele em Poranduba Amazonense (1887): “Venho
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 309

apresentar-te [a Batista Caetano, a quem dedicou o


livro] o resultado de alguns estudos que confir-
mam até certo ponto (....) que o nheengatu (....) é
mais puro que o tupi do Sul e que o guarani (....).”

No ano passado, Eduardo de Almeida Navarro publicou o seu


Método Moderno de Tupi Antigo: a Língua dos Primeiros Sé-
culos, em cuja introdução esclarece:

O tupi só era falado na capitania de São


Vicente, aí incluindo-se o planalto de Piratininga,
em trechos do atual estado de São Paulo.
– Assim, chamar a língua brasílica de tupi ou
tupinambá não é absolutamente preciso, pois
ambas eram variantes dialetais e não línguas pro-
priamente ditas. Por que a chamamos, então,
neste Método, de “tupi antigo”, se o tupi era uma
variante dialetal de menor uso que o tupinambá?
Isso só se justifica pelas seguintes razões Esse
designativo teve larga difusão, muita aceitação pelo
povo em geral, apresentando o caráter de um deno-
minador comum, sendo um termo que entra na
composição de outros, todos nomes de povos fa-
lantes da língua brasílica: tupinambá, tupiniquim,
tupinaé.
– Embora as gramáticas de Anchieta (1595) e
de Figueira (1621) descrevam principalmente a vari-
ante tupinambá, a poesia lírica e o teatro que
Anchieta nos deixou (...) está, em grande parte, em
tupi, que ele aprendeu primeiro, quando viveu em
São Paulo de Piratininga, de 1554 a 1562. Por muitas
vezes, Anchieta empregou as duas variantes
dialetais num mesmo texto, como que consideran-
do irrelevantes suas diferenças.
– A própria variante tupinambá apresentava
aspectos diferenciados na costa brasileira: o
tupinambá da gramática de Anchieta e o descrito
pela gramática de Luís Figueira, em Pernambuco,
tinham diferenças entre si, podendo-se dizer que
Figueira descreveu uma outra variante dialetal, o
tupinambá do norte.”

Em outras palavras, neste texto, entende-se tupi antigo pelo


que é chamado por outros de guarani antigo – enquanto o “tupi
310 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

moderno”, vale dizer, o nheengatu moderno, é aquele “ainda falado


em certas partes do Norte e do Nordeste do Brasil.”
O quadro das línguas indígenas do Brasil apresenta ainda hoje
de 120 a 150 línguas, ou seja, aproximadamente a metade do total
falado na época do descobrimento. Teodoro Sampaio, no que foi
reproduzido por alguns dicionários, qualificou por vezes de tupi o
que era guarani ou nheengatu, reduzindo o que não chamava de
tupi freqüentemente ao termo tapuia, denominação genérica atri-
buída pelos portugueses a indígenas dos grupos que não falavam
lín-guas do tronco tupi e habitavam no interior do país. Veja-se
este trecho do capítulo 1 do seu livro O Tupi na Geografia Naci-
onal, intitulado “Da expansão da língua tupi e do seu predomínio
na geografia nacional”:

Transpondo-se o São Francisco em direção


ao sul, penetra-se de novo numa região ingrata
pela inclemência do céu e se vai atravessando a
bacia elevada do Vaza-Barris, antes de ganhar
os trechos esparsos e mais deprimidos das
chapadas baianas que, depois do salto de Paulo
Afonso, depois de Canudos e de Monte Santo,
levam a Itiúba, ao Tombador e ao Açuruá. Aí,
nesse trecho do pátrio território, aliás dos mais
ingratos, onde outrora se refugiaram os perse-
guidos destroços dos Orizes, Procás e Cariris, de
novo aparecem, designando os lugares, os no-
mes bárbaros de procedência tapuia que nem o
português, nem o tupi logrou suplantar. Lêem-
se, então, no mapa da região, com a mesma
freqüência dos acidentes topográficos, nomes
como Pambu, Patamoté, Xingó, Bendegó,
Propriá, Cumbe, Massacará, Cocorobó,
Tragogó, Canché, Chorrochó, Quicunca, Cochó,
Centocé, Açuruá, Xique-Xique, Jiquié, Sincorá,
Catulé ou Catolé, Mucujê, Juciape, Gagau,
Orobó, Procá, Cocobocó e outros igualmente
bárbaros e estranhos.
(Toda essa toponímia grafada em negrito, no original.)

Sob a denominação comum de tupi ou vagamente de


tupinismo, entram em nossos dicionários, do mesmo modo, o tupi
antigo, o guarani, o nheengatu (também dito neotupi) e
eventualmente vocábulos cujos étimos pertenceriam a outros troncos
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 311

e a outras famílias lingüísticas. Em outras palavras, além de os


estudos etimológicos estarem consideravelmente atrasados quanto
à lingüística indigenista, a utilização do rótulo tupi num sentido
hiperonímico de ‘empréstimo de alguma vaga língua indígena do
continente americano’ continua a ocorrer e está longe de ser ideal,
mas os dicionários persistem em tal simplificação por falta de fontes
sobre que debruçar os seus levantamentos.
O grupo de lexicógrafos do Dicionário Houaiss também se
recente dessa limitação endêmica de fontes. Empenhou-se ferrea-
mente, porém, em levar o mais longe possível as pesquisas que se
podem fazer e as sugestões que se podem oferecer sobre a etimologia
de tais empréstimos.
No que respeita à lingüística e à etnologia indigenista nacional,
preferimos fazer tábua rasa do que os outros léxicos e enciclopédias
registravam, por confuso, desatualizado e por vezes errôneo, e lan-
çar-nos a um levantamento próprio, contemporâneo e histórico, de
grupos e línguas indígenas baseado na documentação mais recente
dessa área. Disto resultaram cerca de 650 verbetes que incluem
informações sobre o indivíduo, o grupo com sua localização geográ-
fica e a língua ou dialeto por eles falado, além do registro de seu
etnônimo brasílico, vale dizer, a denominação de cada grupo do
território brasileiro, extinto ou existente, com sua transcrição segun-
do regras estabelecidas por antropólogos e lingüistas brasileiros.
No que concerne à quantificação dos indigenismos
lingüísticos no português, ou seja, das palavra, construções ou
locuções de qualquer língua indígena americana tomadas de em-
préstimo por nossa língua, o cômputo existente é caótico, pois nun-
ca foi levado a efeito com método. As opiniões divergem de meros
4.500 vocábulos aos 50 a 100 mil estimados por Silveira Bueno.
Não creio haver dúvida de que as vozes amerindigenistas superam
em número as dicções árabes conservadas no léxico português.
Afinal, é patente a quantidade de topônimos (especialmente
orônimos, corônimos, limnônimos, eremônimos, potamônimos e
nesônimos), os numerosíssimos fitônimos e zoônimos (entre estes
especialmente os ornitônimos e os ictiônimos), mas também diversos
etnônimos, litônimos, nosônimos, melônimos, mitônimos,
meteorônimos, demonônimos, alguns antropônimos etc. – que
colorem a nossa língua, especialmente a falada no Brasil, de belos
sons e visões ameríndias.
Todavia, no que respeita à sua quantificação real, não há rigo-
rosamente mais que meras opiniões.
312 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

No Dicionário Houaiss, os topônimos só se encontram refe-


ridos na etimologia dos gentílicos, uma vez que não se dá entrada a
nomes próprios de cidades na nominata. No que respeita a nomes
de animais e especialmente a plantas brasileiras é que é bastante
considerável o número de empréstimos indígenas, dos quais se
registram também grande número de formas e variantes. Dou como
exemplo o verbete guapuruvu, uma leguminosa que chega a atin-
gir 30 metros de altura. Entre os 51 sinônimos e variantes que o
dicionário refere, estão: baageiro, bacumbu, bacuparu, bacurubu,
bacurubu-ficheira, bacuruvu, bacuva, bageiro, bagiro, baquerubu,
baqueruvu, beri, bucurubu, gabiruvu, gapuvuru, garapivu, garapuva,
garapuvu, garipuvu, grapibu, guaburuvu, guaparuva, guaperubu,
guaperuvu, guapiruva, guapiruvi, guapiruvu, guapivuçu, guaporuba,
guapurubu, guapuruva, guarapuvu, guarupuvu, guavirova, guavirovo,
paricá, paricá-grande etc. – grande número dos quais, indigenismos.
O cômputo dos empréstimos de línguas ameríndias abrangidos
pelo Dicionário Houaiss ainda está em aberto, pois o grupo
editorial está a 13 meses de sua finalização e não desejo aqui
avançar hipóteses. Mas, na medida que tal registro é tão expressivo
na obra, a fixação de suas etimologias constitui-se num ordálio
para os especialistas, já pela divergência de opiniões sobre étimos,
já pela infirmidade do conceito do que é o tupi nas obras de
referência utilizáveis, já por serem o tronco Aruák e as famílias
Karíb, Tukâno, Makú, Pâno etc. pouco estudadas, já – e pior que
tudo – pela inexistência de estudos sobre grande parte dos
empréstimos, exigindo que nosso grupo de etimologistas tenha de
ir além do que se costumava pedir à sua classe nos dicionários de
Língua Portuguesa dita geral até agora realizados.
Outra questão espinhosa para a lexicografia é a discussão a
respeito da fixação da grafia dos nomes indígenas. O item IV,
sobre a hifenação, do “Formulário Ortográfico da Academia Bra-
sileira de Letras”, aprovado em agosto de 1943, estatui, no inciso
4º, que ele deve ser empregado “nos vocábulos formados por su-
fixos que representam formas adjetivas como açu, guaçu e mirim,
quando o exige a pronúncia e quando o primeiro elemento acaba
em vogal acentuada graficamente”. Exemplificando tal regra, os
vocábulos andá-açu, amoré-guaçu, anajá-mirim e capim-açu.
Mas que dizer de baiacumirim, em que o u é semitônico ou de
carapicupeba, onde o mesmo ocorre? O Vocabulário Ortográ-
fico registra-as sem hífen.
O problema está em que gwa’su (>açu, uçu e guaçu) e mi’rï
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 313

não passam de exemplos de elementos de composição tupis que


sincretizam palavras no português. Há grande número de outros
formantes com extensa representação em nossa língua, por exem-
plo, pinima ‘listrado, manchado’, ‘pewa ou bewa ‘achatado, liso’,
gwa’yã ‘caranguejo’, ‘taya ou ‘aya ‘que arde, picante, ácido, aze-
do’, pi’xuna ‘negro, preto, escuro’ e diversos outros. As palavras
compostas com tais elementos não são regidas por regras claras
quanto ao modo de serem grafadas, o que gera considerável insta-
bilidade ortográfica, que aliás se espelha na própria nominata do
Vocabulário Ortográfico. Eis aqui um pequeno grupo, meramente
exemplificativo, de palavras formadas com elementos de composi-
ção pospositivos de origem tupi onde tal problema se torna patente:
escrevem-se sem hífen (embora sempre o primeiro elemento for-
mador seja oxítono e o segundo, adjetivante): acaripixuna, acarapeba,
aratupinima, acarauçu, amborepinima, amborepixuna, acaraaia,
carapicupeba, ipecupinima, ituipinima, acaricuiara etc. Em
bacabamirim, entende-se a inutilidade do hífen, mas baiacumirim,
que não tem hífen, poderia ser lido baiàcumirim.
Aliás, um bom exemplo conjunto da instabilidade observa-se
em palavras compostas com esse ictiônimo baiacu. Escrevem-se
sem hífen baiacuguaíma, baiacuguima, baiacuguimbá, baiacumirim,
mas grafam-se com hífen baiacu-guaiama, baiacu-guaimá, baiacu-
guarajuba, baiacu-arará, baiacu-ará. Quanto a baiacuarara, o Voca-
bulário Ortográfico registra-o com e sem hífen.
Em línguas de grafia estabilizada, o trabalho da lexicografia
é reproduzir, na nominata de suas entradas, o adrede estabelecido.
Na nossa, em casos como esse, o dicionário tem com freqüência
de absorver o papel, que não é realmente seu, de normatizador
ortográfico, por se ver forçado a tomar um partido por necessidade
de padronização. Mesmo nesse caso, porém, a instabilidade
ocorre nos registros, pois, não havendo uma regra una, oficial,
ocorrem flutuações.
No que respeita aos africanismos – compreendidos nestes os
empréstimos de línguas e dialetos africanos integrados no sistema
de nossa língua e também vocábulos e expressões dessas línguas e
dialetos registrados in natura em livros de literatura africana escri-
tos em português – o Dicionário Houaiss conta com um levanta-
mento próprio, realizado no Brasil, a partir de glossários apensos a
obras literárias de e sobre a África lusofônica. Foram também utili-
zados alguns dicionários específicos publicados em Portugal e em
outros países, como é o caso do Dictionaire bilingue portugais-
314 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

français des particularités de la langue portugaise en Guinée-


Bissau, do Prof. Jean-Michel Massa.
A flora e a fauna da região foram arroladas e pesquisadas
através de manuais locais, entre eles, por exemplo, o excelente Agro-
nomia Angolana, edição da Repartição Central dos Serviços de
Agricultura de Angola, Luanda, n.7, 1953 (que é uma publicação
póstuma do último trabalho do botânico John Gossweiler). Notável
é também Plantas Úteis da Flora de S. Tomé e Príncipe – medi-
cinais, industriais e ornamentais, de Luís Lopes Roseira, de 1984.
Isso gerou um número tão expressivo de averbações que nos vi-
mos forçados a guardar material para outras edições ou outras obras,
de modo a possibilitar que a massa de informações que constarão
do dicionário nesta primeira edição pudesse ser processada pelos
botânicos, redatores, datadores e etimologistas do nosso grupo den-
tro do tempo de trabalho que lhes resta.
Enquanto isso, um grupo de africanos de Moçambique, Ango-
la, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde trabalha em
Lisboa, sob a supervisão do Prof. João Malaca Casteleiro, reco-
lhendo material para outros verbetes regionais a serem introduzidos
no Dicionário Houaiss. A parte inicial desses textos estará no
Brasil no mês de setembro deste ano, para ser processada e
incorporada ao corpus de nosso banco de dados.
No caso de africanismos de registro neológico em dicionarização
e mesmo de palavras já dicionarizadas, ocorre duplicidade ou mes-
mo multiplicidade de grafias entre as de cunho aportuguesado e
aquelas usadas nos países de África, ocasionando, também aqui,
instabilidade de padrão ortográfico no registro. Os países africanos
lusófonos, mergulhados em problemas sociais e econômicos, quan-
do não em guerra, não tiveram tempo nem disponibilidades para
encetar seus levantamentos lingüísticos e estabelecer dicionários e
vocabulários ortográficos com o seu padrão ideal, donde a existên-
cia de uma flutuação de soluções, por vezes dentro de um mesmo
país, flutuação essa que necessariamente se reflete em qualquer
dicionário que pretenda integrar a sua contribuição vocabular sem
impor-lhes regras. É o que ocorre com o Dicionário Houaiss.
Grande número de línguas e povos africanos da costa,
contracosta e centro continental, especialmente os ligados à área de
influência da expansão e colonização portuguesas, encontra-se
registrado no dicionário com as informações mais atualizadas dispo-
níveis sobre sua caracterização, localização, língua falada e eventu-
almente os seus traços culturais mais importantes.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 315

