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A Suprema Covardia

Sandra Galeotti
- 1ª Edição - Vivali Editora, 2004 -

Proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio


ou sistema, sem prévia autorização da editora.

Direitos reservados por Vivali Editora Ltda


vivali@vivalieditora.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Galeotti, Sandra
A suprema covardia : abuso e negligência
da criança(e seu impacto no cérebro em
desenvolvimento) / Sandra Galeotti. -- São
Paulo : Vivali, 2004.
Bibliografia

1. Crianças - Abuso sexual 2. Crianças - Maus


tratos 3. Crianças - Vítimas de abuso físico
4. Trauma psíquico 5. Violência familiar
I. Título II. Título: Abuso e negligência
da criança (e seu impacto no cérebro em
desenvolvimento)

04-5370 CDD- 306.745

Índices para catálogo sistemático:


1. Crianças : Vitimização : Patologia social 306.745

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Agradecimentos

Agradeço aos Professores Ricardo Arida e Lêda T. Martins, pelo


apoio, revisões e sugestões. E a Adolfo Morandini pelas ilustrações
do Capítulo 3.

Agradeço também às Dras. Ana Lúcia Ferreira, Hebe Signorini


Gonçalves e sua equipe, do Núcleo de Atenção à Criança Vítima de
Violência, do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira
(IPPMG/UFRJ), pela autorização de publicação (no Anexo desta
obra) dos relatórios das Oficinas sôbre “Violência contra a criança”,
realizadas durante o ano de 2003.

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“Nossos cérebros são esculpidos por nossas experiências da


infância. O maltrato é um cinzel que modela o cérebro para
o confronto com a adversidade às custas, porém, de feridas
profundas e permanentes”

“A sociedade colhe o que semeia pela forma como trata suas


crianças. O stress esculpe o cérebro para exibir uma gama de
comportamentos antisociais de natureza adaptativa. …o stress
desencadeia uma cascata de alterações hormonais que programa
permanentemente o cérebro da criança a lidar com um mundo
malévolo. Através desta cadeia de eventos, violência e abuso
passam de uma geração à outra, bem como de uma sociedade à
seguinte.”

Martin Teicher, MD., PhD.


• Diretor do Programa de Biopsiquiatria do Desenvolvimento – McLean
Hospital - Belmont, Massachusetts • Professor de Psiquiatria – Harvard
Medical School

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Parte I
Abuso e Negligência Versus Desenvolvimento Cerebral na Infância

• Introdução 7

• Capítulo 01 Da Natureza e Escopo do Abuso 11

• Capítulo 02 Reconhecendo os Sinais de Abuso 30

• Capítulo 03 Como o Ambiente Modela o Cérebro 44

• Capítulo 04 Conseqüências do Abuso na Infância 66

• Capítulo 05 Desordens Psiquiátricas na Criança Abusada e 91


no Adulto Sobrevivente ao Abuso na Infância

• Capítulo 06 Desenvolvimento Emocional e o Cérebro 125

Parte II
Reflexões sobre Intervenção e Tratamento de
Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso

• Capítulo 07 Ecossistemas Sócio-culturais que predispõem ao 148


Abuso e à Negligência

• Capítulo 08 Princípios Gerais da Avaliação da Criança no 170


Contexto de seu ambiente Sócio-Familiar

• Capítulo 09 Princípios Gerais da Intervenção e 186


Responsabilidades do Terapeuta

• Posfácio Somos Uma Espécie Muito Jovem – Mas Que 210


Rumo Devemos Tomar?

• Anexo Modelos Brasileiros – Outras Fontes 216


Bibliográficas e Leituras Recomendadas
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A UNICEF, United Nations Children’s Fund, estabeleceu, em seu plano


estratégico de médio prazo, para o período 2002-2005, cinco principais
metas, entre as quais, a proteção da criança contra a violência, abuso,
exploração e discriminação (ICEF/2001/13). Diz o texto: Proteção é um
imperativo universal e um direito de cada criança. Violência, abuso, negligência e
exploração ameaçam crianças por toda as suas vidas. Crianças, incluindo aquelas
que nasceram saudáveis, e jovens são mais vulneráveis do que adultos a serem
feridos, negligenciados, abusados e explorados. A sobrevivência delas está sob
risco e seu pleno desenvolvimento comprometido. Milhões de crianças abusadas e
exploradas estão sofrendo longe da vista, porque a violência contra crianças
ocorre dentro das famílias, nas escolas, comunidades e instituições.

Até recentemente, psiquiatras e psicólogos consideravam as experiências


traumáticas da infância como fatores causantes de condicionamentos e
desvios comportamentais, afetivos e cognitivos, passíveis de tratamento
pelos métodos tradicionais de psicanálise ou de psicoterapia, com
ou sem a administração coadjuvante de medicamentos ansiolíticos e
antidepressivos. Os avanços na compreensão de bioquímica cerebral,
demonstrando que a exposição prolongada – ou a exposição curta mas
intensa – a experiências traumáticas ou ao stress crônico, em qualquer
fase da vida, produziam alterações nos níveis de mensageiros químicos
que regulam o sistema nervoso central, levou à melhor identificação e
compreensão do papel dos neurotransmissores (moléculas bioquímicas e
hormônios) que regulam as diversas vias de atividade cerebral.

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À luz dessas descobertas, foram desenvolvidas novas drogas psiquiátricas


que atuam na regulação das sensações de prazer, saciedade, etc, trazendo
alívio, pelo menos temporário, aos sintomas associados com diversas
desordens neuropsiquiátricas, tais como síndromes depressivas, doença
bipolar, síndrome do pânico, stress pós-traumático, etc. A associação
desses novos medicamentos à psicoterapia trouxe de fato novos benefícios
a muitos pacientes, os quais passaram a ter aumentada a possibilidade de
recuperação plena.

No entanto, para uma parcela significativa de pacientes expostos


a situações crônicas de maus-tratos (abusos) e/ou negligência nos
primeiros anos de suas vidas, essa possibilidade de resgate pleno talvez
jamais venha a existir.

Diversos estudos utilizando tecnologias de imagem como a tomografia


compu-tadorizada, PETscan, SPECT, ressonância magnética funcional
e outras, têm demonstrado, nas últimas três décadas, que o cérebro da
criança sofre alterações estruturais irreversíveis quando cronicamente
exposto ao abuso ou à negligência durante os primeiros anos de vida.

Essas alterações estruturais podem ocorrer em diferentes regiões do


sistema nervoso central e estar presentes em mais de uma delas, tais
como sistema límbico (hipocampo, amígdala, etc), córtex pré-frontal,
corpo caloso, etc. Tais alterações estruturais causam o estabelecimento
de padrões neuroendócrinos específicos que, embora voltados ao
desenvolvimento de estratégias imediatas de adaptação e sobrevivência
da criança à situação de risco a que está exposta, determinará nela
padrões neuroquímicos de reações psico-emocionais, cognitivas e
comportamentais, semelhantes aos observados em veteranos de guerra
com síndrome de stress pós-traumático.

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Bruce Perry, psiquiatra pediátrico do Children´s Hospital de Houston


e pesquisador do desenvolvimento do cérebro durante a infância no
Baylor College of Medicine, Houston, Texas, demonstra, nos resultados
de suas pesquisas, que não somente o abuso sexual, mas também o
trauma resultante da negligência e o stress crônico causado pela violência
física e agressão verbal – em suma: o abuso tanto físico como emocional
– afetam seriamente o desenvolvimento do cérebro da criança, tanto
em sua arquitetura anatômica como em seu padrão de funcionamento
químico. Crianças que crescem sob o medo não conseguem assimilar informação
cognitiva, afirma Perry. Seus cérebros estão muito ocupados, vigiando a
professora para detectar gestos ameaçadores, sem ouvir o que ela está dizendo.
Este comportamento é conhecido como hipervigilância.

O impacto do abuso e da negligência reflete-se em todos os aspectos


da vida da criança e, se deixada sem socorro, proteção e tratamento
ainda durante a infância, deixará marcas indeléveis nos aspectos físico,
psicológico, comportamental, cognitivo, sexual, interpessoal, espiritual e
autoperceptivo do indivíduo adulto, segundo os estudos do Departamento
de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos e de outras agências
congêneres do Canadá, Reino Unido e da UNICEF.

Nos Estados Unidos, mais de 3.000.000 de novos casos de abuso infantil


são anualmente registrados – com pelo menos 50% deles cometidos
pela própria mãe (1) – e cerca de 300.000 menores são explorados pela
pedofilia segundo a UNICEF.

1. Estudo de 2001 do governo americano indica que 59,3% dos adultos abusivos
são mulheres e 40,7% são homens.

10 http://www.acf.hhs.gov/programs/cb/publications/cm01/figure4_1.htm

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Segundo Perry, estima-se que os casos registrados correspondam a cerca


de 5% apenas da incidência real de abuso e/ou negligência nos Estados
Unidos. No Brasil, não encontrei um registro central de dados de abuso
familiar; porém a Organização Internacional do Trabalho estima que
559.000 crianças são exploradas em regime de servidão no Brasil, que
conta ainda com aproximadamente 8 milhões de crianças negligenciadas
e/ou abandonadas vivendo nas ruas (dados do Banco Internacional do
Desenvolvimento), com a UNICEF estimando entre 100.000 e 500.000
crianças exploradas pelo mercado da pedofilia.

Com base em estudos encontrados na literatura científica, tentarei traçar,


nos próximos capítulos, um panorama geral do abuso infantil, tipos de
abuso e sinais indicativos dos mesmos e de suas conseqüências a longo
prazo para o indivíduo e seu futuro contexto sócio-familiar, sem nenhuma
pretensão, porém, de conhecer todas as respostas. Meu intuito é que este
esforço constitua um chamado de despertar a pais, tutores, professores,
psiquiatras, psicólogos, médicos, assistentes sociais, organizações não
governamentais, grupos de serviço comunitário e pastorais.

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O que explica não justifica.


Lao Tsé – Tao Te King

O Que É Abuso?

Em conferência promovida pelo Instituto Nacional da Saúde da Criança


e Desenvolvimento Humano, em 1989 (1), o painel de revisão das
pesquisas até então disponíveis sobre o assunto, recomendou que o
maltrato (abuso) fosse definido como comportamento em relação a uma
outra pessoa, que (a) extrapola as normas de conduta, e (b) acarreta
risco substancial de causar danos físicos ou emocionais. Explica ainda
que tais comportamentos podem consistir de ações ou omissões, tanto
intencionais como involuntárias. O termo maltrato da criança refere-se a
um amplo espectro de comportamentos que oferece risco ao bem estar
físico ou emocional da criança e do adolescente com menos de 18 anos de
idade, classificados em quatro categorias gerais:

1) Abuso físico;
2) Abuso sexual;
3) Negligência;
4) Abuso emocional.

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Abuso físico: Refere-se a qualquer forma de lesão corporal intencional ou


não, decorrentes de espancamento, punição física com objetos (chicote,
cintas, varas, ou ainda, atirar objetos na criança, tais como facas, garfos,
pratos, panelas, etc), queimaduras (com cigarro, líquido quente ou
vapor), mordidas, arranhões, unhadas, estrangulamento, punição física
severa (deixar a criança sem uma refeição como forma de castigo, ou em
pé no frio ou na chuva, trancada em um cubículo, acorrentada ao pé de
uma mesa, etc).

Inclui ainda uma forma de abuso denominada “Munchausen por


representação”, em que a mãe ou outro adulto induz um mal-estar físico
na criança para obter atenção e simpatia do médico e de outras pessoas
para si. (A mãe ou adulto neste caso assume o papel de “vítima”).
Transformar a criança em trabalhador doméstico ou rural, obrigando-a a
executar constantes tarefas exaustivas e negando-lhe o direito de brincar
e/ou estudar, é uma outra face do abuso físico que se interpenetra com a
negligência psico-emocional.

Abuso sexual: Refere-se a incesto ou ao estupro da criança por um familiar


ou um estranho, manipulação da genitália da criança, induzir a criança a
fazer sexo oral, expor a criança a situações sexuais e atos pornográficos,
rituais sexuais, prostituição da criança por familiar, adulto responsável
ou marginais do tráfico de menores.

Negligência: Esta área compreende uma vasta gama de omissões de


cuidados e ocorre tanto em lares como em orfanatos e outras instituições,
resultando no prejuízo físico, cognitivo e psicoemocional da criança.

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Exemplos de negligência incluem: omissão de cuidados de higiene


e alimentação; omissão na orientação moral e ética; descaso com a
freqüência e desempenho escolares; omissão de tratamento e assistência
médica; negligência emocional (falta de apoio, conforto, demonstrações
de afeto, indiferença aos problemas da criança, descrédito das queixas
da criança quanto a maus-tratos ou abusos sofridos nas mãos de babás,
outros familiares, amigos ou mesmo professores); omissão de supervisão
(a criança é deixada só por longos períodos, ou “solta na rua”, ou exposta
a situações de risco à sua integridade física, ou em companhia de pessoas
duvidosas) e, ainda, o abandono total.

Abuso emocional: O abuso emocional é uma das formas mais comuns de


abuso em famílias de todas as posições sócio-econômicas e se constitui
em um padrão de comportamento dos adultos que compromete o
desenvolvimento emocional e a auto-estima da criança. A forma mais
comum de abuso emocional é a humilhação e depreciação do caráter ou
das qualidades da criança, por meio de comparações destrutivas, críticas
e acusações constantes, insultos e agressões verbais, rejeição, provocações
e brincadeiras que ridicularizam e humilham o indivíduo, ou ainda,
informá-lo regularmente que será um fracassado na vida, ou amaldiçoá-
lo.

Segundo o Comitê Nacional para a Prevenção do Abuso da Criança dos


Estados Unidos (2), O abuso emocional inclui também a falha em oferecer amor,
apoio e orientação, necessários para o desenvolvimento psicológico da criança.

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Outras manifestações freqüentes de abuso emocional são o tratamento


rotineiro ríspido e sempre irritado da criança, culpar a criança pelas
infelicidades pessoais do próprio adulto, fazê-la sentir-se um fardo para o
pai, mãe ou responsável legal, chantagens emocionais, usar a criança para
confidências de problemas maritais ou outros problemas de pertinência
do próprio adulto, ou ainda atribuir-lhe responsabilidades morais ou
emocionais inadequadas à sua psique infantil, como nos casos em que
os papéis são invertidos e a criança passa a ser a confidente e sentir-se
responsável pelo bem estar do adulto.

Quem Abusa da Criança?

A análise de Bancos de Dados baseados em registros de Serviços de


Assistência Social, Boletins de Ocorrência Policiais e dos resultados de
pesquisas científicas americanos, canadenses, neozelandeses e europeus
demonstra que o agressor da criança pode ser um ou mais membros da
família (pai, mãe, avós, tios, etc), um pai adotivo casado com a mãe da
criança, uma madastra, uma babá ou empregado doméstico, um amigo
da família, um vizinho, ou ainda um professor, um tutor, um adolescente,
ou um estranho.

O abuso de crianças é registrado nas diversas camadas sócio-econômicas


e étnico-culturais, embora sua ocorrência varie quanto ao tipo de abuso
praticado e grau de incidência, de um para outro estrato sócio-cultural.

Os fatores de risco associados ao abuso infantil são variados, bem como


os diferentes perfis do adulto abusivo; mas a identificação desses fatores
não constitui uma regra diretamente determinante de abuso e, muito
menos, o justifica sob qualquer forma ou circunstância.

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Por exemplo, a maioria dos filhos abusados não se torna delinqüente


juvenil ou dependente de drogas; e muitos não serão pais abusivos. Por
outro lado, filhos bem tratados e nunca abusados podem tornar-se pais
abusivos.

O alcoolismo está ligado, com freqüência, à violência contra a mulher e


a criança; mas nem todos os alcoólatras são pais ou maridos (ou mães)
abusivos ou fisicamente violentos – embora o alcoolismo contribua para
outras formas de maltrato, como a negligência.

Consumo de drogas psicoativas, por outro lado, tem elevada associação


com violência familiar e abuso infantil. Pobreza e dificuldades econômicas
são fatores estressantes que contribuem para o abuso e a negligência
infantil; mas famílias pobres podem ser muito unidas e amorosas. Embora
o abuso e a negligência às vezes aconteçam em situações em que um pai
ou uma mãe cria sozinho seus filhos, não existe evidência de que isto seja
um fator de predisposição ao abuso. Adultos que tiveram uma vida de
privações e dificuldades econômicas durante a infância, podem tornar-se
pais abusivos ou, ao contrário, exageradamente protetores e generosos
com seus próprios filhos.

Embora certos adultos abusivos apresentem alguma desordem


psiquiátrica, os inúmeros estudos científicos até hoje realizados não foram
capazes de estabelecer, de forma consistente, um perfil psicopatológico
ou um grau significante de distúrbio mental necessariamente associado
ao maltrato e negligência da criança por seus progenitores (3).

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No entanto, a confirmação diagnóstica de um distúrbio psicopatológico


no pai ou na mãe, associado ao abuso de um menor, é um fator importante
na perda judicial da guarda da criança e proibição de visitas não
supervionadas por autoridade assistencial em diversos países (Canadá,
Reino Unido, Estados Unidos, Brasil, etc).

Diversos estudos têm tentado identificar as características de


personalidade de adultos abusivos, com o intuito de traçar parâmetros
que permitam ações preventivas e intervenções na identificação de
potenciais abusadores e na cessação do maltrato, em associação com cada
tipo de abuso (3).

Abuso físico - Estudos voltados para a identificação de fatores


envolvidos no abuso físico, identificaram um conjunto de características
de personalidade bastante freqüente em pais que maltratam seus filhos,
as quais se apresentam como um padrão que inclui três ou mais das
seguintes características.

São elas: baixa auto-estima, temperamento agressivo ou vingativo,


comportamento anti-social ou o seu oposto (grande atividade social
evitando ao máximo estar com os filhos), impulsividade emocional,
complexo de vítima, sentimentos de impotência e falta de controle sobre
a própria vida. Essas características, em pais abusivos, podem também
estar associadas ou não ao uso de drogas ilegais, alcoolismo, ou abuso
de medicamentos psicoativos, ou a distúrbios neuropsiquiátricos, como
ansiedade generalizada, episódios de depressão ou doença bipolar.

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Fatores estressantes tais como crise marital, frustrações profissionais


ou sociais, desemprego, incertezas econômicas ou isolamento social,
podem agir como o gatilho da violência física contra a criança, como
uma forma de ganho de poder psicológico por parte do adulto frustrado,
que descarrega sua frustração sobre um ente vulnerável e incapaz de se
defender. Geralmente o abuso físico tende a cessar quando a criança cresce
o suficiente para defender-se do ataque do adulto, contra-atacando-o (4).

Abuso sexual - Esta é uma das áreas mais pesquisadas no que diz respeito
ao abuso, na busca de um perfil psicopatológico ou biológico causal.
No entanto, nenhuma patologia específica ou categoria diagnóstica foi
consistentemente associada ao adulto molestador, como fator etiológico.
Novamente, o que se obteve foi um conjunto de características de
personalidade freqüentemente identificadas com a pedofilia e o incesto,
com dois perfis gerais opostos. Enquanto alguns molestadores de
crianças são tímidos, inseguros, têm baixa auto-estima, ou ainda exibem
desordens compulsivas, muitos pedófilos são indivíduos bem sucedidos,
líderes empresariais ou religiosos respeitados, ou exercem um papel
importante na comunidade. Este tipo de ofensa é muito mais comum por
parte de homens, embora se registrem casos de mulheres molestadoras
– tanto mães como babás.

Alguns fatores associados ao abuso sexual de crianças por adultos indicam


que o molestador busca satisfazer impulsos sádicos e de afirmação de
poder, ou ainda, descarregar sua raiva mal dirigida, através do incesto ou
da pedofilia (5). O uso de drogas ou o alcoolismo, embora presentes em
diversos casos de abuso sexual, são considerados fatores adjuvantes de
desinibição, visto que o desejo sexual pela criança e a predisposição para o ato
já estavam presentes (6).

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O estupro de crianças e mulheres é também comum em situações de


guerra, como recentemente registrado nos conflitos entre sérvios e croatas,
sérvios e kosovares e sérvios e bósnios, também no Congo e em outros
países onde essa violência é praticada corriqueiramente por soldados
e civis como uma forma de humilhar o “inimigo”. A UNICEF alertou
recentemente (terceira semana de abril de 2004) em reportagem da rede de
televisão CNN que meninos de seis a oito anos de idade são “recrutados”
por grupos militares e paramilitares no Congo para servirem de escravos
sexuais e os meninos um pouco mais velhos, como soldados.

Negligência - A negligência é um crime muito comum (ocorre em todos os


extratos sócio-econômicos), sendo uma das formas menos compreendidas
de maltrato da criança, devido às suas muitas nuances e à dificuldade de
defini-la em seus aspectos menos óbvios.

A negligência, como já vimos, é definida como a omissão de quaisquer dos


cuidados necessários à segurança, bem estar e pleno desenvolvimento da
criança e abrange, portanto, os aspectos físicos, emocionais, educacionais
e a proteção do menor. Vale também lembrar que omissão de orientação
da criança, ou seja, a não transmissão de valores éticos e morais, é também
uma forma de negligência (negligência moral). Portanto, as causas
da negligência também são diversas e sua ocorrência nem sempre é
intencional, podendo ser o resultado dos mais variados fatores, tais como
a falta de maturidade dos progenitores ou de formação e informação
adequadas dos pais ou adulto responsável. A negligência pode também
ocorrer como resultado de distúrbios psicológicos, uso de drogas,
alcoolismo, violência familiar, doença crônica, miséria, ignorância,
gravidez na adolescência, paternidade irresponsável, etc.

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No Brasil, temos um alto índice de negligência total da criança, sob a forma


de abandono e falta de supervisão do menor, com cerca de 8 milhões
de menores vivendo nas ruas, o que, sem dúvida, está associado não
somente a fatores econômicos mas também à violência familiar, drogas,
alcoolismo, paternidade irresponsável e impune e omissão de autoridades,
comunidade e líderes religiosos. Alguns estudos apontam para certas
características de personalidade de pais e mães que negligenciam seus
filhos, com ou sem estressores sócio-econômicos e principalmente nos
casos de negligência crônica (28-30).

O perfil estabelecido é o do adulto impulsivo, narcisista e infantilizado


que sofre da síndrome da futilidade, sempre em busca de autogratificação,
incompetente em fazer escolhas com responsabilidade no casamento,
maternidade/paternidade, ou no trabalho.

Abuso emocional - A etiologia do abuso emocional é também pouco


compreendida, devido à grande variedade que assume, tanto no que diz
respeito ao perfil de personalidade do familiar abusivo quanto ao escopo
sócio-cultural, familiar e econômico dos progenitores e familiares que
praticam este tipo de agressão contra a criança.

Esta parece ser a mais comum das formas de maltrato de crianças,


considerada também pelos pesquisadores da neurobiologia da criança
abusada como uma das mais perniciosas, com um impacto profundo no
desenvolvimento do padrão estrutural e neuroendócrino do cérebro de
suas vítimas – só comparável às piores formas de abuso físico e sexual (7,
8, 9).

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Indivíduos inteligentes, cultos e com nível de instrução superior podem


revelar-se praticantes contumazes do abuso emocional de seus filhos, da
mesma forma que um pai viciado em drogas ilegais, um psicótico bipolar,
ou um analfabeto embrutecido pelas privações sócio-econômicas de sua
condição.

Também não é incomum o abuso emocional estar associado a alguma


forma de abuso físico, como espancamentos freqüentes com cintas, socos,
pontapés, unhadas ou bofetadas no rosto.

Pais que são radicalmente contra a punição física, mas que praticam
o abuso emocional, são também considerados de alto risco para um
eventual mas severo episódio de abuso físico da criança, “como um
último recurso”, em que toda a raiva represada é descarregada de forma
brutal e, muitas vezes, fatal (10).

Certas características personalísticas do adulto que abusa fisicamente


a criança parecem ser comuns a este tipo de abuso também, tais como
baixa auto-estima, temperamento agressivo, vingativo ou intolerante,
comportamento anti-social ou fútil, impulsividade emocional, mau
humor e irritabilidade constantes, complexo de vítima, comportamento
manipulador.

Temperamentos competitivos e fortemente direcionados a atingir metas


ressentem-se de filhos que não correspondam às suas expectativas ou
que possuam um temperamento diferente do seu, considerando-o (se
for menino) um “maricas”, “perdedor”, “banana”, “burro”, e assim
por diante, não perdendo a oportunidade de compará-lo de forma
depreciativa e humilhante a um irmão ou irmã que melhor atenda às
expectativas do pai.

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Mas este perfil não é exclusivo de pais, sendo também observado


em mulheres, quando então o alvo do abuso é geralmente uma filha.
Alguns progenitores praticam o abuso emocional como uma estratégia
educacional e disciplinar equivocada, acreditando que, se “mexerem
com os brios da criança” esta vai atender às expectativas dos pais. Outros
apenas repetem o padrão que sofreram quando crianças nas mãos de seus
pais.

Atitudes e sentimentos nutridos pela mãe antes do nascimento de uma


criança que não é desejada, têm sido associados com o abuso infantil em
vários estudos (11, 12, 13, 14, 15). Mulheres com o perfil personalístico
supra descrito, podem tornar-se especialmente abusivas, tanto emocional
como fisicamente, em relação a uma criança nascida de uma gravidez
não desejada. A criança passa a ser o alvo de sentimentos de aversão e
ressentimento, sendo vista como a causadora de todas as mazelas pessoais
e interpessoais da mãe.

Outro aspecto muito comum do abuso emocional de crianças é o


aliciamento e manipulação dos sentimentos da criança contra a outra
figura parental. Isto é bastante comum em famílias em que o casamento
é problemático ou entre pais em processo de separação, ou já separados.
Um ou ambos os progenitores manipulam os sentimentos de seus filhos
para nutrirem raiva, desprezo e toda sorte de sentimentos negativos
contra o outro cônjuge, como uma forma de vingança por suas próprias
frustrações. A criança se torna, assim, um instrumento de vingança
emocional na guerra entre os pais - e a principal baixa nesse combate.

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Valores sócio-culturais certamente contribuem para o abuso físico e


emocional, principalmente em contextos culturais em que se considera
a criança uma propriedade dos pais e em certas populações rurais, onde
cada filho é mais uma mão de obra e cada filha é uma “rês” (i.e., novilha/
gado).

Tais percepções também contribuem para a omissão de adultos em


contato com a família abusiva ou até mesmo parentes (avós, tios, etc)
que não se sentem no direito de intervir. Embora assistam ou percebam
que a criança está sendo emocionalmente e/ou fisicamente maltratada, a
tendência dessas pessoas é, quando muito, dar conselhos cautelosos ao
adulto abusivo, freqüentemente subestimando a gravidade da situação
– ou ignorando simplesmente a questão “pois se trata de um problema
entre pais e filhos – eles sabem o que fazem...”.

Pais que não abusam de seus filhos e pais abusivos demonstram diferenças
cognitivas na forma como percebem a natureza e o comportamento da
criança e interpretam suas reações. Eles também diferem em suas atitutes
e expectativas quanto ao desenvolvimento dos filhos. Pais abusivos
tendem a atribuir características negativas e intenções malévolas a outras
crianças e pessoas de seu relacionamento interpessoal e aos seus próprios
filhos e demonstram grande reatividade física e irritabilidade em resposta
aos estados afetivos da criança, tanto os positivos como os negativos (16,
17, 18). Risos, ruídos de brincadeiras e atividades de crianças divertindo-
se irritam-nas ou incomodam; e possuem uma tendência a interpretar
o comportamento de seus filhos como intencionalmente provocador
e desobediente – enfim, uma sabotagem proposital ao bem estar do
adulto.

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Mães que abusam emocional ou fisicamente de seus filhos percebem


eventuais comportamentos negativos da criança como sendo a
manifestação de características negativas internas – defeitos inatos e
permanentes – daquele indivíduo e vêem os comportamentos positivos
como um fenômeno transitório. Por outro lado, mães que não abusam de
seus filhos possuem uma percepção exatamente inversa a essa (o positivo
é inerente à natureza do filho e o negativo é passageiro) (17, 18, 19).

Outra diferença entre pais e mães abusivos e não abusivos é claramente


observável na forma como interagem com a criança. Mães potencialmente
abusivas ou sabidamente abusivas percebem o atendimento das
necessidades de seus bebês como um fardo e um sacrifício pessoal e se
irritam rapidamente com o choro ou demandas da criança. Demonstram
também uma distância e falta de empatia emocional com os estados
afetivos da criança. Não são brincalhonas nem participativas nas fantasias
e alegrias dos filhos, evitam abraçá-los, beijá-los e mantêm a nível mínimo
o contato físico com seus bebês e crianças pequenas. A alegria da criança
as aborrecem e suas demandas irritam-nas. Pais e mães não abusivos
sentem grande gratificação em compartilhar das brincadeiras de seus
filhos, são receptivos aos estados afetivos da criança e sentem compaixão
e empatia pelas dificuldades dela.

A questão da perpetuação do abuso de uma geração à seguinte em linhagens


familiares é controversa, visto que se baseia em estudos retrospectivos
realizados com base em diferentes metodologias, definições e desenhos
diversos, muitas vezes sujeitos a vieses de interpretação – devido à forma
de inclusão da população estudada e a depoimentos não verificáveis
(20); e uns poucos estudos prospectivos (com o acompanhamento de
indivíduos vítimas de abuso na infância, durante a fase adulta jovem, de
formação de famíla e maternidade/paternidade).

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A taxa de probabilidade de que indivíduos abusados na infância tornem-


se pais abusivos varia, nesses estudos, de 90% (retrospectivos) a 18%
(prospectivos). No entanto, os estudos prospectivos tiveram um curto
acompanhamento da população estudada (cerca de um ano após o
nascimento do filho) (21, 22, 23, 24, 25). O abuso nem sempre tem início
nos primeiros meses de vida do filho.

Em alguns estudos restrospectivos de progenitores com um histórico de


abuso durante a infância e que não se tornaram pais abusivos, os seguintes
fatores protetores foram identificados:(25, 26, 27, 28).

1) receberam apoio social ou casaram com um cônjuge compreensivo,


que os valorizava e oferecia apoio emocional;

2) ainda durante a infância ou adolescência, tiveram o apoio de um adulto


(familiar, professor, ou amigo) que exerceu uma influência positiva em
sua auto-estima; ou tiveram oportunidade de serem ajudados em terapia
quando adolescentes ou no início da fase adulta;

3) possuíam um grau superior de inteligência que lhes permitiu identificar


o abuso – ainda na infância ou início da adolescência – e falar sobre seus
traumas com clareza, reconhecendo e responsabilizando o adulto abusivo,
direcionando assim sua raiva a ele e não si mesmos (através da culpa);

4) possuíam talentos e habilidades criativas ou intelectuais que


lhes permitiram desenvolver uma melhor auto-imagem, através do
reconhecimento de valores compensatórios próprios ou da admiração e
apoio recebidos de pessoas fora do contexto abusivo;

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5) possuíam boas habilidades interpessoais que lhes permitiram fazer


amigos e estabelecer laços afetivos positivos a partir da segunda fase da
infância ou da adolescência, fora do contexto abusivo;

6) buscaram apoio e alívio para suas angústias em estudos e práticas


religiosas ou espirituais, ainda durante a infância ou adolescência;

No entanto, cabe aqui uma ressalva em relação ao último item.


Preconceitos culturais e religiosos que tomam ao pé da letra o “honrar
pai e mãe”, com freqüência contribuem para bloquear a percepção pelo(a)
filho(a) do adulto abusivo como tal, fazendo-o sentir-se ainda mais
culpado e em conflito interior por ser proibido, por dogmas religiosos, de
sentir raiva, revolta ou ressentimento contra a figura paterna ou materna
abusiva. Quaisquer explicações ou insinuações por parte de conselheiros
ou religiosos que induzam a vítima a conformar-se e consentir com a
situação de abuso em que se encontra é, no mínimo, omissão de socorro e
abusiva por sua própria natureza.

Em contraste, esses mesmos estudos identificaram os seguintes fatores de


risco no contexto de adultos abusados na infância que se tornaram pais
abusivos (28-32):

1) inteligência medíocre e incapacidade de reconhecer o adulto abusivo


como tal, atribuindo a si mesmo a culpa do maltrato sofrido;
2) baixa auto-estima; sentimentos de culpa e inferioridade;
3) habilidades interpessoais deficientes, expressas na incapacidade de
estabelecer laços afetivos positivos e fazer amigos; ou ainda, de manter
as amizades conquistadas;
4) aceitação cultural de maus-tratos corporais;

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5) auto percepção pela criança de que é uma propriedade dos pais;


6) isolamento social;
7) dependência emocional da figura materna ou paterna transgressora,
expressa como submissão e esforço por conquistar sua aprovação
durante a fase adulta;
8) ausência de apoio social ou terapêutico.

Existe ainda muito a ser esclarecido quanto aos diversos fatores


significativamente determinantes das seguintes situações:

- a criança que não sofreu abuso mas que se torna um(a) progenitor(a)
abusivo(a);
- a criança não maltratada que não se torna abusiva de seus próprios
filhos;
- a criança maltratada que não se torna abusiva quando adulta;
- a criança maltratada que perpetua o abuso contra seus próprios filhos.

Cabe notar ainda que nenhum estudo estabeleceu, de forma consistente,


que o tipo de abuso sofrido será o mesmo infligido à geração seguinte,
por pais abusivos que foram maltratados na infância. Quanto à época
do início do abuso, este varia enormemente, com alguns casos tendo
início nos primeiros meses de vida, outros durante os três primeiros anos
de vida, ou ainda, após os cinco ou sete anos de idade. O abuso sexual
pode ocorrer em qualquer idade durante a infância ou ter início na pré-
adolescência ou no início desta. Outra variável refere-se aos diferentes
estilos de abuso praticados por um mesmo adulto abusivo (pai ou mãe)
em relação a diferentes filhos. Enquanto uma das crianças pode ser
especialmente abusada, uma outra pode ser emocionalmente ignorada e,
uma terceira, paparicada e aliciada como cúmplice do adulto.

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Nós somos apenas átomos desse grande corpo


que se chama Humanidade.
As calamidades do presente, não vencidas,
são o ônus terrível do futuro.
Rito Escocês Antigo e Aceito

Estima-se que apenas uma pequena parcela dos casos de abuso chegue
ao conhecimento de autoridades e agências assistenciais em todo o
mundo. Crianças maltratadas raramente contam o que está acontecendo
a elas, especialmente se os agressores forem seus próprios familiares, ou
alguém que cuida delas na ausência dos mesmos. Sentimentos de medo
de maiores castigos por falar, vergonha, culpa, ou medo de que não
acreditem nela, são alguns dos motivos do silêncio da criança abusada
(1, 2). Quando porém, apesar de tudo isso, a criança arrisca-se a contar a
um adulto o que lhe acontece, se este a ignorar ou não acreditar nela, os
efeitos podem ser ainda mais devastadores – especialmente se tal pessoa
for um familiar ou uma professora, com a qual a criança possui vínculos
afetivos e de confiança.

Por outro lado, muitas crianças não possuem parâmetros para perceber
como errado o que o adulto faz a ela, pois o abuso vem sempre
acompanhado de acusações e comentários que a depreciam e retratam-na
como merecedora do abuso por ser má, indigna, ingrata, fonte de desgosto
e aborrecimento para os pais “que se matam de trabalhar por ela”.

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Crianças abusadas são freqüentemente rotuladas desde pequenas


pelo progenitor abusivo como “ovelhas negras”, “sangue ruim”,
“imprestáveis”, inclusive quando falam delas a terceiros, familiares ou
não. Algumas mães abusivas gostam de afirmar para a criança que esta
não é de fato filha dela, mas que “foi encontrada em uma lata de lixo”,
ou “deixada na porta da casa”, cobrando a seguir obediência e gratidão à
criança pelo fato de tê-la acolhido.

Outras, comparam um filho ou filha favorita àquela que destoa das


expectativas da família, dizendo que esta última foi “trocada na
maternidade” ou “foi adotada” – como uma forma de tortura emocional.

Pais incestuosos com freqüência apresentam o ato do incesto à criança


como uma forma de castigo por um mal comportamento e, portanto,
“culpa dela”. Em muitos casos, outros familiares ou a própria mãe tendem
a ignorar sinais visíveis de abuso físico ou de incesto, simplesmente
porque não desejam encarar a verdade, o que constitui crime por omissão
culposa e negligência, na lesgislação de diversos países.

Da mesma forma, muitos maridos preferem olhar para o outro lado,


quando a esposa espanca severamente a criança, pois “fora isso, o
casamento é ótimo”. Em alguns casos, o adulto abusivo é alguém que
cuida da criança enquanto os pais trabalham.

