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Os Arquivos dos Santudrios Marianos Portugueses Nossa Senhora de Nazaré 1608-1875 PEDRO PENTEADO Arquivos Nacionais/Torre do Tombo Té a década de 60 a maior parte dos estudos histéricos sobre os santuarios marianos portugueses destacava a grandeza do culto e da devogao popular a Nossa Senhora!. Os seus autores, frequente- mente inseridos na carreira ecle- sidstica ou com grandes ligagées a Igreja, davam particular importancia as lendas de origem dos santudrios, aos milagres, as peregrinacdes, as festas e ainda ao esplendor ar- quitectonio e artistico dos templos da Virgem. Mas a corrente de producao bibliogréfica de temética mariana compreendia ainda um conjunto de obras empenhadas em contrariar os «argumentos devocionais», demon- strando que as peregrinacées festivas e 0 culto nos santudrios nao pas- savam de superstic6es e/ou falsi- dades, frequentemente promovidas pela Igreja Catélica. Numa aprecia- Capeuvos wap (2) 1992, p. 171-187 cdo global pode-se defender a ideia que ambas as correntes nao necessi- taram de utilizar sistemdtica e inten- sivamente a documentacéo dos ar- quivos dos santudrios para com- provarem as respectivas posicdes historiogréficas e ideolégicas. Foi o desenrolar da problematica teol6gica no sentido de compreender as variadas formas de vivéncia do catolicismo, e sobretudo a Conferén- cia de Medellin em 1968, que permi- tiram constatar a necessidade de pesquisar as razées sociais, antro- polégicas e histéricas que explica- vam a diferente valorizacao das pré- ticas religiosas no interior da Igreja, nomeadamente as peregrinacées. Em varios paises, os investigadores das Ciéncias Sociais, cada vez mais sensiveis a entender «a religiosidade como uma expresséo humana intrin- seca», procuraram responder a este m PEDRO PENTEADO desafio, Em Franca, por exemplo, virios historiadores, conscientes da interligagio entre o comportamento religioso e a sociedade onde ele se desenrola, comprovaram que 0 es- tudo das devogées populares nao ppoderia fazer-se sem uma investiga- vos conceitos (por exemplo, 0 tempo longo) e no recurso a fontes € méto- dos diversificados®. Em Portugal, s6 a partir de meados da década de 70.0 catolicismo popular comecou a ser reflectido no interior da Igreja e a ser objecto de estudos sécio-religiosos, incluindo a problemética dos santué fo final da década de 80 esta jf penetrado nos ambientes universitatios Em termos documentais, as ino- vvagoes metodologicas no estudo his- livros de milagres, descricdes dos tesouros marianos, documentos régios, etc). entre outros factores, da qualidade do patriménio arquivistico que Ihes foi deixado. Atendendo a essa cons- fatacdo, uma das questdes funda- mentais consiste em saber como fo- ram construfdos e organizados os testemunhos escritos referentes aos centros de peregrinacéo e quais as motivacées que estiveram na ori- gem da conservacio dessa meméria. ‘A resposta a estas interrogacbes serd proficua quanto maior for mncia dos contributos da Arquivistica e da Historia. Nesta linha de trabalho, o presente artigo procura analisar, a partir do exemplo de Nossa Senhora de Nazaré, no Sitio (Nazaré), 08 proces- sos de destruigao € reelaboracdo da ‘memeéria arquivistica, bem como as diferentes fases da sua estruturacao. Recentemente, num outro estudo, ‘apurdmos que, no final do século Xv, 6 cronista alcobacense Frei Bernardo de Brito tinha procedido a uma refor- mulagio da meméria histérica do santudrio do Sitio, nomeadamente através da associagao da Senhora a0 milagre do cavaleiro D. Fuas Roupi- mho no século xt, facto antes des- conhecido. O cisterciense baseava-se ‘num pressuposto documento de G0 que teria descoberto no (05 ARQUIVOS DOS SANTUARIOS MARIANOS 1 contestada a partir do segundo quar- tel do século xvit pelos representan- tes do Mosteiro de Alcobaga, que defendiam o principio que a histéria medieval do Santuério tinha sido diferente da versio apresentada por Frei Bernardo de Brito. O que é que estaria por detrés desta confrontacao de memérias hist6ricas e qual 0 papel dos arquivos, sobretudo 0 da Confraria, na fundamentagéo de cada uma delas? Procuremos, por agora, responder apenas & primeira questio. [AE a0 século xv, a apresentagéo do ermitao da pequena igreja de Santa Maria de Nazaré pertencia a0 abade de Alcobaca. O culto era pre- sidido pelos padres da Igreja Matriz da Pederneira, cujo. vigério era escolhido pelo mesmo senhor, donatério das vilas dos coutos do Mosteiro’. A Coniraria da Senhora tinha um importante papel na ad- ministragio do patriménio do San- tudrio, que procurava retirar ao con- trolo dos padres da Pederneira. Com © aparecimento dos comendatarios & frente do Mosteiro de Alcobaca, em 1475, e 0 relativo isolamento dos eclesidsticos da Matriz, nos conflitos que manteve com estes, a Confraria apostou na procura da proteccio da ‘Coroa, como forma de atingir o domi- nio do santuario do Sitio. Esse facto tomou-a cada vez mais dependente da intervencio dos oficiais.régios. £ nista cisterciense, que justificava a tese de que o territério do Santuario estivera fora da algada alcobacense logo desde o século xt. Para além disso, a difusdo do documento con- tribuiu para o aumento da afluéncia de romeiros, do niimero de milagres atribufdos @ Imagem de No Sr.