Relato, por fim, o que vimos fazendo a respeito da inclusão de


asiaticismos no Dicionário Houaiss. Não é comum que dicionários
elaborados no Brasil preocupem-se em averbar empréstimos de
línguas orientais ao português. Basicamente eles são da Índia e de
Macau, e em menor escala, por exemplo, de Timor, do cristang de
Malaca, na Maláisia etc. A vocação do Dicionário Houaiss, porém,
era ir tão longe no registro lusofônico quanto o possível, razão por
que, assim como foram registrados regionalismos portugueses e
brasileirismos e algumas palavras das línguas e crioulos africanos da
área lusófona, fizemo-lo também com parte do material arrolado
por monsenhor Sebastião Rodolfo Dalgado, professor de sânscrito
na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em seu Glos-
sário Luso-Asiático. Todavia, por ser histórica a maior parte desse
registro, preocupamo-nos em completá-lo com informação coeva,
viva. Entre as fontes com que contamos para tanto, cito dois preci-
osos levantamentos.
Um, o do professor Raul Gaião, licenciado em Filosofia que
viveu em Macau por nove anos e fez seu mestrado de Lingüística
Portuguesa na Universidade de Macau, onde também lecionou por-
tuguês. Tal inventário foi por ele mesmo extraído e refeito para nós
a partir de sua tese de mestrado, um minucioso glossário de pala-
vras e locuções ainda vivas nos falares locais e/ou utilizadas em
obras literárias de expressão portuguesa que integram elementos
do chinês e do crioulo macaísta. Contém igualmente vocábulos de
línguas timorenses na mesma perspectiva
O outro, foi feito por Luís Filipe Tomás, especialista em His-
tória da Ásia fluente em diversas línguas orientais, que foi profes-
sor assistente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
e é atualmente professor-associado convidado da Universidade
Nova, também em Lisboa. Seu precioso levantamento é comple-
mentar ao do professor Gaião e mergulha sobre asiaticismos de
outra ordem e origem.

Conclusão
A inexistência de estudos mais precisos sobre que fundamen-
tar a proveniência dos vocábulos de origem ameríndia é problema
penoso para a etimologia dos dicionários de Língua Portuguesa. A
falta de informação sobre a origem dos empréstimos e das unidades
léxicas das línguas africanas in natura registradas é igualmente
grave e extensa. Etimologizar e datar tais vocábulos e sintagmas é
tarefa árdua, especialmente em dicionários que pretendam impor
316 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

um padrão mais metódico de aprofundamento de tais questões, como


é o caso do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. A
ortografia de tupinismos e dos indigenismos em geral é outro motivo
de preocupação para o estabelecimento de uma nominata
lexicográfica. Vimos apoiando-nos na bibliografia existente em Língua
Portuguesa e não só, e utilizando os saberes de especialistas nacionais
e estrangeiros para superar ou, pelo menos, aventar hipóteses sobre
tais pendências. Um esforço especial está sendo feito para averbar
africanismos e asiaticismos de toda a área lusófona, com o auxílio
de colaboradores locais. As dificuldades conjuntas de tais tarefas
obviamente crescem na medida exata da extensão da nominata
sobre que se propõe trabalhar.
Se quiseres enviar um condenado ao suplí-
cio, não o mandes às minas de ouro nem ao verdu-
go; antes obriga-o a compilar um dicionário.”
Quando o filólogo e historiador Joseph Justus
Scaliger, nascido na França e falecido em Leyden
em 1609, enunciou esta sua famosa considera-
ção, referia-se aos dicionários de menos de 10 mil
palavras que se faziam no seu tempo, o século
XVI. Imagino o que diria de um com mais de 250
mil entradas, como o que fazemos.

Concluo, lembrando o verso do poeta português Manuel Ale-


gre que diz: “Na minha língua... cada verso é uma outra geogra-
fia.” Com certa liberdade, atrevo-me a afinar tal pensamento com
o que buscava Antônio Houaiss em seu dicionário, que sempre foi
integrar o labor coletivo de gentes brasileiras e do resto do mundo
lusofônico numa nominata comum, em pós da harmonia que as
diversas realizações da Língua Portuguesa geram em seu vigoro-
so e variado conjunto.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 317

Confrontos entre o Tupi


antigo e a Língua Portuguesa
Nataniel dos Santos Gomes,
da UFRJ / SUAM.

Nosso objetivo aqui é de fazer a descrição de alguns aspectos


do tupi antigo e da Língua Portuguesa, tais como: a ordem oracional
e a ordem sintagmática.

1. Informações Sobre o Tupi Antigo

O tupi antigo, ou tupinambá, pertencia à família tupi-guarani.


Essa família se destaca entre as outras sul-americanas, devido à
sua extensão. As línguas desta família eram faladas em pratica-
mente todo o litoral brasileiro e na bacia do rio Paraná no século
XVI. Na atualidade, esta família é encontrada na Região Norte,
nos estados do Maranhão, Pará, Amapá e Amazonas; na Região
Centro-Oeste, em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás; na
Região Sudeste, no Rio de Janeiro, São Paulo e no Espírito Santo, e
nos três estados da Região Sul, além de ser encontrada fora do país,
na Guiana Francesa, na Venezuela, na Colômbia, no Peru, na Bolí-
via, no Paraguai e na Argentina.
Os primeiros registros são do início do século XVI, sendo os
primeiros textos produzidos em 1575. Estes textos eram de caráter
religioso, traduzidos por jesuítas a partir dos dados de um índio
catequizado.
Em seguida, surgem documentos que tinham o objetivo de re-
produzir conversas entre os índios e os europeus.
Acredita-se que praticamente todos os europeus que vinham
para cá acabavam aprendendo o tupinambá. E com o tempo os
missionários passaram também a produzir textos não-religiosos, como
José de Anchieta, que produziu mais de 4000 versos na língua e
318 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

ainda elaborou a primeira gramática indígena. As gramáticas que


surgem depois também têm origem em religiosos jesuítas. É interes-
sante notar que na metade do século XVII, muitos jesuítas que ha-
viam nascido no Brasil eram totalmente bilíngües, mas poucos índios
aprenderam a escrever na sua própria língua. E mesmo assim o uso
do tupinambá se tornou tão comum pela população que o governo
chegou a proibi-lo. Mas, mesmo assim, deixou sua marca no portu-
guês, em topônimos, em nomes de aves e outros.
O tupinambá foi a língua natural mais conhecida em nosso país
foi o tupinambá, sendo predominante nos contatos entre portugue-
ses e índios, e ainda se tornando a língua da expansão bandeirante
no sul e da ocupação de parte da Amazônia.
Segundo Edelweiss (1969:74), não se falava o tupinambá, mas
o tupiniquim. Daí ele conclui que o padre Anchieta em sua gramáti-
ca não estava se referindo ao léxico geral, mas um determinado
emprego do tupinambá, para diferenciar o tupi de São Vicente e o
tamoio do Rio de Janeiro.

Informações Sobre a Língua Portuguesa


A Língua Portuguesa pertence ao grupo denominado de lín-
guas neolatinas ou românicas, que têm sua origem no latim vulgar.
Resultantes da evolução e dialetação do latim, que era implantado
nas regiões conquistadas pelos romanos.
No caso da Língua Portuguesa, tem-se a origem a partir do
latim introduzido pelos romanos na Lusitânia, na Península Ibérica.
De certa forma, a história da nossa língua está ligada a fatos perten-
centes à história da península.
Hoje, as línguas românicas estão espalhadas por todo o mun-
do. E no caso do português, que é falado no Brasil, em alguns
pontos da Ásia, na Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Cabo
Verde, Ilha da Madeira e São Tomé e Príncipe; o espanhol, a
língua oficial de praticamente toda a América do Sul e Central; o
francês, falado em parte do Canadá, Guiana Francesa, Haiti,
Senegal e Madagáscar; além do italiano, romeno, catalão, galego,
franco-provençal, rético e sardo.

2. A sintaxe

2.1 - A ordem das orações independentes

No tupi antigo, entendemos que a ordem dos constituintes


BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 319

oracionais é livre, isto nas orações independentes, ao contrário da


Língua Portuguesa, que tem a preferência pela ordem sujeito-ver-
bo-objeto (SVO). E conforme dissemos num outro trabalho (Go-
mes, 1999:8A), “Tanto o sintagma nominal referente ao sujeito quanto
o referente ao objeto podem ocorrer antes ou depois verbo. A or-
dem parece servir para funções pragmáticas e não gramaticais.”
Vejamos os exemplos1 abaixo, que podem ajudar a esclarecer
um pouco a nossa discussão.

1. Pindobu u viu o mar1.

1 Pindobusu o-s-ep ak paranª . SVO b. Pindobusu paranª o-s-ep ak. SOV


Pindobu u 3-3-ver mar2 Pindobu u mar 3-3-ver

c. paranª Pindobusu o-s-ep ak. OSV d. o-s-ep ak paranª Pindobusu. VOS


mar Pindobu u 3-3-ver 3-3-ver mar Pindobu u

(Lemos Barbosa, 1957:67)

Percebemos que as ordens SVO, SOV, OSV e VOS, são pos-


síveis nestas orações. É óbvio que os verbos apresentam prefixos
de pessoa, que se referem tanto ao sujeito como ao objeto.
Como já dissemos, a preferência da Língua Portuguesa é pela
ordem SVO:

2. a) João comprou uma bola SVO


b) Eu li o livro. SVO

Existe a possibilidade de outras ordens. Mas acreditamos que


não fazem parte do cotidiano da língua e seriam orações muito
marcadas.
No tupi antigo as orações independentes podem trazer o
sintagma nominal em qualquer posição, sempre com o prefixo objetivo
expresso no verbo, como veremos nos exemplos abaixo. Quando o
prefixo de objeto de 3ª pessoa aparece na frase, libera o sintagma
nominal de objeto, que não ocupa posição fixa na oração.
3. a) a- -pysyk y 1sg.-3-apanha r mac hado Eu a pa nhe i o mac hado

b) y a- -pysyk Mac hado 1sg-3-apa nha r Eu a pa nhe i o mac hado.


320 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Nos exemplos abaixo, percebemos que o uso do nome e do


pronome de 3ª pessoa em casos de incorporação nominal, faz com
que o mesmo lugar ocupado pelo nome possa ser ocupado pelo
pronome de 3ª pessoa.

4. a) o- -pysyk y 5. a) itÆa- -potar

b) o- y-pysyk b) a- -potar itÆ

y o- -pysyk a-itÆ
-potar

Apanhou um machado. Quero pedras.

2.2 - A ordem nas orações dependentes

No tupi antigo as orações dependentes apresentam a ordem é


SOV:

6. a) Koriteî kunhã pitanga mo-mbak-i SOV


Depressa mulher criança acordar-dep. “A mulher acor-
dou a criança depressa.”
b) Koriteî pitanga kunhã mo-mbak-i SOV
Depressa criança mulher acordar-dep. ‘A criança
acordou a mulher depressa.’

Podemos perceber que o objeto é um sintagma nominal, quan-


do vem antes do verbo. Mas se o pronome objeto de 3ª pessoa
ocorre junto ao verbo, o objeto aparece localizado à esquerda do
sujeito. Vejamos:

7) Koriteî pitanga kunhã i-mombak-i OSV


Depressa criança mulher 3-acordar-dep. ‘Depressa, a
mulher acordou a criança’.
8) Koriteî kunhã pitanga i-mombak-i OSV
Depressa mulher criança 3-acordar-dep4 . ‘Depressa, a
criança acordou a mulher’.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 321

2.3 - A ordem no nível sintagmático

A ordem nas construções genitivas


No tupi antigo a ordem nas construções sintagmáticas genitivas
apresenta a ordem genitivo-nome. Vejamos os exemplos abaixo:

Na Língua Portuguesa notamos que a ordem é bem diferente


se comparada com o tupinambá. Ela é nome-genitivo. Vejamos:

10. a) Sorvete de chocolate N.Gen


b) Casa de madeira N. Gen.