Crianças vítimas de abuso são especialmente indefesas e carregam uma


enorme carga de dor, vergonha, culpa, terror e sentimento de desamparo
(3). Cabe, portanto, ao adulto não agressor, familar ou não, professor,
médico pediatra, enfermeiro, etc, aprender a reconhecer os padrões de
sinais que são indicativos de cada tipo de abuso.

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Prestar atenção nas mudanças súbitas e “sem causa aparente” do


comportamento da criança ou de seu corpo, ou ainda observar mudanças
de atitude em classe ou em relação a outras crianças. Enfim, aprender a
identificar padrões suspeitos de abuso.

No caso de pais não abusivos que deixam seus filhos pequenos sob
cuidados de terceiros, enquanto trabalham, vale também a observação
de muitos desses sinais e, no caso da criança espontaneamente relatar
maltrato, os pais devem levá-la a sério e investigar a questão. Muito
freqüentemente, quando um terceiro abusa física ou emocionalmente
a criança sob os seus cuidados, também a ameaça com mais punições,
no caso de ela contar aos pais ou a outras pessoas. Algumas famílias
deixam câmeras de vídeo ocultas ligadas enquanto estão ausentes para
se certificarem de que seus filhos pequenos não estão sendo vítimas de
maltrato ou negligência nas mãos de terceiros.

Cabe, no entanto, enfatizar que o que indica um provável caso de abuso


é o padrão, constituído de vários sinais ou de um conjunto de sinais
físicos, emocionais e comportamentais e sua freqüência repetitiva – e
não um desses fatores isolados.

Sinais de Abuso Físico: Sinais freqüentes de ferimentos, tais como marcas


de mordidas, manchas roxas em braços e pernas ou tronco, lacerações,
hematomas na face e têmporas ou “galos” na cabeça, marcas de unhas e
arranhões diversos, marcas de queimaduras e fraturas, cortes e luxações
freqüentes.

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Crianças fisicamente abusadas em idade escolar evitam contato físico


com outros, vestem roupas que escondam marcas de agressão (calças
compridas e camisas de mangas longas mesmo no verão), dão explicações
pouco convincentes e muitas vezes contraditórias para as causas de seus
ferimentos, chegam cedo na escola e protelam ao máximo a hora de voltar
para casa. Muitas demonstram dificuldades de relacionamento com
outras crianças, ficam alarmadas quando ouvem outra criança chorar,
demonstram sentir dor quando se movimentam ou quando alguém
as toca, reagem defensivamente quando acidentalmente esbarram
nela, mudam repentinamente de padrão de comportamento em classe
(queda do desempenho escolar, tornam-se distraídas e incapazes de se
concentrar), tornando-se agressivas e rebeldes ou retraídas e apáticas;
demonstram retraimento e temor na presença de um dos familiares ou
adultos responsáveis e podem também ter um histórico de fugir de casa.

Algumas características indicativas de pais ou familiares potencialmente


abusivos são: relações pessoais e conjugais problemáticas, dificuldades
econômicas ou desemprego prolongado de um dos progenitores,
fanáticos religiosos ou moralistas rígidos, baixa tolerância a frustrações,
são facilmente irritáveis, descrevem a criança a médicos, professores,
parentes ou conhecidos como uma pessoa ruim, problemática ou de
má índole que só lhes causa problemas, muitos são anti-sociais ou
desconfiados ou demonstram temer outras pessoas.

Podem ainda, em contraste, ser muito sociáveis e manter uma intensa


atividade social, evitando ao máximo o contato com a criança, excluindo-a
sempre que possível de seus momentos de lazer, decrevendo a si mesmos
como pais dedicados e “vítimas” dos filhos ou de uma das crianças em
particular, ter um histórico de violência familiar ou alcoolismo ou drogas,
dar explicações evasivas para os ferimentos da criança, levando-a a um
hospital ou médico diferente a cada novo “acidente”.
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Sinais de Abuso Sexual: O abuso sexual de crianças é uma agressão


hedionda mas nem por isso pouco comum. O Children´s Hospital de
Washington, D.C., registra que 10% dos casos atendidos de abuso sexual
ocorrem com crianças em idade pré-escolar e outros estudos revelam
que em 35% dos casos o molestador é um familiar, com 50% dos casos
ocorrendo ou na casa da criança ou na do ofensor (2, 3, 4).

A UNICEF estima que no Brasil entre 100.000 e 500.000 crianças são


atualmente exploradas por adultos no mercado de prostituição do menor.
Cabe ao pediatra, assistente social, professor e familiares estarem atentos
ao padrão de sinais indicativos de provável abuso sexual de crianças.

Sinais de abuso sexual em crianças pequenas: podem apresentar


dificuldade de andar ou sentar devido à dor; calcinhas ou cuecas podem
estar manchadas com sangue ou outros fluidos; podem reclamar de dor
ou coceira na região genital; estarem infectadas com doenças sexualmente
transmissíveis.

Entre os indicadores comportamentais, a criança pequena vítima de


abuso sexual pode repentinamente passar a relutar em ficar na companhia
de uma determinada pessoa, evitar contato físico com outras pessoas –
evitando ser abraçada, beijada ou colocada no colo – mostrar-se temerosa
e extremamente apegada a alguém com quem se sinta segura, apresentar
distúrbios do sono, tais como insônia, medo de dormir sozinha, enurese
noturna freqüente (urina na cama), pesadelos recorrentes e aterrorizantes.
Ela pode também repentinamente passar a ter um comportamento
sexualizado, desenvolvendo um interesse por seus órgãos genitais que
não é próprio de sua idade e maturidade biológica ou passar a utilizar
termos sexuais e novos nomes para partes de seu corpo.

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Crianças pequenas (3 a 6 anos de idade) podem ainda subitamente passar


a masturbar-se abertamente ou simular atos sexuais com outros irmãos ou
amigos. Algumas crianças abusadas, dessa faixa etária, passam a agarrar
a genitália de adultos ou os seios e tentar beijar na boca outros adultos ou
crianças.

Crianças em idade escolar podem apresentar uma súbita queda em seu


desempenho e desenvolver distúrbios de atenção, hiperatividade, ou
passar a buscar contatos sexuais com outras crianças. Crianças sexualmente
abusadas não têm a capacidade de distinguir entre relacionamentos não
sexualizados e relacionamentos em que o sexo é um componente natural e
passam a introduzir o elemento sexual em todos os seus relacionamentos.
Embora a maioria das crianças sexualmente abusadas não mencione o
fato, algumas reportam o abuso e, neste caso, devem ser levadas a sério e
encaminhadas ao pediatra e psicólogo para avaliação.

Outros indicadores de um possível abuso sexual dizem respeito a atitudes


de pais ou guardiães, tais como uma atitude superprotetora, possessiva e
ciumenta em relação a uma determinada criança, histórico de alcoolismo
ou uso de drogas, hábito de trancar-se com a criança a sós em aposentos
por longos horas, ou de expor a criança a material pornográfico, vestir a
criança com roupas eróticas, falar abertamente de suas façanhas sexuais
para a criança ou na presença dela, encorajá-la a participar de atos
promíscuos ou incentivá-la a prostituir-se.

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Durante a adolescência e idade adulta, algumas vítimas de abuso


sexual na infância apresentam distúrbios em sua sexualidade, tais como
aversão a sexo, nojo, incapacidade de ter orgasmo, dor durante o ato
sexual; enquanto outras podem desenvolver, já na pré-adolescência,
uma tendência à promiscuidade, com grande risco de gravidez na
adolescência.

Sinais de Negligência: Os indicadores de negligência podem ser de


ordem física (higiene, sinais de desnutrição, condições de saúde), ou
de ordem emocional e variam entre crianças em idade pré-escolar e em
idade escolar.

- Higiene (em qualquer idade): pele suja, mau cheiro, cabelos ensebados,
despenteados e embaraçados, unhas sujas e compridas, roupas sujas.

- Saúde: sonolência constante, falta de vitalidade, cansa-se facilmente,


bolsas sob os olhos, resfriados constantes, assaduras ou erupções de
pele, coceiras, diarréia freqüente, arranhões ou cortes freqüentemente
infeccionados.

- Desnutrição: pede ou rouba alimentos com freqüência, está sempre


faminta, coleta restos de lanche deixados por outras crianças, engole
avidamente alimentos quase sem mastigar; em vez de lanche, leva para a
escola dinheiro e gasta tudo com guloseimas, podendo ser obesa devido
a desordens nutricionais e alimentares.

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- Situações na escola: vai para a escola em jejum, não tem lanche nem
dinheiro, adormece na classe, não faz as lições de casa, destrói o material
escolar e os brinquedos, quebra objetos e destrói propriedade escolar, falta
muito às aulas ou chega atrasada, é agressiva com os colegas, perturba a
aula, mostra desinteresse pelo que é ensinado, tem problemas de atenção,
podendo ser apática ou hiperativa.

- Indicadores de negligência em bebês e crianças pré-escolares: baixa


resposta a estímulos, quase não sorri, não demonstra curiosidade, chora
com freqüência, bate a cabeça repetidamente contra a parede ou móveis,
balança o tronco repetitivamente, chupa o cabelo ou o dedo, torna-se
agitada sem razão aparente e permanece apática por longos períodos.

Alguns indicadores de pais negligentes são: não cumprem o que


prometem, não seguem as recomendações recebidas de orientadores
educacionais ou do médico, faltam às entrevistas, compromissos e
reuniões, negam que a criança esteja com problemas quando alertados,
recusam ajuda da escola ou de outras fontes, usam drogas ou bebem,
vida familiar desorganizada ou caótica, histórico de terem sido abusados
ou negligenciados na infância, sofrem de depressão ou de uma doença
crônica, têm pouco contato com outros familiares, deixam a criança só e
sem supervisão por longas horas do dia.

Sinais de Abuso Emocional: Crianças emocionalmente abusadas


apresentam uma variedade de transtornos comportamentais e distúrbios
emocionais.

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Quando o abuso tem início na primeira infância, podem apresentar uma


síndrome de enurese noturna até os 5, 6 ou 7 anos de idade, além de
dificuldade para dormir, insônia, pesadelos recorrentes, roem unhas,
chupam dedos, podem apresentar distúrbios da fala (gaguejar quando
intimidada, por exemplo), demonstrar fobias, compulsões e obsessões e
ter ataques súbitos de raiva ou choro histérico.

A partir dos cinco ou seis anos, a criança pode começar a expressar opiniões
negativas sobre si mesma, tornar-se muito ansiosa por agradar outras
crianças e/ou adultos e obter aprovação. Pode ainda tornar-se tímida,
passiva, deprimida e alienada, com tendência a isolar-se ou a permanecer
longe da pessoa abusiva o maior tempo possível. Outras crianças podem
ainda tornar-se altamente reativas e agressivas ao menor sinal de ameaça,
desenvolver comportamento depressivo e auto-destrutivo e até mesmo
nutrir idéias de suícido. Algumas crianças emocionalmente abusadas
pensam e falam constantemente na morte e fazem inúmeros planos de
suícidio.

Estudos americanos demonstram que pelo menos 17% de menores de


idade que idealizam o suicídio tentam se matar. Outras crianças idealizam
matar o progenitor abusivo ou a família inteira e o número anual crescente
de assassinatos de pais e familares cometidos por crianças entre 8 e 16
anos de idade nos Estados Unidos demonstra a realidade do problema da
idealização – principalmente em uma sociedade onde o porte de armas é
livre e praticamente toda casa tem pelo menos uma arma de fogo.

Adultos abusivos culpam sempre a criança e colocam-se na posição de


vítimas bem intencionadas da “índole malévola” do filho.

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Depreciam ou ridicularizam a criança na presença de outras pessoas ou


para os outros filhos, são manipuladores, frios e distantes, são rápidos
em criticar e fazer julgamentos negativos, rejeitam a criança por palavras
e atitudes, demonstram indiferença aos problemas da criança ou ao seu
bem estar, aceitam com relutância demonstrações de afeto por parte da
criança, mostram abertamente preferências quando existe mais de um
filho na família, geralmente comparando-os e estimulando a rivalidade
entre eles. Mães abusivas com um casal de filhos, com freqüência têm
como alvo do abuso a menina enquanto superprotegem o menino,
aliciando-o como cúmplice do abuso.

Pais abusivos podem fazer o inverso; mas em algumas famílias com vários
filhos e de estrutura patriarcal, o pai abusivo (principalmente quando é
o único provedor) com freqüência deprecia e agride emocionalmente as
filhas e super favorece os filhos.

Impacto Geral do Maltrato no Psicossoma da Criança: Nos últimos


trinta anos, tem ocorrido um aumento exponencial de estudos
científicos realizados por médicos neurologistas e psiquiatras sobre as
conseqüências do maltrato infantil no desenvolvimento psico-emocional e
neuroendócrino de crianças. Alguns desses estudos também compararam
os padrões neuroendócrinos de crianças bem amadas com os de vítimas
de abuso, ou ainda, as imagens tomográficas e de técnicas funcionais de
imagens dos cérebros desses dois tipos de indivíduos, com o intuito de
identificar o impacto do abuso no desenvolvimento estrutural e fisiologia
cerebral da criança agredida e compará-lo ao desenvolvimento cerebral
da criança normal. O mesmo tem sido feito em estudos com adultos
sobreviventes ao abuso na infância e adultos não abusados.

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Mais adiante, trataremos desse tema em detalhes, bem como dos modelos
de terapias hoje existentes para crianças abusadas. Antes porém, é
preciso ter em mente que ninguém sai ileso desse tipo de agressão
durante a infância e algumas desordens psiquiátricas e distúrbios de
personalidade estão hoje associados de forma consistente a indivíduos
sobreviventes ao abuso, embora nem todos os portadores desses mesmos
distúrbios pertençam necessariamente a esse grupo. Algumas desordens
neuropsiquiátricas encontradas em crianças abusadas e sobreviventes do
abuso na infância são: Desordem de Síndrome do Stress Pós-Traumático,
Distimia, Depressão Maior, Desordem de Múltipla Personalidade,
Desordens Dissociativas, Ansiedade Generalizada e Desordem de
Personalidade Extrema (Borderline Personality Disorder).

Embora diversos fatores compensatórios possam atenuar os efeitos


destrutivos do abuso, como exposto no capítulo anterior, quebrando
assim o ciclo de perpetuação do abuso de uma geração à seguinte – ou
libertando suas vítimas de padrões auto-destrutivos e permitindo que
muitos indivíduos sobreviventes ao abuso tenham uma vida satisfatória
em sua fase adulta – tudo indica que um número aparentemente alto de
vítimas de abuso e negligência não tem a mesma sorte.

Populações carcerárias apresentam uma alta taxa de indivíduos com


histórico de abuso e negligência na infância e posterior envolvimento
com drogas ou autoria de crimes violentos.

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No Brasil existe uma percepção enviezada dos problemas da violência


social e maltrato/negligência da criança, atribuídos diretamente ao
“terceiromundismo” - pobreza e falta de instrução da população – mas
sem levar muitas vezes em conta uma gama de outros fatores culturais,
também determinantes, como o tipo de valores sócio-culturais que a
população assimila através da mídia televisiva, a cultura da paternidade
irresponsável e impune que permeia vários estratos sociais, a prática
de institucionalização de menores não infratores junto com menores
infratores, etc.

No entanto, países ricos também apresentam um alto índice de violência


contra a criança, com os Estados Unidos e Portugal encabeçando a lista.
Um estudo da UNICEF de 2003 mostrou que no mínimo 3.800 crianças
morrem anualmente em decorrência do maltrato físico por parte de pais
em nações desenvolvidas do Ocidente. Segundo esse estudo, realizado em
27 nações desenvolvidas, entre os países com menor índice de casos de
abuso infantil (e morte por abuso) estão a Espanha, Grécia, Itália, Irlanda
e Noruega; com França, Bélgica, República Tcheca e Nova Zelândia
apresentando índices 4 a 6 vezes mais altos que os primeiros. O estudo
identificou como campeões em índice de abuso contra a criança e morte
em decorrência de abuso os Estados Unidos e Portugal, com índices entre
10 e 15 vezes maiores do que os da França, Bélgica, República Tcheca e
N. Zelândia (6). Em 1995, outro documento da UNICEF (7) relatava que
aproximadamente 300.000 menores estavam envolvidos em prostituição
nos Estados Unidos. Dados como esse indicam que abuso e negligência
não são um produto direto da pobreza, mas implica a existência (ou
ausência) de outros valores sócio-culturais que facilitam a violência
contra a criança.

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Pesquisas da UNICEF também indicam que em países onde as atitudes


e valores sociais e tradições culturais facilitam o abuso, a criança está
desprotegida; em contraste com sociedades que condenam quaisquer
formas de violência contra a criança como tabus e nas quais os direitos da
criança são amplamente respeitados por costume e tradição (8).

Segundo os indigenistas Orlando e Cláudio Villas Boas, em relato pessoal


à autora há alguns anos, em tribos indígenas brasileiras de cultura
pura (i.e., não influenciadas pela civilização), tais tabus protetores da
criança existem e são amplamente praticados. Mas quando tais valores
são perdidos através da “civilização” do índio, a violência doméstica se
instala, juntamente com o alcoolismo, a prostituição e a favelização dessas
populações.

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REFERÊNCIAS

1. Perry, M. A., Doran, L. D., & Wells, E. A. (1983). Developmental and behavioral
characteristics of the physically abused child. Journal of Clinical Child Psychology,
12(3), 320-324

2. Children´s Bureau, Administration for Children and Families. U.S. Department of


Health and human Services. National Clearinghouse on Child Abuse and Neglect
Information. Dec. 2003.

3. Children´s Hospital, Washington, D.C.

4. King County Rape Relief, Washington, USA

5. Consequences of Child Maltreatment.


http://www.hc-sc.gc.ca/hppb/familyviolence/html/nfntsconsequencevio_e.html

6. Marta Santos Pais and Paolo Pinheiro. First Comparative Analisys of Child
Maltreatment in Rich Nations. UNICEF Innocenti Report Card. Innocenti Research
Centre, Florence, Italy (Sep. 2003).
http://www.unicef-icdc.org/presscentre/indexNewsroom.html
11-14
7. Breaking the walls of silence: a UNICEF background paper on sexual exploitation
of children. July 1994 http://www.unicef.org/pon95/chil0015.html

8. Child Protection. Eight elements of a protective environment.


http://www.unicef.org/protection/index_environment.html

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Ao procurarmos por soluções para as pragas da violência


em nossa sociedade, é imperativo que se evite
o Falso Deus das Soluções Simples.
A neurobiologia de comportamentos heterogêneos e complexos
é complexa e heterogênea.
Bruce D. Perry, M.D., Ph.D.

Para entendermos em sua amplitude as conseqüências do abuso e


negligência da criança na vida do indivíduo e seu impacto no tecido
social, precisamos primeiramente compreender como se desenvolve o
cérebro da criança durante a infância, a partir do nascimento.

Ao nascermos, nosso cérebro contém aproximadamente 100 bilhões de


células nervosas chamadas neurônios e representa cerca de 10% do peso
corporal total do recém- nascido. Por exemplo, o peso do cérebro de um
bebê pesando 3 kg ao nascer é de cerca de 300g, continuando a aumentar
até atingir o tamanho que terá quando adulto, em algum momento entre
os seis e os 14 anos de idade (90% aos três anos, 95% aos seis e 100% na
adolescência) (20-23). No adulto, o peso do cérebro é de 1,3 kg a 1,4 kg
e corresponde a cerca de 2% do peso corporal. O crescimento da massa
cerebral após o nascimento deve-se principalmente a dois fatores: o
aumento no tamanho dos neurônios e o aumento no número de células
gliais que ajudam na formação de conexões entre os neurônios, entre
outras funções (1).

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A transmissão de informação entre neurônios é denominada sinapse e


acontece em espaços especializados das células nervosas onde ocorre
a transferência de moléculas químicas produzidas pelo organismo,
denominadas genericamente “mensageiros químicos”, de um neurônio
para o outro. Existem três tipos de mensageiros químicos que mediam
sinapses no sistema nervoso central: hormônios, neuropeptídeos e
neurotransmissores.

A partir do nascimento, nos primeiros meses de vida, as sinapses ou


conexões entre neurônios são formadas a uma taxa muito elevada e
estruturam diversos circuitos neuronais de transmissão de informação,
especializados para processar diferentes percepções e sensações. A
espessura e quantidade de células nervosas recrutadas na formação e
organização de cada um desses circuitos ou sistemas neurais varia entre
os indivíduos e depende da repetição da experiência que aquele circuito
processa.

Entre o sexto e o décimo-segundo mês de vida, a quantidade de circuitos


sinápticos atinge o seu máximo, quando então ocorre um decréscimo
seletivo, com a perda das sinapses não utilizadas com freqüência e a
retenção daquelas freqüentemente estimuladas. A quantidade e tipo
de circuitos sinápticos que se formam em decorrência dessa interação
sensorial com pessoas e estímulos exteriores no primeiro ano de vida
são essenciais para as etapas seguintes do desenvolvimento – embora o
cérebro seja um órgão muito plástico e capaz de se adaptar e aprender ao
longo de toda a vida.

O desenvolvimento cerebral, a partir do nascimento, se dá de forma


hierárquica, a partir das estruturas mais interiores para as mais exteriores.

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A repetição de um dado estímulo – por ex., a visão do rosto da mãe -


forma um circuito sináptico específico e exclusivo para o reconhecimento
do rosto materno o qual é reforçado todas as vezes que o bebê vê a mãe.
Esse padrão sináptico será mantido através da repetição, sendo portanto
dependente-de-uso. O mesmo vale para todos os demais estímulos que se
repetem, de forma que o cérebro forma conexões neuronais específicas e
estabelece padrões de funcionamento através das experiências que colhe do
ambiente nos primeiros meses e anos de vida.

Os sistemas neuronais são específicos a cada tipo de estímulo ou


experiência e mediados por neurotransmissores também especializados,
que se organizam como padrões neuroquímicos no processamento
das informações de cada sistema neuronal. A natureza da experiência
(agradável, confortável, desagradável, assustadora, frustrante, neutra, etc)
e seu grau de repetição, determinará diferentes densidades de receptores
para diferentes neurotransmissores nas células que se interconectam em
cada sistema neural.

Por exemplo, sistema neural de vínculo emocional com a mãe, sistema


neural de processamento de sensações de prazer, etc. Cada vez que uma
dada experiência de prazer ativa um dado sistema, suas sinapses recebem
sinais químicos que induzem a síntese e a oferta de neurotransmissores
que processam sensações de prazer nos intervalos sinápticos entre as
células nervosas daquele sistema, reforçando aquelas conexões neurais
e fortalecendo a “memória neuroquímica” de prazer associada àquele
tipo de experiência (por ex., o cheiro da mãe amorosa, sua voz, seu rosto,
a temperatura de seu corpo, o sabor do leite – enfim, experiências que
constroem o vínculo com a mãe). Desta forma, tanto a quantidade quanto
a qualidade dos estímulos a que se é exposto desde o nascimento irão
determinar o modo básico de funcionamento do cérebro de cada indivíduo.

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Estou me referindo aqui aos estímulos necessários à formação daqueles


sistemas neuronais essenciais para o desenvolvimento natural do
cérebro (vínculos emocionais sadios com a mãe, sensação de segurança e
conforto do bebê, estímulos sensoriais adequados ao desenvolvimento
de sistemas neurais de interação e comunicação com o meio do qual
ele depende, etc) – e não à estimulação forçada e artificial que esteve
muito em voga há alguns anos, visando “programar” o cérebro da criança
para fazer dela um gênio. O bom atendimento das necessidades físicas
e emocionais da criança em seu primeiro ano de vida lançarão as bases
neuronais para o desenvolvimento de sua estrutura psico-social e forma
de expressão comportamental.

O Cérebro e Suas Estruturas Funcionais

Sistema Nervoso Central (SNC) - É composto pelo cérebro e pela medula


espinhal. A medula espinhal envia ao cérebro sensações colhidas em
órgão internos e os estímulos sensoriais e motores recebidos pela pele,
musculatura, braços, pernas, etc, que são enviados pelo sistema nervoso
periférico ao cérebro.

O cérebro é um órgão complexo, composto de diversas estruturas com


funções especializadas que controlam tanto as atividades orgânicas
essenciais para a manutenção da vida (respiração, temperatura corporal,
funções endócrinas, digestão, reflexos, circulação sanguínea, etc) quanto
as responsáveis pelo processamento de percepções e sensações colhidas
do ambiente à nossa volta.

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É também responsável pelas diferentes emoções (medo, prazer, amor,


raiva, alegria, tristeza), recebendo e interpretando sinais internos enviados
tanto pelo próprio corpo quanto os colhidos no ambiente através da visão,
audição, tato, degustação e olfato.

O cérebro é composto por estruturas maiores que se repetem de


forma simétrica nos dois hemisférios – direito e esquerdo – os quais
são interconectados por um feixe de fibras nervosas denominado corpo
caloso. Diversas estruturas funcionalmente especializadas do cérebro
estão contidas nessas estruturas maiores, a saber:

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1) Tronco cerebral - constituído pelo Mesencéfalo, Bulbo Raqueano,


Ponte de Varólio (ou protuberância anular) e Cerebelo:

a) Mesencéfalo ou cérebro médio - recebe informação visual e auditiva


e retransmite impulsos para o córtex e aqueles recebidos do córtex para
outras áreas.

b) Bulbo Raqueano - é uma extensão da medula espinhal e intermedia


informações entre o cérebro e o sistema nervoso periférico, possuindo
centros para a regulação do batimento cardíaco, constrição vascular e
função respiratória.

c) Ponte de Varólio - contém 4 dos 12 pares de nervos cranianos: Quinto


par, nervos trigêmeos (3 ramificações: oftálmica, maxilar, mandibular),
Sexto par, nervos abducentes (movimentação ocular), Sétimo par, nervos
faciais, e Oitavo par, nervos vestíbulo-cocleares (nervos do ouvido interno
que controlam a audição e o equilíbrio corporal)

d) Cerebelo ou pequeno cérebro - coordena movimentos corporais,


coordenação motora e controla o equilíbrio. Pesquisas recentes
demonstram que o cerebelo está também envolvido na coordenação e
organização de vários processos cognitivos e racionais (18,19).

2) Cérebro Anterior ou Prosencéfalo - é composto pelo Diencéfalo e o


Córtex:

a) Diencéfalo - contém uma série de estruturas funcionais: tálamo,


metatálamo, epitálamo, hipotálamo e partes do terceiro ventrículo.

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b) Córtex (ou massa cinzenta) - é a maior estrutura do cérebro humano


e dos mamíferos superiores e subdivide-se em diversas áreas funcionais
especializadas e interconectadas entre si e com outras estruturas do
cérebro no tronco cerebral. O córtex de cada um dos hemisférios se
subdivide em: lobo frontal, lobo parietal, lobo occiptal e lobo temporal.

Para o assunto central desta obra, é importante familiarizar o leitor


com algumas estruturas e sistemas funcionais que dizem respeito ao
desenvolvimento dos padrões neuroendócrinos que determinam o modo
de perceber e reagir ao ambiente externo, modelando padrões emocionais,
comportamentais e cognitivos do indivíduo, a partir da exposição a
experiências. Essas estruturas são:

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1) O Sistema Límbico integra as atividades de partes do tálamo, hipotálamo,


cerebelo, mesencéfalo e regiões corticais, envolvendo um conjunto de
subestruturas interdependentes, tais como a amígdala (cerebral), córtex
cingulado anterior (ou giro cingulado), hipocampo, septo (ou istmo) e
núcleos da base (ou ganglios da base). O sistema límbico se conecta com
outras áreas do cérebro e regula emoções, memórias, processando ainda
aspectos da comunicação e comportamento sócio-emocional.

2) O tálamo ou corpo talâmico é composto por duas pequenas estruturas


gêmeas, que integram e organizam estímulos sensoriais, antes de enviá-
los para a amígdala, regiões do córtex cerebral e outras regiões do sistema
límbico que continuarão a processar os sinais enviados pelo tálamo.
Desencadeia as reações neuro-endócrinas de prontidão lutar-ou-fugir,
que são cruciais para a sobrevivência animal (e humana).

3) O córtex cerebral é subdivido em 47 áreas, de acordo com as funções


em que cada área cortical está envolvida, tais como motora (movimento
voluntário), linguagem, visão, audição, olfato, percepção somatosensorial,
reação comportamental, etc.

O córtex cerebral também integra as funções mentais superiores, tais


como pensamento abstrato, juízos de valor (valores morais e éticos,
avaliação custo versus benefício), resolução de problemas, planejamento e
atividades conscientes.

4) O cerebelo (i.e., pequeno cérebro) se localiza na parte posterior da fossa


craniana, atrás do bulbo cerebral. É composto de dois hemisférios laterais
com uma estrutura denominada vermis no meio delas. O cerebelo se liga
ao cérebro por meio de três pares de pedúnculos.

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Controla a coordenação de movimentos voluntários, aprendizado motor


e memória de funções motora-vestibulares.

5) O hipotálamo compreende vários núcleos que controlam e integram


funções do sistema nervoso autônomo (i.e., funções vegetativas), como
processos endócrinos (i.e., produção de hormônios) e diversas funções
somáticas tais como fome, sede, sono, temperatura corporal. Localiza-se
na base do diencéfalo e está conectado à glândula hipófise, a qual interage
com todas as demais glândulas do organismo. O hipotálamo é portanto
uma parte importante do sistema hipotalâmico-hipofisário-adrenal
(HHA) que regula a resposta ao stress.

6) O hipocampo é responsável pela formação de memórias de longa


duração e permite a comparação de situações presentes com experiências
semelhantes do passado, dessa forma sendo crucial na tomada de decisões
e para o processo de aprendizado tanto no homem como em animais.

7) A amígdala possui o formato de uma amêndoa e se localiza próxima


ao hipocampo na região antero-inferior de ambos os lobos temporais.
Está envolvida na transmissão de estímulos recebidos do tálamo tanto
para o hipocampo quanto para outras regiões (áreas corticais e núcleo
septal), possuindo um papel importante no processamento e controle
de emoções, tais como, a formação de vínculos afetivos (amor, amizade,
memória emocional) bem como raiva, medo e mecanismos de luta-ou-
fuga decorrentes do reconhecimento de perigo ou ameaça.

8) O corpo caloso é uma massa de fibras nervosas localizada na parte


inferior da fissura que separa os dois hemisférios.

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O Corpo caloso é a estrutura que interconecta ambos os hemisférios


e integra as percepções e funções de ambos, proporcionando uma
representação integrada das experiências, estímulos e processos
cognitivos. Quando esta estrutura é pouco espessa ou se encontra
comprometida, não ocorre essa integração, como demonstram testes
realizados com pacientes de epilepsia que tiveram essas conexões do
corpo caloso cirurgicamente removidas (2).

Mensageiros Químicos do SNC - Outro conceito importante para o


entendimento da influência do meio ambiente no estabelecimento
de padrões neuroendócrinos do cérebro é o de neurotransmissores,
hormônios e neuropeptídeos que também atuam em receptores
especializados, localizados nos intervalos sinápticos nas células nervosas.
Receptores são complexos protéicos que funcionam como “fechaduras”,
só aceitando moléculas cuja conformação se encaixe naquele receptor
específico, mais ou menos como uma chave.

Diversos tipos de hormônios e neurotransmissores participam da


transferência de mensagens (informações) entre células nervosas,
formando vias sinápticas específicas – algumas delas percorrendo
grandes distâncias dentro do organismo. Alguns neurotransmissores e
seus receptores são especializados no processamento de sensações de
dor, outros de prazer, ou de saciedade, medo, alegria, tristeza, disposição
física, fadiga, sono, reações de luta-ou-fuga, etc. Cada emoção e cada
sensação utiliza um mensageiro químico específico que é oferecido
a receptores específicos, distribuídos em quantidades variadas nos
intervalos sinápticos, para processamento de informação nas diversas
vias sinápticas.

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Diversos tipos de hormônios e neurotransmissores participam da


transferência de mensagens (sensações) entre células nervosas, formando
vias sinápticas específicas. Um neurônio ativado libera mensageiros
químicos nos receptores do neurônio seguinte, que por sua vez é ativado
e retransmite a informação para o próximo neurônio, até que a sensação
chegue a centros especializados do cérebro para processamento e ativação
de respostas regulatórias diversas. Vamos descrever brevemente alguns
desses mensageiros químicos (3,4):

Serotonina: a partir do triptofano presente na dieta, a serotonina é


produzida nos núcleos rafe do bulbo cerebral, sendo uma reguladora de
humor, a partir da qual a glândula pineal também sintetiza o hormônio do
sono, ou melatonina. Níveis normais de serotonina e a existência de níveis
normais de receptores para serotonina no cérebro são essenciais tanto para
o equilíbrio e bem estar emocional do indivíduo, como para a manutenção
de padrões normais de sono. A deficiência desse neurotransmissor, ou a
insuficiência de receptores para serotonina nas sinapses, ou ainda, a sua
rápida remoção do intervalo sináptico por enzimas, causa irritabilidade,
tristeza, intolerância a ruídos, insônia. Desequilíbrios nas vias sinápticas
de serotonina causam uma alteração em cascata sobre as vias metabólicas
de outros neurotransmissores e hormônios e podem induzir depressão
severa e até mesmo suicídio ou homicídio.

Dopamina: atua nos centros cerebrais que processam sensações de


gratificação, prazer, sentimentos maternais ou paternais (lobo frontal e
no sistema límbico), senso de humor. Dopamina também atua regulando
a atividade e o relaxamento neuromuscular; e sua deficiência leva ao
enrigecimento muscular e tremores. A doença de Parkinson é causada
por deficiências nas vias metabólicas da dopamina.

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Norepinefrina: a dopamina é também utilizada pela glândula supra-


renal na síntese de norepinefrina e adrenalina. A norepinefrina é um
neurotransmissor responsável por sensações de energia, motivação e
disposição física, através da ativação do metabolismo basal e aumento de
oferta de glicose no cérebro e de energia à musculatura. A adrenalina é um
hormônio recrutado em situações em que o indivíduo se sente ameaçado
ou em perigo, pois participa da mobilização do impulso de lutar-ou-fugir
– além de possuir outras funções estimulatórias essenciais na fisiologia de
vários tecidos e órgãos.

Serotonina, dopamina e norepinefrina pertencem a um grupo de moléculas


denominadas monoaminas. A quantidade e tempo de permanência
desses neurotransmissores no intervalo sináptico são regulados por
uma família de enzimas denominadas MAO (monoamina oxidase).
Síntese excessiva ou deficiente de MAO induz desequilíbrio nos níveis
de monoaminas, podendo causar episódios de ansiedade paroxística ou
crônica, depressão, comportamento violento, ou surtos psicóticos.

GABA (gamma butyric acid ou ácido gamabutírico): é um neurotransmissor


encontrado em altas concentrações nos cérebros de pessoas saudáveis,
correspondendo a 40% dos níveis totais de neurotransmissores. GABA
é essencial para a habilidade de lidar com situações de stress, desafios,
resolver problemas e administrar conflitos. Sua deficiência leva à
ansiedade, ataques de pânico, fobias, tremores, espasmos e até convulsões,
pois GABA é um regulador dos níveis de excitabilidade neurológica.

Alterações dos níveis de GABA ou de seus receptores devido à exposição


prolongada a situações de stress (ameaças, insegurança emocional) ou ao
stress intenso (perigo à vida, vítimas de seqüestro, violência, acidentes
quase fatais – com ou sem morte de outras pessoas) é um dos fatores
importantes no desenvolvimento da síndrome do stress pós-traumático.
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Acetilcolina: promove a habilidade de prestar atenção, concentrar-se em


tarefas, regulando também uma das fases da formação de memórias. Sua
deficiência está associada a diversos distúrbios cognitivos e de atenção.

Neuropeptídeos: alguns aminoácidos (i.e., unidades estruturais que


compõem as diferentes proteínas), tais como glutamato, triptofano,
serina, inositol, fenilalanina, tirosina, treonina, aspartato, arginina,
etc, participam de diferentes estágios da neuroquímica do sistema
nervoso, atuando como neuropeptídeos que modulam a atividade de
neurotransmissores – ou mesmo como neurotransmissores.

O glutamato e o aspartato, por exemplo, têm um papel importante


na ativação do processo conhecido como Potenciação de Longa
Duração (PLD) que é responsável pela formação da memória. PLD foi
primeiramente descoberto no hipocampo e posteriormente observado no
tálamo e amígdala (5).