* de Nazaré, do povoamento do Sitio © dos réditos do Santudtio. Os res- ponsiveis da Confraria nos inicios de Seiscentos, nomeadamente o seu pri- meiro administrador, 0 P+ Manuel de Brito Alao, nomeado pelo Rei em 1608, souberam aproveitar este aux lio do cronista e conseguir da Coroa a sua protecedo para a Casa da Sen- hora de Nazaré*. Foi deste modo que, em 1616, surgiu 0 primeiro regi- ‘mento da instituigéo, que definia a jurisdicao régia e a da Confraria/ Casa da Senhora sobre o Sitio. (© Desaparecimento de Documentos Nos inicios da centtiria de Seiscen- tos, no arquivo da Casa existiam varios documentos que podiam aju- dara comprovar a protecgao dos mo- narcas portugueses ¢ a intervencio dos seus representantes nos assuntos do Santustio, desde o final do século Xv. A maior parte deles foram tresla- dados e desapareceram sem que tenhamce bof oportunidad de co 1” PEDRO PENTEADO glo. jurisdicional, nao possuimos nenhum vestigio. O proprio adminis- se leuardo»’, sem nos. indicar qualquer outra pista de investigacao. Durante o perfodo em que este eclesidstico se manteve a frente dos destinos da instituigao, 0 cartério, lugar, 0 treslado da doagio publicado por Frei Ber- nardo de Brito na Monarguia. Lusi- tana’, Além dele, possufa a «Bulla do Summo Pontifice Eugenio IIL, pas- sada a instancia del Rey Dom Fer- 1as de particulares e escri- dos recentes aforamentos is pertencentes a Confraria nora de Nazareth’. Um primeira referéncia conhe- «costa do espital dos palmeiros», em Lisboa, «olhando ao servico de Deus € salvagom de sua alma», doava 0 casal Confraria, «com comdicam ‘que nenhum clerigo [..] nem senho- rio allgum a que a dita ermida de ssanta maria de Nazaret seja sofra- ganha nam ajio nada de veer em o dito casal salvo os mordomos e comfradas e comfrades»"'. A cldusula pretendia excluir da posse da doagao 0 clérigos da Igreja Paroquial da Pederneira e 0 Mosteiro de Alcobaca. O livro reunia ainda, entre outros, os treslados da demarcacao do Sitio em 1520 (fl. 22), do contrato estabelecido entre 0 vigario e os beneficiados da Pedemeira e a Confraria em 1: de algumas sentengas € escri quinhentistas. O Lioro de re regimentos [..]. surgia assim como ‘uma resposta a preocupagio em re- gistar 0s antigos direitos adquiridos Pela instituicéo, sem esquecer os mais recentes, jf que também incluia (0S ARQUIVOS DOS SANTUARIOS MARIANOS 175 trador, dos mordomos, do escrivao e dos ceputados eleitos anualmente, os livros © 0s documentos que estes responsdveis da Casa da Senhora deveriam produzir no decurso da sua gestdo. Uma das preocupagies da Coroa relacionava-se com a contabilidade da instituicdo, que 0 provedor da Comarca de Leiria deveria controlar regularmente. Por iss0, 0 regimento mandava que as esmolas e as rendas se carregassem vem receita, pelo escrivao della, em livro, sobre o mordomo mais antigo, que asignara a dita receita com o... administrador © escrivao»" © mesmo livro deveria ter um titulo para as «rendas proprias da Caza», outro para «pelitorios ordi- narios que se tirdo pelo Reino decla- rando as pessoas que pedem em cada lugar [para as obras da igrejal e em outro titulo se deitaréo as_mais esmolas ordinarias Por sew lado, 0 registo de despesa enunciaria «as pessoas que recebem, [..] 6 que © documento de 1616 referia-se ainda @ necessidade de controlar patriménio do Santuério, através dum livro que registasse «os vesti- dos, omamentos, prata, cera, ¢ tudo ‘© mais do servigo da Senhora, e da Confraria [...), e de um tombo dos bens e inventérios para o provedor aquando das suas visitas ao disso, 0 artigo 17° esti- pulava que «todas as. escripturas, cofre de trez chaves que estarli}éo na mao do administrador, e de hum mordomo, e do escrivao» Embora o actual arquivo hist6rico da Confraria nao albergue sendo dois dos livros criados na sequéncia do regimento™, sabemos terem existido, antes de 1618, 0 livro que «serue de inuentario das pecas»', bem como 0 [..] de receita, & despesa imento das esmolas, & fa- zenda desta Casa, que os prouedo- res desta comarca da cidade de Leiria tomo» para verificagio de ‘contas. Alguns deles tinham dados anteriores a 1608, pois 0 Ps Alio Possuia certides dos registos de rendimentos da Casa antes da sia administragio, extrafdas destes livros'. ‘A Casa de Nossa Senhora pro- cedia ainda a alguns registos rela- cionados com 0 culto, aos quais 0 regimento nao fazia qualquer refe- réncia. Com efeito, na mesa da Con- fraria, existiam «huns [livros..] em que se escreuiio os que se assen- taudo por confrades da Confraria desta santa Casa de todas as partes deste Reyno, & nelles estao tambem alguns milagres, & marauilhas que a Senhora obrou nella por meyo desta sua Santa Imagem |...» € 0 livro de assento das «mortalhas, & casos

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