A ordem adjetivo-nome
Outra observação interessante do tupinambá tem a ver com a
ordem dos adjetivos e dos nomes nos sintagmas nominais. O adjetivo
vem após o nome, gerando a ordem NA, exatamente como na
Língua Portuguesa, conforme os exemplos abaixo:

11) itá tinga N A12) y puku N A


Pedra branca rio comprido
‘pedra branca’ ‘rio comprido’

A ordem nome-adposição
Há posposições em tupinambá, portanto a ordem é N Po:

13) a-sem taba suí N Po


1-sair aldeia da
‘saí da aldeia’

Conforme dissemos num outro trabalho, “Com exceção do


sintagma envolvendo nome e adjetivo, os sintagmas do tupinambá
são de núcleo final: OV (nas dependentes); N Po e Gen N”. (Go-
mes, 1999: 12)
Na Língua Portuguesa há preposições. A ordem é Pre N.
322 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

14) Todos saíram de casa. Pre N

2.4 - Sobre as classes de palavras


Para a identificação das classes de palavras numa língua exis-
tem alguns critérios a serem seguidos: o morfológico, o sintático e o
semântico (ou nocional).
Vejamos a definição de Margarida Basílio (1998:52) para o
critério morfológico “Entendemos por critério morfológico a atribui-
ção de palavras a diferentes classes, a partir das categorias grama-
ticais que apresentem, assim como das características de variação
de forma que se mostrem em conjunção com tais categorias”.
Na definição do critério sintático, ela faz um acréscimo
(1998:53); “atribuímos palavras a classes a partir de propriedades
distribucionais (em que posições estruturais as palavras podem ocor-
rer) e/ou funcionais (que funções podem exercer na estrutura
sintática)”.
A professora Margarida Basílio neste mesmo texto propõe
que, além dos critérios morfológicos e sintáticos para se identificar
as classes de palavras, é importante o uso do critério semântico.
Segundo ela, há uma ligação muito estreita entre estes critérios.
Como exemplo, ela diz que só as palavras que designam seres apre-
sentam flexão de número e gênero.
Em Radford (1990:57) vemos que ele só utiliza os critérios
morfológicos e sintáticos para classificar as palavras. Para ele, o
critério semântico apresenta diversas contradições. Estas seriam
expressas, por exemplo, através de verbos que denotam ação, de
nomes que designam entidades ou de adjetivos que expressam es-
tado. A contradição aparece em palavras como “assassinato” que
expressa ação, são nomes e não verbos, a palavra “doença” denota
estado, mas é um nome (substantivo). Esta última seria um adjetivo
de acordo com o critério semântico.
Ele ainda comenta que os critérios morfológicos e sintáticos
são mais fidedignos na defesa das categorias lexicais (1990:57).
Num outro livro Radford (1998) afirma que esta evidência
morfológica para se identificar as classes de palavras está relacio-
nada à morfologia derivacional e flexional.
Na Língua Portuguesa, de um modo geral, “os morfemas
derivacionais se agregam a palavras de uma determinada catego-
ria. Em Português, o sufixo agentivo e instrumental –(d)or, como em
o cantor, o ventilador, só se agregam a verbos.” (Gomes, 1999A:13)
É interessante notar que esta mesma restrição ocorre com
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 323

morfemas flexionais que se unem às palavras de certas categorias.


Vemos esta ocorrência no “s” do plural que só ocorrem com
nomes.
Dizemos tudo isto para demonstrar porque entendemos que os
critérios morfológicos e sintáticos são melhores para o nosso traba-
lho, usamos como base os argumentos de Radford.

Sobre os nomes
No tupi antigo os nomes, chamaremos de nomes os substanti-
vos, não possuem flexão de número, gênero ou grau, mas apresen-
tam flexão de tempo e prefixos possessivos.
Para formar o plural usa-se o sufixo etá, que pode ser traduzi-
do por “muitos”. Na verdade, esse sufixo é o verbo “ter muitos”.
Outra observação curiosa é que os nomes possuem uma mar-
ca para futuro, rama, e outra para passado, pûera.

15. a) ybá ‘fruta’ b) ybá-rama ‘futura fruta’


c) ybá-puêra ‘ex-fruta’
fruta-fut. fruta-pass.

Pode-se formar ainda dois tempos compostos: o passado-futu-


ro (ram-bûera) e o futuro-passado (pûer-ama).

16. a) t-atá ‘fogo’ b) t-atá-ram-bûera ‘ex-futuro fogo’.


Fogo-fut.-pass.
c) t-atá-pûer-ama ‘o futuro ex-fogo’
Fogo-pass.-fut.

Eles ainda possuem morfemas negativos específicos. Por exem-


plo, o sufixo eym(a), que pode ocorrer antes da partícula de tempo.
E quando isso ocorre ela se posiciona antes desta.

17. a) xe r-eymbagßama b) xe r-eymbab-ey-gßama


1 poss.-cria ª o-fut. 1 poss.-cria ª o-neg.-fut.

minha futura cria ª o a que nª o serÆnossa cria ª o


324 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Apresentam prefixos de posse:


18) xe-k minha ro a 19) nde-ruba seu pai

1 poss.-ro a 2 poss.-pai

Tanto os nomes como as palavras que sofrem nominalização


funcionam como núcleos de sintagmas nominais, e assim podem
exercer o papel de sujeito ou objeto:

20) Kunhª o- man A mulher morre u

Mulher 3- morrer

21. a) a-ker eu dormi b) xe -ker pe no me u dormir

1-dormir 1 poss- dormir e m

Vejamos uma coisa curiosa, no exemplo 26 b o verbo “dormir”


está em sua forma nominalizada. Portanto é o núcleo do sintagma
objetivo da posposição.
Façamos alguma observações sobre os nomes na Língua Por-
tuguesa.
Os nomes podem variar em número e gênero.
Quanto à flexão de número, os substantivos podem estar no
singular ou no plural.
Para formar o plural dos substantivos terminados em vogal ou
ditongo acrescenta-se um –s ao singular.
· Mesa – mesas; boné – bonés; herói – heróis; mãe – mães.

Os nomes terminados em –ão formam plural substituindo –ão


por – ões, na maioria das vezes. Outra forma, menos comum, seria
substituir a terminação por –ães.
· Balão – balões; leão – leões; alemão – alemães; escrivão
– escrivães.

Os nomes terminados em –r, -z e –n formam plural com o


acréscimo de –es ao singular.
· Mar – mares; cruz – cruzes.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 325

Os substantivos terminados em –s, quando oxítonos, formam o


plural acrescentando-se –es ao singular, e são invariáveis quando
são paroxítonos.
· Português – portugueses; país – países; o lápis – os lá-
pis; o ônibus – os ônibus.

Quando terminados em –al, -el, -ol, -ul, substituem o –l


por –is.
· Animal – animais; lençol – lençóis.

Paroxítonos terminados em –il mudam esta terminação


por –eis.
· Fóssil – fósseis; réptil – répteis.

Nos nomes formados com o sufixo –zinho, tanto o substantivo


primitivo como o sufixo vão para o plural, desaparecendo o –s do
plural do substantivo primitivo.
· Papelzinho – papéi(s) + zinhos > papeizinhos

A formação do plural dos compostos é um pouco diferente,


possuindo uma certa complexidade que não trataremos aqui.
O gênero na Língua Portuguesa pode ser masculino ou femini-
no para os nomes. Não é nosso objetivo demonstrar a formação do
gênero, apenas mostrar diferenças com o tupinambá.
Mas não apresentam flexão de tempo e prefixos possessivos,
como no tupi antigo.

Sobre os verbos
No tupi antigo o verbo vem sempre acompanhado por um ou
mais elementos pronominais, possuindo um morfema de negação
específico e sem apresentar marcas de tempo, bem diferente da
Língua Portuguesa, que apresenta as marcas de tempo, e não traz
marcas de negação em sua morfologia.

Conclusão
Fizemos a descrição do tupinambá e da Língua Portuguesa,
principalmente na sintaxe. Pudemos perceber inúmeras diferenças
entre as línguas, sobretudo na ordem dos constituintes oracionais.
326 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Bibliografia

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CUNHA, Celso; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do por-
tuguês contemporâneo. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
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Tupinambá. Monografia final do curso de especialização em Línguas Indí-
genas Brasileiras. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1999.
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Monografia final do curso de especialização em Língua Portuguesa. São
Gonçalo: Faculdade de Formação de Professores da UERJ, 1999.
ILARI, Rodolfo. Lingüística românica. São Paulo: Ática, 1992.
LEITE, Yonne; VIEIRA, Marcia Damaso. Línguas tupi-guarani: es-
trutura ativa e suas cisões. [mss, s.d.]
LEMOS BARBOSA, A. Curso de Tupi antigo. Rio de Janeiro: Livra-
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RADFORD. A. Syntactic theory and the structure of English: a
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Tupi. Separata da Revista “Logos”, ano VII, nº 15, Curitiba: Tip. João Haupt
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_____. Descripción del tupinambá en el período colonial: el arte
de José de Anchieta.Colóquio sobre a descrição das línguas ameríndias no
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_____. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indí-
genas. 2.ed. Loyola. São Paulo, 1994.
_____. Morfologia do verbo tupi. Separata de “Letras”. [s.e.] Curitiba,
1953, nº 1.

Notas
1
Os dados lingüísticos do tupi antigo apresentados neste trabalho
foram tirados de Lemos Barbosa (1956).
2
Os exemplos do tupi antigo também foram utilizados no trabalho
Algumas observações sobre a língua Tupinambá.
3
Temos aqui a tradução interlinear. Os números representam as pes-
soas dos pronomes sujeito ou objeto.
4
Podemos perceber que se o verbo aparece marcado com o pronome
objeto, o sintagma objeto pode aparecer deslocado. A marca de objeto
funciona como um clítico pronominal. Seria o caso do objeto na forma
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 327

pronominal. Mas ainda temos sintagmas nominais de objeto que ocorrem


com os clíticos que podem ser classificados como elementos topicalizados.
Entendemos, portanto, que são construções com deslocamento à esquer-
da da sentença e em seu lugar fica um elemento pronominal. Vejamos:
‘Depressa, a criançai, a mulher a iacordou.’
‘Depressa, a mulheri, a criança a iacordou.’
Esse “i” subscrito representa o deslocamento da palavra. Uma pala-
vra passa a ocupar o lugar da outra, conforme o exemplo acima.
É óbvio que poderemos encontrar estruturas a do exemplo abaixo,
aonde o sintagma nominal objetivo foi omitido. O que parece indicar que o
marcador objetivo de 3ª pessoa é o argumento objeto, afinal sua presença
é o suficiente para indicar a existência de um objeto de 3ª.
Koriteî kunhã imombak i
Depressa mulher 3-acordar-dep. ‘Depressa, a mulher a acordou.’
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 329

A língua literária do Brasil


no século XX e sua formação
Paulo Silva de Araújo,
da ABF e UNESA.

Nossa altitude em língua literária no século a finar-se é porten-


tosa. Inúmeros alinham-se os magos nacionais do estilo. Oxalá pu-
desse indicá-los todos. Mui limitado pelo regime das Comunica-
ções, ofereço ao leitor apenas títulos de composições e autores, em
pálida revista da copiosa língua literária vernácula. Asseguro que o
índice recomendado se faz de ouro no melhor quilate. Prouvera,
outrossim, que me fora acessível reproduzir sob as epígrafes os
excertos correspondentes e as fontes amiudadas. Noutra oportuni-
dade o será. Em livro.
Por enquanto, só escritores mortos recenseio.
Prosadores: 52 Títulos: 100
Poetas: 37 Títulos: 100
Registei mais prosadores que poetas a fim de tornar visibilíssimo:
na prosa, bem mais difícil de compor em língua literária em face do
poema, nossa Pátria excele. Dos conterrâneos vivos dados a letras,
muitos haverá escritores com a mencionada teia lingüística.
Quem – retórico perguntar – não cingiria com o diadema nitente
da língua literária o mérito colosso destes fúlgidos artistas abaixo?!

A Cavalgada
A lua banha a solitária estrada...
Silêncio... Mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem-se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada...

São fidalgos que voltam da caçada;


Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando:
330 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

E as trompas a soar vão agitando


O remanso da noite embalsamada...

E o bosque estala, move-se, estremece...


Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...

E o silêncio outra vez soturno desce...


E límpida, sem mácula, alvacenta,
A lua a estrada solitária banha.

Raimundo Correia
Luar na Praia
Nascia a lua. O mar clareava aos poucos. Na crista arrugada
das ondas vagarosas a luz joeirava cisalhas de prata. A praia clara
recurvava-se entre duas finas e avançadas pontas, arenosa, sem
rochas, onde as vagas adormeciam, gemendo, num grande
espreguiçamento branco. Para o poente, vultos de coqueirais, bati-
dos do vento, destacavam-se negros no céu estrelado. Nas dunas
desertas e tristes, apontoavam a brancura da areia mirradas moitas
de pinhão bravo; de quando a quando coleavam salsas rasteiras,
como serpentes enormes. Ao norte, uma das pontas de terra que
longamente enfiava pelo oceano terminava em rochedos escuros,
aqui dispersos, ali quase igualmente intervalados à guisa de gigânteas
alpondras: e por sobre eles, flava, fulgurante, bocejava a
intercadências a lanterna benéfica dum farol. Todos os rumores dos
matos, das águas e dos bichos notívagos diluíam-se na noite enluarada.
Um eflúvio dormente desprendia-se dos cajueiros floridos e errava
na face da terra uma canseira, um quê de sutil que impelia à modor-
ra, ao sono e à preguiça. Depois a lua resplandeceu alta e uma
refulgência prateada, com uns raros tons de azinhavre, derramou-
se por sobre as cousas.

Gustavo Barroso
· · · ·
A Filologia, que, pelo exame fundo das obras de um povo com-
postas em língua literária, procura conhecer-lhe a realidade civilizatória
e o respectivo grau, tem, no caso do Brasil, de conferir-lhe venera
de garbosa classe.
· · · ·
Quanto à formação da língua literária no século, a responsabi-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 331

lidade maior – cristalino – se confere ao engenho poderoso e tropi-


cal dos nossos brilhantes homens e mulheres devotos à Literatura.
Norteou-os, onde mais, onde menos, a influência dos cânones pro-
pagados na Europa, recebidos com mão espalmada entre nós e aqui
agrupantes de luzidos nomes. Do influxo interno, sobressaia com
orgulho que o gênio espantoso de Vieira se fixou na parede ante a
qual se veneram os ícones sacratíssimos dos pais das letras, e foi,
indubitável, como bússola de extremo fascínio.