Hormônios: a glândula supra renal também produz cortisona em


resposta a estímulos da hipófise, além de hormônios androgênios
precursores de testosterona e estrogênio, os quais também atuam no
cérebro e influenciam estados emocionais, comportamentais e físicos. A
compreensão da interação entre neurotransmissores e hormônios, levou
à criação de um novo campo de pesquisa, a neuro-endócrino psiquiatria.
A melatonina é o hormônio regulador do sono, sendo sintetizada a partir
da serotonina pela glândula pineal, localizada no interior do cérebro.

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Desenvolvimento Pós-Natal do Cérebro

Os seres humanos são primatas e como as demais espécies de primatas,


vivem em grupo, assim como muitas outras espécies de mamíferos, tais
como lobos, leões, golfinhos e baleias. A sobrevivência dessas espécies
depende da eficácia de sua organização social e os indivíduos dentro de
cada grupo dependem uns dos outros para sua sobrevivência individual
e segurança. Em muitas dessas espécies, os filhotes passam um período
considerável dependendo do grupo para alimentá-los e protegê-los,
enquanto seus cérebros se desenvolvem, até que atinjam a maturidade.

O ser humano vem ao mundo completamente indefeso e dependente de


seu grupo familiar para sobreviver. Como animais sociais, nossos cérebros
foram evolu-cionariamente especializados para estabelecer as conexões
sinápticas necessárias ao gradual desenvolvimento de habilidades sociais
ao longo da infância – pois estas são cruciais à sobrevivência do indivíduo.
A partir do sexto mês de vida, a atividade metabólica nas áreas cerebrais
que regulam a interação com o ambiente e pessoas que convivem com o
bebê aumenta de forma acentuada.

O cérebro da criança aprende a reconhecer como seguros e agradáveis


determinados rostos, ambientes e situações, através da experiência
coletada a partir do nascimento. Esses rostos e locais familiares causam
sensação de segurança e conforto, enquanto rostos e ambientes estranhos
passam a ser percebidos como ameaçadores até prova em contrário.
No entanto, diversos estudos dos últimos dez anos indicam que o bebê
começa a exercitar sua visão muito antes dessa fase (6, 7, 8, 9,10). Bebês
mostram um interesse por rostos logo nas primeiras semanas de vida e
aprendem a reconhecer e reagir aos adultos que cuidam deles.

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Bebês criados em ambiente familiar carinhoso e altamente sociável são


mais expostos a estímulos sensoriais e fazem mais conexões sinápticas
favoráveis ao posterior desenvolvimento de um “cérebro social” (11).

Do ponto de vista neuroendócrino, Bruce Perry (12) explica que todos os


sinais sensoriais, tais como cheiros, sabores, vozes, ruídos, calor, cores, formas,
texturas, iniciam uma cascata de processos celulares e moleculares que alteram a
neuroquímica e a arquitetura celular, o que acaba por determinar tanto a estrutura
como o modo de funcionamento do cérebro. Aqueles padrões de ativação neuronal
mais freqüentes tornam-se representações internas indeléveis ou “memórias”.
Desta forma, a experiência cria um molde de processamento, através do qual
todos os novos estímulos serão filtrados.

Portanto, as diferentes experiências repetidas com freqüência nos


primeiros meses de vida formam vários sistemas neuronais especializados
e modalidades de memória, como memória motora, memória visual,
auditiva, cognitiva, memória afetiva e assim por diante. Esses padrões
primários serão armazenados para o processamento de futuras
experiências, as quais serão comparadas a eles. Quando novos estímulos
sensoriais acontecem, eles excitam a atenção e induzem a curiosidade e
o impulso de investigação, de forma que o cérebro vai fazendo novas
representações e integrando várias informações sensoriais, na construção
de representações cada vez mais complexas da realidade externa e
interna.

Por outro lado, como a criança basicamente depende daqueles que


cuidam dela para sua sobrevivência nos primeiros anos de vida, seu
cérebro estabelece fortes associações afetivas com essas pessoas e sente-se
ameaçado e inseguro quando elas se ausentam, mesmo que por alguns
momentos.

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A qualidade da interação emocional dos adultos com o bebê e com a


criança pequena estabelecerá o modo de processamento de interações
emocionais dela, com o qual todas as experiências posteriores dessa
natureza serão comparadas.

Embora nosso cérebro não seja uma “folha de papel em branco” ao


nascimento, diversas áreas do cérebro humano encontram-se em um
estado apenas parcialmente funcional e ainda desorganizadas. Durante
a infância, elas amadurecerão gradual-mente em uma ordem seqüencial
e hierárquica, desenvolvendo suas respectivas especialidades funcionais,
tais como: sensoriais, motoras, afetivas, cognitivas, verbais, etc.

Cada uma dessas capacidades se desenvolve e amadurece de forma


seqüencial e ordenada.

As estruturas mais internas e primitivas (i.e., antigas do ponto de vista da


evolução neurobiológica animal) são as primeiras a serem ativadas, pois
de seu funcionamento depende o atendimento de necessidades básicas
e imediatas de sobrevivência do recém-nascido, tais como alimentar-se
e obter ajuda – calor, conforto, segurança, cuidados – através do choro,
reflexos motores, organização e refino das vias neurais de percepção
sensorial (tato, degustação, visão, audição e olfato). Gradualmente, áreas
funcionais mais complexas vão sendo ativadas e organizadas, tais como
as regiões corticais e o sistema límbico, responsáveis pelo aprendizado,
pensamento, memória, modulação emocional, comportamento,
habilidades sociais e interpessoais. O desenvolvimento de todas essas
capacidades depende de experiências e estímulos coletados pelo cérebro
em sua interação com objetos, pessoas, ruídos, vozes, movi-mentos,
cheiros, etc. – enfim, estímulos sensoriais e de sua repetição.

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Como já mencionado, conexões sinápticas são formadas em grande


quantidade e velocidade nas primeiras semanas de vida, em função
dos diferentes estímulos recebidos do mundo à sua volta, tais como
cheiros, sabores, vozes, texturas, temperaturas, rostos, movimentos. No
entanto, somente aquelas conexões reutilizadas com freqüência serão
mantidas, organizando-se em sistemas neurais específicos durante o
desenvolvimento pós-natal e estabelecendo representações internas da
realidade. Futuramente, esses sistemas neurais e suas representações
estarão sujeitos a novas modificações e reorganizações, em função de
novas experiências e mudanças hormonais, pois o cérebro aprende e
se adapta constantemente ao longo da vida. No entanto, os sistemas
neurais formados, reforçados e mantidos durante o desenvolvimento
pós-natal e a primeira infância servirão de base fundamental para todas
as experiências e futuras adaptações do cérebro maduro.

Citando Bruce Perry (12), Essa capacidade “dependente do uso” na formação


de uma “representação interna” do mundo exterior ou interior é a base para o
aprendizado e a memória. ...Enquanto a experiência pode alterar e modificar
o funcionamento (do cérebro) de um adulto, a experiência literalmente
fornece a estrutura organizacional (do cérebro) de um recém-nascido ou
criança.

O resultado do desenvolvimento seqüencial é que, à medida em que diferentes


regiões estão se organizando, elas requerem tipos específicos de experiências
que estimulam as funções específicas de cada região (por ex., estímulo visual
no período de organização do sistema visual) para se desenvolverem de forma
normal. Esses períodos do desenvolvimento são denominados períodos críticos ou
sensitivos.

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Embora existam controvérsias sobre os períodos críticos, a visão de


Perry, Teicher e outros vem sendo corroborada por novos experimentos
e achados no que se refere àqueles períodos envolvidos na formação
de sistemas neurais de organização progressiva e hierárquica das
estruturas básicas emocionais e sócio-cognitivas nos primeiros 3 anos de
vida. Experimentos com modelos animais demonstraram que quando
ocorre privação de determinados estímulos durante o período crítico
de desenvolvimento e organização dos centros alvos desses estímulos,
o animal não se torna plenamente funcional naquele tipo de habilidade,
como seus pares não privados de estímulo adequado (14, 15,16).

A qualidade, quantidade e variedade apropriada de estímulos recebidos


durante esses períodos críticos do desenvolvimento determinarão o grau
de densidade dos sistemas sinápticos formados (i.e., maior número e
variedade de conexões neuronais em cada área funcional especializada) e
sua eficiência (velocidade de transmissão de informação – o que depende
da quantidade de camadas de mielina envolvendo os axons) e conexões
adequadas com outras áreas interdependentes e complementares do
cérebro para cada um desses sistemas neuronais (17).

O primeiro impulso do cérebro é a sobrevivência e, portanto, o


reconhecimento de pessoas e situações que promovam a sobrevivência,
oferecendo segurança e cuidado. Por esta razão, a criança desenvolve,
a partir dos primeiros meses de vida, um vínculo emocional natural
com os que que dela cuidam, proporcionando conforto e segurança.
Comportamentos e situações assustadores, desconfortáveis ou dolorosos,
são percebidos pelo cérebro como um risco à sobrevivência e ativam os
sistemas neuroendócrinos (i.e., vias sinápticas e mensageiros químicos)
que processam o medo e o stress.

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As vias sinápticas do stress armazenam memórias e estabelecem


associações a respeito de situações traumáticas ou de risco, criando
mecanismos de respostas reflexo-motoras, emocionais, cognitivas e
comportamentais específicas que serão evocadas em futuras situações
semelhantes.

Do ponto de vista evolucionário, isso é importante para que o indivíduo


aprenda a evitar situações de risco à sua própria vida. Quando no
entanto essas situações são predominantes, freqüentes e repetitivas na
experiência da criança, induzem alterações adaptativas neuroendócrinas
e arquiteturais nos sistemas neurais, que a especializam para a
sobrevivência nessas situações; mas em detrimento de outras áreas de
fundamental importância para um desenvolvimento pleno e saudável do
cérebro.

Isso ocorre porque o cérebro é um órgão muito plástico que modifica


seus padrões sinápticos e neuroquímicos para sobreviver em condições
especiais, tais como situações de perigo, trauma físico ou emocional e
privações, tanto no adulto como na criança. Porém, durante a fase de
desenvolvimento e maturação pós-natal do cérebro (recém-nascidos
e crianças) essa plasticidade é uma faca de dois gumes. A exposição
prolongada ou crônica a condições de stress (guerras, negligência,
violência entre seus familiares ou contra a criança) ativarão e reforçarão
modos de funcionamento neuroquímicos que a especializarão em
sobreviver e lidar apenas com um mundo brutal e malévolo. Essas serão
também as bases neurobiológicas de processamento das representações
cognitivas da realidade, através das quais as experiências e percepções
futuras desse indivíduo serão filtradas.

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Experiências de desafio e frustrações ensinam uma lição importante


de sobrevivência ao indivíduo, o qual necessariamente será exposto a
obstáculos, problemas, incertezas, frustrações e pressões diversas ao
longo de sua existência, sendo portanto um ingrediente necessário ao
seu amadurecimento. No entanto, situações traumáticas freqüentes e
repetitivas, de medo intenso ou de insegurança crônica, das quais a
criança não consegue escapar nem se defender, condicionam a percepção
do mundo exterior através do molde sináptico do medo (sistema neuro-
endócrino do stress) e causam alterações profundas nas outras vias
metabólicas de neurotransmissores, alterando seus níveis no cérebro, a
quantidade de seus receptores nas células nervosas – e a própria quantidade
de neurônios de outros sistemas – com um aumento de receptores para
mensageiros químicos do stress (adrenalina, norepinefrina, testosterona,
cortisona) e diminuição de receptores e de vias sinápticas que processam
prazer, gratificação, confiança, relaxamento, cognição, memória, e seus
neurotransmissores (serotonina, dopamina, GABA, acetilcolina, etc) (18,
19).

Esta alteração adaptativa visa preparar o cérebro da criança para a situação


de “guerra” em que ela se encontra e equipá-la com a agressividade e/ou
os mecanismos de escape que a permitam sobreviver sob ameaça e perigo
constantes.

Termino este capítulo citando novamente o Dr. Bruce Perry: O que somos
quando adultos é o resultado do mundo que experimentamos quando
crianças. O modo de funcionamento de uma sociedade é o reflexo das
práticas de educação de crianças dessa sociedade. ...Como sociedade,
achamos mais importante exigir horas de treinamento formal para se
dirigir um automóvel do que o treinamento formal para a paternidade.

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REFERÊNCIAS

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matter in healthy infants and children. Cereb. Córtex 11 (2001): pp. 335-342.

4. Psychopharmacology. Lecture 7;9/22/99 www.nemc.org/psych/psylec99.htm

15 5. Roger D. Masters and Michael T. McGuire (eds). The Neurotransmitter Revolution.


Southern Illinois University Press (1994).

6. Joseph E. LeDoux. Emotion, Memory and the Brain. Scientific American (Aug.,
2002): pp. 66-67.

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Science 290; (2000): pp1582-1585.

8. Johnson, M.H., et al. Newborns´preferential tracking of face-like stimuli and its


subsequent decline. Cognition 40 (1991): Pp 225-230.

9. Yamada, H. et al. A milestone for normal development of the infatile brain detected
by functional MRI. Neurology 55 (2000): pp 218-223.

10. Born, P., et al. Change of visually induced cortical activation patterns during
development. Lancet 347 (1996) 347-543.

11. De Bellis, M.D., Keshavan, M.S., Clark, D.B. et al. Developmental Traumatology,
Part 2: Brain Development. Biological Psychiatry, Vol. 45, Nr. 10: pp 1271-1284, May
15, 1999.

12. B.D. Perry. Brain Structure and Function I – Basics of Organization.


www.ChildTrauma.org

13. B.D. Perry. Brain Structure and Function I – Basics of Organization. p. 7


www.ChildTrauma.org
16
14. B.D. Perry. Brain Structure and Function II – Special Topics informing work with
Maltreated Children www.ChildTrauma.org

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PANDORA - Conteúdo Virtual

15. Plotsky, P.M. Meaney, M.J. Early, postnatal experience alters hypothalamic
corticotropin-releasing factor (CRF) mRNA, median eminence CRF content and
stress-induced realease in adult rats. Brain Research. Molecular Brain Research
18(3);1993: pp 195-200.

16. Born, P. et al. Change of visually induced cortical activation patterns during
development. Lancet 347 (1996): p. 543

17. Understanding the Effects of Maltreatment on Early Brain Development. National


Clearinghouse on Child Abuse and Neglect Information. http://nccanch.acf.hhs.gov/
17 (In Focus, October 2001)

18. Ladd, C.O., Huot, R.L., Thrivikraman, K.V., Nemeroff, C.B., Meany, M-.J.,
Plotsky, P.M. Long-term behavioral and neuroendocrine adaptations to adverse
early experience. Progress in Brain Research, 122(2000): pp. 81-103

19. Heim, C., Newport, D.J., Heit, S., Graham, Y.P., Wilcox, M., Bonsall, R., Miller,
A.H., Nemeroff, C.B. Pituitary-adrenal and autonomic responses to stress in women
after sexual and physical abuse in childhood. J. Am. Assoc. 284(5), 2000:592-597.

20. Inside the Teenage Brain. Interview with Jay Giedd. (2004) http://www.pbs.org/
wgbh/pages/frontline/shows/teenbrain/interviews/giedd.html
18

21. Misia Landau. Deciphering the Adolescent Brain (Harvard Medical School
– Psychiatry). The Harvard University Gazette. (AWSNA WHSRP Research Material
– 2004)

22. Inside the Teenage Brain. Interview with Deborah Yurgelun-Todd. (2004)
http://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/teenbrain/interviews/
19
todd.html

23. The National Advisory Mental Health Council Workgroup on Child and
Adolescent Mental Health Intervention, Development, and Deployment. “Blueprint
for Change: Research on Child and Adolescent Mental Health.” Washington, D.C.:
2001. PP. 40-45.

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A saúde e criatividade de uma comunidade


é renovada em cada geração
através de suas crianças.
A família, comunidade, ou sociedade
que compreende e valoriza suas crianças, floresce –
a que não o faz, está destinada ao fracasso.
Bruce Perry

Relato de Casos

Caso 1. Em 1994 a polícia de Boston resgatou uma criança de 4 anos


desnutrida e em condições deploráveis, de um apartamento imundo.
Suas mãos estavam muito queimadas e investigações posteriores
demonstraram que sua mãe, uma viciada em drogas, havia queimado
as mãos da criança com água fervente, como punição por ter comido a
refeição preparada para o namorado da mãe, após ter sido expressamente
proibida de fazê-lo. Depois de queimá-la, deixou-a sem nenhum cuidado
médico por dias no apartamento, sozinha. Foi necessário transplante de
pele para que as mãos da criança recuperassem sua função, antes de ser
encaminhada para adoção (1).

Caso 2. Menino de 3 anos, único filho, pais de classe média alta. Todos
as noites, quando o pai chegava em casa, a mãe se lamuriava do imenso
trabalho que a criança dava, de como era rebelde, desobediente e difícil.
O pai então surrava o menino e colocava-o no berço.

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Quando o pai chegava tarde, o garoto não conseguia dormir, esperando


pela surra, antes de poder adormecer. Certa vez, o pai ausentou-se por
vários dias e, ao retornar, a criança agora com 5 anos, viu-o entrar na sala
sem o braço direito (ele havia perdido o braço em um acidente de carro).
O menino sentiu uma grande alegria, pois concluiu que o pai não mais
seria capaz de surrá-lo.

Mais tarde na vida, desenvolveu um terrível sentimento de culpa, com


efeito quase paralizador sobre sua vida adulta, por ter sentido alegria
com a desgraça do pai naquela ocasião (2).

Caso 3. Casal de filhos, pais ricos e bem relacionados, sempre ausentes


em viagens ou atendendo a compromissos sociais – emocionalmente
frios e distantes dos filhos. As crianças ficavam sob a guarda de uma
governanta e de vários empregados. A governanta era violenta e abusiva,
agredindo constantemente as crianças tanto física quanto verbalmente,
especialmente a menina. Aos 6 anos de idade, a menina tentou contar aos
pais o que se passava na ausência deles e foi chamada de “mentirosa e
mimada”.

Os abusos continuaram até a criança ter 14 anos de idade, quando reagiu


às agressões da governanta, a qual, a partir de então, passou a temê-la e
deixou de importuná-la.

Essa menina não se tornou uma mãe abusiva, revelando-se amorosa e


protetora de seus filhos. No entanto, ainda está tentando lidar em terapia
com as feridas do abandono parental, os traumas da infância e o impacto
disso nas escolhas que fez em outras áreas de sua vida.

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Caso 4. Menina, a mais nova de quatro filhas. Mãe viúva, abusiva,


especialmente com ela, espancando-a brutalmente (socos, pontapés,
batia a cabeça da criança contra a parede) e obrigava-a a realizar todos
os trabalhos domésticos após a escola. Criança tímida raquítica (“peito
de pombo”), olhos tristes e sempre assustados, ombros sempre arcados
e costas curvadas, cabisbaixa, extremamente submissa e prestativa com
todos a sua volta – ansiosa por agradar. As irmãs mais velhas se casaram
e saíram de casa. A mãe voltou a se casar e a menina, então com 12 anos,
apanhava não só da mãe, mas também do padastro, a ponto de ter ossos
quebrados, olho roxo, hematomas na cabeça, pelo menos uma vez ao
mes. A partir da adolescência, trabalhava como secretária durante o dia
e estudava a noite, dando todo o seu salário para a mãe, por exigência
desta. Aos 18 anos, apaixonou-se por um homem 22 anos mais velho e
emocionalmente indisponível. Após alguns anos, conseguiu um bom
emprego em outra cidade e saiu de casa, mas continuou mantendo contato
com a mãe e, quando esta ficou novamente viúva, passou a cuidar dela.

Casou-se após os trinta e cinco anos com homem bem mais velho,
problemático, verbalmente abusivo e de difícil convívio, mostrando-se
sempre submissa e cordata no relacionamento com ele. Começou porém
a definhar fisicamente até o ponto de esqualidez. Aos 45 anos, suicidou-se
ingerindo veneno.

Caso 5. Quatro irmãos (dois casais), o mais velho, menino de seis anos, a
mais nova, bebê de seis meses, quando os pais se divorciaram. Após uns
poucos meses, o pai raptou as crianças e saiu do país de origem, vindo
residir no Brasil.

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Nomeou o menino de seis anos “responsável” pelo cuidado e bem


estar dos mais novos, enquanto procurava trabalho e uma babá para
as crianças. Escolheu uma babá alemã, 14 anos mais velha do que ele,
viúva e com filhos já adolescentes. Tanto a babá como o pai das crianças
concordavam que filhos devem ser educados com “mãos de ferro”. Os
meninos passaram a ser o alvo principal das punições físicas da babá e
também do pai, a quem ela fazia relatórios diários sobre comportamento,
desempenho escolar, nível de cooperação com as tarefas domésticas,
etc. Apanhavam de cinta, de cabo de vassoura, socos na cara, sempre
que não correspondiam aos padrões estabelecidos para eles. Quando a
babá relatava desentendimentos entre os meninos, o pai os obrigava a
lutar boxe entre si. O pai também era intolerante e verbalmente abusivo,
sempre desmerecendo os filhos. O mais velho sentia-se responsável pelo
bem estar dos irmãos e tentava protegê-los dos acessos de raiva da babá.
Protegia especialmente a mais nova, uma criança triste e muito comportada
que tentou suicídio aos 11 anos de idade, para a qual o irmão mais velho
assumiu o papel de “mãe”, quando a babá finalmente os deixou.

Apesar de todo esse sofrimento, era generoso, tolerante com os defeitos


alheios e sempre pronto a ajudar amigos e irmãos. Mas tinha baixa auto-
estima, era muito tenso, como se estivesse “engolindo sapos” o tempo
todo: falava baixinho e se mostrava conformado com a sua infância,
como se tivesse merecido o maltrato. Revelou-se um ótimo pai para
seus próprios filhos, apesar de um casamento complicado e pontuado
por períodos de dificuldades profissionais e financeiras. No final de seu
casamento começou a beber. Continuou buscando a aprovação do pai até
recentemente, quando finalmente se afastou dele.

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Caso 6. Segundo de quatro filhos, garoto vivaz, inteligente e de


boa índole. Tornou-se o preferido da mãe, a qual abusava física e
emocionalmente da filha mais velha, ignorava emocionalmente o terceiro
filho e estabelecera uma relação de co-dependência com a filha caçula.
A mãe fazia-se sempre de vítima do marido junto a terceiros e difamava
a filha mais velha a amigos, familiares e a colegas de trabalho; colocava
as crianças contra o pai, desmoralizava-o junto às crianças na ausência
dele. Na presença do marido, comportava-se como mãe “exemplar” e
reclamava constantemente da filha mais velha, a qual a partir dos 8 anos
de idade, foi encarregada de lavar e passar toda a roupa da casa, lavar
pratos e panelas do almoço e jantar, fazer a mamadeira dos irmãos mais
novos e cuidar deles na ausência da mãe. A mulher teve vários amantes
durante o matrimônio, inclusive o pediatra de seus filhos, sem muita
preocupação em esconder esse comportamento, conhecido pelas duas
crianças mais velhas e metade da cidade onde viviam. O filho preferido
era superprotegido, suas iguarias favoritas eram preparadas e escondidas
dos outros filhos para seu exclusivo consumo. Embora essa criança fosse
saudável, a mãe o tratava como se fosse doente, a ponto de vizinhos e
amigos indagarem se ele sofria de alguma doença grave.

A mãe fazia seus deveres de casa por ele e, quando o menino estava com
oito anos, passou a dar-lhe os calmantes e barbitúricos que ela própria
consumia, alegando que “ele era muito nervoso”. A partir da quinta série,
o desempenho escolar da criança caiu e o menino brigava e apanhava na
escola com freqüência. Com a separação dos pais, viveu em companhia
dos avós maternos em outra cidade por dois anos, onde tornou-se o
melhor aluno de sua classe em uma escola vocacional, considerada, na
época, a de melhor qualidade de ensino do estado.

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Voltando a viver com a mãe aos 12 anos de idade, esta passou a dar-lhe
os medicamentos psicoativos que consumia, outra vez. O desempenho
escolar do menino voltou a se deteriorar e, após surpreender a mãe na
cozinha bulinando-se com um amante, em uma tarde em que saiu mais
cedo da escola, passou a se envolver com drogas. Primeiro maconha e, aos
16 anos passou a usar heroína, que a mãe complacentemente financiava
e comprava de traficantes “para que o filho não tivesse contato direto
com eles”. Aos 17 anos, graças a uma denúncia feita a autoridades pela
irmã mais velha, o menino foi internado para desintoxicação e apoio
psicoterápico por seis meses. Ao receber alta, optou por viver longe da
mãe, sob a tutela do pai.

Relato aqui esses casos de amigos queridos (Casos 2 a 6), como uma
homenagem a eles, pelo tanto que sofreram e ainda sofrem – e para dar
ao leitor uma dimensão real do problema do abuso e da negligência.

Para mim, eles são heróis e veteranos de uma guerra na qual a principal
vítima é a alma da criança. Apesar das estatísticas desfavoráveis, nenhuma
dessas pessoas tornou-se cruel ou abusiva, seja em relação a seus próprios
filhos, seja em relação ao cônjuge ou a outras pessoas de seu convívio
pessoal ou profissional. E eu as conheço e fui testemunha delas ao longo
de muitos anos. São sobreviventes das tentativas de assassinato da alma
infantil, por aqueles que deveriam, acima de tudo, amá-las e protegê-
las nos anos de suas vidas em que são mais inocentes, vulneráveis e
completamente dependentes de seus pais. Esses amigos são meus heróis
e heroínas, pois, apesar de gravemente feridos e mutilados em diversos
aspectos psico-emocionais, não perpetuaram a crueldade sofrida.

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Todas essas pessoas nasceram em famílias de classe média ou famílias


ricas, tinham pais bem informados e com considerável cultura, o que
– apesar de minha minúscula amostragem – corrobora os resultados de
diversos estudos sobre a ausência de fronteiras sócio-econômicas para o
problema do abuso e negligência da criança.

Conseqüências do Abuso e Negligência no Desenvolvimento


Cerebral

Até o ínício da década de 80, acreditava-se que os distúrbios emocionais e


comportamentais decorrentes de traumas fossem fenômenos de natureza
puramente psicológica. Hoje sabemos que não é assim.

Estudos com eletroencefalograma (EEG) de adultos que haviam sido


vítimas de incesto na infância, realizados por Robert W. Davies e
colaboradores em 1978 (1) na Yale University School of Medicine,
revelaram que 77% deles exibiam anormalidades clinicamente
significativas e 27% eram convulsivos. Em 1984 o Dr. Martin Teicher (1)
desenvolveu um teste de avaliação para distúrbios no sistema límbico
e em 1993 ele e seus colaboradores apresentaram os resultados de um
estudo com 253 pacientes psiquiátricos adultos.

Pouco mais da metade dos participantes relatava ter sofrido abuso


físico ou sexual ou ambos durante a infância. Os resultados dos testes
mostraram que os indicadores de distúrbios no sistema límbico eram
38% mais altos nos pacientes que haviam sofrido maltrato físico, quando
comparados aos que não haviam sido maltratados; e 49% mais elevados
nos pacientes que relatavam ter sofrido abuso sexual.

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Aqueles pacientes que tinham sofrido tanto maltrato físico quanto abuso
sexual atingiram índices indicativos de distúrbios no sistema límbico
113% mais elevados do que o grupo controle.

Um outro estudo foi então realizado pelo grupo de pesquisa de Teicher do


Hospital McLean (da Harvard School of Medicine) em 1994 para verificar
se o abuso físico, sexual ou emocional estava associado com anormalidades
clinicamente significativas nos testes com eletroencefalograma (EEG).

Este estudo retrospectivo analisou os resultados de EEGs de 115 casos


consecutivos de internações de crianças em um hospital psiquiátrico
pediátrico e o histórico de seus prontuários. Entre os pacientes sem
histórico de abuso, 27% apresentavam anormalidades clinicamente
significativas em seus EEGs; entre aqueles com registro de abuso
emocional, 54% apresentavam anormalidades; e em crianças com
histórico documentado de agressões físicas graves ou abuso sexual, as
anormalidades estavam presentes nos EEGs de 72% delas. A utilização
de técnicas de Ressonância Magnética funcional (RMf) permitiu que
outros pesquisadores dos anos 90 confirmassem a relação entre maus-
tratos na infância e subdesenvolvimento do hipocampo no cérebro de
adultos e, em alguns casos, na amígdala (um dos centros responsáveis
pelo processamento do medo e memória emocional) (3).

Um estudo de 1977 comparou as imagens de RMf das estruturas cerebrais


de 17 adultos sobreviventes ao abuso físico ou ao abuso sexual durante a
infância, que sofriam de Síndrome do Stress Pós-Traumático (SSPT), com
as de 17 adultos não abusados e sem Síndrome do Stress Pós-Traumático
(grupo controle) mas de mesma idade, raça, todos destros, mesmo número
de anos de escolaridade, e mesmo número de anos de alcoolismo.

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O hipocampo esquerdo dos adultos sobreviventes a abuso durante a


infância revelou ser em média 12% menor do que o do grupo controle
(alcoólatras não abusados) (4).

Outro estudo realizado no mesmo ano por uma outra equipe da


Universidade da California em San Diego (5), também identificou
anormalidades no hipocampo esquerdo de mulheres sexualmente
abusadas na infância e sofrendo de SSPT ou de desordens dissociativas,
outro distúrbio aparentemente comum em mulheres vítimas de abuso na
infância.

De Bellis e colegas, em estudo de 1999, analisaram com RMf as imagens


dos cérebros de 44 crianças abusadas com as de um grupo controle (i.e.,
não abusados) de 61 crianças, mas não conseguiram detectar diferenças
entre os volumes do hipocampo desses dois grupos.

Um outro estudo comparativo realizado por Teicher, Polcari e Andersen


para análise volumétrica do hipocampo de 18 adolescentes com idades
variando de 18 a 22 anos e histórico de estupros repetidos acompanhados
de medo ou terror e comparado a 19 adultos jovens do grupo controle,
também não revelou alterações volumétricas no hipocampo. No entanto,
o tamanho da amígdala apresentou uma redução média de 9,8% o
que correlacionava com a depressão, irritabilidade ou hostilidade que
caracterizava o grupo abusado.

O fato desses dois estudos não terem encontrado diferenças volumétricas


no hipocampo dos pacientes estudados (De Bellis, crianças e Teicher,
adultos jovens) pode estar relacionado ao lento desenvolvimento natural
do hipocampo e ao fato de ser esta uma estrutura onde novos neurônios
são formados (i.e., neurogênese) após o nascimento, concluiu Teicher
(1).
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Outros estudos demonstraram que nos adultos estudados que sofreram


abuso na infância existia um desequilíbrio no desenvolvimento do córtex
pré-frontal entre os hemisférios esquerdo e o direito, com essa região
do córtex do hemisfério direito apresentando tamanho semelhante a de
indivíduos normais e sua contraparte no hemisfério esquerdo e nas áreas
temporais (esquerda) substancialmente menores (1, 6). Cada hemisfério
cerebral é dominante no controle de certas funções: o direito domina
os processos de percepção e orientação espacial, informação visual de
conjuntos complexos e emoções, especialmente as negativas; enquanto
o esquerdo domina a percepção e compreensão verbal, as habilidades
linguísticas do indivíduo, comportamento social e o controle de impulsos
e emoções.

Um estudo de Schiffer em 1995 (6) com imagens funcionais mostrou que


crianças abusadas usam mais o hemisfério esquerdo quando pensam
a respeito de lembranças neutras e utilizam o hemisfério direito ao se
recordarem de experiências desagradáveis; enquanto os indivíduos do
grupo controle utilizavam os dois hemisférios em ambas as situações.
As percepções, memórias e processos de cada hemisfério cerebral são
integrados através do corpo caloso, que os une.

Pesquisas do National Institute of Mental Health dos Estados Unidos (7)


revelaram que as porções médias do corpo caloso eram significantemente
menos espessas em meninos vítimas de abuso ou de negligência –
especialmente nos casos de negligência. Em meninas, essa redução era
mais pronunciada naquelas que haviam sido vítimas de abuso sexual. De
Bellis obteve os mesmos resultados em um estudo de 1999 (8).

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Portanto, a integração de funções entre os dois hemisférios encontra-


se comprometida nesses indivíduos, o que explica sua dificuldade em
controlar emoções, a rapidez com que passam de um estado passivo a
uma crise de fúria ou de agressividade e as rápidas mudanças de humor
que experimentam ao longo de um único dia.

Os centros superiores (estruturas corticais) possuem uma capacidade


moduladora sobre os sinais recebidos dos centros mais primitivos (tronco
cerebral, cerebelo e mesencéfalo). Em outras palavras, os centros mais
primitivos excitam e os superiores modulam, ou seja, amplificam ou
reduzem ou mantêm o sinal excitatório.

O desenvolvimento de uma atividade cerebral com equilíbrio entre esses


dois níveis depende de vários fatores: razão entre oferta e recaptação de
neurotransmissores nos intervalos sinápticos, níveis hormonais normais,
oferta adequada de micronutrientes às células nervosas, sistemas neurais
bem desenvolvidos em cada etapa de desenvolvimento e organização das
diversas estruturas cerebrais.

Controle Emocional e Neurotoxicidade do Stress

As emoções são reguladas no cérebro por meio da interação de diversas


áreas e estruturas, tais como a amígdala, córtex frontal orbital, córtex
cingulado anterior, além de diversas outras áreas interconectadas.

Fatores genéticos e ambientais interagem durante o desenvolvimento


cerebral na infância na determinação da estrutura e função dos circuitos
sinápticos, estabelecendo a forma com que cada indivíduo processa
emoções e as traduz em comportamento.

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A neurobiologia demonstra que diversas regiões do córtex pré-frontal,


hipocampo, hipotálamo, córtex cingulado anterior, córtex insular,
striatum ventral e a amígdala, participam do processamento de diferentes
tipos de emoção, estilos afetivos e capacidade de controle emocional.

O grau de controle emocional depende de processos neuroquímicos que


amplificam, mantêm ou atenuam uma emoção. A amígdala tem um papel
importante no aprendizado associativo entre estímulos e eventos de
punição ou de recompensa. Por exemplo, a amígdala é moderadamente
ativada quando o indivíduo vê uma expressão facial de antipatia ou
aborrecimento. Mas a visão de uma expressão de temor no rosto de uma
pessoa provoca uma ativação muito maior na amígdala do que uma
expressão de antipatia, causando sentimentos de apreensão no observador.
Na presença de alguém expressando raiva em seu rosto, o córtex frontal
orbital e o córtex cingulado anterior são imediatamente ativados. Em
testes com indivíduos humanos saudáveis induzidos à raiva, estes dois
centros são também ativados de forma acentuada, enquanto a amígdala
é inibida (9). O córtex prefrontal possui um papel importante no circuito
que controla as emoções e possui uma alta densidade de receptores de
serotonina, o neurotransmissor envolvido na estabilização emocional.
Um aumento sistêmico, experimentalmente induzido, de oferta de
serotonina mostrou elevada atividade nas estruturas do córtex prefrontal
do hemisfério esquerdo dos sujeitos estudados e foi associada, em alguns
estudos utilizando imagens de PETscan, à habilidade dos indivíduos
saudáveis controlarem suas reações à raiva e a outras emoções negativas.
O mesmo estudo mostrou que indivíduos com histórico de violência
compulsiva possuem deficiências no metabolismo de serotonina no
córtex prefrontal esquerdo (9).

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O medo ativa um mecanismo de sobrevivência animal, evolucionariamente


conservado no cérebro humano: o impulso de lutar-ou-fugir. No ser
humano esse processo é mais sofisticado em alguns aspectos, devido
à nossa capacidade de avaliar situações complexas em função de
experiências passadas, decidir com base em valores morais, pesar as
conseqüências de ações, etc.

Quando um sinal de ameaça é visualmente percebido, o tálamo visual


é ativado e, a seguir, informa simultaneamente a amígdala e o córtex
visual. Ao ser ativada, a amígdala coloca em prontidão respostas
neuromusculares de luta-ou-fuga. A ativação da amígdala tem uma ação
estimulatória imediata sobre o batimento cardíaco, pressão sanguínea,
contração muscular. O córtex visual, por sua vez, refina a percepção (10).
No animal, o circuito aparentemente se fecha aqui, acionando respostas
de fuga, defesa ou relaxamento, transmitidos à amígdala pelo córtex
visual.

A amígdala possui, no entanto, conexões com o hipocampo, o qual


processa memória e aprendizado, permitindo associações entre a
situação atual e experiências passadas, o que é especialmente importante
no ser humano, para tomadas de decisões racionais e morais quando
confrontado com um perigo ou ameaça – e não puramente instintivas
ou reflexas. O hipocampo está conectado a outras áreas do córtex que
regulam as reações comportamentais aos estímulos emocionais e que
também são ativadas. Uma vez processada e avaliada a informação, o
córtex enviará à amígdala sinais inibitórios ou excitatórios de resposta à
situação.

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Estados crônicos de medo ou stress recrutam altos níveis de cortisol


(glicocortisona) para os centros cerebrais que processam essas emoções
e induzem toxicidade e morte de neurônios por um processo conhecido
como apoptose (i.e., suicídio celular ou morte celular programada) – o
que pode explicar as reduções volumétricas encontradas no córtex pré-
frontal, cingulado anterior, hipocampo e amígdala dos indivíduos vítimas
de abuso, citados nos estudos acima. Por outro lado, o fato de diversas
vítimas de abuso não se tornarem adultos abusivos, nem apresentarem
reduções volumétricas visíveis, pode estar relacionado a possíveis fatores
genéticos que confiram uma maior resistência celular à toxicidade, tais
como polimorfismos nos sistemas enzimáticos de detoxicicação celular
ou de reparo do DNA, ou ainda nutrição adequada ou outros fatores de
proteção celular ainda a serem esclarecidos.

Um outro fator de proteção diz respeito à própria plasticidade do cérebro,


a qual é ainda mais acentuada durante a fase de desenvolvimento na
infância. Esses fatores protetores foram citados brevemente no Capítulo
1, como “fatores compensatórios” e serão tratados mais adiante de forma
mais detalhada.

No entanto, é preciso ter em mente que tais fatores compensatórios,


se suficientemente freqüentes e emocionalmente significativos para o
indivíduo, só podem compensar parcialmente o impacto do abuso sobre
a neurobiologia da criança, auxiliando na redução do dano; mas de forma
alguma promoverão o desenvolvimento saudável da criança, a menos
que providências assistenciais e/ou legais e terapêuticas sejam tomadas
para fazer cessar o abuso. A forma de condução dessas providências deve
ser adequada a cada situação em especial, coordenada e executada com
cuidado, levando-se em conta que tipo de intervenção é a mais apropriada
para evitar-se danos e traumas ainda maiores à criança.

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Este assunto não deve ser objeto de legislação reativa e mal considerada
e, muito menos, desenvolvida por legisladores cientificamente
incompetentes e sem visão realista das alternativas que o estado pode
oferecer, principalmente quando se considera a institucionalização da
criança negligenciada ou abusada, mas que possui outros familiares não
abusivos. Em um orfanato que conheço, a maioria dos internos possui
avós, tios, pai e/ou mãe.

Segundo o Dr. Bruce Perry, a abordagem terapêutica de crianças vítimas


de abuso e/ou negligência deve basear-se na compreensão das diversas
etapas de desenvolvimento do cérebro e na formação/organização
dependente-de-uso dos sistemas neurais nos períodos sensitivos de cada
fase.

Impacto da Negligência sobre o Desenvolvimento

Os problemas derivados da negligência são variados e sua gravidade


depende da amplitude e gravidade da negligência sofrida. Os problemas
decorrentes de negligência sofrida na primeira infância, quando o
desenvolvimento cerebral é mais rápido, são os mais devastadores.

Tanto a subnutrição como a privação de estímulos emocionais (mesmo


com nutrição adequada) induzem alterações metabólicas de redução de
produção de hormônio de crescimento, resultando no subdesenvolvimento
do corpo e do cérebro. Mesmo com alimentação adequada, a negligência
emocional (falta de amor, de colo, afago, palavras carinhosas, etc) altera
os padrões metabólicos e neuroendócrinos, afetando o desenvolvimento.

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A ausência de formação de vínculos afetivos saudáveis entre a criança


pequena emocionalmente negligenciada e a mãe ou adulto cuidador, terá
um impacto negativo em mais de um aspecto de seu desenvolvimento
físico, emocional, motor, cognitivo e habilidades sociais (12).

A negligência emocional priva a criança pequena (menor de 3 anos)


de estímulos nos centros cerebrais correspondentes (não formação de
sistemas neurais adequados a reconhecer, expressar e processar emoções)
e diminui os níveis de síntese e secreção do hormônio de crescimento pela
hipófise, afetando o desenvolvimento físico. A rejeição emocional e social
é processada nos mesmos centros cerebrais que processam dor física e
ativa o sistema límbico-hipofisário-adrenal do stress, recrutando cortisol
para o cérebro (23).

Quando a negligência é também com a alimentação, além dos problemas


de subdesenvolvimento orgânico e distúrbios psico-motores e cognitivos
decorrentes diretamente da desnutrição, a criança também apresentará
distúbios de compor-tamento alimentar, comendo compulsivamente até
vomitar ou passar mal, escon-dendo alimentos, engolindo rapidamente
alimentos quase sem mastigar. Meninos são mais afetados pela
negligência emocional e abuso físico do que meninas e desenvolvem
sérios distúrbios emocionais, muitas vezes traduzidos por crueldade fria
e sem remorço contra outras crianças menores ou animais e incapacidade
de criar vínculos afetivos e fazer amizades duradouras. O risco para
a delinqüência infanto-juvenil e crime violento é alto entre meninos
negligenciados (13).

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Bebês e crianças de 1 a 3 anos de idade recolhidos em orfanatos são com


freqüência pouco estimulados, mantendo pouco contato físico com seus
cuidadores e vivendo em ambiente pobre em estímulos sensoriais e
emocionais – situação denominada “negligência global”. Um estudo com
crianças adotadas nos Estados Unidos no ínício dos anos 90, que haviam
passado seus primeiros meses de vida em um orfanato na Romênia,
mostrou que os seus cérebros eram acentuadamente menores do que
os de outras de mesma idade, criadas em um ambiente saudável; e
demonstravam anormalidades no desenvolvimento cortical (14).

Bebês possuem uma predisposição genética para formar fortes vínculos


emocionais e de apego com os adultos que cuidam deles. Porém, se esse
cuidado for apenas “operacional” (limpar, dar mamadeira, remédio,
etc) e sem interação afetiva; ou se tal interação for hostil, os sistemas
neurais de processamento de vínculos afetivos não serão desenvolvidos
adequadamente – o que resultará em uma maior dificuldade de processar,
sentir e expressar afeto nas relações do indivíduo ao longo de sua vida
(incapacidade de empatia, de compreender signos afetivos expressos por
outros ou de responder a eles adequadamente, etc). No entanto, se forem
adotados por adultos emocionalmente responsivos e carinhosos, ainda nos
três primeiros anos de suas vidas, poderão desenvolver mais facilmente
essas capacidades do que crianças adotadas em fases posteriores de seu
desenvolvimento.

Impacto do Abuso Físico e Emocional

A fase de maior desenvolvimento do cérebro pós-natal ocorre entre o


nascimento e os três anos de idade. No terceiro ano de vida, o cérebro
atinge 90% do tamanho que terá no indivíduo adulto.

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Como já vimos, os vários sistemas sinápticos essenciais ao desenvolvimento


de habilidades sensoriais, psico-motoras, cognitivas, afetivas, sócio-
perceptivas e comportamentais se desenvolvem e são organizados de
forma progressiva e hierárquica, sempre em direta dependência da
qualidade e quantidade de experiências a que se é exposto. Citando Bruce
Perry novamente, ... as crianças refletem o mundo no qual cresceram. Se aquele
mundo é caracterizado por ameaças, caos, imprevisibilidade, medo e trauma,
o cérebro irá refletir esse mundo através da alteração do desenvolvimento dos
sistemas neurais envolvidos na resposta ao stress e ao medo (15).

Além das alterações no sistema límbico-hipofisário-adrenal derivadas do


maltrato físico e/ou emocional crônicos, esses abusos também induzem
alterações nas vias da serotonina, GABA, dopamina, noradrenalina e
norepinefrina no cérebro infantil em desenvolvimento.

Isto pode resultar em uma combinação de alguns dos seguintes distúrbios


durante a infância: problemas de atenção, distúrbios motores de controle
fino, hipervigilância, hiperatividade, taquicardia (ritmo cardíaco
aumentado quando em repouso), hipertensão arterial, ansiedade crônica,
com um potencial para o desenvolvimento de distúrbios neuropsiquiátricos
na adolescência, dentre os quais, desordens de comportamento obsessivo-
compulsivo, depressão maior, síndrome do stress pós-traumático,
distúrbios de personalidade extrema. As experiências traumáticas com os
adultos cuidadores nos primeiros anos de vida irá estabelecer na criança
um conjunto de expectativas a respeito do que ela deve esperar de seus
futuros relacionamentos com outras figuras de autoridade (professores,
patrões, etc). Também irá condicionar sua percepção de si mesma e de
outras crianças e adultos com quem vai interagir no grupo social.

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Sua capacidade de interpretar signos interpessoais estará prejudicada,


bem como de tomar decisões e resolver conflitos (habilidade de negociar
racionalmente, fazer e obter concessões, perceber o ponto de vista do
outro).

Poderá reagir defensivamente ou agressivamente em situações onde


percebe ameaças ou riscos que não estão de fato presentes. Ou, ao
contrário, tornar-se extremamente cordata e submissa às exigências de
outras crianças e adultos por medo de ser rejeitada pelo grupo social.
Este segundo padrão pode levar ao adulto que é submisso aos superiores,
cordato com os iguais e um déspota com os subordinados. Como
mencionado anteriormente, fatores compensatórios ambientais e fatores
genéticos podem estar na raiz das diferenças individuais encontradas
entre vítimas de abuso na infância e o posterior desenvolvimento ou não
de um comportamento violento na fase adulta.

Estudos do National Institute of Mental Health (NIMH) dos Estados


Unidos e de outras agências governamentais e privadas americanas
indicam que, apesar de crianças vítimas de abuso físico, sexual ou
emocional estarem sob risco aumentado para o desenvolvimento de
comportamento anti-social e criminalidade, a maioria delas não se torna
adultos criminosos violentos. Um estudo populacional de longa duração
e parcialmente financiado pelo NIMH vem acompanhando ao longo da
infância, adolescência e jovem idade adulta uma geração de meninos na
cidade de Dunedin, Nova Zelândia (i.e., estudo cohort).

Essa população tem sido periodicamente avaliada através de uma extensa


bateria de testes físicos, psiquiátricos e neuro-motores. Em 2002, o grupo
completou 26 anos de idade e doou sangue para testes genéticos.

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A análise genética detectou várias versões (i.e., polimorfismos) do gene


codificador da enzima monoamina oxidase-A (MAO-A). MAO-A é uma
reguladora importante dos níveis dos neurotransmissores dopamina,
norepinefrina e noradrenalina. Essas moléculas estão envolvidas na
ativação de funções fisiológicas e neuromusculares necessárias para
reações de fugir-ou-lutar frente a ameaças. A enzima monoamina oxidase-
A é responsável pela regulação dos níveis desses neurotransmissores no
cérebro, inativando-os quando em excesso ou não mais necessários.

Voltando ao estudo cohort, uma das versões polimórficas do gene MAO-


A, que conferia baixos níveis fisiológicos dessa enzima, foi encontrada em
85% dos jovens nos quais o histórico de abuso severo durante a infância
estava associado a condenação por crime violento na adolescência ou
início da fase adulta. Por outro lado, entre os outros jovens estudados que
tinham sido vítimas de abuso severo na infância, mas possuíam versões
mais eficientes do gene MAO-A (i.e., níveis altos da enzima), havia uma
incidência dramaticamente menor de comportamento anti-social ou
criminalidade violenta.

A versão menos eficiente do gene MAO-A foi encontrada em apenas 12%


dessa população com um histórico de abusos severos na infância (16). No
entanto, esses 12% representavam 44% do total de casos de condenação
por crimes violentos entre a população.

Esses dados devem ser analisados com cuidado, pois generalizações


podem ser perigosas e enganosas. Embora variações polimórficas de
um gene possam equipar o indivíduo com maior ou menor resistência
a impactos recebidos do meio ambiente, isto não significa que adultos
sobreviventes ao abuso infantil com versões mais favoráveis deste ou de
outros genes tenham saído incólumes da experiência, tanto do ponto de
vista psico-emocional como neurológico.
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A versão polimórfica menos ou mais eficiente de um gene é um fator de


susceptibilidade, que torna um determinado grupo ou raça mais sensível
ou mais resistente a determinados impactos ambientais.

São os fatores ambientais que causarão um impacto positivo ou negativo


sobre esta susceptibilidade e também sobre outros componentes dos
circuitos cerebrais reguladores da emoção, percepção e comportamento
da criança durante o seu desenvolvimento cerebral. Outros tipos de
mutações genéticas com alterações seqüenciais mais extensas do que o
polimorfismo (polimorfismo = mutação de uma única base), podem no
entanto estar na causa de vários distúrbios neuropsiquiátricos congênitos
e geralmente são encontrados em menos de 1% de qualquer população
– em contraste com os polimorfismos que estão presentes em mais de 1%
de qualquer população.

Portanto:

• polimorfismos são fatores de susceptibilidade (= mutação de uma única


base nucleotídica em um gene). Polimorfismos conferem mais resistência ou
menos resistência a determinados impactos ambientais, tais como: stress,
exposição a poluentes, álcool, metabolização mais ou menos eficiente de
medicamentos, etc.

• mutações gênicas são fatores de predisposição (= deleções, inserções,


inversões, transposições, supressões, etc, de várias bases em um gene)
(24). Diferentes mutações genéticas conferem predisposição a certos tipos
de câncer hereditário ou familiar, diabetes melitus, inúmeras síndromes
hereditárias, doenças mentais, doenças neuro-degenerativas, psicoses
hereditárias, etc.

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A plasticidade do cérebro – e sua capacidade de ser alterado pela


experiência – é um fato observado mesmo em adultos que tiveram uma
infância normal e foram posteriormente submetidos a stress prolongado
ou recorrente, violência ou guerra. A morte de neurônios e conseqüente
perda de massa cerebral no hipocampo é observada também em muitos
adultos, em decorrência dessas experiências (17). O stress crônico, mesmo
quando ocorre somente durante a fase adulta, causa a atrofia do hipocampo
(morte neuronal) e inibe a neurogênese (amadurecimento de novas células
nervosas) nessa região. Pacientes adultos sofrendo de Depressão Maior e
não tratados por mais de dois anos, por exemplo, apresentam redução
no número de células gliais e no tamanho e quantidade de neurônios em
diversas áreas do cérebro.

Estressores severos e prolongados causam essas alterações, pois os


glicocorticóides recrutados para o cérebro modulam a plasticidade
neuronal, induzindo toxicidade e morte de neurônios (18, 19, 20, 22).

Experimentos com roedores demonstraram que a exposição repetida a


certos estressores produz atrofia de células dendríticas, perda neuronal
no hipocampo e na via piramidal. Além disso, a exposição prolongada
ao stress e corticóides torna os neurônios sobreviventes mais vulneráveis
a outros danos, como isquemia vascular, hipoglicemia, toxicidade
excitatória mediada por aminoácidos (21). Nunca é demais repetir que,
durantes os anos de desenvolvimento (infância), o cérebro é muito mais
plástico do que na fase adulta. Desta forma, a intervenção para cessar
o abuso deve ocorrer o mais cedo possível, bem como o tratamento da
criança vítima do abuso.

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Vamos descrever a seguir alguns dos distúrbios neuropsiquiátricos


que podem decorrer do abuso e de experiências traumáticas durante a
infância. Porém, é preciso lembrar que a equação natureza versus criação
produzirá efeitos diferentes, em indivíduos diferentes, com diferentes
distúrbios acometendo diferentes indivíduos.

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REFERÊNCIAS

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2. O Caso 2 e seguintes referem-se a pessoas que conheci e conheço, uma delas em


sessões de terapia grupal da escola Gestalt, e as demais são amigos com os quais
convivi por vários anos – amigos de infância ou de adolescência – com quem
mantenho contato até hoje.

3. De Bellis, M.D., Keshavan, M.S., Clark, D.B. et al. Developmental Traumatology,


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20. McEwen, B.S. Stress and hippocampal plasticity. Ann. Rev. Neurosci. 22, 105–122
(1999).

21. Sapolsky, R.M. Glucocorticoids and hippocampal atrophy in neuropsychiatric


disorders. Arch. Gen. Psychiatry 57, 925–935 (2000).

22. Brown, E.S., Rush, A.J. & McEwen, B.S. Hippocampal remodeling and damage
by corticosteroids: implications for mood disorders. Neuropsychopharmacology 21,
474–484 (1999).

23. Eisenberger,N.I., Lieberman, M.S., Williams, N.D. Does Rejection Hurt? An fMRI
study of social exclusion. Science (10 Oct.2003);302:pp.290-292.

24. Louro I.D., Vieira de Melo, M.S., Galeotti, S. Introdução à Genética – Conceitos
Gerais. In: Louro, I.D., Llerena Jr. J.C., Vieira de Melo, M.S., Ashton-Prolla,
P.,Conforti-Froes, N. (eds.) Genética Molecular do Câncer (2a. edição), pp. 11-24. MSG,
São Paulo, 2002

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You’ve got to be taught to hate and fear,


You’ve got to be taught from year to year,
It got to drummed in your dear little ear
You’ve got to be carefully taught.
You’ve got to be taught to be afraid
of people whose eyes are oddly made,
and people whose skin has a different shade,
You’ve got to carefully taught.
You’ve got to be taught before is too late,
Before you are six or seven or eight
To hate all the people your relatives hate
You’ve got to be carefully taught...*
(Letra de canção de Rogers & Harmmestein do
Musical da Broadway “South Pacific”)

* Tradução livre: “Você tem que ser ensinado a odiar e a temer/ Você tem
que ser ensinado de ano a ano/ Isso tem que ser martelado em seu pequeno
e querido ouvido/ Você tem que ser cuidadosamente ensinado/ Você tem que
ser ensinado a ter medo/ de pessoas com olhos amendoados/ e de pessoas
cuja pele tem outra tonalidade/ Você tem que ser cuidadosamente ensinado/
Você tem que ser cuidadosamente ensinado antes que seja tarde demais/ Antes
que você tenha cinco ou seis ou oito (anos)/ A odiar todas as pessoas que seus
familiares odeiam/ Você tem que ser cuidadosamente ensinado...”.

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Natureza versus Criação (ou Genes versus Ambiente)

Este é um debate com, pelo menos, um século de idade. Até o século XIX,
acreditava-se que o indivíduo vinha ao mundo como um folha de papel
em branco, sobre a qual o ambiente (família, religião, sociedade, etc)
escrevia uma história. Em outras palavras, o indivíduo era fruto exclusivo
do meio. O behaviorismo de Skinner foi um esforço experimental que fez
persistir essa visão dentro da Psiquiatria e da Psicologia até a segunda
metade do século XX e ainda hoje encontra defensores. Carl Gustav Jung
foi talvez um dos primeiros investigadores da Psiquiatria e Psicologia
a contestar essa visão, afirmando a necessidade de se considerar o fator
hereditariedade como um componente importante nos estudos da psique
humana – tanto na investigação das psicoses quanto dos diferentes perfis
personalísticos.

A neurociência atual, com os recursos da genética molecular, vem


produzindo um número crescente de trabalhos científicos demonstrando
a associação de determinadas mutações gênicas a certos distúrbios
neuropsiquiátricos.

Por outro lado, os avanços na compreensão do desenvolvimento cerebral


pós-natal, da maleabilidade neuroquímica cerebral, bem como da
natureza plástico-estrutural desse órgão, apontam para a importância
crucial do meio-ambiente familiar e social no desenvolvimento de um
cérebro estruturalmente saudável e neuroquimicamente equilibrado a
partir do nascimento.

Portanto, é necessário termos em mente o seguinte postulado


epistemológico: “um mesmo fenômeno pode ser causado por diferentes
fatores; e fenômenos diferentes podem ter uma causa comum”.

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Desta forma, cabe ao especialista considerar as variáveis abaixo


relacionadas, de forma a detectar qual ou quais desses fatores estão
especificamente envolvidos na etiologia do dístúrbio apresentado por
um determinado paciente.

Desordens Neuropsiquiátricas podem ser o resultado de:

1) herança genética (síndromes familiares); ou de mutação de novo


(ocorrida durante a concepção ou embriogênese e não presente no DNA
maternal/paternal); ou de polimorfismos (discretas diferenças de uma
única base na seqüência de nucleotídeos de genes que alteram para
mais ou para menos a sua expressão) – encontrados em mais de 1% dos
indivíduos de qualquer população;

2) doenças de outra natureza (disfunção hormonal, infecções, doenças


crônico-degenerativas, acidentes vasculares cerebrais, dor crônica,
velhice, etc);

3) certos procedimentos médicos ou medicamentos utilizados para


tratamento de outras patologias (certos procedimentos cirúrgicos,
radiocirurgia no SNC, uso prolongado de certos anti-inflamatórios,
analgésicos, quimioterápicos, radioterapia, ansiolíticos, etc); ou ainda,
alcoolismo ou uso de drogas ilegais;

4) neurotoxicidade induzida pela exposição ambiental, ocupacional,


ou acidental a substâncias neurotóxicicas, tais como metais pesados,
(chumbo tetraetila, cromo, mercúrio, etc) ou certos produtos químicos e
resinas industriais;

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5) deficiência nutricional de certos elementos (ou a má absorção enteral


destes a partir dos alimentos ingeridos), tais como aminoácidos essenciais
(glutamato, aspartato, inositol, tirosina, serina, etc), vitaminas (A, B1, B2,
B6, B12) e minerais (lítio, ferro, fósforo, zinco, etc);

6) exposição a experiências traumáticas intensas e acidentais, tais como


desastre de carro, avião ou outro, terremoto, inundação, atentado
terrorista, seqüestro, perda brusca de entes queridos, ruína financeira e
perda de status social, guerra, isolamento social, etc;

7) exposição prolongada ao stress físico e emocional associado a situações


crônicas de insatisfação e frustração nos relacionamentos pessoais, sociais,
ou profissionais – em qualquer fase da vida;

8) trauma induzido em um cérebro infantil saudável ao nascimento,


quando exposto a uma ou mais formas crônicas de stress, abuso ou
negligência, durante o seu desen-volvimento pós-natal (1,2).

Breve Descrição das Desordens Neuropsiquiátricas Identificadas


em Crianças Abusadas e Adultos Sobreviventes ao Abuso na
Infância

Alguns dos transtornos encontrados em crianças vítima de abuso,


negligência ou trauma e em adultos sobreviventes a esses eventos são
descritos a seguir, embora, como já dito, nem todos os pacientes sofrendo
de um ou mais desses distúrbios sejam necessariamente vítimas de abuso
ou negligência.

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No entanto, como o abuso é difícil de ser detectado – principalmente


em famílias aparentemente “funcionais” – o conjunto contextual do
paciente psiquiátrico infantil e do adolescente deve ser cuidadosamente
analisado antes da hipótese de abuso ou negligência ser descartada. Em
outras palavras, os pais (ou tutores legais) dessas crianças deveriam ser
subme-tidos a testes de avaliação psiquiátrica, investigação de histórico
de transtornos psiquiátricos na família, alcoolismo, uso de drogas, uso
crônico de barbitúricos, qualidade do relacionamento marital, violência
verbal e/ou física entre o casal, histórico de depressão pós-parto, presença
de fatores estressantes sócio-econômicos e, se possível, a triagem por meio
de sucessivas entrevistas com o pai e a mãe – tanto em conjunto como em
separado.

É importante ter-se em conta o fato de que muitas vezes o abuso


não é dirigido a todos os filhos, mas apenas àquele(a) que destoa em
temperamento das expectativas parentais – ou que é fruto de uma
gravidez não desejada ou do sexo não desejado (menina, quando se
desejava um menino ou vice-versa). Filhos desejados e nascidos durante
uma fase de bom entendimento entre o casal e/ou durante uma fase
econômica estável podem ser vistos e tratados de forma muito diferente
de um outro gerado durante a crise matrimonial – com freqüência, como
uma tentativa de salvar o casamento ou como fruto acidental de uma
tentativa de reconciliação fracassada.

Como indicado anteriormente, uma crise financeira (falência ou


desemprego prolongado) que coincida com uma gravidez acidental
constitui também um fator de risco para o abuso ou negligência da
criança, como uma forma de o adulto sentir-se no controle e descarregar
a sua frustração – além de contribuir para um aumento de tensões entre
o casal.

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Algumas das desordens comumente observadas em crianças vítimas


de abuso e/ou negligência, já mencionadas anteriormente, estão abaixo
relacionadas e variam em tipo de manifestação e grau de intensidade de
um para outro indivíduo, em função da faixa etária, genética, presença
ou não de fatores ambientais ou intrapessoais compensatórios e, também,
entre os gêneros masculino e feminino.

Por exemplo, transtornos do aprendizado, transtornos de déficit de


atenção e hiperatividade são muito mais comuns em meninos, enquanto
dissociação, distimia, anorexia nervosa e bulimia são mais comuns em
meninas (2).

1) Distúrbios no Desenvolvimento Psicomotor e Cognitivo - um ou


mais dos seguintes aspectos podem estar comprometidos nos casos de
abuso ou negligência infantil:

a) Coordenação Motora: retardo no desenvolvimento do controle fino,


(tropeça muito, derruba coisas), agitação motora, dificuldade em desenhar
ou escrever, etc;

b) Comunicação Verbal: gagueja quando intimidada, vocabulário pobre,


pragueja, fala palavrão com freqüência, dificuldade de articulação
verbal;

c) Distúrbios Cognitivos: déficit de atenção, acompanhados ou por


hiperatividade ou por uma apatia caracterizada por falta de curiosidade,
desinteresse, alheamento mental – “vive no mundo da lua” – problemas
de memória, incapacidade de organizar suas tarefas na escola ou em
casa;

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d) Desordens Emocionais comuns são: hipervigilância, ansiedade


generalizada, timidez, fobias, impulsividade, baixa auto-estima, emite
opiniões negativas sobre si mesma, pouca ou nenhuma tolerância à
frustração (chora à toa, ou tem crises de raiva quando contrariada ou
reage emocionalmente, aos seis ou oito anos de idade, como uma criança
de dois anos), tem pesadelos recorrentes, com ou sem enurese noturna,
presença de tiques nervosos.

Tiques nervosos são reflexos involuntários e repetitivos que se


acentuam quando o indivíduo está apreensivo ou pouco à vontade,
tais como: balançar repetitivo da cabeça, piscar de olhos involuntário,
roer unhas, tossir ou pigarrear, repetir palavras, fazer caretas, estalar a
língua repetitivamente, riso nervoso, trejeitos corporais, sons guturais
involuntários, etc.

e) Distúrbios comportamentais: apresenta pouca habilidade de iniciar


relaciona-mentos com outras crianças (prefere brincar em paralelo ou
assistir outros brincando), ou pode ainda mostrar excessiva ansiedade
em se relacionar e ser aceita, mostrando subserviência ao grupo e
comportamento imitativo – ou tentando ser engraçado, submetendo-se a
(ou colocando-se em) situações ridículas – ou fazendo comentários auto-
depreciativos sob a forma de piada. Meninos podem ainda ser briguentos
e abusivos com outras crianças e com animais, reproduzindo com eles
as situações que sofrem nas mãos do(s) adulto(s) abusivo(s) – utilizando
inclusive, o mesmo repertório verbal “você é burro”, “você não presta
para nada”, “vai levar porrada se não fizer o que eu mando”. Meninas
pequenas muitas vezes fazem o mesmo com suas bonecas e as espancam,
sacodem, atiram no chão, ou as desfiguram. Em crianças, os sinais de
depressão manifestam-se através desses distúrbios e podem conduzir a
transtornos dissociativos e/ou à distimia, desordens que descreveremos
a seguir.
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Desordens Dissociativas (4, 5, 6): Embora mais comuns em meninas


e mulheres sobreviventes ao abuso infantil, acomete também alguns
meninos e homens. No entanto, a hiperatividade e hipervigilância em
decorrência do abuso na infância são mais comuns em meninos e homens,
embora ocorram também em meninas. O processo dissociativo tem início
com a criança tentando modificar o padrão abusivo do adulto e receber
dele atenção e aprovação.

Ela tenta colaborar e submete-se às exigências do adulto, na esperança


de que ele se modifique. Ao não obter as respostas que busca, a criança
ou adolescente torna-se emocionalmente apática e depressiva (distímica),
assumindo uma atitude inicial de conformismo e culpa por não se sentir
amada.

O estado dissociativo é o próximo passo, e tem início quando a criança


torna-se incapaz de reagir tanto física quanto cognitivamente quando
confrontada pelo adulto abusivo ou por outras pessoas em posição de
autoridade, em situações de pressão, ameaça ou agressão física ou verbal.
Quando o adulto abusivo dá uma ordem, ela fica imobilizada, enrola,
posterga, esquece, não ouve ou finge que não ouve. Essa imobilização
emocional e incapacidade de reagir frente a situações de desafio ou
pressão torna-se um padrão levado para a vida adulta.

Indivíduos adultos com desordem dissociativa têm baixa auto-estima e


não conseguem formular respostas verbais a abusos ou provocações do
cônjuge, de colegas no ambiente de trabalho ou frente a outras figuras de
autoridade, no momento em que são provocados ou ofendidos.

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Depois, quando estão a sós, uma torrente de respostas que “gostariam


de ter dado” inunda sua consciência à medida em que finalmente
internalizam a ofensa ou injustiça sofrida – o que aumenta ainda mais
sua frustração e auto-depreciação, pois se percebem como covardes,
fracos ou incompetentes. Têm pouca presença de espírito e capacidade
de improvisação em situações de emergência. São inseguros e frente
a provocações ou situações constrangedoras ficam paralizados e sua
mente entra em um “vácuo”, com sentimentos mistos de medo, dúvida
e ansiedade bloqueando momentaneamente a compreensão do que está
acontecendo (dissociação cognitiva).

A dissociação leva também ao desenvolvimento de dois outros padrões


de resposta emocional e comportamental, geralmente concomitantes:
resistência passiva e indisponibilidade emocional:

• Resistência Passiva: O indivíduo dissociado é algumas vezes


denominado “resistente passivo”, pois desenvolve um padrão de falta
de iniciativa, auto-indulgência e apatia em resposta às exigências e
responsabilidades da vida adulta.

Reage às responsabilidades e tarefas profissionais, conjugais e familiares


como aprendeu a reagir às pressões do adulto abusivo na infância: se
isola, aliena, esquece, posterga, “enrola”, finge que não escuta. Promete,
mas raramente cumpre, a menos que a situação ofereça alguma auto-
gratificação imediata.

• Indisponibilidade Emocional: Negligência emocional, bem como o


abuso físico e/ou emocional na infância, comprometem a habilidade de
processar mensagens e percepções sociais, interpessoais e intrapessoais.

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Ou seja, a capacidade de compreender os signos não verbais que


emprestam conotação (significado) às mensagens verbais trocadas entre
indivíduos em diferentes situações. O córtex pré-frontal é a principal área
cerebral envolvida na cognição social e no processamento e administração
de estímulos emocionais enviados pelo sistema límbico.

A não formação de vínculos emocionais sadios entre a mãe e a criança nos


primeiros três anos de vida, bem como a falta de coerência e previsibilidade
nas reações de adultos abusivos, são os primeiros fatores envolvidos no
processo posterior de interconexões neurais insuficientes entre os centros
de processamento de estímulos emocionais (límbico, córtex cingulado
anterior) e aqueles que decodificam e pro-cessam a cognição destes nas
estruturas superiores (córtex pre-frontal). Alguns estudos com PETscan
demonstram que uma série de discretos curto-circuitos – semelhantes
(mas de menor intensidade) aos que ocorrem nos cérebros de epiléticos
– acontecem entre as conexões neurais empobrecidas nos cérebros de
crianças abusadas (3).

A falta de representações no cérebro de vínculos emocionais sadios será


agravada pelos episódios posteriores de abuso físico, verbal ou negligência
emocional crônicos, comprometendo a capacidade do indivíduo
desenvolver e manter relações interpessoais que requeiram empatia
genuína com outras pessoas no futuro. Tais situações de intensidade e
intimidade emocional no relacionamento pessoal serão percebidas por
ele como estranhas e estressantes. A falta de representação interior de
vínculos emocionais fortes (memória neuronal), sadios (gratificantes) e
estáveis (freqüentes e repetitivos) na primeira infância comprometerá
o desenvolvimento de habilidades interpessoais importantes, tais como
empatia (capacidade de perceber, se identificar e compreender os
sentimentos verdadeiros dos outros), tolerância com as limitações alheias,
respeito e auto-respeito.
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Portanto, o indivíduo passa a ter dificuldades de reconhecer e de


responder às expressões e estados afetivos alheios e próprios de maneira
adequada. A negligência emocional, por si só, pode ser devastadora para
o desenvolvimento das capacidades afetivas da criança, especialmente
para meninos, tornando algumas crianças insensíveis e até mesmo
deliberadamente cruéis com outras crianças e animais e sem a capacidade
de sentir remorso (11).

O adulto emocionalmente dissociado e indisponível encontra-se


desconectado de suas próprias emoções: pensa mais sobre o que sente,
do que realmente é capaz de sentir.

Seus sentimentos são, em grande parte, ideações racionais e, com


freqüência, só sente afeto por uma pessoa depois que a perde – ou por
alguém que não lhe corresponda afetivamente – pois sua experiência
emocional na infância foi ou de rejeição ou de negligência ou de perda,
sendo esses os únicos aspectos familiares de representação emocional
para o cérebro daquele indivíduo.

Meninos e homens emocionalmente negligenciados na infância também


demonstram pouca capacidade para sentir remorso (processo emocional)
embora possam arre-pender-se (processo intelectual), provavelmente
devido a sistemas neurais pouco desenvolvidos nas áreas cerebrais
que processam valores emocionais (lobo temporal anterior, córtex
orbitofrontal), devido à falta de estimulação nas fases críticas de
desenvolvimento e amadurecimento dessas estruturas nos primeiros
anos de vida (11).

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Muitos pais e mães que planejam obsessivamente o futuro de seus filhos,


desde o seu nascimento, e que se utilizam de técnicas manipulativas
“positivas” de indução e pressão das crianças para cumprirem as
metas que estabeleceram para elas, são basicamente emocionalmente
negligentes, pois desconsideram as reais necessidades individuais de
ordem emocional e cognitiva – anseios e talentos naturais dos filhos – que
não correspondam ou não contribuam para a realização dos objetivos
que estabeleceram para eles. Essas crianças só conseguem a aprovação de
seus pais se forem submissas e obedientes às expectativas deles.

Para tanto, devem suprimir em si mesmas todos os sentimentos


e aspirações que forem implícita ou abertamente proibidos pela
manipulação parental.

Essa é uma forma terrível de negligência emocional pois é subliminar e


sutil, levando crianças e adolescentes a um estado misto de frustração
e culpa, pois os pais são equivocadamente “bem intencionados” e
seu egoísmo e indiferença com as reais necessidades emocionais dos
filhos estão encobertos por uma massa inercial de discursos morais,
manipulações, tabus e chantagens emocionais. O adulto que resulta deste
tipo de criação é no geral emocionalmente infantilizado e eternamente
dependente da aprovação de seus pais, mesmo quando ocasionalmente se
rebela. Torna-se emocionalmente apático, distímico, incapaz de empatia
genuína em seus relacionamentos interpessoais, auto-indulgente, tem
baixa auto-motivação, com tendência a buscar auto-gratificação em
atividades que requeiram pouca ou nenhuma interação interpessoal
(video games, televisão, carteado, caça-níqueis, jogos de paciência, etc).
Em reuniões sociais falam pouco, mostram hesitação ao emitir uma
opinião (o que raramente fazem).

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Quando confrontados no relacionamento interpessoal, são evasivos ou


escapam do desconforto por meio de expedientes defensivos, tais como
negação, ridicularização dos sentimentos alheios, chantagem, atitudes de
condescendência e manipulação emocional – enfim, padrões a que foram
cronicamente expostos no ambiente familiar.

Hipervigilância e Hiperatividade: A hipervigilância decorre de um estado


de hiperexcitação do sistema neuroquímico das vias que processam o
stress (límbico-hipofisário-adrenal). O cérebro da criança encontra-se em
estado constante de alerta, tentando perceber sinais de ameaça nas pessoas
à sua volta, os quais, reais ou não, uma vez percebidos como tal, acionam
a neurofisiologia do mecanismo de lutar-ou-fugir (aumento da pressão
arterial, do ritmo cardíaco, excitabilidade neuromotora, recrutamento de
adrenalina e cortisol para o cérebro, etc). Reagem com ansiedade ou com
agressividade defensiva a essas percepções. Podem também provocar
essas reações em outras pessoas, pois só se sentem no controle quando
se encontram em situações de conflito, as quais se tornaram sua mais
familiar experiência.