PROSA
· Coelho Neto: Noturno, A flauta e o sabiá, A partilha, Luz e
calor, Estio, Outubro, A mata virgem, Na mata, Penegírico de Rui
Barbosa. · Gustavo Barroso: Luar na praia, Paisagem sertaneja,
Incêndio, O cavalo sertanejo, A grandeza do pequenino Portugal. ·
Euclides da Cunha: Manhãs sertanejas, O sertanejo, O estouro
da boiada, Recordações cruéis, O canhoneio, Canudos não se ren-
deu. · Graça Aranha: Os pirilampos, A dança dos colonos ale-
mães, A floresta tropical, Música sertaneja. · Machado de Assis:
Triste mas curto, O delírio, O sineiro da Glória, Quincas Borba, A
Agulha e a linha, O defunto, Olhos de ressaca I e II. · Gastão
Cruls: O templo do sol, Os passarões, A dança dos selvagens. ·
Canto e Melo: A baía de Botafogo. · Domício da Gama: Maria-
sem-Tempo. · Aluísio Azevedo: O acordar do cortiço, O chora-
do. · Amadeu Amaral: Boa fama. · Olavo Bilac: A gruta de
pedra, O velho rei, A pátria, Manifestação Rio Branco, Oração à
Bandeira. · Magalhães de Azeredo: Luar de maio. · Virgílio
Várzea: Manhã na roça, No outeiro. · Joaquim Nabuco: Camões,
Massangana. · Graciliano Ramos: Baleia, Libório, Vida de sururu.
· Brasílio Machado: Carlos Gomes. · Humberto de Campos:
O que fizeres a Teu Pai, Teu Filho te fará, As violetas de Nossa
Senhora. · Raimundo de Morais: O vale amazônico. · Xavier
Marques: Os vagalhões, Dança africana. · Mário Sete: Minha
terra tem palmeiras... · Afonso Celso: A baía do Rio de Janeiro. ·
Plínio Salgado: A minha terra é linda. · Monteiro Lobato: Os
Faroleiros, Negrinha. · José Veríssimo: O despertar dos Campos
na Amazônia. · Salvador de Mendonça: O salto de Itu. · José
Américo de Almeida: Os centauros. · Martins Fontes: A dan-
ça. · Afonso Arinos: Buriti perdido, O mar. · Carlos de Laet: O
frade estrangeiro, A catedral do arcebispo. · Afrânio Peixoto: A
pobre escrava. · Alcides Maia: Paisagem gaúcha. · Raul
Pompéia: O Ateneu, O incêndio do Ateneu. · Aurélio Pinheiro:
332 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

A morte de Rosa. · Viana Moog: Fim de primavera. · Agripino


Grieco: Mãe, Ânsia eterna, Crepúsculo de ouro. · Cecília
Meireles: Um cão, Apenas. · Érico Veríssimo: A viagem. ·João
Guimarães Rosa: Minha gente. · Álvaro Moreira: Eu quero
uma estrela. · Austregésilo de Ataíde: A grande noite, Olinda
dos meus amores, Meio século depois, O disco dos meus sonhos. ·
Cornélio Pena: Reminiscências. · Clarice Lispector: Macabéa.
· Paulo Setúbal: Dinheiro... · Marques Rebelo: Carnaval. ·José
Lins do Rego: Sol e Grécia. · Ciro dos Anjos: Perdoa-me, Carlota!
· Raimundo de Morais: O vale amazônico. · Simões Lopes:
Trezentas onças. · Henrique Pongetti: Cristina. · João Neves
de Fontoura: Brasil. · Lima Barreto: A casa do Rio Comprido. ·
Leo Vaz: O cão vadio.

POESIA
· Olavo Bilac: Profissão da fé, Sonata ao crepúsculo, Ouvir
estrelas, Língua portuguesa, A um poeta, O sol, Anoitecer, As
árvores, Pátria, Tercetos, Perfeição, Nel mezzo del camin. · Ma-
chado de Assis: A mosca azul, À Carolina, A flor do Embiruçu,
Última jangada, Círculo vicioso, Soneto de Natal, Versos a Corina,
Fé. · Raimundo Correia: Anoitecer, A cavalgada, O monge, Mal
secreto, Plenilúnio, Banzo, Peregrino, Cítera. · Francisco Karam:
Quando anoitece. · Vinícius de Morais: Soneto da separação,
Poema de Natal. · Augusto dos Anjos: O lamento das coisas,
Monólogo de uma sombra, A idéia. · Pedro Nava: O defunto. ·
Augusto Frederico Schmidt: Paz dos túmulos, Senhor, A noite
Vem descendo, Poema. · Luís Carlos: Chafariz secular, Leão, O
mineiro. · Manuel Bandeira: Desalento, A Camões, Os sinos,
Desencanto, Estrela da manhã, Vou-me embora pra Pasárgada, A
onda, Ao crepúsculo, Renúncia. · Jorge de Lima: O acendedor
de lampiões, Distribuição da poesia, Espírito paráclito. · Alphonsus
de Guimaraens: As mãos da Virgem, Ismália, Lua nova. · Luís
Delfino: As naus. · Raul de Leôni: Melancolia. · Hermes Fon-
tes: Dezembro. · Emílio de Meneses: O Salto do Guaíra, Sone-
to, Anunciação. · Martins Fontes: Religião. · Mário de Andrade:
Poemas da amiga. · Cecília Meireles: Ventania, Anunciação,
Destino. · Guilherme de Almeida: Dor oculta. · Carlos
Drummond de Andrade: A máquina do mundo, Como um pre-
sente. · Jônatas Serrano: Saudade. · Vicente de Carvalho: Cair
das folhas, A felicidade, Velho tema. · Murilo Mendes: Jandira.
· Alberto de Oliveira: O bater da cancela, Ode cívica, A torren-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 333

te, O ninho, O vagalume, Alma em flor, Por amor de uma lágrima.


· Luís Murat: Imortalidade. · Mário Pederneiras: Pelo caminho
da vida, Suave caminho. · Humberto de Campos: Na serra de
Maranguape. · Joaquim Nabuco: Nada. · Afonso Celso: Anjo
enfermo, Alegrias. · Francisca Júlia: Os Argonautas. · Amadeu
Amaral: Voz íntima. ·Bernardino Lopes: Berço. · Guimarães
Passos: Teu lenço, A casa branca da serra, Soneto. · Olegário
Mariano: As duas sombras, Recife de coral, O enterro da cigana. ·
D. Aquino Correia: O cerrado. · Lindolfo Gomes: Língua Pátria.

Semântica da expressão: o superior e o mais


autorizado de nossos escritores de língua literária

O superior vai ser o que haja escrito com a mais desenvolvida


extensão e com teor o mais variado e profundo, alheio em geral à
estese, isso tudo em linguagem culta e de rigor bela, portanto em
língua literária. Ainda mais, quando chegue ao Sublime.
O mais autorizado fora quem evidenciasse, em teoria e na
prática, o mais volumoso conhecimento da riqueza e do potencial
inacreditáveis do passado e do presente lingüísticos.

RUI BARBOSA: A IMPRENSA E A TRIBUNA EM


MOLDES ESTÉTICOS
Imprensa: jornalismo. E esse: atividade que se expressa pelo
jornal, publicação em geral diária, noticiadora de fatos a cotio suce-
didos, ou até há muito passados, de informes alusivos a todos os
ramos do conhecimento, e manifestante de opiniões específicas.
Nele se exara o editorial, artigo básico onde se entalha o pensar
distintivo do órgão, nomeadamente o de gênero político. Consoante
se infere, não se presta, de regra, o jornalismo a redações de índole
estética.
Pois bem. Não se afastando da essência jornalística, Rui, o
talento, insere no artigo principal o fluido da beleza. Tudo correto e
belo quanto se ventilou no primeiro item da Comunicação, acha-se
presente na coluna famosa do iluminado. Inclusive, de quando a
quando, o Sublime oratório, como no “Surrexit!”. É a digna impren-
sa continuamente em língua literária. Haja-se em vista:
Surrexit
Ressurgir! Toda a doçura e todo o vigor da fé se resumem
nesta palavra. É a flor do calvário, a flor da cruz. O tremendo horror
daquele martírio tenebroso desabotoa neste sorriso, e a humanidade
334 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

renasce todos os anos a esse raio de bondade, como a formosura da


terra à alegria indizível da manhã, o prelúdio do sol, o grande benfei-
tor das coisas. O homem, cercado pela morte de todos os lados,
não podia conceber este ideal de eternidade, se não fosse por uma
réstia do seu mistério radiante, divinamente revelado às criaturas.
Nossos sonhos não inventam: variam apenas os elementos da ex-
periência, as formas da natureza. Tem a fantasia dos viventes ape-
nas uma palheta: a das tintas, que o espetáculo do universo lhes
imprime na retina. E, no universo, tudo cai, tudo passa, tudo se
esvai, tudo finda. Nesse desbotar, nesse perecer de tudo, não havia
o matiz, de que se debuxou um dia, na consciência humana, o hori-
zonte da ressurreição.
Ressurgir! Deus nosso, tu só poderias ser o poeta desse cântico,
mais maravilhoso que a criação inteira: só tu poderias extrair na
angústia de Getsêmani e das torturas do Gólgota a placidez, a trans-
parência, a segurança deste consolo, dos teus espinhos esta suavi-
dade, dos teus cravos esta carícia, da mirra amarga este favo, do
teu abandono este amparo supremo, do teu sangue vertido a recon-
ciliação com o sofrimento, a intuição das virtudes benfazejas da dor,
o prazer inefável da clemência, divino sabor da caridade, a prelibação
da tua presença nesta alvorada, o paraíso da ressurreição.
...................................................................................................................................................................................
Ressurgir! Tu ressurges todos os dias, com a mesma periodici-
dade, com que se renovam os teus benefícios e as magnificências
da tua obra. Nega-te a nossa maldade. Nega-te a nossa presunção.
Nega-te a nossa ignorância. Nega-te o nosso saber. Mas de cada
negação te reergues, deixando vazios os argumentos, que te nega-
vam, como o túmulo, onde dormiste outrora um momento, para
reviver dentre os finados.
................................................................................................................................................
Assim, Senhor, quisessem ressurgir em ti os povos, que te não
crêem. A esses em vão procuramos dar com o aparato dos códigos
humanos a lei, a ordem, a liberdade. Sua sorte é extinguirem-se,
porque não tiveram fé, e não sentem a religião do Ressurgido, que
não é só o evangelho das almas regeneradas, mas a boa nova das
nações fortes. Essas absorverão a terra a bem do gênero humano,
enquanto as outras acabarão como raças de passagem. E por sobre
o futuro, que há de ser a tua glorificação na voz das criaturas e dos
céus se ouvirão para sempre os hosanas do teu triunfo: Ressurgiu!

A tribuna! Eis Rui Zeus! Se borda de língua literária a impren-


BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 335

sa, conjecture-se a obra de ourives ciclópico na candência da frágua


tribunícia. Aí, a magniloqüência ruiana transporta a língua literária
para os cumes do Sublime.
A “Oração aos Moços” é a nossa “Oração à Coroa”, aos
refletores da celebridade. Perceba-se, com imaginativa vibrátil, o
arroubo que nos invade o músculo apaixonável ao irmos lendo a
peroração do insigne baiano em seu discurso “Visita à Terra Natal”:

A Oração do Filho
Espírito supremo daquele que me ensinou a sentir o direito, e
querer a liberdade; daquele cuja presença íntima respira em mim
nas horas do dever e do perigo; daquele a quem pertence, nas
minhas ações, o merecimento da coerência e da sinceridade; ema-
nação da honra, da veracidade e da justiça, espírito severo de meu
pai...; imagem da bondade e da pureza, que verteste em minha
alma a felicidade do sofrer e do perdoar, que me educaste no
espetáculo divino do sacrifício coroado pelo sacrifício, carícia do
céu na manhã dos meus dias, aceno do céu no horizonte da minha
tarde, anjo da abnegação e da esperança, que me sorris no sorriso
de meus filhos, espírito sideral de minha mãe...; se o bem desabotoa
alguma vez à superfície agreste de minha vida, vós sois a mão do
semeador, que o semeou..., vós, cuja energia me criou o coração e
a consciência, cuja benção derramou a fecundidade sobre as urzes
de minha natureza. Quando, na minha existência, alguma coisa possa
inspirar gratidão, ou simpatia, não me tomem senão como o fruto
em que se mitiga a sede, e que se esquece. Vós, autores benignos
do meu ser, vós sois a árvore dadivosa cujos benefícios sobrevivem
no reconhecimento, que não murcha. Estas flores, magia de um
jardim instantâneo, onda esparsa de uma alvorada balsâmica, estas
flores em que se desentranha, ao contacto da Bahia, o berço, que
me afofastes com a vossa ternura, que me guardastes com as vos-
sas vigílias, que me perfumastes com as vossas virtudes, estas flo-
res são vossas: recebei-as. Que elas envolvam no seu aroma a
vossa memória, reabram, em cada geração de vossos netos, aos
pés da vossa cruz, e deixem cair o refrigério de seu orvalho sobre as
paixões corrosivas, que ulceram a pátria, amofinando-lhe o presen-
te, ameaçando-lhe o futuro.