A hipervigilância é muito comum em crianças expostas a situações em


que o comportamento e reações do adulto cuidador (pai ou mãe ou
responsável legal) são imprevisíveis e violentas e têm pouca consistência
com situações reais. Por exemplo, em um determinado momento, um
certo comportamento da criança é tolerado ou mesmo incentivado e
num outro, o mesmo comportamento provoca uma explosão de raiva e
agressão verbal ou física por parte do adulto.

Desta forma, a criança se encontra em uma situação de insegurança


crônica, nunca sabendo quando o abuso vai ocorrer – à mercê da
instabilidade emocional do adulto.

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Portanto, irritar e provocar o adulto lhe proporciona uma certa medida de


previsibilidade e prontidão para encarar o maltrato. Este padrão também
é levado para a vida adulta, criando problemas de relacionamento no
trabalho com figuras de autoridade e nos relacionamentos com colegas
e subordinados. Nos relacionamentos pessoais (esposa, filhos, parentes,
amigos), torna-se o “estraga-prazer”, pois só se sente no controle se
estiver incomodando alguém (ridiculariza, ironiza, provoca, deprecia ou
é sempre do contra).

Depressão (4, 5, 6): A depressão assume várias formas e graus de


intensidade, com etiologias e etologias variadas. Esta é uma das
desordens neuropsiquiátricas mais comuns em todo o mundo, com uma
incidência elevada de tentativas de suicídio a ela associada. A depressão
é classificada de acordo com o seu grau de severidade e diferentes formas
de manifestação clínica em: Distimia, Depressão Maior, Depressão Pós-
Parto, Desordem Afetiva Sasonal, Desordem Disfórica Pré-Menstrual,
Depressão Psicótica, Depressão Atípica. Desordens depressivas podem
também estar associadas a outros distúrbios, tais como transtornos
alimentares, comportamento obsessivo compulsivo, abuso de substâncias
que causam dependência, ansiedade generalizada, síndrome do stress pós-
traumático e síndrome do pânico. A depressão é ainda um dos aspectos da
Desordem Bipolar, também conhecida como Psicose Maníaco-Depressiva
– a qual tem sido associada a fatores genéticos hereditários.

Embora a depressão possa ser oriunda de outros fatores biológicos e


sociais em pacientes sem histórico de abuso ou negligência na infância,
a exposição crônica ao stress durante a infância, devido a trauma, abuso,
ou negligência e seu impacto direto sobre o desenvolvimento cerebral,
emocional, cognitivo e psico-social, criam a situação neuroendócrina que
favorecerá a ocorrência de episódios depressivos ao longo da vida.

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Crianças abusadas e/ou negligenciadas são com freqüência distímicas e


pertencem a um grupo de alto risco para o desenvolvimento de episódios
depressivos mais graves a partir da puberdade ou da adolescência, onde
as bruscas alterações hormonais e o novo pico de desenvolvimento de
algumas estruturas cerebrais (cerebelo, córtex pré-frontal e corpo caloso)
podem ter um impacto desestabilizador sobre os diversos sistemas
neuronais já comprometidos (16, 19, 20, 21, 23, 24, 28).

A Distimia é comum em crianças negligenciadas e/ou abusadas, bem


como em adultos envolvidos em relacionamentos profissionais ou
maritais cronicamente insatisfatórios e estressantes, por longos anos.

Consiste de um estado emocional depressivo crônico e de média


intensidade, caracterizado por melancolia, mau humor, baixa motivação,
baixa auto-estima, apatia emocional, pessimismo, ansiedade, fadiga
crônica, tendência ao auto-isolamento.

Geralmente, a distimia prepara o terreno para alguma outra manifestação


associada a estados depressivos, tal como desordens de comportamento
compulsivo-obsessivo, desordens alimentares (bulimia, anorexia nervosa,
ingestão compulsiva de alimentos), abuso de substâncias que causam
dependência (tabagismo, alcoolismo, uso de drogas) – pontuadas por
pelo menos um episódio de Depressão Maior ao longo da vida adulta. A
distimia pode também ser um prenúncio para a posterior manifestação
de uma doença psicótica hereditária.

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Muitas crianças severamente abusadas ou negligenciadas desenvolvem


uma das formas mais perigosas de depressão, a assim chamada
Depressão Psicótica, na qual a hipervigilância induz a percepção
ilusória de ameaças, a interpretação paranóide de signos interpessoais
(complexo de perseguição), acompanhadas de um sentimento dominante
de inferioridade e inutilidade, deslocamento social, baixa ou nenhuma
resistência a frustrações, ideação suicida e/ou homicida e, por vezes,
alucinações olfativas, auditivas ou visuais (sentem odores inexistentes,
ouvem vozes, experimentam visões, etc). Os episódios depressivos são
intensos e pontuados por instabilidades de humor, irritação, desespero,
tentativas de suicídio, ou auto-mutilação (a criança/ou adolescente/ou
adulto se corta, auto-inflige pancadas na cabeça, mordidas, arranhões).
Pode ser também acompanhada de distúrbios alimen-tares como a
bulimia e a anorexia nervosa a partir da adolescência.

Desordem Disfórica Pré-Mentrual (DDPM) - não é o mesmo que


Tensão Pré-Menstrual (TPM). Trata-se de um distúrbio neuroendócrino
severo, caracterizado ou por episódios de depressão profunda ou por
sucessivos surtos exacerbados de ansiedade paroxística com episódios
de agressividade ou pânico, que têm início duas semanas antes da
menstruação e perdura até o fim desta. Novamente, embora DDPM esteja
associada a anormalidades hormonais e neuroquímicas e possa – em
pacientes sem histórico de abuso – ter uma causa genética endócrino-
patológica, é um distúrbio observado em jovens sobreviventes ao abuso
sexual (principalmente incesto), bem como ao abuso emocional e/ou
físico severo durante a infância.

Depressão Maior ou Depressão Clínica - geralmente é precedida por anos


de distimia e pode ter uma longa duração, de um a três anos, se deixada
sem tratamento.

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É profundamente debilitante, causando prostração emocional e física, com


o paciente sentindo enorme dificuldade em locomover-se (pernas e braços
parecem muito pesados, locomoção lenta, muitas vezes com sensação de
musculatura dolorida), desinteresse pela higiene pessoal ou cuidados
com a aparência, sentimentos de desespero, pessimismo, derrotismo,
ruminação de lembranças dolorosas e traumáticas do passado, desejo de
morte ou planejamento e/ou tentativa de suicídio. Pode ser acompanhada
por alcoolismo, abuso de medicamentos psicoativos ou drogas ilegais.

Depressão Atípica - geralmente se manifesta a partir da puberdade ou


início da adolescência em pessoas com histórico de abuso ou negligência
na infância; e apresenta um comportamento cíclico que alterna episódios
severos e moderados de depressão, pontuados por instabilidade emocional,
hipersensibilidade social, excesso de sono, ingestão compulsiva de
alimentos, com ou sem ataques de pânico. Comportamentos compulsivos
que oferecem alívio temporário à depressão podem estar presentes nesta
e em outras formas de depressão, tais como obsessão por video games
(criança se isola por horas e, se permitido, atravessa noites jogando a
sós).

Jovens e adultos podem mostrar tendência a jogos de azar (bingo, pocker,


roleta, etc) ou consumismo impulsivo de artigos diversos (CDs, tênis,
roupas, etc), o que resulta em endividamento e problemas financeiros
(4).

Tanto o jogo como o gasto impulsivo de grandes somas de dinheiro


produzem um aumento dos níveis de norepinefrina e dopamina no
cérebro, causando uma sensação temporária de gratificação emocional,
poder pessoal e energização física.

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O consumo de álcool, maconha, cocaína ou crack tem um efeito semelhante,


suprimindo temporariamente os altos níveis de neurotransmissores e
hormônios associados ao stress, medo e prontidão para fugir-ou-lutar
(hipervigilância) (6,7,8).

Chocolate fornece ao cérebro feniletilamina, a “substância do amor”, e,


quando consumido em grande quantidade, proporciona sensações de
vitalidade física, exaltação de humor e euforia. A feniletilamina mostrou-
se muito eficaz no tratamento de distimia e outras formas de depressão,
quando administrada farmacologicamente.

Os níveis de metabólitos dessa substância se encontram anormalmente


reduzidos na urina de pacientes distímicos e depressivos. Crianças
e adultos distímicos são com freqüência grandes consumidores de
quantidades diárias de chocolate, o que indica que o organismo está
tentando compensar a deficiência endógena de feniletilamina (9, 10).

Outras Desordens Associadas à Depressão e à Hipervigilância

Ansiedade Generalizada é com freqüência um padrão emocional em


vítimas de abuso crônico na infância, devido à contínua exposição a
um estado de medo, insegurança e stress decorrentes das repetidas
experiências de maltrato durante o desenvolvimento cerebral. As
adaptações deletérias do cérebro a essas experiências estabelece um
padrão persistente de ansiedade e hipervigilância, que pode levar alguns
indivíduos a desenvolverem um ou mais dos seguintes distúrbios:
desordens alimentares, comportamento obsessivo-compulsivo, desordem
do stress pós-traumático, síndrome do pânico.

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A ansiedade generalizada é um estado de tensão neuromuscular e alerta


contínuos que, nos casos de abuso infantil, se inicia com a hipervigilância
durante a infância e se perpetua como um padrão neuro-endócrino ao
longo da vida adulta.

Voltamos a enfatizar que este não é um distúrbio exclusivo de


vítimas de abuso, podendo ser causado por outros fatores, tais como
disfunção hipofisária e/ou adrenal. A ansiedade generalizada pode ser
acompanhada de impulsividade, reatividade emocional, irritabilidade,
tabagismo e/ou alcoolismo, ou uso de drogas ilegais. Pensamentos
antecipatórios de perigos possíveis ou imaginários, medo de perder entes
queridos, medo da pobreza, mesmo quando em boa situação financeira,
são algumas preocupações que assediam esses pacientes – podendo
induzir eventualmente um episódio de Síndrome de Pânico. A agitação
neuro-motora, reatividade comportamental e necessidade de resolver
rapidamente os problemas e cumprir as tarefas e compromissos é um
aspecto do medo de perda de controle sobre a própria vida. Tendem a
assumir muitas responsabilidades e tarefas ao mesmo tempo e acabam
por ter uma crise de esgotamento físico e mental com episódio depressivo
mais grave e risco de suicídio.

Alguns pacientes tornam-se dependentes do uso crônico de


benzodiazepínicos e indutores de sono, devido à prescrição
medicamentosa por não especialistas, sem considerar os possíveis fatores
psicológicos, biológicos e neuropsiquiátricos envolvidos que requerem
tratamento específico e adequado.

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Desordens alimentares - a bulimia, anorexia nervosa e a compulsão


alimentar resultando em obesidade, podem estar presentes a partir da
adolescência em vítimas de abuso ou negligência – embora a última
possa ocorrer também durante a infância. A bulimia e a anorexia são mais
comuns em mulheres jovens e a compulsão alimentar parece acometer
igualmente ambos os gêneros. Porém, voltamos a repetir, não são
distúrbios exclusivos das vítimas de abuso, podendo ter outras causas.

A bulimia consiste na compulsão de ingerir grandes quantidades de


alimento como uma forma de aplacar momentaneamente sentimentos
de ansiedade, carência afetiva, insegurança, rejeição, medo ou mágoa,
através do torpor decorrente da ingestão exagerada de alimentos.

A seguir, algumas induzem o vômito, ou ingerem laxantes fortes e/ou


diuréticos, muitas vezes também acompanhados de sessões extenuantes
de exercícios físicos para não ganhar peso.

É bastante comum entre top models e a falecida Princesa Diane (com um


histórico de abandono pela mãe aos quatro anos de idade) confessou
praticá-la durante seu frustrante e conturbado casamento. Mulheres
bulímicas acabam apresentando uma pele emaciada, palidez, olheiras,
juntamente com vários sinais de distimia ou depressão – embora
raramente ganhem peso.

Anorexia nervosa é com freqüência fatal e acomete jovens distímicas e


com auto-estima baixa, ansiosas por aprovação social e afetiva. Muitas
vezes, é desencadeada por uma simples observação depreciativa sobre
sua aparência, por alguém que ela deseja muito agradar (namorado,
amigas, ou marido) e transforma-se em uma obsessão por ser magra.

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A cantora Karen Carpenter morreu em decorrência de anorexia nervosa


e sua história foi o gatilho para uma ampla discussão desse distúrbio
pela imprensa na época. Pessoas com anorexia nervosa têm um bloqueio
perceptivo de sua real aparência e mesmo estando extremamente magras
ou até mesmo esquálidas, se enxergam ao espelho como “gordas”.
Comem muito parcamente, fazem horas de exercícios físicos, acabam
desnutridas, anêmicas, hipocalcêmicas, com deficiência de hormônios
cuja síntese dependa de níveis mínimos de lipídios (colesteróis e ácidos
graxos) – tal como o estrogênio e progesterona – e param de menstruar.
Podem morrer de súbita falência cardíaca ou entrar em coma.

Alimentação compulsiva leva à obesidade e pode acometer crianças e


jovens emocionalmente ou fisicamente negligenciados ou expostos ao
stress crônico. É comum em crianças distímicas, com baixa auto-estima
e que se sentem rejeitadas ou desamadas. A compulsão de comer está
associada a um estado crônico de ansiedade e a uma sensação de “vazio
na boca do estômago”. Um menino emocionalmente ignorado pela mãe,
que conheci durante a minha infância (vizinho), era muito magro e nunca
tinha apetite. Em um almoço de aniversário dos avós, com amigos e
outros familiares presentes, o menino, então com 6 anos de idade, comeu
sua pequena refeição pela primeira vez sem resistência. O avô o elogiou
muito por ter “limpado o prato” e, a partir desse dia, a criança passou a
comer compulsivamente, chegando a pesar 90 kg aos 11 anos de idade
– época em que perdi contato com ele. Lembro-me de ficar abismada de
vê-lo preparar e comer um imenso sanduíche imediatamente após ter
ingerido um farto almoço.

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Os irmãos dessa criança, bem como os pais e outros parentes eram magros.
A obesidade em decorrência deste distúrbio é muito comum em pacientes
com depressão e pode levar a outras doenças, como hipercolesterolemia,
ateromas, hipertensão arterial, problemas cardíacos, problemas de coluna
e artrose de joelhos e tornozelos.

Síndrome do Stress Pós-Traumático (11, 14, 15, 16) - crianças crônica


e/ou severamente abusadas física ou emocionalmente – ou vítimas de
estupro, incesto, tentativa de assassinato ou expostas a outro tipo de
stressor traumático muito intenso, podem desenvolver alguns anos mais
tarde a síndrome do stress pós-traumático (SSPT). SSPT é uma desordem
também comum em sobreviventes de catástrofes, desastres, violência
urbana, guerras, etc.

O tempo decorrido entre o evento causador e o aparecimento de SSPT pode


ser de alguns meses a vários anos. Algumas vezes, o evento traumático é
suprimido da memória da criança abusada e SSPT toma a forma de uma
constelação de distúrbios aparentemente sem causa. No caso de crianças
vítimas de violência sexual, por exemplo, pode ocorrer uma regressão
para um estágio de desenvolvimento anterior, com manifestações de
ansiedade, irritabilidade e medo, ou ainda apatia afetiva, hipervigilância,
dissociações (principalmente meninas), pesadelos recorrentes e idéias
obsessivas. Ou pode ainda não haver nenhum sintoma visível por um longo
período, com a manifestação dos distúrbios ocorrendo na adolescência ou
na fase adulta. SSPT pode se manifestar de três diferentes formas:

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1) Reencenação do evento traumático – por exemplo, uma menina de


3 anos que assistiu à mãe sendo degolada pelo amante, o qual também
tentou degolar a criança, segurava a boneca pelos cabelos e fazia com a
outra mão o gesto de degolá-la, ao mesmo tempo que dizia “É para o seu
próprio bem, cara!” (11).

2) Retraimento introspectivo - incapacidade de falar sobre o assunto,


evitando eventos, pessoas ou coisas que a lembrem do acontecido,
geralmente acompanhada por estado distímico ou abertamente
depressivo, irritabilidade, pesadelos ou lam-pejos recorrentes de
relembrança do evento acompanhados de forte mobilização emo-cional. É
comum a perda de motivação e significado existencial, com incapacidade
para o prazer e desejo de morrer.

3) Hiper-reatividade fisiológica – taquicardia, hipertensão arterial,


agitação motora, tiques nervosos, enurese noturna, irritabilidade gastro-
intestinal, insônia, sem lembrança do evento traumático (11).

Estudos demonstram que 50% das crianças sexualmente abusadas


apresentam pelo menos sintomas parciais de SSPT e um terço delas
apresentam o quadro clínico completo. Um terço de adultos sexualmente
abusados na infância apresentam SSPT na fase adulta e risco duplicado
para o suicídio (12, 13).

Personalidade Extrema (Boderline Personality) – trata-se de uma síndrome


de distúrbios de personalidade, muito comum em sobreviventes ao abuso
ou negligência durante a infância, cujos sintomas têm geralmente início
antes da puberdade e se estabelecem como um padrão personalístico que
perdura ao longo da vida adulta, se não tratado – embora não seja um
distúrbio exclusivo deste grupo.

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Porém, as seqüelas da negligência e do abuso levam muitas de suas


vítimas a uma percepção dicotomizada e extremamente polarizada dos
relacionamentos interpessoais.

As seqüelas envolvidas são: deficiências cognitivas sociais, intrapessoais


e interpessoais, baixa auto-estima, baixa resistência emocional à rejeição,
hiper-sensibilidade emocional e, com freqüência, a presença de sistemas
neuronais e neuroquímicos pouco integrados entre as áreas cerebrais que
processam emoções, cognição social e percepção não verbal em cada um
dos hemisférios cerebrais e entre ambos (15-17).

Este distúrbio de personalidade afeta a cognição ou modo de perceber


o outro e a si mesmo, criando um padrão cognitivo unilateral do tipo
“isso ou aquilo”, mas nunca “isso e aquilo” no processo de percepção e
apreciação das características de caráter e personalidade. Essa dicotomia
perceptiva impede que um quadro geral de talentos, qualidades, defeitos
e limitações de outros indivíduos e de si mesmo seja formado e integrado
na percepção do paciente.

Ao relacionar-se ou estabelecer vínculos de amizade com outra pessoa,


a persona-lidade extrema somente percebe inicialmente as qualidades
positivas daquela pessoa e projeta grandes expectativas quanto à lealdade,
nobreza de caráter e capacidade de solidariedade dela.

Entra em um processo de deslumbramento quase eufórico de admiração,


confiança, respeito e simpatia por essa pessoa e dedica-se de corpo e alma
a cultivar esse relacionamento, provavelmente devido a um mecanismo
psicológico compensatório pelo desamor e maus-tratos sofridos na
infância. Sente-se emocionalmente nutrida e enriquecida nesta primeira
fase do relacionamento.

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No entanto, à medida em que, ao longo da convivência, vai percebendo


falhas ou inconsistências naturais na personalidade dessa pessoa – ou
quando sente que a reciprocidade ao que oferece não encontra equivalência
da parte do outro – ou ainda, frente a rejeições e decepções genuínas
nesses relacionamentos, as memórias e dores da rejeição, maus-tratos,
negligência ou abandono emocional sofridos no passado são fortemente
associadas a essa pessoa. A percepção que faz dela é transferida de forma
unilateral para o outro extremo – com a canalização do ressentimento e
da frustração da infância fornecendo as tintas para a nova imagem que
se forma, também unilateral. Essa unilateralidade é também um padrão
na percepção de si mesmo (percepção intrapessoal), e do que acontece
em sua vida – de forma que oscila entre estados de grande otimismo e
de grande pessimismo, ao sabor dos acontecimentos. Ao falar ou pensar
sobre si mesma, a personalidade extrema não consegue integrar os
aspectos positivos e negativos: ou se auto-deprecia e sente-se vítima de si
e da vida, ou se super-valoriza e não percebe suas próprias deficiências,
oscilando entre esses dois polos ao sabor das circunstâncias.

É mais fácil compreender esta dinâmica se considerarmos o estudo


anteriormente citado (17) e outros (18, 19) demonstrando que indivíduos
com um cérebro normal processam lembranças e experiências neutras ou
de prazer ou de dor, utilizando e integrando diversas funções de ambos
os hemisférios; enquanto as vítimas de abuso e/ou negligência utilizam
áreas do hemisfério esquerdo para processar informações neutras e
áreas do hemisfério direito para remoerem lembranças traumáticas
e experiências atuais que evoquem essas dores. Desta forma, não há
integração suficiente entre os dois hemisférios para que uma visão realista
da vida, de si mesmo ou do outro possa ser adequadamente internalizada
e representada.

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A exposição crônica à dor, abuso, stress e trauma, embora especialize o


cérebro em sobreviver sob tais condições, não o torna menos sensível, mas
sim, hiper-sensível a experiências semelhantes posteriores, ao mesmo
tempo que compromete a eficiência dos sistemas neurais envolvidos no
processamento integrado delas com outros fatores compensatórios – o
que permitiria a formação adequada de juízos de valor.

Em casos de relacionamentos íntimos (namoro, casamento) ao ver


desmoronar a imagem extremamente positiva (embora unilateral e irreal)
que fazia do parceiro(a), a personalidade extrema pode tentar suícidio
ou, se for também um depressivo psicótico, pode vir a cometer homicídio
seguido de suicídio.

Adultos sem histórico de relações familiares traumáticas na infância,


mas que foram superprotegidos ou mimados por pai ou mãe, podem
também apresentar características de personalidade extrema, pois não
foram expostos a limites, nem tiveram as habilidades de auto-controle
desenvolvidas para suportar críticas ou opiniões que contrariem as
suas – apresentando pouca tolerância a situações de frustração. Podem,
portanto, apresentar essa desordem de personalidade, e, na fase negativa
da percepção do outro, “demonizar” a imagem de amigos, cônjuge,
filhos, etc. Muitos indivíduos com personalidade extrema praticamente
cristalizam essa imagem negativa do outro e passam a sofrer de ilusões
cognitivo-perceptivas que filtram todo e qualquer comportamento,
palavra ou manifestação da outra pessoa através dessa imagem negativa
e unilateral.

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Nos últimos trinta anos, centenas de experimentos sobre a dominância


de cada hemisfério sobre certas percepções, reações e funções do sistema
nervoso central vêm – de forma crescente – identificando as características
funcionais dominantes de cada hemisfério, as vias anatômico-funcionais
de integração e conciliação dessas funções entre ambos – bem como o
impacto de assimetrias entre as estruturas equivalentes de cada hemisfério
sobre os distúrbios psicológicos, neuropsiquiátricos, cognitivos e
comportamentais. Uma relação completa de referências bibliográficas
consultadas e leituras complementares recomendadas estará à disposição
dos interessados no final deste livro, sob a forma de um Anexo. Gostaria
de mencionar apenas alguns dos muitos achados, relacionando essas
diferenças entre os dois hemisférios e os distúrbios que abordamos até o
momento (16 - 25).

A maioria dos estudos sobre a correlação de assimetria volumétrica e


funcional entre os hemisférios cerebrais com os transtornos depressivos,
sugere uma relação de dominância do hemisfério direito na percepção e
processamento de emoções e da memória emocional. Estudos de atividade
cerebral durante a indução experimental controlada de emoções de
tristeza, ou de recordação de eventos traumáticos do passado, produzem
aumento de atividade no hemisfério direito.

Um experimento em que os voluntários tiveram o hemisfério direito


anestesiado com sódio-amital, registrou um aumento da fluência verbal,
mas desprovida de emoções. Este e outros experimentos também apontam
para a dominância do hemisfério esquerdo sobre as habilidades verbais,
cognição sócio-comportamental e controle emocional.

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Estudos com ressonância magnética funcional e com PETscan


demonstraram que a memória de experiências traumáticas da infância
são processadas no hemisfério direito, nas seguintes regiões: córtex
orbital frontal, córtex cingulado anterior, córtex insular, córtex visual e
áreas corticais lobo-temporais.

O subdesenvolvimento ou imaturidade dos sistemas neuronais


envolvidos na cognição social, na habilidade de avaliar conseqüências
de comportamentos e no auto-controle de impulsos emocionais – em
decorrência da estimulação inadequada destes sistemas durante o
desenvolvimento cerebral na infância e/ou lesões induzidas pela
presença de cortisona no cérebro devido ao stress crônico – estão na raiz
de muitos dos distúrbios observados em vítimas de maltrato. Bremner
(20) destaca que vítimas de abuso na infância e veteranos de guerra sofrem
alterações físicas no hipocampo, o qual, além de processar memória, é
uma área importante na administração do stress, funcionando em estreita
colaboração com o córtex prefrontal médio, o qual regula (controla) nossas
reações e respostas ao medo e ao stress.

A redução de neurônios no hipocampo e em áreas corticais foi medida em


vários estudos de vítimas de abuso na infância e em veteranos de guerra
(ex-combatentes) – o que, em muitos casos, pode explicar o esquecimento
do evento traumático ou a lembrança confusa e fragmentada do abuso
sofrido na infância (hipocampo) e a reatividade comportamental e falta
de controle emocional desses indivíduos (áreas corticais do hemisfério
esquerdo) (20-26).

Embora a neurogênese continue ocorrendo no hipocampo ao longo da


vida, o stress (via glicocortisona) inibe o amadurecimento de células
precursoras de novos neurônios nessa estrutura (27).

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Algumas características de personalidade de crianças abusadas e de


adultos sobreviventes - O maltrato infantil trunca o desenvolvimento
emocional, deixando o indivíduo vulnerável e despreparado para lidar
com as asperezas dos relacionamentos humanos e as dificuldades da
vida. Outras áreas de sua personalidade podem ter sido muito bem
desenvolvidas ou até mesmo superdesenvolvidas – como um mecanismo
compensatório – de forma que o contraste entre os dois aspectos pode
ser enorme no jovem ou adulto sobrevivente. Geralmente, o emocional
truncado, desorganizado e imaturo emerge quando o indivíduo se
encontra em situações de revitimização, ameaça, frustração ou stress
– tanto na criança como no adulto sobrevivente. Nesses momentos, um
jovem de 20 ou 25 anos ou um adulto maduro poderá ser dominado
pela criança aterrorizada, birrenta ou raivosa de 3, 5 ou 8 anos de idade
que vive dentro dele. A terapia do adolescente ou adulto sobrevivente
ao abuso será mais eficaz se o psicólogo ou psiquiatra compreender
as diversas fases de desenvolvimento cerebral e emocional da criança
durante a infância, de forma a perceber com clareza os níveis e estágios
de truncamento emocional, intrapessoal e interpessoal de seu paciente.

Crianças abusadas levam as coisas muito a sério – inclusive promessas


– afinal, segundo a experiência delas, o mundo é um lugar ameaçador,
não confiável e imprevisível e é preciso ter cuidado e alguma garantia.
Confiar é difícil, mas, ao mesmo tempo, uma necessidade – é preciso
fazer alianças, contar com alguém – nessa selva em que até familiares
e progenitores podem revelar-se inimigos cruéis e traiçoeiros. Quando
confiam em alguém, o fazem de corpo e alma. Geralmente, oferecem a
mesma dedicação, lealdade e apoio que esperam receber. Elas têm fome
de amor, apoio, aceitação, orientação, modelos de comportamento, etc.

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Mas se traídas, rejeitadas ou deixadas na mão, o seu mundo desaba ainda


mais fundo. A dor é imensa e acompanhada de muita raiva, podendo
desencadear toda uma constelação de sentimentos depressivos, auto-
destrutivos ou agressivos, ou ambos: violência contra si e contra o outro.
É preciso ter em mente que as reações emocionais desses pacientes
– embora fora de proporção ou “exageradas” – expressam o grau de
sensibilidade, vulnerabilidade e imaturidade de seu desenvolvimento
emocional. A repetição do maltrato não desenvolve “calos” ou aumenta
a resistência: apenas trunca o desenvolvimento, induz adaptações
destrutivas, hipersensibilidade e reatividade emocional. Raiva, frustração
e medo estão na essência de comportamentos agressivos e de atitudes de
defesa putativa: ou seja, o indivíduo “supõe” ou “acredita” ou “sente”
que o outro vai agredi-lo – então “se defende” atacando primeiro. Ou
ainda, desenvolve um estilo de comportamento do tipo “não se meta
comigo” para evitar o abuso – aumentando ainda mais a estática em sua
já deficiente habilidade de comunicação interpessoal. Algumas crianças
buscam no auto-isolamento e na auto-suficiência uma forma de poupar-
se de novas decepções e maus-tratos, mas sempre com um sentimento
subjacente de demérito pessoal, mágoa e ressentimento; e ao fracassarem,
tornam-se auto-destrutivas.

Ambientes caóticos, confusos, agitados, cheio de gente estranha, são


desconfortáveis, estressantes e ameaçadores: se não podem evitá-
los, buscam algum tipo de apoio para lidar com eles (cigarro, bebida,
maconha, etc). Quebra de rotina, atrasos em compromissos, mudanças
súbitas de situação, imprevistos, são muito enervantes; quando se tem
uma estrutura interior frágil e pouco organizada, ambientes e rotinas
estruturadas, organizadas e previsíveis, oferecem segurança e ajudam a
lidar com o caos interior.

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Perry destaca que essas sensibilidades devem ser compreendidas e


levadas em consideração na interação e no tratamento da criança e do
adolescente vítima de maus-tratos e/ou negligência (29).

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25. Gurvits, T.G., Shenton, M.R., Hokama, H., Ohta, H., et al. Magnetic resonance
imaging study of hippocampal volume in chronic combat-related posttraumatic
stress disorder. Biol. Psychiatry, 1996; 40:pp 192-199

26. Morgan, M.A., LeDoux, J.E. Differential contribution of dorsal and ventral medial
prefrontal córtex to the acquisition and extinction of conditioned fear in rats. Behav
Neurosciences (1995);109:pp 681-688.

27. Husseini K. Manji, Wayne C. Drevets & Dennis S. Charney. The cellular
neurobiology of depression. Nature Medicine (May 2001); 7:pp541-546.

28. Inside the Teenage Brain. Interview with Jay Giedd. (2004)
http://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/teenbrain/interviews/
18 giedd.html

29. Bruce D. Perry, M.D., Ph.D. Helping Traumatized Children, 2002. The Child
Trauma Academy, Houston, Texas.

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O cérebro humano é o órgão responsável


por tudo o que fazemos.
Ele nos permite amar, rir, andar, falar,
criar ou odiar.
O modo de funcionamento de nossos cérebros
é um reflexo de nossas experiências.
Bruce D. Perry, M.D., Ph.D.
Child Trauma Academy

Resumindo o já visto em capítulos anteriores, o ser humano se desenvolve


e amadurece através dos seus relacionamentos interpessoais. A família é
o primeiro laboratório de experiências interpessoais, onde aprendemos a
formar e manter vínculos afetivos com nossos semelhantes. A partir dela,
o campo de abrangência de nossos relacionamentos será gradualmente
ampliado ao longo da infância, adolescência e idade adulta. Como animais
sociais, nossa espécie depende de relacionamentos para sobreviver. O
indivíduo humano aprende, amadurece, trabalha, ama e procria dentro
de contextos familiares e sócio-culturais que, por mais diversificados que
sejam ao redor do planeta, possuem alguns fundamentos que são essenciais
a todos. Todo grupo familiar ou social saudável está organizado sobre
uma base comum de valores éticos, morais, religiosos e sócio-econômicos,
consensualmente aceita. Essa base de valores compartilhados dá direção
e coesão ao grupo social e serve de terreno para o estabelecimento de
relações interpessoais entre os seus membros individuais.

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A variabilidade da herança genética, com seus diferentes potenciais


e capacidades individuais, encontrará sua melhor ou pior expressão
através do ambiente sócio-familiar no qual o indivíduo cresce e colhe
suas experiências a partir do nascimento. Relacionamentos entre seres
humanos possuem uma natureza emocional.

Os relacionamentos saudáveis e positivos são formados e mantidos


através de sentimentos de amor, confiança, amizade, apreciação recíproca
e solidariedade, que o indivíduo experimenta e aprende a expressar em
seu ambiente familiar a partir de seu nascimento.

Etapas do Desenvolvimento Emocional

A habilidade de formar vínculos emocionais inicia-se com a conexão e


apego que o recém-nascido estabelece com a mãe (ou o adulto cuidador), o
que constitui uma primeira e fundamental base para seu desenvolvimento
emocional futuro. Esse primeiro vínculo proporciona conforto, segurança,
prazer; e qualquer situação percebida como perda ou risco de perda desse
vínculo produz sentimentos de medo e tristeza.

Quando a mãe sorri com freqüência para o bebê, pega-o no colo, abraça-o,
beija-o, faz contato olhos nos olhos, fala com o bebê, alimenta-o, limpa-o
e cuida dele com carinho, o bulbo cerebral e o diencéfalo são ricamente
estimulados, desenvolvendo e organizando sistemas de conexões
somatosensoriais imprescindíveis para o desenvolvimento cerebral
durante os primeiros doze meses de vida (1).

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Nesta fase, a interação com outros membros da família (pai, avós,


irmãos mais velhos e amigos) vai também estimular o sistema límbico
e o neocórtex, embora o estímulo predominante deste período seja o
maternal e/ou do cuidador substituto. A constância e repetição desses
cuidados permitirão a organização dos sistemas neuronais e de padrões
neuroquímicos fundamentais que habilitarão o indivíduo a formar e
manter vínculos emocionais estáveis e sadios com a mãe e com outros
familiares e crianças ao longo da infância.

A partir do 12º mês de vida até os três anos de idade, o sistema límbico e
o neocórtex estarão altamente receptivos a consolidar essas experiências,
não somente com a mãe mas também com os outros membros da família
e amigos. A qualidade dessas interações familiares com a criança e a
qualidade das interações por ela testemunhada entre os adultos da
família, terão uma influência positiva ou negativa na continuidade do
desenvolvimento de sua capacidade de estabelecer e manter vínculos
emocionais saudáveis e no desenvolvimento de suas habilidades de
comunicação social.

A interação com outras crianças é também importante para o


desenvolvimento progressivo de habilidades sociais e aprendizado
gradual de limites de segurança.

O cérebro e o sistema neuro-endócrino possuem “relógios internos” que


estabelecem os ciclos de atividade e repouso, auto regulação de processos
fisiológicos e ciclos do sono. O crescimento e desenvolvimento físico e
o processamento, organização e consolidação das experiências e dos
estímulos do estado de vigília ocorrem durante as horas de sono (2). O
Ciclo Circadiano ou ciclo regulador do sono possui dois picos de indução
ao sono: um à noite e outro após o almoço, entre 1 e 3 horas da tarde.

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Recém-nascidos dormem por longas horas pois, esta fase de crescimento


muito rápido exige altos níveis de hormônio de crescimento, o qual
só é secretado pela glândula hipófise durante o sono. Crianças entre o
primeiro e o sexto ano de vida também necessitam dormir no mínimo 10
horas à noite e 1 a 2 horas após o almoço.

A manutenção de horários e ciclos de atividades apropriados às


necessidades de desenvolvimento da criança é de fundamental
importância para o seu crescimento físico e desenvolvimento cerebral. É
também fundamental para o aprendizado progressivo de auto-controle.
Crianças pequenas que não têm horário regular para comer, brincar,
banhar-se e dormir tornam-se agitadas e ansiosas, pois seus ritmos
biológicos não estão sendo respeitados. O cérebro em desenvolvimento
sente-se seguro na presença de situações previsíveis para o atendimento
de suas necessidades e aciona os mecanismos de stress em situações de
imprevisibilidade, incerteza ou caos, causando agitação e/ou irritabilidade
na criança. Horários, rotinas e limites transmitem sensação de segurança
a crianças pequenas.

Crianças vivendo em ambientes caóticos e desorganizados nos primeiros


anos de vida têm dificuldades em aprender auto-controle, pois seus
sistemas neuronais de resposta ao stress estão hiperativados. Elas
inconscientemente testam continuamente o ambiente e as pessoas,
explorando o território, buscando por limites de segurança.

Carl Gustav Jung relata em suas memórias (2) o caso de uma paciente
que sofria de ansiedade crônica e comportamento agressivo compulsivo
frente à menor frustração ou contrariedade.

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Era uma pessoa culta, família muito rica, que havia sido literalmente
abandonada nas mãos de empregados por seus pais durante a primeira
infância, devido às inúmeras viagens e atividades sociais destes. Como
forma de compensação, os pais informaram à menina aos três anos
de idade que “ela era a dona da casa na ausência deles” e instruíram
os empregados (governanta, babá, mordomo, motorista) para jamais
contrariá-la.

A paciente, agora perto dos trinta anos, possuía um longo prontuário


psiquiátrico de distúrbios de ansiedade generalizada e comportamento
agressivo-compulsivo, com múltiplos episódios de esbofeteamento
de médicos, psiquiatras, enfermeiros, empregados e garçons. Após a
entrevista inicial, durante a primeira consulta terapêutica com Jung, este,
depois ouvir atentamente a paciente por vários minutos, fez a ela uma
pergunta que a desagradou. A paciente pulou da cadeira com a mão
levantada, pronta para desferir um tapa no rosto de Jung, o qual também
se levantou calmamente e ergueu a sua própria mão. A paciente olhou
desconcertada para ele e hesitou. Jung disse calmamente: “Primeiro as
damas”. A paciente, estupefada, voltou a sentar-se e relaxou. A partir
desse momento, sentiu-se segura na presença do médico e respondeu
muito bem à terapia, libertando-se de sua compulsão agressiva e
ansiedade em poucos meses. Jung explicou que a psique humana precisa
perceber limites para se sentir segura e se desenvolver de forma sadia; e
que a negligência parental da infância somada à ausência de limites, havia
criado um estado inconsciente de pânico naquela paciente, resultando
em um distúrbio de ansiedade generalizada e reatividade compulsiva.
Esse episódio ilustra a forma ameaçadora que o ambiente assume para
o cérebro, quando não oferece à criança os elementos necessários à
segurança emocional e ao desenvolvimento progressivo do auto-controle
a partir da primeira infância.

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Acabo de receber por e-mail (enquanto escrevia este exemplo) um artigo


de Maria Irene Maluf, Vice-Presidente da ABPP – Associação Brasileira
de Psicopedagogia, exatamente sobre a importância do aprendizado de
limites (3). A autora define limite como aquela fronteira sutil de respeito
e responsabilidade por seus atos... aquele ponto de onde não se deve
passar, pois se está entrando no que pertence ao outro; ou aquele lugar
até onde a criança vive em segurança física e emocional.

Ressalta ainda que a falta de delimitação é sentida como ausência de


afeto, de amor, de atenção. A incapacidade de oferecer à criança este
importante aprendizado ativo é uma das formas de negligência que,
como ilustrado pelo caso da paciente de Jung e reconhecido por muitos
especialistas em educação infantil, pode levar a distúrbios emocionais e
comportamentais sérios, com conseqüências deletérias de longa duração
para as habilidades sociais e interpessoais do indivíduo.

A criança pequena internaliza gradualmente a habilidade para


o auto-controle através da forma como os adultos ao seu redor se
comportam em seus próprios relacionamentos e no modo como tratam
a criança e conduzem a sua rotina diária. A coerência entre palavras e
comportamento, tom de voz e atitudes dos adultos que dela cuidam são
o primeiro modelo. A repetição de reações calmas, coerentes e ao mesmo
tempo firmes em resposta a comportamentos indesejáveis específicos, cria
um padrão de previsibilidade e coerência que a criança percebe, levando-
a a compreender o significado das ações. Esse padrão será o modelo
de relacionamento interpessoal que ela internalizará e gradualmente
reproduzirá no trato com seus semelhantes, em situações equivalentes.
Elogiar demonstrações de auto-controle também a incentivam nessa
direção.

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O cérebro imaturo é especialmente sensível aos sinais de imprevisibilidade


do meio ambiente, que são percebidos como uma ameaça à sua segurança
ou um perigo à sobrevivência, acionando as vias metabólicas do stress.

Quando horários e rotinas não são regularmente respeitados durante


os primeiros anos de vida, o desenvolvimento progressivo do auto-
controle ao longo da primeira infância fica comprometido, resultando
em hiperatividade, impulsividade emocional, problemas disciplinares na
escola, etc.

A gradual internalização e representação do auto-controle pelo cérebro


em desen-volvimento é essencial tanto para a segurança emocional da
criança quanto para o posterior aprendizado de habilidades sociais, fase
na qual o auto-controle será amadurecido.

Durante a fase pré-verbal, a principal forma do bebê anunciar suas


necessidades é o choro, pois o cérebro está constantemente sentindo e
respondendo às necessidades do corpo e qualquer desconforto (frio, fome,
medo, sede, dor, etc) ativa a reação instintiva de chorar para obter ajuda.
O atendimento dessas necessidades em resposta ao choro fica associado
no cérebro como uma forma importante de comunicação e de mecanismo
de sobrevivência.

Nesta fase, é o ambiente externo que exerce uma ação regulatória, através
do atendimento das necessidades da criança. Se este atendimento é
eficiente e acompanhado de carinho e compaixão, um vínculo emocional
fundamental é estabelecido com o adulto cuidador, lançando as bases
para a segurança emocional.

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Em outras palavras, a repetição dessas respostas adequadas pela


mãe vai estimular o desenvolvimento de sistemas neurais ricos nos
centros cerebrais correspondentes ao afeto, permitindo a representação
internalizada do amor, confiança, segurança, capacidade de criar e
manter vínculos afetivos (4).

À medida que a criança amadurece e desenvolve a linguagem, passa a


ser também capaz de reconhecer e comunicar suas necessidades e, em
uma fase posterior de amadurecimento psico-motor, de buscar o auto-
atendimento de algumas dessas necessidades. A capacidade para o
auto-controle depende do grau de segurança emocional da criança e
amadurece progressivamente ao longo da infância. Se bem conduzido
pelo ambiente familiar desde a primeira infância, desenvolverá na criança
a posterior capacidade de lidar com calma e tolerar um certo grau de
desconforto transitório (fome, sede, cansaço, frustração, ansiedade, etc).
Isso ajudará a criança a controlar seus impulsos e reações (auto-regulação)
em diversas situações de obstáculos e desafios com que será confrontada
durante o desenvolvimento de habilidades sociais e cognitivas. Por
exemplo, esperar sua vez para utilizar um determinado brinquedo,
aceitar parar de brincar quando é hora de tomar banho ou de dormir,
aceitar responsabilidades, organizar e planejar suas atividades (hora de
estudar, fazer lição de casa, guardar os brinquedos ou material escolar
após usá-los, etc), sentir-se confiante para ensaiar novas habilidades e
aprender com seus fracassos iniciais. O aprendizado do auto-controle
implica, portanto, o desenvolvimento da capacidade de tolerar um certo
grau de frustração e de ser contrariado por um adulto ou por outra
criança, ou ainda, de superar suas próprias inabilidades em cada nova
fase de aprendizado.

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O desenvolvimento do auto-controle é um aprendizado ativo e requer a


ação adequada do cuidador no estabelecimento justo e claro de limites e
na sua manutenção.

A partir dos 3 anos de idade, o cérebro está receptivo à progressiva


socialização (sistema límbico e córtex pré-frontal). A criança passa a
buscar cada vez mais a companhia de outras crianças, estabelecendo
vínculos de amizade, aprendendo a brincar em grupo. Crianças que só
conviveram com adultos nos primeiros três anos têm mais dificuldade
inicial na socialização com outras crianças na pré-escola, primeiramente
observando-as e brincando em paralelo ou procurando envolver em sua
brincadeira algum adulto presente. Gradualmente, estabelecem vínculo
com uma ou duas crianças do grupo, ampliando posteriormente seu
campo social. Nesta fase, podem ser formadas e rompidas diversas
alianças, com algumas amizades por vezes perdurando pelo resto da
vida (4).

A habilidade (e necessidade) de afiliação ao grupo social depende desse


processo de gradual socialização, sendo fundamental para a capacidade
posterior de sobreviver, aprender, trabalhar e manter diversos níveis de
relacionamentos sociais e interpessoais.

Aos poucos, na interação com outras crianças, o indivíduo aprende as


“regras grupais” e desenvolve a habilidade de utilizar esses códigos
implícitos do relacionamento grupal em suas interações, tais como: 1), a
auto-regulação (capacidade de fazer concessões e exigências razoáveis,
resolver conflitos, controlar impulsos, etc); 2), a capacidade de perceber e
apreciar diferenças individuais; 3), capacidade de empatia.

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Algumas crianças têm mais dificuldades do que outras nesse processo,


principalmente aquelas desatendidas nos aspectos acima discutidos e as
que são vítimas de algum tipo de abuso ou negligência familiar. A criança
com hipervigilância, hiperatividade, falta de auto-controle, agressividade
ou ainda, sofrendo de baixa auto-estima e timidez, pode ser rejeitada por
outras crianças do grupo.

O indivíduo humano possui uma necessidade de sentir-se parte de um


grupo social (necessidade de afiliação) e seu isolamento ou rejeição pelo
grupo irá comprometer o aprendizado de habilidades sociais e ativar os
sistemas neurocerebrais do stress.

Tal rejeição pode levar a dois modos opostos de reagir: maior retração
e auto-isolamento ou maior hiperatividade e agressividade. Se deixadas
sem atendimento adequado por pais, professores ou outros profissionais,
a tendência dessas crianças será, em uma fase posterior, a de se associar
com outras crianças também marginalizadas, desenvolvendo hábitos
auto-destrutivos e comportamentos de rebeldia na escola, família e
sociedade (5). Além disso, a genética também tem um papel importante
no tipo de temperamento com que nascemos. O cérebro de indivíduos
extrovertidos é diferente dos introvertidos. Alguns estudos demonstram
que os introvertidos têm menos tolerância a ruídos e ambientes agitados,
preferindo ambientes mais calmos, pequenos grupos de amigos, pois
sentem-se desconfortáveis em multidões e grandes agrupamentos – em
contraste com o temperamento extrovertido que aprecia festas, “baladas”,
esportes coletivos, etc (6).

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Assim como nas demais habilidades, a capacidade de afiliação começa a


desenvolver-se na relação da criança com a família/adultos cuidadores,
dependendo da forma como a criança é tratada e da qualidade dos
vínculos emocionais formados no ambiente familiar. Disso depende o
aprendizado individual de como se comunicar, ouvir e ser ouvido pelo
outro, fazer acordos, concessões, compartilhar, etc. Enfim, um conjunto
de habilidades sociais que são fundamentais para a boa integração
social. A família, volto a repetir, é o primeiro e fundamental núcleo de
aprendizado emocional, comportamental e social da criança.

A família tem também um papel importante no desenvolvimento de


preconceitos étnicos e religiosos, que são transmitidos “automaticamente”
dos adultos para a criança, quando esta ouve certos comentários desairosos
ou piadas depreciativas a respeito de certas raças, grupos religiosos ou
sociais. A criança internaliza a carga emocional de aversão do adulto
contra esses grupos e/ou raças e reage de forma semelhante com crianças
pertencentes a raças ou grupos alvos do preconceito de seus familiares.

No entanto, um dos elementos chave da afiliação social é a capacidade


de aceitação e apreciação das diferenças individuais, sejam elas raciais,
culturais ou religiosas, pois estas diferenças estarão presentes em todas as
instâncias da vida social (escola, trabalho, etc).

Ensinar a criança a compreender, apreciar e aceitar essa diversidade de


expressão da natureza universal do ser humano é obrigação primordial
da família e, em uma segunda instância, da escola.

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As habilidades para trabalhar, conviver, criar e cooperar com outros


indivíduos ao longo da vida dependem em grande parte desse
aprendizado familiar, o qual está nas raízes do desenvolvimento tanto da
tolerância e respeito ao próximo quanto do auto-respeito.

Bruce Perry afirma que as bases das seguintes estruturas devem estar
desenvolvidas, para que o aprendizado emocional e social da tolerância
seja possível:

• vínculos emocionais saudáveis;


• auto-regulação;
• afiliação;
• consciência da diversidade individual e das bases comuns da natureza
humana que são compartilhadas por todos os indíviduos, raças e
culturas.

Ressalta também que somente crianças emocionalmente seguras são


capazes de aprender tolerância, pois somente crianças expostas a
experiências familiares que promovam sentimentos de amor (sentir-se
amada e amar), sentindo-se aceitas e valorizadas e com auto-estima bem
estruturada, possuem a capacidade de aprender tolerância. Esclarece
ainda que possuímos uma tendência neurobiológica a nos associarmos
a pequenos grupos de pessoas que sejam semelhantes a nós e uma
tendência a desconfiar e a temer pessoas que são diferentes e a quem
não compreendemos. Portanto, o desenvolvimento da tolerância é um
aprendizado ativo que requer orientação, informação e exposição a
experiências grupais com crianças de diferentes etnias e culturas (3).

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De fato, nosso cérebro teme ou desconfia do desconhecido, devido aos


mecanismos evolucionários de sobrevivência das espécies, também
preservados no cérebro humano. No entanto, somos muito receptivos
ao aprendizado da tolerância durante as fases de desenvolvimento da
socialização na infância – período crítico para a formação de habilidades
interpessoais saudáveis que se refletirão na personalidade e nas
habilidades sociais pelo resto de nossas vidas.

A repetição de padrões de intolerância aprendidos na família e perpetuados


na dinâmica grupal entre crianças é bem visível, principalmente na fase
escolar, com crianças humilhando e caçoando de seus coleguinhas por
serem racialmente ou fisicamente diferentes, com expressões como
“alemão batata”, “japa”, “debilóide”, “beirada de pizza”, “encardido”,
“balofo”, “quatro olhos”, “perneta”, etc.

Muitas vezes esse comportamento progride para o nível da agressão


física, intimidação e exploração das crianças vistas como diferentes pelo
resto do grupo.

No entanto, a criança intolerante é, segundo B. Perry, fundamentalmente


insegura a respeito de seu próprio status, habilidades, crenças e valores;
em suma, falta-lhe a capacidade de respeitar a si mesma (3).

Proporcionar à criança os subsídios emocionais, afetivos e cognitivos que


lhe permitam sentir auto-respeito e respeito pelo próximo, são também
uma atribuição e responsabilidade primária da família e secundária de
professores e psicopedagogos.

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Respeito é também um aprendizado ativo e requer maturidade emocional,


social e cognitiva, o que depende do desenvolvimento adequado
dos fatores anteriormente abordados: vínculos afetivos sadios, auto-
regulação, afiliação, consciência das diferenças individuais e tolerância,
segundo Perry (3).

Ensinar a criança a perceber e admirar qualidades positivas em outras


pessoas da família, em amigos, figuras históricas (uma avó amorosa e
sábia, uma criança gentil, uma pessoa honesta, uma figura heróica, etc),
ou contar histórias ou estórias e fábulas com um conteúdo ético/moral
positivo, são algumas das formas de estimular em crianças pequenas o
desenvolvimento dessa apreciação.

Através de estórias, o imaginário da criança não apenas é estimulado,


mas pode ser enriquecido com sentimentos de amor à beleza, justiça e
bondade, que estimularão a formação e manutenção de sistemas neurais
sadios nos centros cerebrais que processam as emoções morais (lobo
temporal anterior) (6).

Fazê-la sentir-se apreciada por suas qualidades e ações positivas, ensinam-


na a identificar em si mesma e nos outros essas mesmas qualidades e a
apreciá-las. Mas acima de tudo, a criança colherá de sua experiência com
os adultos de sua família os modelos de comportamento que testemunhar
e a que for exposta - assimilando deles o exemplo, muito mais do que o
discurso. Desta forma, ela internalizará os valores (positivos ou negativos)
a que for exposta através do comportamento dos adultos de sua vida.

Existe atualmente no Brasil uma visão equivocada e bastante comum por


parte de muitos pais (pai e mãe), de que “cabe à escola o papel de educar
seus filhos”.

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Educação é responsabilidade fundamental e inalienável de: pais ou


familiares responsáveis (avós, tios); ou de tutores legais. Cabe a eles a
responsabilidade de formar a infra-estrutura psico-emocional e social
adequada – a partir do berço e ao longo de toda a infância – para o
desenvolvimento de um indivíduo emocionalmente saudável e com
as bases ético-morais para o aprendizado de habilidades sociais. Cabe
à escola reafirmar esses valores aprendidos primeiramente na família
e continuar o seu desenvolvimento, ao mesmo tempo que instrui e
desenvolve as capacidades sócio-cognitivas e intelectuais da criança.
Nunca porém, a escola poderá substituir a responsabilidade parental e
familiar no desenvolvimento emocional e educacional da criança e nem
mesmo é este o seu papel.

Infelizmente, um grande número de professores brasileiros são hoje


amplamente desrespeitados na maioria das escolas, tanto por seus
alunos quanto pelos pais destes, quando ainda não se tornam vítimas de
violência física. Some-se a tudo isso o desrespeito do Estado para com estes
profissionais – sob a forma de remuneração aviltante e falta de programas
regulares de educação continuada, vivências e atualização pedagógica – e
temos a receita do presente desastre na qualidade de ensino desta nação,
empobrecimento progressivo e brutal do conteúdo programático escolar
dos últimos 40 anos e, por conseqüência, queda na qualidade do conteúdo
disciplinar de uma variedade de cursos universitários – inclusive o de
Pedagogia.

Por outro lado, em vista da inversão de valores que permeia hoje a nossa
sociedade e do crescente número de casos de paternidade/maternidade
entre menores de 18 anos, um programa pedagógico de orientação
e preparação para a sexualidade e para a paternidade/maternidade
responsável deveria ser urgentemente incluído nas séries do ensino

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secundário (e não estou falando simplesmente de puericultura... mas de


programas de prevenção de gravidez durante a adolescência).

O Cérebro na Adolescência – um Novo Período Crítico

Acreditava-se, até muito recentemente, que ao entrar na adolescência o


cérebro já tivesse atingido seu pleno desenvolvimento, visto que aos 3
anos de idade, seu volume corresponde a 90% do tamanho do cérebro
adulto e aos 6 anos, a 95%.

No entanto, pesquisadores do National Institute of Mental Health (NIMH) do


governo americano encontraram provas recentes de que o córtex frontal, o
corpo caloso e o cerebelo entram em uma nova fase de rápido crescimento
e reorganização no início da puberdade e primeiros anos da adolescência,
com a rápida formação de inúmeras conexões neuronais novas, seguidas de
morte neuronal e desaparecimento seletivo de vários desses novos sistemas
nas fases posteriores da adolescência – do mesmo modo que as conexões
formadas e não reforçadas pela repetição de experiências desaparecem
nas fases iniciais do desenvolvimento do bebê e da criança pequena (7).

Durante a segunda fase da infância (após os seis anos de idade) o cérebro


continua a se desenvolver lentamente, principalmente nas áreas corticais.
Ao redor dos 11 anos em meninas e 12 anos em meninos, o córtex frontal
retoma um rápido desenvolvimento, principalmente das estruturas
responsáveis pelo pensamento, planejamento, avaliação de conseqüências,
organização e julgamento. Após esse novo pico de crescimento e formação
de novas conexões neuronais, ocorre uma poda neuronal, que elimina
parte dessas novas conexões, com o cérebro gradualmente se organizando
com as caraterísticas “ finais” que assumirá em seu estado adulto.

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É importante lembrar que o cérebro é um órgão plástico e adaptável


a novas experiências ao longo de toda a vida, sempre aprendendo e
se adaptando a novas formas de experiências criativas – ou sofrendo
adaptações lesivas em situações de falta de estímulos, crise, trauma ou
stress prolongado.

Assim como os pesquisadores da neurobiologia do desenvolvimento


do cérebro pós-natal enfatizam a importância da boa qualidade e da
repetição das experiências no desenvolvimento emocional e cognitivo dos
primeiros meses de vida, Jay Giedd (7, 10), o principal investigador do
desenvolvimento cerebral durante a puberdade e adolescência no NIMH,
vê o rápido crescimento cerebral na puberdade e adolescência como uma
nova oportunidade para a aquisição de novos talentos e habilidades e
ressalta que os tipos de atividade e de experiências a que o adolescente é
exposto nessa fase irão afetar o modo como seu cérebro irá se desenvolver
e integrar os novos sistemas neurais formados. Ele exemplifica: Se um
adolescente está praticando música, ou esportes, ou estudando, essas
serão as conexões neurais e células que irão sobreviver (7) (à poda
neuronal de reorganização que sucede a esse novo estirão de crescimento
cerebral). Alerta, ainda, que a adolescência e o início da idade adulta são
períodos especialmente críticos na escultura final do cérebro, onde o que
não for usado será perdido.

Na puberdade e adolescência, o cérebro está especialmente vulnerável ao


impacto lesivo de drogas, tabagismo e álcool; e o uso do álcool e de drogas
que causam dependência, nesta fase, afetará o cérebro pelos próximos 80
anos da vida do indivíduo, segundo Giedd (7).

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Este segundo estirão de desenvolvimento cerebral equipa o adolescente


com os recursos neuronais e representações necessárias para lidar com
as responsabilidades e desafios da vida adulta e inicia a consolidação
integrada e especializada de diversos talentos, potenciais e habilidades. É
também uma época de oportunidades e riscos aumentados, dependendo
da natureza das experiências a que se é exposto nesta fase e a que se foi
exposto durante a infância.

O estudo de gêmeos idênticos (univitelinos) com PETscan e Ressonância


Magnética Funcional (RMf) demonstra que, apesar da herança genética
idêntica, as escolhas de atividades diferentes durante a adolescência
leva ao desenvolvimento de habilidades diferentes entre os dois irmãos
ou irmãs – influenciando no desenvolvimento diferenciado de áreas
cerebrais específicas (7).

Sabe-se atualmente que o cerebelo não é responsável apenas pela


coordenação motora, mas também pela coordenação dos processos
cognitivos e racionais – e indiretamente, atua sobre os controles do
comportamento – continuando a desenvolver-se até os 20 anos de idade.
O cerebelo é uma das estruturas cerebrais em crescimento acelerado
durante a adolescência, de forma que as experiências cognitivas racionais
e sociais e a rotina da criança nesta fase possuem um impacto sobre seu
resultado funcional final. O bom desenvolvimento do cerebelo durante a
puberdade e adolescência requer tanto estímulos físico-motores (prática
de esportes, dança, ginástica, caminhadas, atividades físicas diversas)
quanto sensório-cognitivos (música, artes plásticas, interações sociais,
estímulos intelectuais).

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O córtex frontal e o corpo caloso também entram em crescimento e


processo de espessamento a partir da puberdade e serão beneficiados
durante a adolescência pela qualidade e repetição ótima desses estímulos,
pois muito da capacidade do adulto de construir juízos de valor, discernir,
raciocinar e integrar novas experiências e percepções, de forma criativa,
dependerá dessa segunda etapa de intenso crescimento (novos sistemas
neuronais) e reorganização dessas estruturas (poda do que não é usado).

Embora a amígdala não esteja em crescimento durante a adolescência,


pelo que se sabe até o momento, ela é muito estimulada a partir da
puberdade. Estudos de neuropsicologia do McLean Hospital em Belmont,
Massachussetts, conduzidos pela equipe de Deborah Yurgelun-Todd com
RMf, têm comparado o cérebro de adultos e de adolescentes e púberes
(entre 11 e 17 anos) enquanto são expostos a diferentes expressões faciais
cujas emoções eles devem identificar; e durante a execução de uma série
de testes com palavras (8). Nos adultos submetidos a esses experimentos,
a RMf mostrou que a área cerebral mais estimulada era a dos lobos frontais
e, secundariamente, dos lobos temporais. No grupo de adolescentes, os
entre 11 e 14 anos de idade utilizaram muito mais a amígdala do que o lobo
frontal para identificar emoções nas imagens apresentadas e cometeram
vários erros de identificação. Entre os adolescentes mais velhos, notou-
se uma correlação entre idade e progressivo aumento do uso dos lobos
frontais e gradual diminuição na ativação da amígdala frente aos mesmos
estímulos – com diminuição progressiva de erros na identificação de
expressões faciais e emoções correlatas. Também revelou diferenças na
forma como adultos e adolescentes interpretam as emoções em rostos.

Nos testes, 100% dos adultos identificaram corretamente expressões de


medo, enquanto somente 50% dos adolescentes foram capazes de fazê-lo
(9).

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Isso sugere que, ao relacionarem-se com pais ou adultos, os adolescentes


nem sempre percebem corretamente o que o adulto está expressando,
desta forma percebendo raiva, onde ela não existe, ou tristeza onde
não há tristeza (9). Além disso, a maior ativação da amígdala do que
do córtex frontal por estímulos emocionais e interpessoais indica que os
adolescentes não pensam ou avaliam adequadamente as conseqüências
de suas ações, mas agem mais por impulso.

Um novo estudo com 200 pessoas e que inclui um subgrupo de


adolescentes com esquizofrenia, desordem bipolar, depressão e
dependência de maconha está em andamento (8). Outros estudos em
andamento por equipes lideradas pela médica, estão analisando as
alterações neuroquímicas que ocorrem no desenvolvimento cerebral a
partir da puberdade e as interações entre as áreas corticais e os centros
mais primitivos do cérebro (amígdala, tálamo, hipotálamo) durante
a adolescência. Os dados parciais já obtidos podem ajudar a explicar
porque os adolescentes têm mais dificuldade de controle emocional,
além de outras peculiaridades cognitivas desta fase, bem como a natureza
emocional de suas reações comportamentais.

Ainda no final dos anos 90, portanto antes dos achados recentes de Giedd
e Yurgelun-Todd, diversos estudos indicavam a importância de horas
regulares de sono durante a puberdade e adolescência e o Relatório do
NIMH de 2001 referente ao período de pesquisas 1998-2000 sobre a Saúde
Mental da Criança e o do Adolescente já dava destaque a essa questão
(11).

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Estudos sobre o tempo ótimo de sono na puberdade e início da


adolescência realizados pelo NIMH (pag. 42 do Relatório de 2001)
afirmam que de 8 a 9,5 horas de sono por noite são necessárias nessa fase,
visto que o próprio ciclo circadiano passa por readaptações que poderão
ter um impacto a longo prazo. Horas de sono insuficientes levam a um
baixo desempenho escolar, irritabilidade e tendência a usar estimulantes
para manter-se desperto durante o dia (cafeína, nicotina). Longas horas
de video game, televisão, internet e brinquedos eletrônicos no início da
noite também agem como estimuladores que afetam o ciclo circadiano e
induzem agitação e insônia.

Nesta fase final de desenvolvimento e maturação do cérebro, o


desenvolvimento de hábitos noturnos e horas insuficientes de sono pode
ter impacto a longo termo no cérebro adulto, com a probabilidade de
estarem associados a distúrbios do sono em adultos jovens, difíceis de
reverter. O NIMH recomendou em 2001 que pesquisas fossem iniciadas
para esclarecer esse assunto.

Montessori, Piaget e Steiner já alertavam, no início do século XX, para


a importância da atividade física diária (esportes, ginástica, trabalhos
manuais, etc) na puberdade e adolescência para o melhor desenvolvimento
psico-emocional e cognitivo do indivíduo. É também uma boa estratégia
para a canalização sadia da energia física extra desta fase durante o dia e
a indução de uma noite de sono mais longa e reparadora.

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REFERÊNCIAS

1. Bruce Perry. Neurodevelopmental Impact of Child Maltreatment: A ChildTrauma


Academy Presentation. www.ChildTrauma.org

2. Green, C.B., Menacker, M. Circadian Rhythms: Clocks on the Brain. Science (2003)
301: 319-320.

3. Jung, C. G. 1961a. Memories, Dreams, Reflections, ed. A. Jaffe, trans. R. and C.


Winston, 196. New York: Vintage.

4. Maria Irene Maluf. Falando sobre a difícil tarefa de educar. Press Release enviado
por Francisco Galvão e-mail: francisco@cgcomunicacao.com.br (25 de maio de
2004).

5. Bruce D. Perry. The Six Cores of Emotional Development.


http://teacher.scholastic.com/professional/bruceperry/sixcore.htm

6. Gazzaniga, M. S. 1992. Nature’s Mind: The Biological Roots of Thinking, Emotions,


Sexuality, Language, and Intelligence, 50. New York: Basic Books.

7. Ricardo de Oliveira Souza, Prof. Dr. em Neuropsiquiatria (em entrevista a Paula


Mageste). Psicopata: você conhece um. Revista Época,( 24 de Maio de 2004); 314:pp
64-69.

8. Inside the Teenage Brain. Interview with Jay Giedd. (2004)


http://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/teenbrain/interviews/
giedd.html

9. Misia Landau. Deciphering the Adolescent Brain (Harvard Medical School


– Psychiatry). The Harvard University Gazette. (AWSNA WHSRP Research Material
18-19 – 2004)

10. Inside the Teenage Brain. Interview with Deborah Yurgelun-Todd. (2004)
http://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/teenbrain/interviews/
todd.html

11. Thompson PA, Giedd JN, Blanton RE, Lindshield C, Woods, RP, MacDonald
D, Evans AC, Toga AW (2000) Growth Patterns in the Developing Human Brain
Detected Using Continuum-Mechanical Tensor Maps and Serial MRI. Nature 404:
190-192.

12. The National Advisory Mental Health Council Workgroup on Child and
Adolescent Mental Health Intervention, Development, and Deployment. “Blueprint
for Change: Research on Child and Adolescent Mental Health.” Washington, D.C.:
2001. PP. 40-45.

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Se a tua única ferramenta


de trabalho é o martelo,
tua tendência é tratar
todos os problemas como pregos.
Abraham Maslow

Múltiplos Fatores Causais e Abordagem Multidisciplinar

O abuso e/ou a negligência infantil é um mal com múltiplas dimensões


tanto em suas causas quanto em suas conseqüências. Não é um problema
da criança, mas um mal sistêmico de natureza familiar-social, que
envolve diversos fatores presentes no ambiente em que a criança nasceu e
existe, sendo, portanto, um problema contextual, dentro do qual a criança
é básicamente objecto receptor de uma ou mais formas de maltrato e/ou
negligência. O tratamento da criança nestes casos exige do profissional
– psicólogo e psiquiatra – um treinamento clínico específico e a clara
compreensão do seguinte (1):

• Processo de desenvolvimento psico-biológico normal da criança não


abusada ou negligenciada.

• Psicopatologias induzidas pelo abuso e negligência infantil em cada


um dos níveis de desenvolvimento da criança: cerebral, psico-motor,
cognitivo, emocional, sócio-comportamental e psicológico.

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• Fatores contextuais (i.e., familiares e sociais) de risco e/ou associados


ao abuso/negligência infantil.

• Métodos de avaliação da criança em função de seu meio ambiente,


identificação de disfunções emocionais, comportamentais, cognitivas,
etc. e tipos de abuso/negligência implicados em cada caso e seu grau de
severidade.

• Técnicas de intervenção terapêutica dirigidas aos problemas


identificados na criança e em sua família.

• Treinamento educacional e clínico especializado para o desenvolvimento


das habilidades necessárias à intervenção terapêutica adequada a cada
caso.

Além do psicólogo e do médico psiquiatra, o médico pediatra de serviços


emergenciais, o assistente social, o psicopedagogo, o professor, e os juízes
e promotores da Vara do Menor, bem como policiais, devem também
ser munidos com informação científica adequada para a identificação,
avaliação, intervenção, proteção, encaminhamento e tomadas de
decisão.

A Psicopatologia do Desenvolvimento é uma disciplina que investiga


a disfunção clínica no processo de desenvolvimento cerebral e
amadurecimento psico-emocional-cognitivo e sócio-comportamental
da criança a partir do nascimento, com base no conhecimento do
desenvolvimento normal (em contexto saudável) e do impacto de
acontecimentos existenciais traumáticos e de experiências de maltrato, falta
de supervisão e negligência sobre o desenvolvimento multidimensional
da criança (1).

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Nesta disciplina convergem informações geradas pela neurociência,


genética, sociologia, psiquiatria, psicologia, pedagogia e criminalística
– exigindo do profissional tanto uma visão multi e interdisciplinar dos
diversos contextos em que o abuso e/ou a negligência acontece, quanto
das diversas dimensões do dano causado em suas vítimas.

O impacto lesivo do abuso/negligência infantil é multidimensional e


compromete o desenvolvimento normal dos seguintes aspectos:

• Desenvolvimento físico: cerebral, neuro-endócrino, motor.


• Desenvolvimento cognitivo: memória, atenção, etc.
• Desenvolvimento intrapessoal: percepção de si mesmo, percepção de
suas emoções, auto-estima, auto-respeito, etc.
• Desenvolvimento interpessoal: afetividade, valores emocionais,
percepção dos outros, expectativas, habilidades sociais, capacidade de
respeitar outros.
• Desenvolvimento sexual: percepção da sexualidade, comportamento
sexual.
• Desenvolvimento comportamental: significado das ações, interações
comporta-mentais, auto-regulação de impulsos e auto-controle.

É importante que o profissional compreenda que essas diferentes áreas de


desen-volvimento constituem um ecossistema, onde o comprometimento
de uma ou duas delas terá um impacto sobre as demais.

Sistemas são organizações complexas e sensíveis, nos quais distúrbios em


um de seus aspectos se refletem no sistema como um todo. Por exemplo,
a sócio-biologia estuda uma determinada espécie em função de seu meio
ambiente.

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O meio ambiente é de fato um universo composto pelo animal objeto


do estudo & seu ambiente: território, comportamento, outras espécies
animais vivendo no mesmo ecossistema, influências climáticas, cadeia
alimentar e pressões de diversas naturezas que interferem em sua
sobrevivência. Portanto, um organismo só faz sentido quando visto sob
a ótica multidimensional dos fatores que contribuem para o sucesso ou
fracasso daquela espécie.

O mesmo ocorre com o ser humano, tanto na saúde quanto na doença.


O homem e seu ambiente multidimensional devem ser considerados
como um todo, se quisermos evitar soluções simplistas e unilaterais
– com resultados geralmente desastrosos – principalmente em áreas tão
complexas e multifatoriais como a da intervenção terapêutica junto à
criança abusada/negligenciada e sua família.

As Multidimensões do Ecossistema Social e Fatores de Risco

Garbarino (2) descreve o ambiente em que a criança se desenvolve


a partir do nascimento como um ecossistema dinâmico – ao qual ela
responde, com o qual interage, e ao qual eventualmente modifica. Seu
modelo tem como centro o organismo da criança, recebendo estímulos,
informações e experiências ao longo da infância, de 4 principais
microssistemas: 1) ambiente familiar, 2) relacionamentos (outras crianças),
3) sistema educacional (escola), 4) sistema religioso (igreja). Estes quatro
microssistemas obviamente são também interativos entre si e estão
inseridos em um macrossistema do qual emanam outras influências:
sistema de governo e sistema econômico.

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Esse conjunto de sistemas interativos e interdependentes constitui o


“tecido social” a que se refere Perry, definido como o conjunto de valores
éticos e morais, regras de comportamento e leis que regulam as relações
entre indivíduos e instituições em uma sociedade. Na base deste tecido
social encontra-se a sua unidade constitutiva, o grupo familiar.

O tecido social é organizado com base em: um idioma comum, dominância


de uma crença religiosa ou a coexistência de várias religiões e seitas, práticas
culturalmente aceitas de educação de filhos, estrutura familiar, práticas
educacionais (política educacional), história e identidade nacionais, artes,
ciências e tecnologia, além de outros sistemas de crenças (símbolos de
prestígio social, ideologias políticas, teorias sociais, modismos, etc) (3).

Todos esses elementos são mediados pelo cérebro humano, o qual confere
a “cola” sócio-emocional para a família, comunidade e sociedade (3),
afirma Perry, destacando que a deterioração do tecido social leva à
violência entre os indivíduos nos diversos níveis das relações familiares
e sociais. A deterioração da qualidade de ensino, a violência urbana e a
desintegração social estão associadas ao aumento de práticas de maltrato
e negligência da criança, segundo a Academia Nacional para a Prevenção
do Abuso Infantil dos Estados Unidos (3).

Os fatores de risco para o desenvolvimento saudável da criança e do


jovem e para o aumento da violência doméstica contra a criança estão
presentes em duas principais dimensões sócio-culturais:

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Dimensão macro-social - A deterioração do tecido social de uma


determinada nação, região, ou comunidade pode ter várias causas:
guerras, revoluções, golpes de estado, epidemias, desastres naturais
que destroem diversas pequenas cidades e áreas rurais adjacentes com
a conseqüente migração de populações para grandes centros urbanos,
períodos de estiagem anormais que levam à fome coletiva, deterioração
das instituições (governos ineptos, sistemas burocráticos incompetentes,
corrupção crônica institucionalizada e impune, legislação ineficiente,
corrupção da justiça), caos econômico e desemprego, perda de memória
cultural, tráfico de drogas e aumento de usuários de drogas ilícitas,
alcoolismo endêmico. As múltiplas pressões e injustiças decorrentes da
deterioração do tecido social levam ao enfraquecimento dos vínculos
emocionais que regulam as relações entre os indivíduos e entre estes e as
instituições, levando à desconfiança, medo, insegurança e sentimentos de
isolamento.