Rui: o idioma nacional no vértice do monumento


brasileiro de língua literária.
Patenteia-se edificado por vastíssimo elenco de escritores, in-
336 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

cluindo-se os vivos, o monumento brasileiro de língua literária, no


século expirante. Só nesta Comunicação, retrolistam-se oitenta e
nove, dos idos.
Da plêiade, a “Águia de Haia” cumpre, à severa, o interpreta-
do em Semântica de o Maior e o mais Autorizado Escritor.
Efetivamente: adnomina-se o superior a Rui Barbosa. A “Casa de
São Clemente”, ao fácil, testemunha a imensidão de sua obra.
O mais autorizado? Diáfano: Rui Barbosa! Seu estilo, puro,
clássico, responde. E o duelo com o sapientíssimo Carneiro Ribei-
ro?!
A “Replica” é o baluarte da sabedoria lingüística de Rui contra
quem, afoito, duvide um instante da sua autoridade máxima entre
os literatos brasileiros.
Rui, ao cabo, é o superior e o mais autorizado de nossos escri-
tores mortos e vivos.
Pela herança de encantos supremos que as letras de beleza
ruianas ensejam a todos, o idioma nacional, com certeza indelével,
chegou, para regozijo nosso, ao vértice do monumento brasileiro de
língua literária.
Leiam-se, com amor, esta páginas imorredouras:
As Andorinhas de Campinas
Pelo límpido azul já sem sol, antes que se lhe esvaia de todo o
oiro dos seus átomos de luz, mas quando o crepúsculo entra a des-
maiar do seu brilho a safira celeste, um ponto retinto, perdido nos
longes mais remotos, se acentua em negro na cúpula do firmamento,
lá, bem no alto, bem de cima, como se a ponta de uma seta, desfe-
chada perpendicularmente de além, varasse ali a redondeza anilada.
Era um; e, logo após, já são muitos, já vêm surdindo inumerá-
veis, já parecem infinitos; já se cruzam; se recruzam; já se encon-
tram e circulam; já se condensam e escurecem. Eram um grupo; e
já formam um bando, já vêm crescendo em longas revoadas, já
refervem em enxames e enxames, já se estendem numa vasta nu-
vem agitada. Toldaram o céu, encheram o ar, vêm-nos ondeando
sobre as cabeças. Agora, afinal, com os movimentos de uma gran-
de vaga sombria, ponteada de branco, a librar-se entre a terra e a
imensidade, baixa a massa inquieta, rumorejando, oscilando, flutu-
ando, rasga-se na coroa das palmeiras, açoita os fios telegráficos,
resvala pelos tetos do casario, e, ao cabo, arfando e remoinhando,
turbilhoando e restrugindo, com o estrépito de uma cascata argenti-
na, de uma cachoeira de cristais que se despedaçam, chilreada
imensa de vozes e grasnidos às dezenas e dezenas de milhares,
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 337

pende, mergulha e desaparece, numa imensa curva borbolhante,


por sobre o largo telheiro abandonado, que esta aérea multidão erradia
elegeu entre vós para abrigo do seu descanso nas cálidas noites de
verão.

O Terremoto de Lisboa
Todas as notas da elegia das aflições humanas soluçam no
quadro de suprema angústia, que, num dia inolvidável, apavorou, há
cento e vinte e sete anos, essa gloriosa extrema européia de Os
lusíadas,
“Onde a terra se acaba, e o mar começa”.
Esse largo sorriso, azul como a onda jônia, da Europa ao Oce-
ano, deslizado em curvas graciosas à foz sussurrante do Tejo, anegra-
se e contrai-se numa expressão de inenarrável desespero.
Era a manhã de todos os santos em 1755. Uma convulsão
atroz agita a soberba cidade em violentas contorções.
O solo desloca-se, gemendo, nos espasmos de um fenômeno
assombroso, cujo círculo de oscilações estende-se de Dantzig a
Marrocos, da Inglaterra a Madri, enturgesce as caldas de Poplitz
na Boêmia, turva, na Escócia, as águas do lago Lhomond, revolve
o Mediterrâneo, nas costas da Berbéria, encapela as meigas en-
seadas da Madeira, e, transpondo, numa repercussão espantosa,
o Atlântico, vem, do outro lado, ecoar nas Antilhas o ulular longínquo
da catástrofe.
Dir-se-ia que “essa trombeta de horrendas maldições, em que
fala Shakespeare, estrugindo das colinas desvairadas do glorioso rio
do Gama, convoca os dois continentes ao sagrado horror do inaudi-
to cataclismo.
A cabeça da grande Lusitânia vacila, como se a embriaguez
da misticismo devoto a sacudisse no delírio de uma visão de
Apocalipse. As abóbadas dos templos confundem sob as mesmas
ruínas as imagens e os crentes, a hóstia e os levitas, o sangue dos
fiéis e o da vítima incruenta; as ruas sulcam-se em abismos; os
palácios desabam trovejando; a casaria, esboroando-se numa su-
cessão infinita de fragores indizíveis, desaparece na voragem, na
confusão e no incêndio, que açoita com as asas rutilantes as trevas
desse círculo dantesco.
De um lado, as chamas parecem destinadas a fundir a antiga
capital do Ocidente, como o fogo mecedônio amalgamara outrora
num metal único o oiro, a prata e o bronze das estátuas de Corinto;
do outro, quinze metros acima das mais altas marés, a enchente,
338 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

instantânea, minaz, caótica, infernal, abisma navios e navios em


repentinos sorvedouros, engole em cada assalto milhares e milhares
de homens.
Quatro vezes a alucinada vaga humana desaparece entre a
vaga marinha e a vaga terrestre, que nalguns minutos devoram
doze mil almas, enquanto a viuvez, a orfandade, a miséria e o crime
se levantam por entre esqueletos hirtos das casas aluídas; enquanto
o infortúnio universal liberta os forçados e os escravos, criaturas e
vítimas de uma ordem social gangrenada até ao coração; enquanto
o assassínio, a prostituição e o roubo laceram as entranhas e dispu-
tam os restos da cidade violada e delirante. No meio desse conflito
gigantesco de todos os elementos e de todos os terrores; entre essa
luta de todas as tempestades da natureza com todas as desgraças
do destino humano; sob um céu que a tormenta forrou do chumbo
de suas nuvens contra as lágrimas da terra; quando o dia foge e o
chão falta debaixo dos pés; quando a opulência desaparece, esmi-
galhada, enlameada, calcinada, pelas fendas do solo; quando a ra-
zão se apaga em todos os espíritos; quando a loucura do medo
enche o vazio deixado pela inteligência ausente, - de sobre essa
imensa superfície devastada uma individualidade se levanta, expri-
mindo a luz, a calma, a força, a soberania da consciência do ho-
mem, ereta, augusta, salvadora.
Tal imperturbavelmente imóvel, através da noite, sobre a cra-
tera acesa do Hecla solitário, quando a lava entornada queima de
redor os campos, e destrói ao longe os últimos vestígios da vida, a
incomensurável coluna de fogo que se alonga para os céus, indife-
rente aos mais ríspidos ventos, enquanto o bramido formidável do
fenômeno subterrâneo parece ameaçar a subversão do mundo.

(Homenagem do comunicador à Língua Portuguesa


no Brasil)

O idioma nacional

A Língua Portuguesa não é apenas idioma. É órgão de cate-


drais nas horas dos grandes concertos.
Língua suave, fácil, que possui o vocábulo mãe, entre nós sem
rima; que tem a palavra sozinho, única intérprete da solidão extre-
ma; que abrange o termo saudade, de sentido ímpar no mundo
lingüístico.
Língua rica, seleta, cheia de bondades. Veio de longe em
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 339

caravelas e naus, e deve ter sido um milagre de maravilhas o pri-


meiro nome português exclamado ao romper o Brasil.
Língua plangente para chorar os mortos! Língua risonha
para celebrar a vida! Afeto e impulso do coração, que todo
patriota venera!
És o metal dos nossos segredos, a nave bendita de nossas
preces e a poderosa magia de nossos cânticos!
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 341

A Língua Portuguesa no Brasil: papel


dos gramáticos na sua implantação
Walmírio Macedo,
da ABF e USU

Diante da impossibilidade da vinda do ilustre conferencista desta


hora, a organização do Congresso solicitou-me que, no espaço que
a mim caberia nesta mesa de debate, usasse da paciência dos se-
nhores para falar da minha visão de gramática, dos procedimentos
e/ou conteúdo que me levaram a determinadas posições.
Estou aqui entre dois gramáticos ilustres –Evanildo Bechara e
Manoel Pinto Ribeiro- cada com seu ideário gramatical do maior
nível e do maior respeito.
O objetivo de minha fala é exclusivamente expor o que penso,
ou melhor, o meu enfoque, indicando os que me iluminaram e ainda
me iluminam.
Na verdade, não haverá tempo para dizer tudo, ou falar sobre
tudo, mas espero ser claro e sucinto para dizer o necessário e sufi-
ciente. Entendam o que vou dizer como meras reflexões sobre a
gramática. Alguns lingüistas têm asseverado que a gramática deve
ser lógica (Coseriu).
É claro que não se trata de uma simples adesão a um logicismo
gramatical. Crê-se que o objetivo na afirmação é ressaltar a distin-
ção que deve haver entre logicismo e antilogicismo, que, no fundo,
são igualmente errôneos.
Na verdade, quer-se possivelmente falar no que Coseriu cha-
ma de ‘normas de coerência’. Indubitavelmente, a linguagem tem a
sua própria lógica, a sua lógica interior. Qualquer discussão que en-
volva o tema ‘gramática’ cairá sem dúvida no tópico que aqui deno-
mino de ‘enfoques’.E há muitos sobre os quais poderíamos discor-
rer indefinidamente.
Dois deles – o estrutural e o funcional – têm sido objeto de
342 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

aplicação de muitos estudiosos


No momento em que esses enfoques começavam a ter o seu
lugar surge a chamada gramática gerativa de Chomsky.
O conteúdo dessas teorias lingüísticas, como não poderia dei-
xar de ser, interferiu de muitas formas no ensino da Língua Portu-
guesa no Brasil e nos textos gramaticais.
Nossos livros didáticos chegaram ao ponto de parecer livros
de lingüística e não compêndios que deveriam ensinar a língua
vernácula. Crê-se que, a partir daí, é que surgiu uma aversão ao
ensino gramatical, como uma coisa inteiramente inútil.
Mas as coisas no Brasil parecem ser cíclicas, pois já tivemos
um ensino exclusivamente gramatical, depois um ensino lingüistificado,
sem gramática de qualquer natureza, depois uma sadia discussão
sobre se deve ensinar gramática ou não, e agora parece voltar-se a
uma supervalorização de uma gramática utilitarista, como demons-
tram as colunas de Língua Portuguesa em dezenas de jornais e
revistas do Brasil inteiro.
Creio que tudo isso merece uma reflexão. Uma reflexão de
natureza metodológica, uma vez que, no que tange ao conteúdo,
temos excelentes gramáticas.
Voltamos assim à palavra chave do nosso início ‘enfoques’.
Quando digo ‘enfoque’, penso em Pottier quando, no prefácio de
sua Lingüística Geral –Teoria e descrição, tradução e adaptação
que fizemos para o Português, diz que “o que importa são os con-
ceitos e seu funcionamento; a coerência do todo é mais rele-
vante do que qualquer rótulo de escola ou teoria”.
Para construir uma interpretação lingüística, faz-se necessário
que o fato lingüístico se baste a si mesmo, ou seja, sem recurso a
fatores extrínsecos. Esse é o enfoque da imanência. Não se deve
recorrer a elemento extrínseco para explicar elemento do sistema.
Diante de um fato lingüístico, o estudioso tem diante de si três
caminhos: o semântico, o formal ou estrutural e o funcional.
No primeiro, a primazia é do significado. No segundo, a prima-
zia é da forma e no terceiro, procura-se conjugar forma e significa-
do. Trata-se de opção que há de ser feita.
Mattoso Câmara, no cap. ‘A classificação dos vocábulos for-
mais’, in Estrutura da Língua Portuguesa, ressalta que há 3 crité-
rios para classificar os vocábulos formais de uma língua. Um é o
critério semântico, outro é de natureza formal e um terceiro, o fun-
cional, ou seja, a função ou papel que cabe ao vocábulo na senten-
ça. (p.67, 1970)
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 343

Sua opção é pelo terceiro critério. É o nosso também.


O problema da distribuição das palavras em classes – a cha-
mada classificação das palavras sempre me preocupou pela razão
da dificuldade de ‘engessar’ num grupo coisas tão diferentes e
heteróclitas. Foi em Georges Galichet, em seus dois livros
Méthodologie gramaticale e essais de grammaire
psychologique, que encontrei a melhor solução que passei a seguir
na minha gramática. Galichet estabelece grupos gerais com
caracteres comuns e dentro deles coloca as classes. Assim, classes
principais, classes adjuntas, classes de relação ou conectivas e mar-
co de classe. Além de outras vantagens, a classificação de Galichet
nos dá uma visão morfossintática, ressaltando que as chamadas
partes da gramática, ou planos como prefere chamar, são nítidos
vasos comunicantes.
Outro francês também marcou muito a minha visão gramati-
cal, o prof. Bernard Pottier. Com ele, aprendi de início colocar o
ponto de equilíbrio entre sincronia e diacronia. Aquela ojeriza que
alguns nutrem pela diacronia nos estudos gramaticais fica diluída ou
colocada na justa medida numa belíssima página de Pottier.
O que mais me chamou atenção em Pottier, ao contrário do
que muitos imaginam e dizem, é o seu espírito didático. A sua visão
parece estar voltada para uma apresentação didática do assunto
tratado. É bem verdade que tem, às vezes, uma preocupação cons-
tante com o significado, uma exagerada preocupação semântica
segundo dizem os negativistas que não o leram e não gostaram.
Digo isso a respeito do termo ‘exagerada’.
Mas é essa preocupação semântica que nos faz compreender
melhor a visão sintática de um texto.
Assim, quando comenta (LGTD, p. 135) :
Um fuzil escondido
é pela relva
é com relva
é na relva,

em que indica pela relva como causa, com relva como instru-
mento e na relva como locativo espacial, a visão semântica clara
leva à identificação também clara do adjunto adverbial.
Seu enfoque sobre vozes verbais também semântico é único,
porque é abrangente, não deixando de fora nenhum tipo de verbo. O
enfoque tradicional –ativa, passiva e reflexiva- é ineficaz. Para Pottier,
temos sete tipos de vozes: atributiva (Pedro é bom), equativa (Pedro
344 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