Enfim, criando uma situação do tipo “salve-se quem puder” que resulta
em agressividade social, facilita a ação do crime organizado, violência
urbana, violência no trânsito, desarmonia e conflitos profissionais e
familiares – com um impacto direto sobre a criança. Em suma, o ser
humano volta-se contra seus semelhantes. Violência, suicídio, doença
mental e uma constelação de outros males sociais crescem quando o
tecido social se deteriora (3).

Garbarino, Bradshaw e Vorassi (4) destacam que crianças que vivem em


comunidades onde a violência social e/ou familiar é comum, sofrem os
efeitos negativos dessa exposição sobre seu desenvolvimento – mesmo
que elas não sejam diretamente vítimas da violência – ou seja, apenas a
testemunhem.

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Os efeitos são semelhantes aos observados em crianças diretamente


vitimadas pela violência e incluem: distúrbios de sono, ansiedade, medo,
depressão e comportamento anti-social. Além disso, crianças e adolescentes
que vivem em comunidades violentas podem passar por adaptações
patológicas, tais como, cinismo calculista, oportunismo, insensibilidade
à violência, aceitação desse recurso como um meio de sobrevivência –
enfim, desenvolvimento moral truncado (5). Comportamentos violentos
são assim levados para a escola e representam um risco real para a vida
de outras crianças e adolescentes, professores e funcionários, além da alta
incidência de alcoolismo, uso e tráfico de drogas por parte de crianças e
jovens que passaram por essa adaptação patológica à violência.

Um outro fator importante na deterioração dos valores de uma sociedade


e no desenvolvimento da “tolerância moral” à violência na criança e no
jovem – e pouco considerado por pais e educadores – é a mídia televisiva,
que expõe a criança e a população em geral a um bombardeio de cenas de
violência em filmes e noticiários – além das populares novelas que expõem
crônicamente o público a modelos sócio-patológicos de comportamento,
através de seus protagonistas principais, sempre mostrando-os como
social e economicamente bem sucedidos nos enredos, sendo “punidos”
apenas nos últimos 2 ou 3 minutos dos últimos dois ou três capítulos –
quando muito!.. A exposição crônica de crianças a modelos de canalhice,
corrupção e violência em novelas, filmes e noticiários de horário nobre
– tanto perpetrados pelos vilões das estórias quanto pelos “heróis”
justiceiros; ou por pessoas da vida real – foi associada em vários estudos
científicos com o comprometimento do desenvolvimento moral de
crianças e jovens, com a redução da capacidade para a compaixão pelo
sofrimento alheio, dessensibilização emocional e percepção, pelo jovem,
de que a violência e a manipulação inescrupulosa de regras e leis é
justificável – como um “ato de justiça” ou uma ferramenta para o sucesso
pessoal (6-10).
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O Center for Media Education afirma que, quando a criança completa


a quarta série, ela já foi exposta a mais de 100.000 atos de violência,
incluindo-se 8.000 casos de assassinatos, através da televisão (6). Esses
números são duplicados até o momento de conclusão da oitava série.

A violência na televisão e no cinema mobiliza, no espectador, reações


emocionais e neuroendócrinas de ansiedade, tensão, medo, susto, raiva,
desejo de vingança, simpatia pelas vítimas e consentimento emocional aos
abusos e assassinatos cometidos pelo “herói” contra o vilão – reforçando
na criança o conceito de que violência e abuso são justificáveis na “luta
contra o inimigo”, como um meio de “fazer justiça”. Crianças e jovens sem
uma forte e sadia conexão emocional com a família e baixa auto-estima, e
aqueles pertencentes a outros grupos de risco (abusados, negligenciados,
ou crescendo em comunidades com alto índice de criminalidade e violência
urbana) podem ter, na mídia televisiva, não apenas uma escola de como
planejar e perpetrar crimes diversos e atos violentos, mas também ver os
exemplos da mídia como recursos válidos de auto-defesa em um mundo
violento e caótico. Video games proporcionam o treino necessário em
pontaria e destreza no uso de armas e diversos estudos demonstram que
adolescentes que se ocupam com jogos virtuais violentos têm uma maior
inclinação a reagir de forma agressiva ou recorrer à violência física ou uso
de armas, do que crianças que jogam video games sem temas de matar ou
lutar (14-16).

Grossman e DeGaetano (17), em seu estudo publicado em 1999, relatam


entrevistas com professores de ciência militar, os quais afirmaram
que video games que ensinam a atirar em figuras humanas virtuais e
alvos civis com revólveres e canhões digitais são recursos idênticos aos
utilizados hoje em modernas academias militares e em simuladores de
vôo para pilotos de combate.

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O estudo também mostra que durante a Segunda Guerra Mundial,


quando os soldados eram treinados com alvos de papel, apenas 15%
deles conseguia atirar em soldados inimigos em uma situação indivíduo-
a-indivíduo. A introdução de video games no treinamento militar com
alvos humanos interativos virtuais, aumentou a “tolerância” ao conceito
de atirar em um alvo humano individual para 95% – conforme constatado
nos últimos anos da Guerra do Vietnan. Garbarino, Bradshaw e Vorrasi
(4) alertam para o papel crucial dos pais, psicopedagogos, psicólogos e
psiquiatras na proteção da criança e do adolescente contra a exposição
à violência e o acesso a armas de fogo, através da monitoração atenta do
comportamento da criança, de seus relacionamentos e ambiente social, e
controlando o acesso da criança à violência na mídia televisiva e em jogos
de video games.

Garbarino compara o conjunto de fatores familiares e sócio-ambientais


daninhos no qual a criança moderna cresce aos efeitos tóxicos de um
meio ambiente urbano altamente poluído sobre a saúde pública – onde
crianças e velhos são o grupo que recebe o maior impacto – e define a
sociedade moderna como um Ambiente Socialmente Tóxico (18) no qual os
fatores poluentes são: violência social, pobreza, incertezas profissionais
e econômicas que afligem os pais de classe média e seus filhos, relações
familiares fragilizadas ou rompidas, stress, depressão, alienação, paranóia
social, perda de significado existencial, falta de espiritualidade, etc. –
todos eles contaminantes que desmoralizam as famílias e a comunidade e
funcionam como “venenos sociais” para crianças e jovens. Afirma ainda
que crianças e jovens estão hoje muito mais vulneráveis aos venenos da
violência nas diversas dimensões de suas vidas do que há 30 ou 40 anos
passados: Se não é o risco de seqüestro, é a alta probabilidade de divórcio
dos pais; se não é o risco de tiroteio na escola, é a contemplação de um
futuro com oportunidades cada vez menores de emprego (18).

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Dimensão Micro-Social - (Família, Relacionamentos Sociais, Escola


e Religião): Garbarino relata que vários estudos demonstram que a
quantidade de tempo que pais e filhos passam juntos foi reduzida em 50%
nos últimos 30 anos, o que causou uma queda na supervisão dos adultos
responsáveis sobre a criança e na rarificação do tempo reservado para
atividades construtivas e cooperativas entre pais e filhos – aumentando,
assim, a vulnerabilidade da criança e do jovem a outras influências
negativas presentes no ambiente social (18).

Crianças são deixadas sem supervisão também no lar, assistindo à


televisão, onde até mesmo os desenhos animados modernos enfatizam a
violência e enaltecem o grotesco, ou ainda, expostas a programas infantis
inadequados, onde animadoras sempre vestidas de maneira “sexy”
tipo Barbies, falam uma torrente de bobagens, estimulam modismos e
consumismos, entrevistam crianças pequenas a respeito de suas “vidas
amorosas”, “namorados”, etc. Adultos permitem que crianças, ainda
na primeira infância, assistam regularmente a novelas com temas não
recomendados a menores de 18 anos. Enfim, mesmo no lar, crianças
são expostas a todo tipo de veneno cultural e, com freqüência, com a
anuência de pais ou de outros adultos da família sem discernimento e
incompetentes na formação de juízos de valor.

A sexualização precoce da criança é hoje uma prática generalizada no


Brasil e em parte da sociedade norte americana, com mães vestindo
suas filhas pequenas como estrelas de cinema ou top models, unhas
pintadas e maquiagem – em perfeita obediência alienada e irresponsável
à propaganda de consumo. Em uma idade em que deveriam estar
brincando com bonecas, lendo contos infantis, praticando esportes ou
estudando, meninas já estão sendo incentivadas a se comportarem como
mulheres fatais.

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Meninas de oito anos de idade estão beijando meninos na boca e conheço


um caso em que a mãe foi solenemente informada pela filha de oito anos
de que “estava fazendo sexo com dois namorados na escola e perguntava
à mãe se devia tomar pílulas”.

Fiquei realmente surpresa com a surpresa da mãe desta criança... Não


surpreende também o número crescente de casos de gravidez de meninas
que apenas iniciaram o ciclo menstrual – e de abortos ilegais.

Segundo comunicado de 21 de junho de 2004 da regional paulista da


Sociedade Brasileira de Urologia (SBU-SP), agências das Nações Unidas
estão preocupadas com a iniciação sexual em idade cada vez mais
precoce de jovens – muitos deles durante a infância – e com a epidemia
de doenças sexualmente transmissíveis que hoje afeta 60% de jovens
entre 13 e 19 anos. Os dados também acusam que 87% dessa população
pertence a países em desenvolvimento. Segundo a SBU-SP, a AIDS vem
aumentando de forma alarmante entre meninas dessa faixa etária.

O comunicado da SBU-SP se deve ao louvável lançamento de um


programa de educação e prevenção (Projeto Urologista Cidadão) voltado
à família e aos jovens – fruto de uma parceria entre a SBU e o SEAD (23).
A ciência do desenvolvimento da criança reconhece que ela possui uma
natureza sensual e que, em diferentes momentos da primeira infância,
pode demonstrar interesse por seus órgãos genitais e curiosidade quanto
às diferenças anatômicas entre os sexos, além da natural curiosidade por
entender como nasceu. Episódios de masturbação são comuns durante a
infância e puberdade, sendo considerados normais por especialistas.

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No entanto, a criança só é levada ao intercurso sexual precoce


quando inadequadamente exposta ao sexo através da mídia e por
irresponsabilidade de adultos (i.e., negligência), ou quando corrompida
por adultos ou por adolescentes (i.e., abuso).

Adultos são também susceptíveis ao impacto alienante dos poluentes


culturais que invadem diariamente cada lar, principalmente através
da mídia televisiva. No entanto, são as crianças assim expostas as que
acumularão os maiores componentes de risco ao seu desenvolvimento
saudável (18). Garbarino alerta ainda para alguns aspectos da Convenção
das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, que são regularmente
descumpridos ou ignorados no trato da criança dentro de famílias e
comunidades, tais como o direito de ser sustentada por suas famílias
e comunidades, de ser protegida contra as guerras e outras formas de
exposição à violência, de viver livre da sexualidade do adulto, e de
receber subsídios para o desenvolvimento de uma identidade positiva.

A falta de supervisão familiar de adolescentes, geralmente precedida pela


omissão dos pais na orientação moral e formação do caráter durante a
infância, é um mal endêmico nas sociedades modernas. Robert Blum (20)
apresentou os resultados da segunda fase de um estudo americano de
âmbito nacional no final de 2000, demonstrando que, independentemente
de raça, renda familiar, ambiente social e presença ou ausência de
problemas familiares, adolescentes que têm muitas horas diárias livres
e não supervisionadas, e problemas de desempenho escolar, são muito
mais vulneráveis a iniciar um vício (tabagismo, alcoolismo, consumo de
drogas), praticar sexo e tornar-se violentos.

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O estudo, iniciado em 1994, foi custeado pelo National Institute of Child


Health and Human Development do governo americano – e outras 17 agências
federais – e consistiu de três etapas de acompanhamento e avaliação do
processo de transição entre o início da adolescência até a fase adulta, para
a identificação de fatores potenciais de influência positiva e negativa na
escola, família e vizinhança sobre esse processo.

Foram entrevistados e re-entrevistados ao longo da duração do estudo


(1994-2002) educadores, estudantes, familiares (mãe ou pai) – tanto nas
escolas como nos lares (21). Os resultados da fase 2 (entrevistas com mais
de 90.000 estudantes entre as sétima e décima-segunda séries), publicados
por pesquisadores de Universidade de Minnesota, são os seguintes:

• 26% dos estudantes analisados estiveram envolvidos em violência com


armas (revólveres ou facas) no ano anterior – dos quais 1 em 3 tinha
ferido ou ameaçado alguém com armas;
• 47% dos estudantes informaram consumo de álcool;
• mais de 25% fumam e 18% são ex-fumantes;
• 13% idealizavam suicídio ou haviam tentado suicídio no ano anterior à
entrevista (destes, 16% eram meninas e 9% meninos);
• 3 em 4 estudantes entre a 9a e 12a séries (high school) mantinham relações
sexuais, contra 16% de estudantes entre a 7a e 8a séries.

Estou citando um estudo americano na ausência de um equivalente


brasileiro, ciente porém, de que a nossa realidade nacional certamente
é diferente – seja para melhor ou pior – visto que a influência da cultura
americana sobre os valores e modismos brasileiros é forte o bastante para
ser considerada.

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Ambas as sociedades possuem também outros pontos de semelhança,


tais como: população formada por diversas raças, diversas religiões
e seitas, grandes bolsões de miséria, violência social, valores sociais
materialista-consumistas, grande acesso à televisão, video games e casas
de jogos eletrônicos, alta taxa de desemprego, divórcios, separações,
mães solteiras e gravidez na adolescência, problemas com o narcotráfico
e crime organizado, prostituição infantil, mendicância, etc.

Crianças e jovens têm ainda sua vulnerabilidade exponencialmente


aumentada para o uso de drogas, comportamento violento e anti-social
na infância e adolescência, quando um ou mais dos seguintes fatores estão
presentes: falta de vínculos afetivos fortes entre pais e filhos, abandono
pelo pai, abandono pela mãe ou negligência crônica, maltrato físico,
emocional, ou abuso sexual, durante a infância ou adolescência.

Pais que maltratam ou que negligenciam seus filhos priorizam seus


próprios interesses e conforto em detrimento das necessidades da criança.
Por exemplo:

1) castigam ou reprimem na criança comportamentos positivos e normais,


tais como risada, investigação do ambiente e atividades lúdicas, como
sendo incômodas;

2) desencorajam perguntas, não têm paciência em manter diálogos com a


criança;

3) evitam abraçar, beijar ou aconchegar a criança;

4) comprometem a auto-estima da criança através de humilhações,


xingamentos, comparações, etc.

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5) proíbem ou desestimulam-na a receber amiguinhos para brincar em


casa, castigam a criança em público, não cumprem promessas;

6) negligência educacional: fazer a criança faltar à escola ou permitir que


ela falte sem motivo de força maior, não matriculá-la, não acompanhar o
seu desempenho escolar, etc.

Algumas crenças religiosas favorecem o maltrato e discriminação de


meninas, principalmente aquelas seitas do cristianismo e islamismo que
percebem a mulher como espiritualmente inferior ao homem e a reduzem
a serviçal e objeto sexual deste a partir do início da adolescência. Algumas
tradições chinesas – ainda hoje aceitas mesmo na República Popular da
China – levam ao assassinato ou abandono de meninas recém-nascidas, de
forma a dar ao casal uma outra chance de ter um menino, sem incorrer em
punição pelo estado por transgressão das leis de controle de natalidade.
O menino não apenas representa a continuidade do nome da família
do pai, mas é também considerado, em muitas comunidades chinesas,
a reencarnação de um ancestral deste. Na Tailândia, tradições locais e
a legislação vigente negam à mãe a guarda da criança – especialmente
meninos – no caso de separação do casal, pois acredita-se que este seja a
reencarnação de um ancestral paterno.

No entanto, quando uma religião – qualquer religião – é praticada pela


família com bom senso – sem fanatismo, intolerância ou superstições
– pode constituir-se em uma fonte de significado existencial e moral
para as crianças e jovens, em termos de desenvolvimento de valores
humanísticos, amor e respeito ao próximo, desenvolvimento da
compaixão, solidariedade e bons costumes e, principalmente, dar um
propósito edificante a suas vidas.

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Dimensões da Tragédia Social Brasileira - Muito do estrago em nossa


qualidade de ensino e perda de perspectiva dos valores humanísticos
– com um impacto direto sobre nosso tecido sócio-cultural – resulta
dos quase 30 anos de ditadura militar (1964-1989), com a importação de
modelos tecnocráticos de ensino – exatamente dos Estados Unidos – e
a remoção das disciplinas filosóficas e humanísticas dos currículos do
ensino fundamental e médio e da maioria dos cursos superiores – exceto
os de Ciências Humanas e Sociais e os de Filosofia.

Diga-se de passagem que, a partir de 1986, os Estados Unidos começaram


a questionar esses mesmos modelos educacionais que deles importamos,
em vista do alto índice de analfabetismo funcional, com 2 milhões de
jovens adultos funcionalmente analfabetos sendo despejados no mercado
de trabalho todos os anos (dos quais, 33% de brancos, 25% de negros, e
42% de outras etnias) (22).

Nossa tragédia educacional brasileira foi posteriormente agravada por


medidas demagogas, tais como a não reprovação de alunos, a abolição
de ensino profissio-nalizante a partir da oitava série, a proliferação de
faculdades sem qualidade de ensino, etc.

Os militares iniciaram e os governos que os sucederam perpetuaram


uma ótica demagoga e perversa de que baixar o nível de qualidade do
ensino superior e facilitar o acesso ao diploma universitário a todos,
era mais importante do que manter cursos técnico-profissionalizantes
de qualidade para alunos do ensino médio, de forma a possibilitar a
formação não apenas de bons profissionais especializados, mas melhor
remunerados – sem a necessidade do fetiche do diploma superior sem
qualidade, que despeja milhares de incompetentes anualmente às portas
da OAB, dos CRMs, dos CREAs, etc.

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A partir de 1964, a corrupção se alastrou sem controle – sob a proteção


da ausência do estado de direito imposto aos brasileiros pela ditadura
militar e da censura à imprensa – e permeou os mais diferentes estratos
da sociedade brasileira. A burocracia estatal com seus males inerentes
cresceu, o desperdício de recursos públicos em obras faraônicas e
superfaturadas se tornou endêmico, quadrilhas se organizaram dentro
de instituições governamentais e o Brasil empobreceu, devorado por
inflação galopante e medidas econômicas desastrosas. A população de
classe média – que há 40 anos representava mais de 50% da população
do país – hoje representa menos de 20%; a pobreza aumentou e a
miséria absoluta cresceu e se espalhou como um câncer social durante
esse período. O desemprego, o achatamento do salário e as incertezas
econômicas tornaram-se uma síndrome endêmica, aviltando as famílias,
gerando stress crônico, desesperança, e todos os demais males psico-
sociais associados.

Sofremos hoje as conseqüências daquele negro período e lutaremos por


um longo tempo contra a cultura que se instalou – e ainda permanece – de
corrupção nos órgãos públicos, oportunismo, impunidade, aviltamento
das profissões liberais e falência da ética.

Profissionais liberais mal preparados acabam trabalhando por qualquer


remuneração, mesmo ferindo a ética e os interesses de sua classe
profissional: é o “salve-se quem puder”, onde mais importante do que QI
& IC (Quociente de Inteligência & Índice de Competência), é o cinismo
do QI & QA (Quem me Indique & Quem me Agüente). Mas “pegava
bem” aparecer nas estatísticas dos órgãos internacionais com um alto índice de
graduados em cursos superiores....

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Porém, o que poucos por aqui têm ciência, é que as boas universidades
européias sabem que o aluno com ensino médio completo do Brasil,
mesmo formado pelos melhores colégios particulares, não tem condições
de acompanhar um curso de medicina, biomédica, engenharia, etc.
naqueles países, com raríssimas exceções.

Fiz essa verificação pessoalmente há 4 anos, entrando em contato com


diversas uni-versidades européias via Internet e pedindo informações
sobre cursos universitários e requisitos para matrícula, como se eu
fosse uma adolescente brasileira planejando fazer um curso superior na
Europa. As universidades simplesmente me informaram que eu teria de
fazer alguns anos de matérias suplementares e de complementação de
conteúdo programático de outras já estudadas aqui para adequar-me
ao nível do ensino fundamental e médio deles – seguido de um teste de
proficiência – pois sabiam que o nosso ensino era muito deficiente. Fizeram
porém a cortesia de enviar-me pelo correio os catálogos curriculares com
os conteúdos programáticos detalhados das disciplinas de todos os cursos
que tinham a oferecer.

Sindicatos de trabalhadores europeus (Europa Ocidental) vêm há 60 anos


dizendo a seus sindicalizados: Não tenham mais do que 2 filhos, pois o
aumento de oferta da mão de obra faz baixar o salário.

Mas no Brasil temos a percepção distorcida de que os recursos para a


geração de empregos da economia de uma nação são inesgotáveis e que se
pode impor ao organismo sócio-econômico um crescimento populacional
descontrolado, uma carga tributária altíssima e em cascata, pesados
encargos sociais, e que basta escrever lindos discursos sob a forma de le-
gislação sobre os direitos da criança, da família e do trabalhador, para que
todos os problemas se resolvam como que por decreto.

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Ainda mais grave, acreditamos que temos o direito de gerar quantos


filhos quisermos (planejados ou acidentais) – quer se esteja ou não em
condições de provê-los e educá-los adequadamente, como exigido pelo
Estatuto da Criança – pois, como afirmou Betinho, planejamento familiar
é discriminação social, pois cabe ao estado o papel de provê-los e educá-
los.... é mesmo? Isso não deu certo na antiga União Soviética, nem na
República Popular da China, Corea no Norte, Romênia... nem na FEBEM,
ou em nossos orfanatos públicos e particulares. Nossa história recente
demonstra que mesmo os programas de merenda escolar são em sua
maior parte deficientes – não pela falta de recursos reais alocados, mas
pela falta de caráter e/ou de competência de muitos burocratas envolvidos
na compra e distribuição dos mantimentos às escolas. Com freqüência,
quando o mantimento chega à escola, está estragado ou, se estiver em
boas condições, ainda sofre novos desvios. Afinal, criança estatizada
é criança com muitos donos: quase sempre passa fome ou é lesada.
Vivemos no entanto sob o fetiche de filtros epistemológicos de ideologias,
teorias e pensamentos desejosos e fantasiosos que comprometem a nossa
percepção realista de viabilidades reais em um mundo real.

O estado não é um bom substituto para a família – a paternidade/


maternidade responsável e competente – tanto na provisão material
quanto no desenvolvimento psico-social saudável do indivíduo humano.
A função do estado é promover condi-ções fiscais e infraestruturais
para o desenvolvimento de uma economia saudável e viável, manter
a máquina estatal enxuta e eficiente e livre do empreguismo nepotista
e eleitoreiro que a infecta e emperra; investir em educação e qualidade
de ensino, desenvolver programas educacionais e profissionalizantes
para adultos e famílias carentes, serviços de saúde, serviços sociais de
auxílio suplementar e emergencial sem paternalização do cidadão, e uma
legislação inteligente, viável e eficiente, tanto em sua aplicação judiciária
quanto no reenforço de seu cumprimento.
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Acima de tudo, é função do estado não atrapalhar nem invibializar


a iniciativa privada – as atividades econômicas que geram emprego,
riqueza e arrecadação tributária – por meio de política tributária aleijante
e punitiva.

A Organização Internacional do Trabalho acaba de divulgar que 559.000


crianças entre 10 e 17 anos são exploradas no Brasil em regime de trabalho
escravo ou semi-escravo como empregados domésticos.

A UNICEF, como já vimos, estima 8 milhões de menores vivendo nas


ruas; e de 100.000 a 500.000 crianças exploradas pela pedofilia no Brasil.
Sabemos que nossas crianças são também exploradas em indústrias de
transformação de madeira em carvão e no trabalho no campo como “bóias
frias”. Não encontrei até o momento uma central de dados sistematizados
sobre a incidência brasileira de outras formas menos óbvias de maltrato,
negligência e exploração da criança: aquelas que ocorrem dentro das
famílias.

No entanto, não é inválido supor que esses números não devam ser
baixos, em vista de tantos níveis dimensionais de stress presentes em
nossa sociedade. Podemos certamente afirmar que a nossa sociedade é
profundamente psicopatogênica.

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REFERÊNCIAS

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13. Pennell, A.E., Browne, K.D. Film violence and young offenders. Aggression and
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14. Dill, K.E., Dill, J.C. Video game violence: a review of the empirical literature.
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21. Elder, Glen H., Jr. 2002. “Historical Times and Lives: A Journey Through Time
and Space.” Pp. 194-218 in Looking at Lives: American Longitudinal Studies of the 20th
Century, edited by Erin Phelps, Frank F. Furstenberg, Jr., and Anne Colby (Chapter
8). New York: Russell Sage Foundation

22. Sandra Galeotti. Karma e Dharma - Visão Ecológica de Homem e Natureza (2a
edição, 1993) Editora Aquariana, São Paulo - SP

23. Projeto Urologista Cidadão. www.sbu-sp.org.br

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A intervenção terapêutica da criança


abusada e/ou negligenciada
cobra dos profissionais envolvidos
um alto imposto em termos emocionais
e exige preparo científico e técnico,
treinamento clínico especializado
e supervisão terapêutica regular
com outro profissional,
psicólogo ou psiquiatra.

O material deste capítulo tem como base o manual de diretrizes publicado


online pela National Clearinghouse on Child Abuse and Neglect Information
– um serviço de informação do Children´s Bureau – para profissionais,
contendo informações e diretrizes. O manual completo de diretrizes
gerais para o tratamento de crianças abusadas e negligenciadas encontra-
se também disponível em arquivo pdf no site (1). As informações aqui
compiladas desta e de outras fontes – bem como o manual disponível
online – não substituem o treinamento clínico de especialização
necessário para a atuação junto à criança abusada/negligenciada
– apenas fornecem subsídios racionais, informativos e diretrizes gerais
de conduta, quanto ao papel do terapeuta, da equipe multidisciplinar, e
outros dados pertinentes ao problema do maltrato, com base em décadas
de pesquisa científica e experiências colhidas em centros de atendimento
a crianças em todo o mundo.

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Avaliação da Criança Abusada

A conseqüência fundamental do maltrato infantil é o distúrbio no


desenvolvimento normal da criança – ou seja, o desenvolvimento e o
“funcionamento” da criança abusada é desviado ou se torna difícil em
conseqüência do abuso e/ou negligência sofridos. Tal disfunção pode
resultar em um transtorno imediato, sob a forma de problemas de
adaptação à experiência abusiva ou pode manifestar-se como problemas
diversos em uma fase posterior do desenvolvimento. Portanto, o objetivo
da intervenção terapêutica é resolver os problemas ou conflitos dentro do
contexto de funcionamento atual da criança e/ou os conflitos que possam
vir a comprometer seu funcionamento no futuro.

O objetivo da intervenção terapêutica é proporcionar à criança abusada


ou negligenciada as habilidades e/ou o entendimento necessários para
melhor equipá-la a interagir com outros (i.e., família, amigos, professores)
e a lidar com seus próprios pensamentos e sentimentos. Como antes
mencionado, o terapeuta deve entender o desenvolvimento básico da
criança (de forma a discernir o que é normal ou típico) e a psicopatologia
(para poder discernir entre o que é normal ou típico e o que não é). A partir
dessa base de informação, o terapeuta informado é capaz de discernir
quais problemas são “disfunções” e determinar se esses problemas
exigem intervenção terapêutica. Uma avaliação cuidadosa da criança em
seu ambiente é crucial a este processo. Tipicamente, a complexidade dos
casos envolvendo maltrato da criança exige informação multidisciplinar.
Muitas comunidades, em diversos países, estabeleceram equipes
especializadas para a avaliação de casos de abuso e negligência infantil.

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Essas equipes devem incluir um médico pediatra, outros profissionais de


saúde, um agente do serviço de proteção à criança, uma equipe policial,
um psicopedagogo, um especialista em desenvolvimento infantil, um
especialista em dependência de drogas, um psicólogo ou psiquiatra, um
assistente social e um promotor da Vara da Criança e da Adolescência.
É importante que o terapeuta recorra a uma equipe multidisciplinar
especializada durante a avaliação ou – na inexistência desta – deve
consultar especialistas que representem essas disciplinas chaves. Se o
terapeuta e a família da criança pertencem a grupos étnico-culturais
diferentes, é também importante consultar um profissional de mesma
cultura da família ou familiarizado com ela.

Avaliação da Criança no Contexto de Seu Ambiente – O maltrato não


acontece em um vácuo. Em praticamente todos os casos é importante
avaliar o modo de funcionamento, os pontos fortes e carências da criança
dentro de diversos contextos. Geralmente o contexto dominante da
criança abusada é a sua família imediata (pai, mãe, ou familiar cuidador)
e seu ambiente escolar. No entanto, existem muitos outros contextos
ou culturas que podem ter maior ou menor influência sobre a criança
abusada, dependendo de sua idade, rede de relacionamentos sociais,
outros familiares, etc.

Em muitos casos de maltrato infantil, o terapeuta tende a perceber os pais


de forma negativa, devido ao dano por eles causado à criança, podendo
sentir raiva ou desprezo pelos pais se eles forem a fonte do maltrato. No
entanto, o profissional deve reconhecer que, da perspectiva da criança,
sua família é importante para ela, não desprezando o fato de que cada
membro da família pode fornecer informações importantes sobre o nível
de funcionamento da criança.

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Quer eles estejam ou não envolvidos no abuso, os pais (pai e mãe)


geralmente são as melhores fontes de informação sobre problemas e o
modo de funcionamento diário da criança.

Além disso, a avaliação da criança em diferentes ambientes, como escola,


creche, em interação com outras crianças, etc, permite a coleta de dados
de diferentes fontes e ambientes.

Um dos benefícios de uma avaliação multi-ambiental e com diferentes


fontes de informação é que padrões de comportamento identificados
em vários contextos aumentam a validação da presença de um certo
comportamento ou característica relatada. Por exemplo, o relato de um
dos pais de que a criança é com freqüência beligerante e rebelde pode
ser confirmado (ou não) por um dos professores, que informa que a
criança se envolve em brigas e agressões físicas freqüentes com colegas,
tem rompantes de ira, recusa-se a fazer dever de casa ou ainda, que é
quieta, alienada, retraída e submissa a abusos por parte de coleguinhas
– ou chora à toa, vive sobressaltada, etc. A conclusão que pode ser tirada
destes relatos é que: 1) a criança possui um padrão relativamente estável
de comportamento rebelde e desafiador; 2) que seu comportamento
em casa e na escola diferem, sugerindo que outros fatores presentes no
ambiente familiar necessitam ser investigados; e 3) a informação recebida
dos progenitores ou dos professores necessita ser corroborada por outros
métodos de avaliação.

A utilização das múltiplas fontes de informação presentes no contexto


da rotina diária da criança é importante, pois crianças abusadas não
exibem um padrão uniforme de resposta comportamental ao abuso. Ou
seja, o mesmo tipo de maltrato causa respostas diferentes em diferentes
indivíduos.

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Para que a intervenção terapêutica seja possível, é preciso detectar quais


aspectos psico-emocionais e comportamentais estão comprometidos.
A avaliação clínica da criança deve portanto identificar o(s) tipo(s) de
disfunção gerado pelo abuso, tendo como base o status do desenvolvimento
dela para sua faixa de idade, bem como sua capacidade individual de
adaptação. Para identificar as deficiências a serem atendidas, o terapeuta
deve também escolher dois ou mais tipos de testes especialmente
desenvolvidos para a faixa etária da criança em questão – pois as crianças
passam por sucessivas mudanças e adaptações durante a infância, que
se refletem no modo como expressam os distúrbios afetivos, cognitivos e
comportamentais decorrentes do maltrato/negligência, em cada fase da
infância, puberdade e adolescência.

A avaliação do status cognitivo da criança é importante na decisão


da abordagem terapêutica a ser escolhida para cada indivíduo, pois
atrasos no desenvolvimento verbal e cognitivo em função de maltrato ou
negligência são comuns e podem impedir que o paciente seja capaz de
compreender, responder, ou interagir com uma determinada abordagem
terapêutica (teoricamente adequada a sua faixa etária). A identificação
dessa limitação permitirá determinar em que fase do desenvolvimento
ele se encontra de fato. O mesmo vale para os aspectos emocionais e
motores. É comum, nessa população de pacientes, a presença de atrasos
psico-motores e dificuldades de auto-regulação, com crianças em idade
escolar (6 anos ou mais) apresentando maturidade emocional de crianças
de 2 a 4 anos, problemas de controle motor fino, etc.

Alguns dos testes clínicos mais utilizados internacionalmente para


avaliação de diferentes faixas etárias são:

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1) Kaufman Assessment Battery for Children (K-ABC): é um teste de


avaliação para crianças entre 3 e 12 anos de idade, com um enfoque
maior na avaliação dos processos mentais do que nos testes verbais e de
desempenho. Analisa os processos mentais simultâneos e seqüenciais da
criança e possui subtestes para avaliação psicopedagógica de crianças em
fase escolar.

Também oferece instrumentos para avaliar crianças com deficiências


auditivas e crianças oriundas de estratos sociais menos favorecidos.

2) Wechsler Series of Intelligence Tests for Children: Constitui-se de


dois diferentes intrumentos; WPPSI-R para crianças entre 3 e 6 anos e o
WISC-III para a faixa etária entre 6 e 15 anos. Avalia habilidades cognitivas
quanto ao desempenho, habilidade verbal e o resultado combinado de
ambos.

3) Bayley Scales of Infant Development (BSID): permite a avaliação


multidimensional de bebês e crianças até os 2 anos de idade, incluindo o
desenvolvimento mental, motor e índices comportamentais.

4) Vineland Adaptive Behaviors Scales (VABS): geralmente aplicado


através de entrevistas estruturadas com pais e familiares cuidadores, este
método fornece dados sobre o status de desenvolvimento da criança nas
áreas de comunicação, socialização e outras habilidades presentes em seu
comportamento cotidiano. Para crianças menores do que 6 anos, o teste
fornece também dados sobre desenvolvimento e coordenação motora e
ainda identifica dificuldades de adaptação naquelas com 5 ou mais anos
de idade.

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5) Child Behavior Checklists (CBCL): cobre 118 diferentes itens com


testes diferenciados para cada gênero (meninos ou meninas) e diferentes
faixas de idade: 2 a 3 anos, crianças na pré-escola e crianças em idade
escolar. Os dados são coletados com cada progenitor ou familiar
responsável – preferencialmente em separado – e avalia a criança também
em diferentes ambientes, tais como escola, igreja, vizinhança, ambiente
familiar, etc. Entre outros dados, oferece informação sobre o grau de risco
para comportamentos violentos, autodestrutivos, suicídio, homicídio e
indicadores de possíveis distúrbios neuropsiquiátricos que requerem
maior investigação por parte do terapeuta.

Outros testes de aplicação direta à criança oferecem também uma


oportunidade para a observação de vários aspectos comportamentais
durante a sua realização, tais como: sua capacidade de permanecer em
seu lugar realizando a tarefa/teste; como ela reage às dificuldades e
frustrações apresentadas pelo teste; sua capacidade de concentrar-se.
No entanto, nenhum desses testes isoladamente fornecerá uma completa
avaliação de estados afetivos específicos, tais como tristeza, raiva, culpa,
ansiedade, medo, os quais possuem diferentes formas de manifestação
em cada faixa de idade – devendo, portanto, ser avaliados caso a caso
em diversas entrevistas e sessões de avaliação e mediante informação
científica adequada.

Por exemplo, crianças menores de 7 ou 8 anos não são geralmente capazes


de fornecer informação sobre sua auto-estima, mas demonstram vários
sinais comportamentais em outras atividades de avaliação e em situações
não controladas que são clinica-mente significativos.

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É necessário que os profissionais da equipe mulidisciplinar estejam


conscientes de que os resultados de um único teste não são suficientes
para o diagnóstico e para a recomendação do tipo de terapia(s). Diversos
testes, avaliando diferentes aspectos, além das informações coletadas em
múltiplas fontes – inclusive a observação e avaliação direta da criança
em seus vários ambientes e em ambiente controlado – são cruciais para
fornecer os subsídios necessários. Existem vários testes para diagnóstico
que são utilizados internacionalmente que fornecem informações cruciais
sobre:

1) Ansiedade: Behavioral Avoidance Tests; Teacher´s Rating Scale;


Observer´s Rating Scale of Anxiety (aplicados a familiares, professores,
etc); e outros aplicados diretamente à criança, tais como: State-Trait
Anxiety Inventory; Children´s Manifest Anxiety Inventory; General
Anxiety Scale for Children;

2) Depressão: Child Behavior Check-List (CBCL); Personality Inventory


for Children;

3) Hiperatividade com Déficit de Atenção: Conners Rating Scale é


considerado o melhor para este diagnóstico, embora o CBCL contenha
também avaliação de sintomas de hiperatividade.