é um trabalhador), situativa (Pedro está no quintal), possessiva (O


leão tem cor amarela), além da ativa, passiva e reflexiva.
Sua visão sobre aquilo que ele chama de ‘eixos modais’ lança
uma luz sobre um problema controvertido na combinatória de dois
verbos, estabelecendo assim a compreensão sobre locução verbal
ou não. Assim, os verbos poder (ou semelhantes) e querer, seguidos
de infinitivo, do tipo ‘eu posso estudar’ e ‘eu quero estudar’..
Compara , por exemplo, ‘João quer partir’ e ‘João vai
partir’(LGTD, 178 e 263).
Interpreta ‘João quer partir’ em dois segmentos semânticos:
‘João quer’ e ‘João vai partir’, ao passo que em ‘João vai partir’ só
se pode achar um segmento semântico: ‘João parte’.
Quer partir decididamente não é um bloco. Partir é o objeto
de quer. Mas ‘vai partir’ é um bloco.
O enfoque sobre as preposições de Pottier acaba aquela no-
ção tradicional como classes vazias. Em ‘uma xícara de chá’ e
‘xícara para chá’, fica, segundo ele, caracterizada a importância
semântica da preposição.
As preposições têm um significado, não um significado como
têm os substantivos que evocam uma imagem ou idéia, mas indu-
zem um significado. Temos preposições que ligam um objeto indi-
reto a um verbo e um complemento nominal ao nome que não
induzem a nenhum significado, a não ser o papel sintático. A esse
tipo de preposição chamei de vazia em minha gramática. Mas
nem a essas Pottier considera vazias, pois reconhece nelas um
significado sintático.
Nos demais casos, as preposições são cheias, indicando espa-
ço, tempo e, não sendo espaço nem tempo, noção. Nesse termo
incluem-se todos os significados, como causa, fim, limitação, meio
etc.. Esse enfoque das preposições leva à compreensão do adjunto
adverbial e favorece uma nítida oposição entre objeto indireto e
adjunto adverbial.
Na sua metodologia, muitos procedimentos usados por Pottier
são muito interessantes. O esquema de substituição e equivalência
é empregado de forma muito esclarecedora.
Há muitos outros enfoques que aproveitei na minha teoria gra-
matical, como o da estrutura de compreensão que apliquei para
explicar o adjunto adnominal /v/complemento nominal,
o conceito de potência, a hierarquização no adjunto adnominal
contribuíram para muitos de meus enfoques gramaticais.
Entre os nacionais, não posso deixar de mencionar o meu pro-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 345

fessor Mattoso Câmara com sua contribuição na fonologia e


morfologia.
Na verdade, não há ninguém que tenha escrito sobre assuntos
gramaticais que não tenha sido influenciado pelos diferentes
gramáticos brasileiros e portugueses dos dois últimos séculos. Há
muita coisa boa – e porque não dizer moderna –em José Ventura
Bóscoli (Gramática 1898), em Júlio Barbuda (Gram. 1926) e mais
próximos Mario Barreto, Júlio Nogueira, Nascentes, Candido Jucá,
Macambira, Celso Cunha, Rocha Lima e dos que estão entra nós
Antonio José Chediak e Evanildo Bechara.
A esses todos presto, neste momento, a minha homenagem e
gratidão, ressaltando, como já disse alguém, a verdadeira originali-
dade está na capacidade de saber usufruir da sabedoria dos que nos
antecederam.

Bibliografia
BARBUDA, Julio - Gramática da Língua Portuguesa, 1926.
BÓSCOLI, José Ventura - Gramatica da Lingua Portuguesa, 1898.
MATTOSO, Câmara - Estrutura da Língua Portuguesa.
POTTIER, Bernard - Lingüística Geral – Teoria e descrição –Trad. e
adaptação de Walmirio Macedo . Presença Editora, Rio.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 347

Língua culta e língua literária


Walmírio Macedo,
da ABF e USU

Não raro, surgem as expressões do título com emprego ina-


dequado. Atenda-se vestibularmente a que tudo desta fase prévia
da Comunicação se requer, para se aquilatarem de modo integral
os pareceres adiante lavrados.
Que há de entender-se por língua culta? De logo, o exato
adjetivo da nomeação pronto se encarrega de a insular, por cheio,
do período analfabético, deformado ou incorreto do vulgo.
Culto (adj.) provém de cultus (adj.), já de si oriundo de
cultum, supino ativo de colere (da 3a conj.), cultivar. Donde, culto
igualiza a cultivado, e este iguala, no ramo do saber, a desenvolvi-
do e formado pelo estudo, a cujas normas obedece nas atuações.
Língua culta chama-se à que se estrutura conforme as disposi-
ções vigorantes da gramática normativa. Trata-se da linguagem
correta. Nela, os utentes se acomodam, benévolos e constantes,
aos referidos preceitos. Serve, de aparelho comunicador, às pesso-
as instruídas, membros do grupo social pertencentes a ofícios e ca-
madas, os mais diversos. Individualizam-se pelo cuidado na matéria
frásica, ou até esmero, e pela riqueza vocabular.
Linguagem corrente máxime nas secções mais bem afortu-
nadas do corpo social, ora sucede em modo formal, ora informal.
Formal, quando cerimônia domine o evento: no quase total dos
discursos, conferências e exposições outras de idéias; nas corres-
pondências oficiais, nos requerimentos, contratos, relatórios e
quejandos. Informal, se não existe protocolo na circunstância.
Aplica-se nas cartas entre familiares ou amigos, nos diálogos co-
tidianos, bilhetes, notinhas e que tais.
Advirta-se que a língua culta opera nas manifestações orais e
348 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

gráficas, bem como em toda exibição da ciência. Ao demais, nesse


aspecto lingüístico prepondera com mui subido grau a denotação
ou, em nomenclatura do eminente Coseriu, designação real. A lín-
gua culta envolve, para em verdade o ser, a mais do atributo de
correta, no mínimo os de clara, precisa, coerente e concisa. Para
exemplos de língua culta prestam-se as composições: · Leonel
Franca: Dignidade da pessoa. · Alceu Amoroso Lima: Meus
mestres. · Farias Brito: O momento mais feliz de minha vida.
Expande-se a língua escrita para surtir a literária.
Como definem língua literária?
Uns: a linguagem dos escritores. Outros: é a mais elevada
expressão da língua escrita.
Em Lógica, tais afirmações não produzem definição, como
tal. De trânsito: a especulação da natureza, métodos, espécies e
leis das definições, estas enquanto tais, é exclusivo assunto de
manuseio filosófico.
Estão completas ambas aquelas simples declarações? Julgo
não.
Literário flui de littera, letra; depois, no plural, litterae, com
significação transcendente no próprio latim clássico: boas-letras.
Língua literária, então, designa-se a que revela de maneira
artística a mensagem.
Ora, arte implica beleza. Se, quando se ventilem proposições
estéticas, da palavra se utilize sem o referido importe, ela, na re-
flexão, tem lugar por absurdo equívoco. O estudo volvido à essên-
cia da beleza é privativo da inquirição filosófica, no ramal Estética,
para onde convergem abundantes contributos da Psicologia e da
Metafísica, unidos àquela qüididade.
Belo provém de bellus (adj.), contração de benulus, diminu-
tivo de benus, arcaico de bonus. Na origem, assim, encontramos
a idéia de bom, de senhor das qualidades convenientes à sua natu-
reza ou função, e oposta à de mau.
Aprofundando, aliás, benulus eqüipola-se a bonzinho, dimi-
nutivo, idéio, com significado já romano arcaico intensivo ou de
superlativo absoluto sintético. Similarmente à qualidade em: rosto
lindinho (muito lindo). Belo, por alcance, de longe carreia o signi-
ficado, não só de bom, porém até de muito bom, boníssimo, ótimo.
Elo, para vincular-se benulus a bellus.
Abstratamente aferido, melhor o belo se sente que se define.
Antes se intui do que se entende. Não se lhe negue, porém, ser
objeto de inteligência, visto sê-lo de intuição. “A beleza é o esplen-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 349

dor da ordem e da perfeição.” (Estevão Cruz.) Se algo for real-


mente belo, a todos, quando normais e não desviem o sentimento
de espontaneidade, a todos agradará, em qualquer parte e a cada
hora, porquanto, incansável, a beleza delicia, reluz e conquista.
Verdade: para o julgamento exemplar a respeito do belo, exige-se
adquirir, desenvolver e aprimorar o bom gosto.
O antônimo de belo quem no desconhece? Aliás, mais fácil
de compreender que seu inverso.
Brota o vocábulo feio de foedus (adj.), da mesma origem de
foetere (da 2a), raiz foet, em português fet ou fed, exalar mau
cheiro. Por esse motivo, linguagem feia, mirando-se o étimo, im-
porta o conceito de fétida, e no figurado: que desperta aversão ou,
pelo menos, desprazer, desgosto, desinteresse. Essa porventura é
língua literária?!
Visa, em epílogo, a língua literária a escopo esteticizante. Sua
natural essência jamais se contém – óbvio – em exteriorizações do
pensar e do sentir vácuas do belo. A Estética enumera os efeitos da
beleza no homem. O belo provoca alegria ou, no menos, grande
satisfação ao contemplador. Ocasiona-lhe admiração, conjunto de
pasmo e respeito. Gera-lhe impulso de transferir aos mais o deleite
gozado, de partilhar com os semelhantes a comoção que o invadiu.
Corolário: obra que deseje retratar língua literária tem de munir-se
com as virtualidades promotoras dos efeitos do belo.
Eis o que mais remoto houve e existe na energia vital da
língua literária e lhe afiança a perpetuidade. Concentra-se aí o que
aos beneficiários da leitura nas obras genuinamente artísticas pro-
mete e cumpre o nosso e o de todos idioma literário. Avulta a
cadeia metafísica: a língua literária causa o estilo literário, e este a
obra literária.
Caso faleça à obra que enlistaram por literária a dita espécie
de língua, o trabalho, admitido embora como otimamente elabora-
do, em rigor não é obra literária. Será culta.
Neste aparecer da Literatura, predomina soberana com a
maior amplitude a conotação, pois a subjetividade governa com
império os atos do compor mental e do externo. Baila nas folhas
grafadas o termo em significado alegórico, multívoco. Positiva-se
com relevo a individualidade por necessitar o expositor de ofere-
cer ao público a sua mundivisão, criatividade, o entendimento par-
ticular do concreto e do abstrato, do real e do imaginário. Nesse
campo de flores, a cultura depara festiva ao mágico do verbo os
áureos processos da figurística. A linguagem translata propor-
350 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

ciona-lhe fugir das raias denotativas, pouco fecundas, e pene-


trar aceso as regiões ilímites abertas ao poder cosmogônico da
inteligência humana.
Pelo ângulo da Psicologia, nota-se: para a língua literária muito
mais se inclinam e apelam os escritores de temperamento colérico
ou sangüíneo, que os de melancólico ou flegmático, pensos bem
antes para a culta.
Procura quem redige à literária suscitar no âmago dos leito-
res abalo estético, prazer mental; pretende enunciar estilisticamente
a beleza e, se escritor, fatos da existência própria ou social, dores
e júbilos, tudo enfim quanto possa comparecer na ribalta da vida.
A linguagem deveras literária encerra no tronco a doce alma
poética. Dá-se-nos em prosa e verso. Ninguém desconheça: no
tecido prosaico ideal ritma-se. Para alguém reverter em consu-
mado prosador, urge, por conseguinte, saber e exercitar com per-
severança a métrica, e seguir, até que se automatize no ritmo a
faculdade criadora. Assenta a língua literária na de figurino culto.
Por isso, abrange-lhe os itens já cotados. Aqui, entretanto, se jun-
tam novas: acima do restante, harmonia (a música do estilo), co-
lorido e elegância; acompanhados de originalidade, pureza, vigor
e nobreza, se menos.
Adite-se que pode a linguagem na qual se compôs uma obra
de índole instrutiva, uma narração da vida particular de alguém,
ser literária, contanto em si reúna as condições enxutas do culto e
do belo. Exemplos: “Brasil – Minha Terra”, História do Brasil
(fatos admirandos), de Mário Sete; “Geografia Sentimental”,
Geografia do Brasil (notabilidades), de Plínio Salgado.
Nesta área, de língua, permite-se aos mui sabedores perma-
nente liberdade para, cônscios, violarem ordenanças gramaticais,
a fim de obter mais efeitos expressivos.
À busca de, no exame das elevadas manifestações gráficas
em língua literária de um povo, na empresa de bem conhecê-las,
para, em final, dizer o estado e o grau de civilização descoberto,
move-se árdega e prestante a Filologia – ensinam os doutos na
linda ciência.
Ocorre vaga referência ao uso quase correto da fórmula aven-
tada língua literária ao sustentar-se: é a linguagem dos escritores.
Convenha-se: muitos deles se provêem de nenhumas bele-
zas ou, até, de feiúras inumeráveis, principalmente em verso.
Aparecem, todavia, arrolados como escritores, sem mais, no sen-
tido fidalgo de literatos ou de quem traça por língua literária. Gran-
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 351

de massa de outros, acentue-se, não escreve com o belo, porém


com o certo. Devem, com que de fato devam, enfileirar-se como
escritores mas de língua culta, preço dignificante, suposta a mole
gigantéia dos escrevedores.
Aqueloutros (praticamente a soma dos tratadistas) reduzem
a língua literária à mais alta representação apenas da língua escri-
ta. Dessarte, consideram-na o mais loução feitio só desta última
linguagem. Em termos paralelos: a manifestação oral, de cunho
apesar de artístico, não merece classificada de língua literária,
enquanto fora de documento.
Ora, pertence à Literatura o complexo das obras indumentadas
em linguagem estética. Cogitemos: um orador, o perfeito, assoma
à tribuna. Do exórdio à peroração, discorre firme e sem papel
acerca de leve ou substancioso conteúdo, por mando da conjuntu-
ra, em linguagem amoldada aos estatutos da exposição enfunada
de beleza. A tribuna, mais que a caneta do prosador na escrita,
usa a linguagem figurada, ao maior a tropológica: metafórica,
metonímica, perifrásica, e a de pensamentos. Não discursou em
língua literária?! Tanto ainda quanto, orador, pode ascender ao
Olimpo reservado à sua atividade específica: o Sublime, que é o
esplendor do belo. E até: “a expressão sensível do infinito.” (Kant.)
Não fala o tribuno em língua literária?!
Há, por isso, de o eloqüente senhorear-se dos arcanos da
forma escrita. O orador pressupõe o escritor.
Cuido, em resultado, que a língua literária repousa na lingua-
gem não só dos escritores senão também dos oradores, contanto,
reitere-se, exprimam estes os elementos da notícia em plano de
beleza. Contem-se – logo – duas línguas literárias: escrita e oral.
Nada custoso perceber a linguagem gráfica estética. A de
eloqüência apenas verbal, entretanto, unicamente os peritos no
idioma e nas virtudes estilísticas a identificam, se a manifestação
de rostro evolve no modelo por excelência, que extrema o autên-
tico orador: o improviso.
Se a oração já vem nas laudas, ou se taquigrafa ou, em mais
atualidade, se falada, de repente, se gravou e, após, se transcre-
veu, o reconhecimento de proferida em língua, à risca, literária se
nivela ao de página de escritor fundida nessa linguagem.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 353

Parte III

Resumos de comunicações
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 355

Isoglossas do português
Afrânio da Silva Garcia, da UERJ/FFP.

Partindo do conceito de isoglossa, faz-se um levantamento dos


traços característicos que diferenciam tanto a modalidade brasi-
leira da modalidade européia da Língua Portuguesa, quanto os
dialetos e falares do português do Brasil e de Portugal entre si.
Num segundo momento, estende-se esse levantamento aos tra-
ços característicos mais evidentes das variações lingüísticas do
português, como a diferença entre português culto e inculto; entre
português formal e informal, assim como suas subdivisões; entre
português escrito e falado, etc. Ao final, apresentam-se as conclu-
sões decorrentes da pesquisa.

O contorno semântico-sintático dos adjetivos em “O


coruja” de Aluísio de Azevedo
Afrânio da Silva Garcia, da UERJ/FFP

Apresentação dos adjetivos encomiásticos e pejorativos em


“O Coruja” de Aluísio de Azevedo, como parte da pesquisa sobre
Relativismo Lingüístico: relações entre semântica, cultura e
sociedade. A significação dos adjetivos encomiásticos e pejorati-
vos na obra em questão. Sua significação própria e sua significação
deslocada: conotação e uso estilístico dos adjetivos. Suas relações
paradigmáticas e sintagmáticas a partir do método de comutação,
preconizado por Saussure. Sua colocação (de acordo com a defini-
ção de Lyons) e sua contextualização.

Intertextualidade como característica da língua literária


machadiana
Alexandre Marcelo Matos, da UFJF

Este trabalho tem por objetivo mostrar a relação intertextual


que há entre a obra machadiana Esaú e Jacó e a Bíblia Sagrada
a partir dos Salmos de Davi, valorizando as diferenciações exis-
356 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

tentes entre estas duas obras. Concluiremos o quanto é original a


obra machadiana nesta relação intertextual. E que Machado de
Assis, ao manter um diálogo entre a sua obra e o texto bíblico,
modifica-o para o contexto oitocentos do Rio de Janeiro, havendo
deste modo, uma atualização do texto bíblico.

A cidade na obra de Lima Barreto e de Almada Negreiros


Ângela Maria Thereza Lopes, da UniverCidade e da Universida-
de Estácio de Sá

Lima Barreto e Almada Negreiros são escritores do início do


século XX, da literatura brasileira e portuguesa, respectivamente.
Suas produções, ainda que separadas pela distância geográfica, le-
vantam questões culturais profundas, que revelam espíritos críticos
e atentos para a modernidade de seu tempo. A leitura dos romances
Recordações do Escrivão Isaías Caminha de Lima Barrreto e
Nome de Guerra de Almada Negreiros vai enfocar o espaço urba-
no, signo da modernidade nesse período, procurando levantar ques-
tões que permitam reconstruir a sociedade brasileira e a portuguesa
e analisar como a cidade desse período foi pensada e representa-
da por dois intelectuais de culturas diversas, mas contemporâneos.

Rostos femininos em A geração da utopia, de Pepetela


Assunção de Maria Sousa e Silva, mestranda em Poética/UFRJ

As figuras femininas no romance A geração da utopia de


Pepetela, no contexto ficcional da história angolana, representam,
por um lado, a força de resistência revolucionária que revigora os
sonhos dos agentes sociais e, por outro, os modelos estereotipados
que compõem o seguimento dos indiferentes às causas políticas.
Pepetela trata as questões individuais como desdobramentos do
coletivo, redimensionando o caráter da luta angolana. Vemos a figu-
ra de Sara contemplada na noção de sujeito de que fala Hutcheon,
no sentido de abarcar novas maneiras de ser e intervir no processo
histórico e na narrativa, descentralizando o sujeito tradicional / patri-
arcal. Por outro lado, compartilhamos das idéias de Padilha ao cons-
tatar que A geração da utopia é uma narrativa com técnicas con-
servadoras, embora “tematicamente” se aproxime de modelos pós-
modernos com uso inovador da ironia e da paródia.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 357

O “sociolingüista” Mário de Andrade e o problema da


Língua Brasileira
Carlos Alexandre V. Gonçalves, da UFRJ

É fato conhecido por todos aqueles que se dedicam ao estudo


das obras de Mário de Andrade seu aguçado interesse pela descri-
ção da fala viva e pela realização do oral como fonte de dados
caracterizadores do português do Brasil. Desde a publicação do
Prefácio interessantíssimo, de 1921 - obra em que pela primeira
vez utiliza a expressão “língua brasileira” - até suas produções mais
recentes, como O empalhador de passarinhos, de 1944, são
marcantes as investidas marioandradinas nos terrenos da Lingüística,
de uma forma geral, e da Sociolingüística, mais especificamente.
Tomando como ponto de partida a obra literária de Mário de Andrade
e os trabalhos por ele realizados à frente do Departamento de Cul-
tura do Estado de São Paulo, entre 1936 e 1938, busco apresentar e
discutir, nesta comunicação dados que evidenciam a profunda sen-
sibilidade sociolingüística do autor, que pode se inserir perfeitamente
no contexto dos estudos dialectológicos inaugurados por Amadeu
Amaral, com O Dialeto Caipira. Mais especificamente procuro
mostrar que as estratégias usadas por Mário de Andrade inovado-
ras para seu momento refletem preocupações teórico-metodológicas
da pesquisa sociolingüística atual, ressaltando-se, ainda, o caráter
científico do projeto que originou o Primeiro Congresso de Língua
Nacional Cantada (1937), evidenciado na explicitação e na funda-
mentação de cada passo de sua pesquisa e de sua obra literária.

História externa do português do Brasil


Castelar de Carvalho, da UFRJ e ABF

Implantação e evolução da Língua Portuguesa no Brasil sob


os pontos de vista da História e da Sociolingüística. A visão
etnolingüística de Serafim da Silva Neto. A contribuição de filólogos
brasileiros e portugueses.

Diálogo entre tradições: uma leitura de “A cartoman-


te”, de Machado de Assis
Cecília de Macedo Garcez, da UFJF

Nesta comunicação, dedicar-nos-emos a uma análise do conto


“A cartomante”, de Machado de Assis, a partir da intertextualidade
358 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

neste realizada pelo escritor. Tal abordagem nos permitirá subli-


nhar a posição importante de tal artista na literatura brasileira, in-
clusive pela possibilidade que sua escritura nos proporciona de
levantar discussões sobre dependência cultural, identidade nacio-
nal, sobre relação países colonizadores/países colonizados e tradi-
ção local e importada.

O fim de Arsenio Godard, de João do Rio: o destino de


um voluntarioso
Cláudio de Sá Capuano, mestrando em Poética/UFRJ

O conto O fim de Arsenio Godard, de João do Rio, publica-


do no volume Dentro da noite, de 1910, trata da prisão de um
traidor, um estrangeiro, francês de nascimento, que expionava
marinheiros revoltosos. Capturado e levado ao navio, Arsenio re-
cebe a mais dura das penas: o silêncio. Nenhum dos revoltosos
estava autorizado a tratá-lo mal, mas, da mesma forma, estavam
proibidos de lhe dirigir a palavra ou lhe responder qualquer indaga-
ção. O que se percebe é que toda a tensão dos revoltosos é ca-
nalizada para a figura de Godard. Isto se dá pelo fato de o estran-
geiro ter violado um tabu de um determinado grupo, pondo em
risco a vida de todos. A palavra, arma do delito, a delação, é o
próprio instrumento da punição. Se a palavra seria a perdição dos
delatados, a sua interdição se transformou na perdição ao delator.

Os caminhos da memória: esquecer e lembrar. Uma lei-


tura de Baú de ossos, de Pedro Nava
Cristina Ribeiro Villaça, da UFJF

Nesta comunicação faremos uma leitura de Baú de ossos,


abordando o diálogo entre ficção e realidade. Privilegiando o papel
da memória como possibilidade de reconstrução do passado, a
escrita naveana insere-se no corpus literário do século XX, con-
ferindo ao gênero memorialístico, o status de literatura. A partir do
pacto esquecer/lembrar, enfoque do caráter fragmentário de tal
construção discursiva.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 359

Texturas da narrativa de Autran Dourado


Irene Jeanete Lemos Gilberto, da Universidade Católica de Santos
O presente trabalho analisa o conto de Autran Dourado “As
duas vezes que Afonso Arinos esteve em Duas Pontes”, da obra
Violetas e caracóis, discutindo os procedimentos narrativos que
caracterizam a pluralidade de gêneros do discurso e a técnica
discursiva do autor que resgata, na ficção, o traçado da biografia.

Neologismos formados por empréstimo na Língua Por-


tuguesa escrita contemporânea do Brasil
Isabel Aparecida de Souza Stamato, da PG/FCL-UNESP -
Araraquara)

Este trabalho pretende estudar os neologismos formados por


empréstimo na Língua Portuguesa escrita contemporânea do Brasil
com base em um corpus extraído de revistas e jornais brasileiros de
grande circulação nacional e internacional. Apresentamos uma aná-
lise dos neologismos por empréstimo lexical segundo GUILBERT
(1975), que considera três critérios para que um item lexical estran-
geiro esteja em vias de se integrar a uma língua: (i) critério
morfossintático; (ii) critério fonológico; e (iii) critério semântico.

O português do Brasil: a língua de Alencar


Jorge Marques, mestre em Literatura Brasileira / UFRJ

O aspecto estilístico do trabalho com a língua promovido por


José de Alencar revela o caráter dúbio de seu projeto romanesco e,
por extensão, de todo o movimento romântico brasileiro. É assim
que as propostas teóricas de Alencar, se por um lado, refletem já um
certo amadurecimento do sistema literário brasileiro, por outro lado,
não são levadas até às últimas conseqüências na prática, havendo,
por assim dizer, uma abertura de concessão por parte do escritor.
Este descompasso que perpassa toda a obra de Alencar e que ca-
racteriza, no final das contas, certa dose de artificialismo por parte
do projeto do escritor, deve, porém, merecer compreensão: sendo
um pioneiro na reivindicação de um estilo brasileiro de escrever,
assunto tão polêmico em época de gramatiquice caturra, não se
pode exigir de Alencar total coerência entre teoria e praxis, mas
somente louvá-lo por, com suas propostas, ter ajudado a impulsionar
e a efetivar um sistema literário caracteristicamente brasileiro.
360 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

A trajetória da Língua Portuguesa na Amazônia colonial


José Ribamar Bessa Freire, da UERJ

Quando o Estado do Grão-Pará aderiu à Independência do


Brasil em agosto de 1823, uma parte expressiva de sua população
não falava o português como língua materna, situação que se pro-
longaria ainda por algumas décadas. Coube, portanto, ao estado
neo-brasileiro a tarefa de completar o processo de portugalização
da Amazônia. Esta comunicação pretende fazer uma síntese da
viagem - atribulada, tortuosa e demorada - da Língua Portuguesa
pelos rios da bacia amazônica, no período colonial, destacando as
diferentes formas de contato com as línguas indígenas. Durante
esse processo, o português e as línguas indígenas desempenharaam
diferentes funções seja como meios de comunicação corrente,
familiar e técnico-prática, seja como veículos de transmissão de
experiências históricas ou como instrumentos de criação literária
tanto oral, quanto escrita. Despertaram em seus falantes compor-
tamentos, sentimentos e atitudes de identificação ou de
estranhamento e funcionaram, aqui e ali, como fatores de identi-
dade étnica e de coesão social. Alguns desses aspectos serão
abordados, numa perspectiva histórica, com destaque para a rela-
ção, ás vezes dramática, de interculturalidade, criada com o contato
entre as diferentes línguas.

A produtividade de alguns dos processos formadores


de palavra na constituição do vocabulário de pescado-
res artesanais
Katia Carlos Alves /Nelson Carlos Tavares Junior /Vanessa
Sant’Anna Tavares, da UFRJ

Esta pesquisa foi realizada a partir dos dados eliciados do corpus


do Projeto APERJ (“Atlas Etnolingúistico dos Pescadores do Esta-
do do Rio de Janeiro”). Esse inventário foi extraído de entrevistas
realizadas com pescadores artesanais, analfabetos ou de pouca es-
colaridade, cuja atividade profissional se dá em ambiências lacustre,
marítima ou fluvial. Para a composição do corpus desta comunica-
ção, analisou-se o falar dos informantes inerentes às ambiências
lacustre, marítima ou fluvial com o objetivo de se fazer o levanta-
mento de signos - considerando os seus significantes - , cuja realiza-
ção nos inquéritos analisados não figuram no Dicionário Aurélio.
Além disso, foram levados em conta vocábulos dicionarizados cujos
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 361

significados são utilizado pelos informantes de maneira diferente do


emprego usual. Como processo de reflexão sobre a ocorrência de
tais significantes elegeram-se os processos morfológicos de forma-
ção de palavras para depreender o emprego de tais lexias. Quanto
aos significados não usuais, procurar-se-ão elucidá-los com base
em processos metafóricos, analógicos e outros. As lexias ora anali-
sadas serão dispostas cartograficamente, lançando-se mão dos re-
cursos propiciados pela Dialectologia e pela Geografia Lingüística.

Murilo Mendes e as rasuras na religiosodade


Mara Conceição Vieira de Oliveira, daUFJF

Considerando Murilo Mendes um poeta multifacetado que


exibe temáticas como: o eterno feminino, a irreverência, a busca
do conhecimento e aspectos estilísticos pertinentes à modernidade,
optou-se pelo discurso religioso para uma análise mais elaborada,
de vez que é um aspecto fortemente marcado na obra de Murilo
Mendes.

A defesa da Língua Portuguesa e do Império Lusitano


nos primeiros gramáticos e em António Ferreira
Márcia Maria de Arruda Franco, da UFOP/CNPq

Quando, em fins do século XV, os portugueses obtiveram êxito


na descoberta da nova rota para a Índia e de terras desconhecidas
no Novo Mundo, a cultura portuguesa não divulgada apenas em
português, pois, para os homens dessa época, língua e pátria não
formavam uma aliança como elementos determinantes da naciona-
lidade. Na poesia, imperava o primado do castelhano, nos relatos
sobre as novas descobertas, a língua latina. Foi ao longo século XVI
que a necessidade de difundir a língua do colonizador por todo o
império lusitano gerou o movimento, num primeiro momento restrito
aos primeiros gramáticos e António Ferreira de defesa e de codificação
da Língua Portuguesa. Esta deixaria de ser apenas mais um dos
dialetos ibéricos, elevando-se a idioma imperial.

“Jeitinho brasileiro” - a expressão idiomática no portu-


guês do Brasil: uma contribuição para o léxico da língua
Maria Auxiliadora da Fonseca Leal, da FALE/UFMG

Desde Saussure, sabe-se que a língua é um sistema rigorosa-


362 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

mente conexo, de meios de expressão comuns a um conjunto de


pessoas. Esse sistema, que por sua vez, só existe nos indivíduos
falantes, tem de um lado, existência independente deles, porque
assim como outras instituições sociais lhes é imposto. De outro
lado, cada pessoa tem o seu jeito de falar a própria língua, de modo
que tantas há quantos são os indivíduos. Na presente comunica-
ção pretende-se apresentar algumas expressões idiomáticas do
português do Brasil que atuam como um importante fenômeno
lingüístico de criação lexical. Sabe-se que a língua nacional com
pronúncia brasileira, com vocabulário enriquecido por elementos
indígenas e africanos é também composta por criações e adoções
realizadas na própria língua. Gonçalves Dias com sua linguagem
própria já dizia: “A minha opinião é que, ainda sem querer, havemos
de modificar altamente o português. O que é brasileiro é brasileiro,
e que “cuia” virá a ser tão clássico como “porcelana”, ainda que
não a achem tão bonita”. A numerosa ocorrência de expressões
idiomáticas em português comprova a importância e a necessida-
de de uma análise mais apurada do fenômeno que comporta as-
pectos culturais, sociais e políticos bastante evidentes. Espera-se
que, no presente trabalho, alguns aspectos que envolvem as ex-
pressões idiomáticas, no português do Brasil, sejam elucidados.

As duas faces da cidade na prosa ficcional de João do Rio


Mariângela Monsores Furtado Capuano, mestranda em Literatu-
ra Brasileira/UERJ

No início deste século, o Rio de Janeiro, repercutindo os ecos


da modernização dos grandes centros da Europa, passou por uma
série de modificações, preparando-se para a vida urbana nos mol-
des modernos, como já era fato em capitais européias.
Na cidade, agora modernizada e higienizada, não havia lugar,
ao menos no entender de certos cidadãos da época, para os popula-
res que se aglomeravam em antigas construções. Como observa
Renato Cordeiro Gomes, “esta cidade real, por onde circulava uma
rica tradição popular, não cabia na visão da ‘ordem’. Era vista como
obscena, ou seja, deveria estar fora de cena, para não manchar o
cenário...”. É o convívio entre os homens e seu livre trânsito entre
os dois lados da mesma cidade que o cronista João do Rio fixa em
seus textos, especialmente nos contos publicados em Dentro da
noite (1910), contos que aqui analisamos com o intuito de destacar
os contrastes sociais que se misturam, num ambiente que ora se
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 363

recobre de requinte, ora se ‘acanalha’ nos becos da cidade.

A reinvenção do infinito: mundos imaginados e imagi-


nários em A idade do serrote, de Murilo Mendes Maria
Perla Araújo Morais, da UFMG

Leitura do livro A idade do serrote enfocando o eu


memorialístico enquanto construtor/desconstrutor de limites re-
ais e imaginados. Abordagem das questões de origem, do tempo
e do espaço a partir da constatação da tendência à ruptura de
limites. Ênfase no caráter performático através do qual o discur-
so literário de Murilo Mendes subverte o real imaginado, o que
por vezes ocasiona uma aprendizagem, por outras, demostra o
desejo de desterritorialização (ruptura dos limites espaciais) e
ainda nos possibilita observar a proposição de uma refiliação ou
uma revisão da origem.

A onomástica indígena no português do Brasil: confron-


tos lingüísticos e interétnicos
Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick, da USP

A diversidade lingüística entre o português europeu (PE) e o


português brasileiro (PB) remete a considerações históricas e
etnográficas, que ultrapassam a questão vocabular, nos discursos e
atos comunicativos. No território americano, por exemplo, a presen-
ça de etnias diferentes entre si imprimiu valores e traços semânticos
especiais às unidades da língua receptora (PB), tornando-a bifásica,
pelo menos na época da conquista. O cruzamento de diversos siste-
mas, geradores de adstratos socioculturais, evidencia a dificuldade
em recortar os significados de termos e designativos, onerados pela
segmentação por vezes imprecisa dos constituintes lexicais ou pelas
falhas do próprio registro ou da coleta das formas orais, oriundas
dos modelos ágrafos. Partindo dessas considerações, apresentare-
mos dados preliminares do tratamento lexicográfico conferido ao
material toponímico coletado em várias fontes (documentais e
cartográficas), com vistas a elaboração do Atlas toponímico do
Brasil, na variante regional paulista, e sua inclusão em domínios de
experiência específicos.
364 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

A linguagem do poder e o poder da linguagem - Lima


Barreto e a Língua Portuguesa
Mauricio Pedro da Silva, da USP

O presente trabalho aborda a ideologia lingüística presente


na produção literária de Lima Barreto, por meio de um discurso
metalingüístico. Com efeito, a perspectiva lingüística adotada por
Lima Barreto revela o poder absoluto da linguagem, que é utiliza-
do pelo romancista na luta contra os preconceitos sociais e
lingüísticos. Tendo como fundamento metodológico conceitos reti-
rados tanto da Análise do Discurso quanto da Historiografia
Lingüística, nosso trabalho trata ainda da presença do estilo
academicista, do purismo lingüístico e do preciosismo gramatical
na linguagem pré-modernista brasileira.

O (não) lugar de Portugal na formação de Murilo Mendes


Patrícia Riberto Lopes, da UFJF

Neste trabalho, que se filia a uma pesquisa maior sobre a pre-


sença do repertório cultural português na obra de Murilo Mendes,
busca-se estabelecer o papel de Portugal na formação primeira do
poeta. Pela análise deste livro autobiográfico, busca-se na infância
os primeiros contatos com a cultura portuguesa, a fim de delimitar,
através do olhar do adulto, ensaísta presente em toda obra, a impor-
tância de Portugal em sua formação. Dois fortes laços podem ser
percebidos entre esse poeta brasileiro do século XX e a nação por-
tuguesa: um de ordem sócio-cultural devido às marcas deixadas
pela ex-metrópole na sociedade brasileira, outro de ordem pessoal,
o qual resultou em fortes contatos, inclusive em diversas viagens a
esse país. A hipótese que se levanta é a de que, marcado pela
desterritorialização, Murilo Mendes não se tenha relacionado com
Portugal como terra mãe, nação origem, mas como um ponto em
seus intermináveis roteiros de viagem, superando a tendência à
reterritorialização e situando Portugal como um entre-lugar cultural.

O duplo destronizador e a devoração simbólica – a antropofa-


gia como revisão canônica em um conto de Rubem Fonseca
Petra Cristina Augusto, da UFJF

Análise da questão: herança colonial literária e formação do


acervo literário brasileiro e da linguagem nacional como elementos
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 365

edificadores de uma literatura própria com suas peculiaridades não


só formais mas também temáticas. Discussão da formação da lin-
guagem nacional a partir da questão da herança cultural portugue-
sa. Ênfase no recorte histórico/ideológico do cânone literário portu-
guês abordando um diálogo entre canibalismo, episódio da “Nau
Catrineta”, retomada em paralelo ao dado cultural de povos não
cristãos. Abordagem do conceito de antropofagia como dado fun-
damental para a construção de uma linguagem literária nacional.

Fatores externos na formação do léxico português da


América: os elementos indígenas e afro-negros
Ruy Magalhães de Araújo, da UERJ / FFP

O acervo lexical brasileiro é constituído em quase sua totalida-


de de elementos do léxico português europeu. Deste, razoável nú-
mero de vocábulos é proveniente do português arcaico (havendo
inclusive abonações de escritores da época), que veio para o Brasil
com os colonizadores do norte e do sul de Portugal, e também dos
Açores. Somam-se a seguir os elementos indígenas, afro-negros, os
de procedência variada e os que possuem formação interna pró-
pria, isto é, os brasileirismos. Interessa-nos neste trabalho, sobrema-
neira, os de origem indígena e afro-negra.

Entre o segredo da Jurema e a perdida muiraquitã: em


busca da identidade nacional
Tatiana Alves Soares, da UFRJ

O Romantismo e o Modernismo são considerados as estéti-


cas literárias que mais contribuíram na proposta de uma literatura
nacional. Dentro dessas escolas encontramos José de Alencar e
Mário de Andrade, respectivamente, como dois de seus maiores
expoentes. Símbolos de suas gerações, sua produção literária apre-
senta inúmeras reflexões acerca do estabelecimento de uma iden-
tidade nacional. A partir do pensamento crítico dos autores cita-
dos, nosso estudo propõe uma análise comparativa de suas postu-
ras estético-ideológicas. Com base em textos críticos e prefácios
das obras alencariana e andradina, nossa leitura pensa o diálogo
entre ambas as poéticas, a partir de aspectos como o papel da
literatura ou a identidade nacional.
366 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

A linguagem literária machadiana e a reescritura da tradição


Terezinha V. Zimbrão da Silva, da UFJF

Neste trabalho, consideraremos a reescritura da tradição como


uma característica da linguagem literária de Machado de Assis.
Ora, sabemos que o narrador machadiano está sempre citando os
clássicos da literatura ocidental - ou em outros termos reescreven-
do-os. É esta importante característica que explicitaremos ao anali-
sarmos em seguida o diálogo deste escritor brasileiro com a tradição
clássico-pagã. Confirmaremos que esta tradição tem os seus textos
em maior menor grau modificados quando reescritos por Machado
de Assis. Interpretaremos tais modificações como sendo conse-
qüentes do processo de atualização destes textos, escritos original-
mente no centro do mundo clássico, para o contexto muito distinto -
tanto temporalmente quanto espacialmente - da periferia do mundo
moderno. Mais precisamente, tomaremos os dois primeiros capítu-
los de Esaú e Jacó e a partir destes faremos uma descrição de
como a tradição oracular grega, tão bem registrada em um clássico
universal como As Eumênides de Ésquilo veio a ser atualizada para
o contexto oitocentista de um moderno romance folhetinesco.
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 367

Parte IV
Minicursos
BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 369

1) Edição crítica da lírica de Camões, sob a presidência


de Leodegário A. de Azevedo Filho (ABF e UERJ), com a
participação de Álvaro de Sá (ABF), Marina Machado Rodrigues
(ABF e UERJ) e Xosé Manuel Dasilva Fernández (Universidade
de Vigo, Espanha)

A dificuldade de estabelecimento do corpus lírico camoniano


no séc.XVI, conforme já atestam as duas edições quinhentistas
das rimas de Luís de Camões, em face da dispersão a que os
textos andaram sujeitos, gerou, ao longo de quatro séculos,
equívocos gritantes, no tocante à autoria e reprodução dos textos
do Poeta. As conferências proferidas neste minicurso se
propuseram historiar os obstáculos encontrados pelos inúmeros
editores da lírica camoniana frente ao problema, bem assim, mostrar
as soluções encontradas por Emmanuel Pereira Filho e Leodegário
A. de Azevedo Filho para tentar solucionar a questão. Foram
abordados os seguintes pontos: a) A lírica de Camões inscreve
dois problemas: o autoral e o textual. Tentativas anteriores. A
metodologia proposta por Emmanuel Pereira Filho. O corpus
camoniano, de acordo com a metodologia aplicada por Leodegário
A. de Azevedo Filho; b) Divisão do universo lírico de Camões em
três corpora: o mínimo, o addititium e o possibile; c) Critérios
adotados para o estabelecimento de cada um deles.

2) Unidade do Português literário no mundo lusofônico


de Portugal, Brasil e nações africanas de Língua Portuguesa,
sob a presidência de Domício Proença Filho (ABF e UFF), com as
participações de Carmen Lúcia Tindó Secco (UFF), Nadiá Ferreira
Paulo (UERJ) e Pedro Lyra (UFRJ).

Considerando-se que há unidade da Língua Portuguesa


370 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

em todo o mundo lusofônico e dentro dessa unidade a natural


variedade para exprimir as diferentes culturas, o curso teve como o
objetivo: a) Demonstrar que, do ponto de vista do sistema, a língua,
sendo a mesma, comporta a diversidade de normas e usos
idiomáticos; b) Demonstrar que, embora haja unidade lingüística não
há unidade literária, exatamente porque a língua é expressão de
cultura de cada povo que a fala; c) O estudo das expressões
portuguesa, brasileira e de nações africanas em Língua Portuguesa.
372 BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

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