Entrevistas clínicas com a criança: conforme a idade da criança e seu grau


de desenvolvimento, a entrevista clínica pode variar em sua condução
– desde a coleta de informação através de um diálogo aberto-fechado,
sessões lúdicas indiretas, o relato verbal pelo paciente de sua história
e problemas, ou ainda, uma entrevista psiquiátrica estruturada de
diagnóstico. Com freqüência, várias dessas abordagens são combinadas,
na construção de uma base ampla de informações sobre a criança.

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Avaliação da Família da Criança

Um psicólogo ou psiquiatra especializado em terapia familiar é um


membro importante na equipe multidisciplinar, visto que nos casos
em que não há risco de vida para a criança e na ausência de incesto, é
mais importante e conveniente para a criança não ser afastada de sua
família. Em alguns casos, decide-se pelo afastamento temporário apenas
do(s) progenitor(es) abusivo(s) – se este for um agressor compulsivo,
dependente de álcool ou de drogas – com a criança permanecendo sob a
guarda supervisionada de outros parentes ou do progenitor não abusivo.
Em quaisquer dos casos, os familiares da criança (pais, irmãos e outros do
grupo familiar de convívio direto) deverão ser avaliados, para se entender
o ecossistema familiar da criança, o escopo do problema em que o abuso
ocorre e se determinar a abordagem terapêutica familiar necessária para
fazer cessar o abuso.

Todo o grupo familiar que mantém contato diário com a criança deve ser
avaliado e ter seus problemas, capacidades e habilidades identificadas,
de forma a se determinar o plano de intervenção terapêutica para a
criança. A família é o fator mais importante e consistente da vida das
crianças e, à medida em que elas se desenvolvem dentro do sistema
familiar, todo o grupo passa por adaptações e mudanças. Além disso,
as dinâmicas e interações interpessoais dentro da família são também
multidimensionais: os pais e adultos cuidadores influenciam seus filhos e
são influenciados por eles. No entanto, nos casos de abuso e negligência
de crianças, a coleta de dados para essa avaliação não é geralmente fácil
e nem sempre possível.

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A avaliação da família tem por objetivo fundamental determinar os


muitos níveis de intervenção terapêutica necessários para: 1) cessação do
abuso; e 2) estabelecer a abordagem terapêutica da criança e de seu grupo
familiar. Portanto, é necessário:

1) compreender a dinâmica familiar em que ocorre o abuso e os fatores de


risco presentes;

2) avaliação das crenças, valores, percepções e idéias que os pais nutrem


sobre a criança e como percebem o seu próprio papel e responsabilidades
na educação dos filhos;

3) identificação de estressores de risco: situação econômica instável,


estrutura familiar caótica, doença crônica, desemprego, experiências
recentes de perdas e luto ou de abandono, etc.

4) levantar o histórico familiar: detecção de histórico de violência entre


os cônjuges, ou irmãos mais velhos e adultos da família, alcoolismo, uso
de drogas, histórico de maltrato ou negligência durante a infância do
progenitor abusivo, presença de transtornos psiquiátricos, etc.

Duas metodologias de avaliação utilizadas internacionalmente são: Escalas


de Coesão e Adaptabilidade da Família (FACES – Family Adaptabilidade
and Cohesion Evaluations Scales) e a Escala de Ambiente Familiar (FES
– Family Environment Scale).

FACES consiste de 20 itens e avalia 3 dimensões do comportamento


familiar:

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• adaptabilidade: o grau de flexibilidade da família e capacidade de


responder às mudanças;

• coesão: laços afetivos entre os membros do grupo familiar;

• grau, qualidade e modos de comunicação.

FES consiste de 90 itens e 10 subescalas que avaliam diferentes


características sociais e do ambiente intrafamiliar, incluindo o seguinte:

• dimensões do relacionamento: coesão, expressividade e conflito;

• dimensões do crescimento pessoal: independência, motivação e


objetivos; intelectual, orientação ativa para o lazer e recreação, ênfase
moral e religiosa;

• sistema de manutenção das dimensões: organização e controle


familiar.

Entrevistas clínicas com o grupo familiar: têm como objetivo observar


diversos aspectos, tais como:

• as interações entre os membros da família;

• hierarquia de poder e posição de seus membros, tipos de regras e limites


existentes;

• obter respostas para questões específicas, tais como: histórico familiar,


características sócio-culturais, sintomas, etc.

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Ao conduzir uma entrevista clínica com a família toda e a criança abusada


presentes, o clínico tem a oportunidade de avaliar diversos estilos de
interação e fatores, tais como: a ausência de um dos seus membros e
as razões de sua ausência; a reação de adultos e crianças mais velhas às
atividades de uma criança pequena durante a entrevista, a própria criança
pequena, uma ou mais figuras dominantes que interrompem os demais
e controlam o fluxo de informação e sua forma de apresentar os fatos,
respondendo questões dirigidas a outros membros, ou reinterpretando a
informação fornecida por outros.

Entrevistas clínicas com cada familiar em separado: são também


importantíssimas para dar maior liberdade e privacidade de expressão
a cada indivíduo na exposição de suas percepções, motivações e estados
psico-emocionais.

Informação suplementar: a coleta de informações na escola ou creche


é também útil, através de entrevistas com professores, psicopedagogos,
enfermeiros, etc, na determinação de problemas de comportamento
e relacionamento da criança, estabilidade emocional, capacidade de
cooperação, habilidades intelectuais, atenção, resposta a figuras de
autoridade e observação de regras em classe e durante a recreação.

Professores podem também informar sobre as condições de higiene da


criança, hábitos alimentares, comportamento e freqüência dos pais às
reuniões de pais e mestres, nível de envolvimento e comprometimento
do pai ou mãe com a educação escolar da criança, etc.

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Cautelas durante o processo de avaliação: ao coletar informações sobre


a criança e/ou sua família com diferentes fontes, tais como pais, outros
familiares, professores, enfermeiras de creches, etc, o terapeuta e outros
profissionais da equipe devem compreender que tais relatos podem
conter distorções ou mesmo informações incorretas em função de diversas
causas, tais como:

1. Desejo de agradar o entrevistador: o entrevistado (familiar, professor,


monitores de escola, etc) pode presumir que o entrevistador deseja obter
uma determinada resposta específica e fabricar a informação ou exagerar
um fato para sugeri-la. Além disso, na entrevista clínica com o grupo
familiar, é necessário ter-se em conta que o comportamento dos adultos e
crianças mais velhas no ambiente formal do consultório não é espontâneo,
mas sim programado e contido, no esforço de causar uma boa impressão.
Algumas crianças abusadas podem também demonstrar inicialmente um
comportamento atencioso, obediente e amigável com o terapeuta nas
primeiras entrevistas, na tentativa de ganhar sua simpatia e aprovação
– desta forma suprimindo seus sentimentos de raiva, frustração, medo,
ansiedade, durante várias sessões.

2. Negação: pais, familiares e outros cuidadores podem negar a existência


de um problema ou relutar em fornecer informações completas –
principalmente quando estão sob suspeita de perpetrarem o maltrato.
Além disso, pais (pai e mãe) geralmente não percebem de forma correta
estados afetivos mais complexos da criança, tais como tristeza, ansiedade,
temores, dando maior ênfase a aspectos comportamentais (desobediência,
rebeldia, agressividade, etc)

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3. Variação de comportamento em diferentes situações: algumas crianças


abusadas sentem-se seguras e confortáveis em ambientes previsíveis e
bem estruturados como a sala de aula e só demonstram problemas em
ambientes menos estruturados, tais como parquinho, sua própria casa, ou
na interação social com outras crianças durante o intervalo entre aulas.

Função da equipe multidisciplinar no processo de avaliação: a


identificação, manejo, avaliação e tratamento da criança abusada e/ou
negligenciada requer uma clara compreensão por parte de cada membro
da equipe multidisciplinar, quanto às suas responsabilidades, função
específica e manutenção de postura adequada ao trabalho cooperativo e
sistemático com o resto da equipe. O manejo de cada caso requer, portanto,
a troca de informações entre os diferentes membros da equipe, de forma a
produzir o quadro mais completo possível dos múltiplos aspectos e fatores
envolvidos e possibilitar o desenvolvimento de estratégias de intervenção
e cuidados necessários em cada caso. Por exemplo, o policial treinado para
este fim irá avaliar e investigar o maltrato da criança para determinar se
o ofensor deve ser preso ou apenas denunciado à promotoria; o promotor
avaliará se cabe processo; o assistente social analisará a existência de
condições de risco para a criança em seu lar; o pediatra avaliará seu
estado físico geral, sinais de espancamento, queimaduras, fraturas, lesões
internas, intoxicação; o psicólogo ou o psiquiatra fará a avaliação dos
aspectos psico-emocionais e comportamentais afetados, etc.

Os instrumentos e metodologias de avaliação utilizados por cada membro


da equipe devem ser muito bem compreendidos pelos profissionais
durante o treinamento de especialização, sendo importante que, no
início, a aplicação dessas metodologias seja também acompanhada e
supervisionada por um especialista que domine bem essas metodologias
de avaliação e esteja ciente das limitações desses métodos.

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Avaliação Multi-axial: o resultado do trabalho de cada membro da


equipe fornecerá os dados para uma avaliação multi-axial, composta dos
seguintes elementos:

• avaliação direta da criança;


• acesso cognitivo;
• entrevistas clínicas com a criança;
• relatórios dos pais (colhidos independentemente um do outro);
• avaliação da família;
• informação suplementar (professores, psicopedagogos, monitores, dos
ambientes freqüentados pela criança);
• relatório de outros profissionais;
• avaliação pediátrica.

A criança maltratada, traumatizada e/ou negligenciada deve ainda


ser avaliada quanto ao seu risco potencial para ferir a si mesma ou a
outros, destruir objetos ou propriedade alheia, risco para o suicídio,
comportamento violento, e hábitos auto-destrutivos (2). A avaliação de
risco para si ou outros deve ser conduzida diretamente com a criança e
também com outros de seu convívio diário (família, escola, creche), bem
como o levantamento de histórico anterior de comportamento suicida,
violento ou perigoso (porte de canivetes, giletes, armas, brincadeiras com
produtos inflamáveis ou explosivos, etc).

Em resumo, os requisitos na capacitação e treinamento de profissionais


que integram uma equipe multidisciplinar de intervenção e atendimento
de vítimas de abuso/negligência e de suas famílias são enormes,
complexos e desafiantes.

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Boas intenções sem preparo adequado, bem como atitudes emocionais


reativas por parte dos membros da equipe são inadequadas, insuficientes
e muito perigosas, podendo causar ainda mais dano e traumas à criança
e comprometer o bom funcionamento da equipe.

A boa condução de programas de treinamento cientificamente


embasados, com conteúdo programático específico e ao mesmo tempo
abrangente, seguidos de treinamento clínico e estágio supervisionado são
imprescindíveis para a especialização profissional e formação de equipes
multiprofissionais de atendimento. Devido à natureza estressante e
emocionalmente custosa das experiências a que esses profissionais
estarão expostos em sua atividade diária, a supervisão e avaliação
psico-emocional regular é necessária, bem como a realização periódica
de oficinas de educação profissional continuada, vivências grupais e
dinâmicas de grupo. Elas farão toda a diferença na prevenção do stress e
na manutenção da saúde mental da própria equipe.

REFERÊNCIAS

1. Treatment for Abused and Neglected Children: Infancy to Age 18.


http://nccanch.acf.hhs.gov
17

2. Garbarino, James. “Lessons Learned about Resilience.” Children, Youth and


Environments 13(1), Spring 2003. Retirado de http://cye.colorado.edu
28

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A psicoterapia é um serviço de grande


valor e utilidade na promoção
do bem-estar da criança vítima
de maltrato e de sua família.

Nunca é demais lembrar que a intervenção terapêutica junto à criança


abusada ou negligenciada é complexa, envolvendo não apenas ações
curativas mas também educativas. A psicopedagogia e a psicologia do
desenvolvimento devem ser amplamente estudadas e compreendidas
pelo especialista, pois a intervenção junto a este grupo de pacientes não
visa apenas ao tratamento do trauma sofrido, mas também à retomada
do processo de desenvolvimento em todos os níveis em que este foi
truncado.

Assim como outros pacientes sob terapia, a criança tem o direito de ser
tratada em um ambiente livre de abuso, tem o direito de questionar as
ações do terapeuta ou expor dúvidas quanto à terapia e receber respostas
corretas e adequadas ao seu grau de entendimento. A criança tem ainda
o direito de receber tratamento individualizado e adequado às suas
necessidades particulares e o direito de esperar ser ajudada através do
tratamento. A criança tem também o direito de ser protegida contra
abusos cometidos por profissionais e quaisquer irregularidades desse
tipo devem ser relatadas às autoridades competentes e investigadas.

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Todo paciente tem o direito à privacidade e sigilo profissional e a criança


e seus familiares devem ser devidamente informados a esse respeito. No
entanto, é obrigação do terapeuta reportar às autoridades competentes e
adultos responsáveis os seguintes fatos: casos de abuso físico ou sexual de
pacientes menores, intenções de cometer suicídio, intenções de cometer
homicídio, ameaça de homicídio.

É função e dever do terapeuta proteger a criança, ouvi-la e responder


às suas neces-sidades, com vistas a promover seu crescimento e
desenvolvimento, conduzindo-se durante as sessões de forma a criar
modelos apropriados de comportamento e interação entre criança e
adulto. Deve ensinar à criança noções de segurança, proteção, resolução
de problemas e habilidades de comunicação.

Cabe ao terapeuta estabelecer limites e manter uma atitude consistente,


coerente e confiável em sua relação com a criança, de forma a protegê-
la e proteger a si próprio, evitando quaisquer intimidades impróprias
com o menor. A criança deve ser informada que o terapeuta não estará
disponível para participar de atividades sociais com ela, nem poderá
agir como pai ou mãe substituto. O terapeuta é um aliado, uma fonte
de recursos e um modelo de como devem ser conduzidas as interações
entre criança e adulto. No entanto, é um profissional que deve saber
manter limites apropriados e seguir as regras e regulamentos éticos de
sua profissão.

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PANDORA - Conteúdo Virtual

Abuso nos Primeiros Meses de Vida

O abuso infantil de crianças menores de três anos é com freqüência


acompanhado por respostas neurofisiológicas ao stress de longa duração,
visto que o autor é geralmente o próprio cuidador primário – mãe e/ou
pai ou outro familiar encarregado de cuidar da criança – possuindo um
impacto direto sobre o desenvolvimento do bebê ou da criança pequena.
Todos os aspectos de seu desenvolvimento são afetados, visto que os
cuidadores primários são os mais importantes mediadores do aprendizado
emocional, cognitivo e social para as crianças dessa faixa etária (1). A
extensão desse comprometimento e os problemas decorrentes a longo
prazo variam em função dos seguintes fatores: natureza do abuso, sua
duração, freqüência, intensidade, período da infância em que ocorre (i.e.,
etapa do desenvolvimento neuro-cerebral), além da presença ou ausência
de outros fatores atenuantes.

O cérebro responde à ameaça ou à agressão modificando-se através de


um contínuo que compreende a passagem do estado de calma, para o de
vigilância, para o de alarme, para o de medo, para o de terror, através da
ativação de diferentes áreas do cérebro.

O terror experimentado por um bebê ou uma criança pequena e indefesa


que sofre um ataque brutal de um adulto mobiliza seu sistema nervoso
autônomo, causando superestimulação do sistema nervoso simpático.
Desta forma, crianças pequenas e bebês sujeitos a maltrato crônico ou a
trauma intenso (i.e., episódio de maltrato físico intenso, brutal) apresentam
um aumento generalizado de reatividade do sistema nervoso simpático
(SNS) e algumas outras reações diretamente associadas a estímulos
específicos (1).

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O SNS é parte do sistema nervoso autônomo e regula os movimentos


viscerais, vasoconstrição, batimento cardíaco, pressão sangüínea. O eixo
neuroendócrino límbico-hipofisário-adrenal encontra-se muito ativado
em decorrência de trauma intenso ou do maltrato crônico. O stress crônico
ou severo induz na criança um estado de medo subliminar constante
(mesencéfalo, sistema límbico, tronco cerebral) que a faz oscilar entre o
estado de vigilância e o terror.

Acreditou-se por muito tempo que os traumas ocorridos na primeira


infância não teriam um impacto significativo no desenvolvimento
posterior da criança, pelo fato de raramente os eventos ocorridos nos
primeiros 3 ou 4 anos de vida serem posteriormente recordados.

No entanto, por ser este um período de rápido desenvolvimento e


organização cerebral, o sistema nervoso central registra essas experiências
traumáticas em sua própria arquitetura e neuroendocrinologia. As
experiências traumáticas sofridas nas mãos dos cuidadores primários
nesta fase têm um impacto direto sobre a organização dos sistemas
neurais, causando distúrbios de desenvolvimento motor, vestibular,
emocional, social e cognitivo – além da neurotoxicidade decorrida do
stress e sua ação lesiva sobre os tecidos cerebrais.

Toda informação somatosensorial intensamente traumática ou


cronicamente stres-sante e repetitiva recebida pelo cérebro do bebê e
da criança pequena, formará padrões neuronais e neuroendócrinos
específicos em uma fase em que o sistema nervoso central está
desenvolvendo e organizando seu modo básico de funcionamento – a
ser utilizado pelo resto da vida.

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As informações somatosensoriais e emocionais armazenadas nos


primeiros 3 anos de vida são, em sua maioria, de natureza não-cognitiva e
pré-verbal. Dessa forma, crianças dessa faixa etária são mais vulneráveis
ao stress traumático – inclusive o abuso sexual (1).

Se a experiência dela com sua mãe ou outro cuidador primário envolve


medo, dor, imprevisibilidade ou sensações anormais ou dolorosas em sua
genitália, a organização neural das várias regiões correlatas do cérebro
serão alteradas (1). Embora o indivíduo não tenha lembrança posterior
de abuso sexual naquela primeira fase de vida, sofrerá o impacto de
longo prazo sobre o seu desenvolvimento sexual, além de alterações
de estados fisiológicos, motor-vestibulares, e do sistema límbico. O
indivíduo terá posteriormente em sua vida dificuldades de formação
de vínculos emocionais, medo de intimidade física ou desconforto,
problemas sexuais. A ausência de lembrança do abuso sofrido, apenas
agravará seu status psico-emocional, ao confrontar-se com essas seqüelas
(temores aparentemente infundados, aversões, baixa capacidade para o
prazer, medo de intimidade, etc), levando-o a perceber-se como anormal
e inferior – agravando ainda mais sua baixa auto-estima.

Nos casos de abuso crônico ou trauma intenso de bebês e crianças


pequenas (< 3 anos), recomenda-se o seguinte:

• Medidas devem ser tomadas para proteger a criança contra novos


episódios de abuso e para diminuir o impacto do stress traumático a longo
prazo sobre seu desenvolvimento emocional, comportamental, cognitivo
e social. O risco para esses problemas e sua gravidade aumentam em
função da duração da exposição do bebê a essas experiências de abuso,
medo e terror (1).

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• Um cuidador substituto (outro familiar ou pessoa) deve acolher o bebê


ou criança pequena em um ambiente previsível, calmo, amoroso – o mais
cedo possível.

• Nos casos menos graves, o próprio cuidador primário (geralmente a mãe


e/ou pai) deve ser diagnosticado e tratado por terapeuta especializado e
reeducado quanto à importância dos cuidados adequados da criança e da
gravidade se seus atos sobre o cérebro e saúde mental dela.

Se o cuidador primário foi vítima de algum tipo de abuso em sua infância,


um diagnóstico neuropsiquiátrico poderá ser útil na avaliação de suas
seqüelas clínicas e escolhas terapêuticas adequadas.

• É importante que o pediatra e o psiquiatra avaliem e tratem os distúrbios


neurofisiológicos e neuroendócrinos instalados na criança em resposta à
experiência traumática o mais cedo possível.

É importante que tanto o profissional quanto o cuidador primário


compreendam que o mundo do bebê e da criança pequena é definido
por seus cuidadores primários. Se os pais ou outro cuidador primário
substituto estiverem deprimidos, ansiosos, irritados, preocupados, forem
impacientes ou ausentes, isso terá um impacto adverso sobre o bebê ou
a criança (1). Programas de prevenção do maltrato e negligência e de
educação para a maternidade e paternidade, podem ter um impacto
tanto na redução e cessação de casos de abuso como em sua prevenção.
Serviços de apoio e orientação para mães e pais sob risco aumentado de
se tornarem abusivos são também cruciais.

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Crianças Acima dos Três Anos de Idade

Crianças com mais de 3 anos vitimadas por maltrato, negligência ou


violência doméstica nas mãos de pais (pai ou mãe), padastros, irmãos
mais velhos, ou outro familiar ou adulto cuidador, também apresentam
uma série de problemas a serem identificados e avaliados pelo terapeuta
(psicólogo e/ou psiquiatra) e pelos demais profissionais da equipe
multidisciplinar. Além disso, elas estão sob risco aumentado para os
seguintes problemas em futuro imediato e próximo (1):

Saúde física: taquicardia, hipertensão, asma, retardo de desenvolvimento


neuro-motor, hiperexcitação neuro-motora, disfunções neuroendócrinas
e lesões de áreas específicas do sistema límbico, corpo caloso e córtex.

Desordens neuropsiquiátricas: síndrome do stress pós-traumático,


desordens dissociativas, depressão, desordens de comportamento,
desordens alimentares, risco de suicídio.

Problemas sociais: gravidez na adolescência, uso de drogas ilegais ou


alcoolismo, tabagismo, fracasso escolar, comportamento anti-social,
violência e criminalidade infanto-juvenil.

Intervenções

No momento em que a criança é encaminhada para atendimento pela


equipe multidisciplinar, os problemas abaixo descritos podem estar
presentes, em decorrência do maltrato ou da negligência (2):

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Abuso Físico e/ou Sexual – Estes dois tipos de abuso requerem que o
médico da equipe faça uma completa avaliação clínica e física da criança,
pois os problemas de saúde e as possíveis lesões internas e externas
devem ser imediatamente diagnosticadas e tratadas.

Abuso físico: O pediatra ou médico socorrista deve verificar se o paciente


tem problemas de dor e dificuldade de movimentação da mandíbula,
em decorrência de socos ou bofetadas na boca ou na face, hematomas
ou edemas no rosto, nas têmporas ou em outras partes da cabeça.
Hematomas, cortes, lesões ou queimaduras em outras partes do corpo.
A criança pode queixar-se de dor de ouvido, dor de estômago, pode ter
dentes quebrados ou perdidos durante a surra, chumaços de cabelos
arrancados, lesões de órgãos internos, ossos ou costelas quebradas. Se o
maltrato físico for também acompanhado de negligência, a criança pode
estar anêmica ou sofrer de outras desordens decorrentes da subnutrição
ou de alimentação inadequada. Pode ainda apresentar oncoprese,
enurese e dores psicosomáticas. Algumas mães intoxicam a criança com
medicamentos para fazê-las passar mal e desta forma obterem para si
atenção e simpatia no hospital (abuso Munchausen por representação).
Bebês violentamente chacoalhados podem ter edema ou hemorragia
cerebral.

Intervenção terapêutica (psicólogo ou psiquiatra) (2):

Desfigurações e Cicatrizes: Crianças vítimas de violência física podem


ter sofrido lesões que deixaram cicatrizes ou desfigurações permamentes
ou de longa duração. Esses sinais fazem com que elas se recordem
constantemente do maltrato (e sofram repetidamente com a lembrança).

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Portanto, tais sinais e seqüelas devem ser reconhecidos e discutidos em


terapia. Alguns dos pontos que podem necessitar atenção do terapeuta
são:

• Examinar as experiências e sentimentos da criança durante o tempo de


permanência no hospital;

• Ajudar a criança desfigurada pelo abuso a expressar sua raiva e


sentimento de perda de um corpo saudável;

• Ajudá-la a discutir seus sentimentos de vergonha e medo de rejeição em


função de suas cicatrizes e lesões e sua inveja de outras crianças que não
foram desfiguradas;

• Utilizar dramatização e planejamento antecipatório para que ela possa


praticar respostas a perguntas de estranhos a respeito de seus ferimentos
ou cicatrizes;

• Ensinar a criança a reagir a questões sobre sua aparência sem causar


medo, rejeição ou piedade nas outras pessoas;

• Ajudar a criança a desenvolver uma identidade com ênfase no


comportamento e realizações pessoais e não em sua imagem corporal.

Abuso sexual: nos casos de estupro ou incesto, a criança deve ser também
testada para doenças sexualmente transmissíveis, inclusive AIDS.
Crianças molestadas e induzidas ao sexo oral, mas sem penetração,
podem apresentar infecção oral, como por exemplo, gonorréia. Nos
casos de penetração, a criança pode ter sofrido lesões anais ou vaginais
internas.

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Sempre que possível, a coleta de sêmen presente no trato vaginal, retal,


ou roupa da vítima deve ser feita para análise de DNA e identificação do
agressor. Meninas que iniciaram o período menstrual aos 9 ou 10 anos
de idade, possuem ainda um risco para a gravidez, embora ela seja rara
nessa faixa etária.

Na intervenção terapêutica de vítimas de abuso sexual, os seguintes


tópicos devem ser adequadamente abordados ou pelo terapeuta ou em
resposta a questões colocadas pelo paciente – no momento certo e de
forma adequada à idade e maturidade cognitiva da criança (2):

• Esclarecer dúvidas ou preocupações da criança com seqüelas, doenças


ou lesões associadas ao abuso ou que a vítima acredita estarem associadas
a ele;

• Esclarecer questões sobre anatomia, propósito e função de partes do


corpo, genitália e órgãos sexuais;

• Oferecer apoio e orientação para que a criança se abstenha de relações


sexuais até que esteja fisicamente madura e emocionalmente pronta para
a experiência em uma fase posterior de sua vida;

• Oferecer informações sobre doenças sexualmente transmissíveis, sexo


seguro, contraceptivos e cuidados higiênicos a pacientes adolescentes;

• Caso o abuso ou exploração sexual da criança ou adolescente esteja


ocorrendo e venha a ser relatado pela criança durante a terapia pela
primeira vez, o psicólogo ou psiquiatra deve reportar o fato aos demais
profissionais da equipe para que se tomem as providências para proteger
a criança e fazer cessar o crime.

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Abuso emocional: este tipo de abuso assume geralmente a forma de


agressão verbal, xingamento, humilhação, depreciação da criança e
negação de suas qualidades positivas. A criança geralmente é percebida
pelo adulto agressor como uma pessoa inerentemente má, falsa, burra,
mentirosa, desonesta, etc, sendo tratada pela mãe ou pai como tal, sendo
injustamente acusada e punida por vários atos que não praticou. A vítima
desenvolve sentimentos de inferioridade, culpa, tristeza, depressão, raiva
de si mesma, ressentimento. Muitas, com freqüência, idealizam suicídio
ou nutrem desejo de morte ou desenvolvem algum comportamento
auto-destrutivo. O impacto deste tipo de maltrato é tão devastador
quanto o maltrato físico e induz alterações fisiológicas, neurológicas e
neuroendócrinas tão sérias quanto as observadas nas outras formas de
abuso.

A exposição prolongada e diária ao metabolismo neurotóxico do stress


crônico, induz os mesmos problemas vistos nos casos de maltrato físico,
exceto que aqui, as desfigurações e cicatrizes permanentes não são
facilmente percebidas – embora detectáveis e diagnosticáveis por diversas
vias e em diversos níveis, do físico ao emocional e social. Transtornos
de stress pós-traumático acompanham os sobreviventes deste tipo de
maltrato – geralmente por toda as suas vidas – além de desordens
dissociativas, depressão, transtornos de ansiedade, etc.

Aspectos psico-emocionais associados ao abuso físico, emocional e/ou


sexual (1,2): crianças traumatizadas por violência física ou abuso sexual
com freqüência associam a noção de intimidade com dor, medo, confusão
e vergonha, passando a evitar contato físico com outras pessoas, inclusive
beijos e abraços. Não se deve forçá-las a aceitar abraços e beijos – mesmo
como um cumprimento social.

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Algumas crianças abusadas tendem a levar uma ordem dada por um


adulto muito a sério. Desta forma, se o terapeuta, ou outro adulto ou
familiar em posição de autoridade lhes dizem “dê-me um beijo”, ou
“dê-me um abraço”, elas obedecerão – reforçando, no entanto, uma
representação interna de que intimidade e conforto físico são obtidos
através do poder do mais forte sobre o mais fraco. Outras crianças
sexualmente abusadas podem ainda ter desenvolvido estilos de interação
anormais, como a sexualização de seu comportamento na interação com
outros adultos e crianças – por não terem a capacidade de distinguir entre
interações sociais não sexualizadas e comportamento sexual. Algumas
crianças sexualmente abusadas podem regredir a um estágio anterior do
desenvolvimento e não terem nenhuma recordação do abuso (3).

Na fase pós-traumática do abuso, cada criança geralmente apresenta


um quadro sintomático particular, resultante da combinação de alguns
elementos dos seguintes sintomas:

• re-encenação do trauma – através de comportamentos, ou brincadeiras,


ou desenho; ou através de pesadelos, recorrência angustiante de imagens
mentais do fato, relembranças com forte mobilização emocional;

• alienação – retraimento, auto-isolamento, passividade e incapacidade


de prestar atenção, regressão a uma fase anterior de desenvolvimento
emocional;

• hiperatividade fisiológica – comportamento impulsivo, agitação


motora, tiques nervosos, ansiedade, hipertensão, taquicardia, enurese
noturna, problemas de sono, (pesadelos freqüentes, insônia, medo de
dormir, sono agitado, etc).

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Todas as crianças traumatizadas apresentam uma combinação de alguns


dos sintomas acima no período pós-traumático mais agudo e imediato
ao evento. Muitas, porém, irão continuar a manifestar esses sintomas
durante vários anos, após a ocorrência do trauma (1).

Algumas crianças sexualmente molestadas ou físicamente maltratadas


(espanca-mentos, agressões) ficam preocupadas com seus corpos e
temem que tenham sofrido algum tipo de dano físico irreversível.
Passam a perceber a si mesmas como diferentes e inadequadas em
comparação a outras crianças de seu convívio. Meninos vitimados
sexualmente por adulto da família podem desenvolver dúvidas quanto
à sua identidade sexual ou acreditar que foram sodomizados por serem
homossexuais. Quando o menino é molestado por uma adolescente ou
mulher adulta, pode começar a duvidar de sua capacidade e adequação
sexual, desenvolver aversão pelo sexo oposto, ou tornar-se emocional e
fisicamente incapaz de intimidade. Algumas vítimas relatam ter buscado
novas relações sexuais com outras crianças ou adolescentes para “provar”
que eram sexualmente competentes e adequadas (2).

As conseqüências do abuso emocional ou físico durante a infância, bem


como do abuso sexual, sobre o desenvolvimento psicológico de cada
vítima, não são as mesmas, tornando difícil predizer quais aspectos foram
mais atingidos ou quais serão os problemas que o indivíduo apresentará
no futuro em decorrência do maltrato sofrido. No entanto, sabe-se que
algumas áreas críticas associadas ao desenvolvimento cerebral/emocional
durante a infância são afetadas, tais como a formação de vínculo afetivo,
comprometendo o bem estar emocional da vítima. Sua capacidade para
confiar, perceber e interpretar corretamente sentimentos e intenções
alheias, perceber e avaliar seus próprios sentimentos, escolher amigos e
parceiros, estabelecer e/ou manter relacionamentos, fica comprometida.

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A auto-estima baixa, falta de experiência na formação e manutenção


de vínculos afetivos saudáveis, falta de senso de valor próprio, medo
de rejeição e insegurança emocional, favorecerão relacionamentos
com amigos e/ou adultos egoístas, ma-nipuladores, abusivos ou não
confiáveis, levando o paciente à revitimização. A revitimização é o
processo pelo qual a vítima do abuso/negligência, tende a relacionar-se
com pessoas que – embora pareçam diferentes de seu agressor(a) – têm
muito em comum com ele(a). Essas “escolhas” de amigos e parceiros
colocam a vítima involuntariamente em situações onde a traição,
maltrato, abandono, ou abuso já sofridos voltam a repetir-se. A figura do
agressor da infância é substituída ao longo da vida por colegas, amigos,
pelo cônjuge, ou até mesmo pelo sócio ou patrão, caso a vítima de abuso
não receba assistência terapêutica adequada.

Este ciclo daninho nas vidas de vítimas de abuso ou negligência só é


interrompido ou pode ser prevenido por meio da intervenção terapêutica
bem informada e eficiente, de forma a detectar e desenvolver, no
paciente, os aspectos comprometidos pelo abuso – e quanto mais cedo
ocorrer a intervenção terapêutica, melhor. Vamos portanto verificar
quais os problemas e intervenções terapêutica para os distúrbios de
desenvolvimento psicológico da criança abusada/negligenciada.

Desordens do Desenvolvimento Psicológico

Alguns dos problemas psicológicos mais comuns em crianças vítimas de


abuso e/ou negligência são:

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• os problemas de vínculo afetivo,


• problemas de auto-regulação,
• problemas de auto-controle,
• e problemas de identidade.

A equipe multidisciplinar deve intervir junto à família e sempre que


possível assegurar que a criança fique sob a guarda de um familiar (avó,
tia, irmã mais velha adulta) que possa construir com a criança vínculos
afetivos saudáveis e consistentes, em um relacionamento de confiança e
nutrição emocional. Além disso, outras pessoas de seu convívio diário
podem e devem também atuar na formação e fortalecimento de vínculos
saudáveis, tais como a professora, psicopedagoga, psicóloga – enfim,
pessoas que mantêm contato regular com a criança. Essas crianças,
principalmente as pequenas, precisam ser abraçadas, receber cafunés,
sentirem-se acolhidas e amadas. No entanto, as vítimas de maltrato físico
ou abuso sexual podem ter dificuldades nesse aspecto, de forma que os
adultos devem observar com cuidado como elas reagem e adaptar sua
expressão de afeto e acolhimento ao que elas podem no momento aceitar.
O próprio relacionamento terapêutico pode ser modelado de forma a
representar os diversos papéis e sentimentos do adulto cuidador na
proteção e apoio emocional da criança, através de encenações, atividades
lúdicas envolvendo bonecas bebês, etc. O terapeuta e outros profissionais
estarão proporcionando à criança experiências que ela deveria ter tido
durante os primeiros meses de vida. No entanto, devem estar conscientes
de que aquele período crítico de desenvolvimento neuronal dos primeiros
meses de vida foi perdido e o cérebro do paciente irá se modificar
muito mais lentamente para internalizar e construir representações de
vínculos emocionais no momento atual. A consistência e repetição dessas
experiências positivas são essenciais para que isso ocorra.

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Quanto maior for o conhecimento do terapeuta e da equipe


multidisciplinar sobre o desenvolvimento normal da criança e sob a
psicopatologia do desenvolvimento truncado ou anormal da criança
traumatizada, menor será o risco de mal interpretarem os muitos
comportamentos incompreensíveis do paciente. Por exemplo, quando
essas crianças enchem os bolsos com bolachas, pães e outros alimentos que não
conseguem comer no momento da refeição, não estão “roubando”: este é um
comportamento previsível em crianças que nunca tinham certeza de quando
receberiam outra refeição em seus primeiros anos de vida, alerta Bruce Perry (3).
Se tal criança for punida ou repreendida por esse ato, isso só adicionará
mais prejuízo ao seu desenvolvimento – pois aumentará seu sentimento
de insegurança e reforçará sua necessidade de estocar alimento. Este e
outros comportamentos, aparentemente estranhos, devem ser abordados
em terapia de forma apropriada, para auxiliar a criança a compreender
seus sentimentos, temores, pensamentos e comportamentos, aprendendo
a gradualmente controlar seu comportamento e melhorando seu
relacionamento com os outros.

Como é comum que crianças abusadas estejam atrasadas em aspectos de


seu desenvolvimento emocional e social, é importante que ao interagir com
ela, a abordagem seja adequada ao seu estágio real de desenvolvimento
e não à sua idade cronológica. É preciso ter-se em mente que, mesmo um
paciente de 9 ou 10 anos, que demonstre inteligência normal ou superior
e boas habilidades cognitivas, pode ter um atraso emocional significativo
e que só se manifestará quando a criança estiver em situações estressantes
ou frustrantes – fazendo emergir nela reações emocionais que seriam
normais em uma criança de 4 ou até 2 anos. Exigir que elas ajam ou reajam
de maneira própria para sua idade é absolutamente inútil, pois elas não
estão equipadas para tal.

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Em momentos assim, em que a criança está frustrada, chorando ou


emocionalmente arrasada (i.e., reagindo como uma criança de 2 anos), ela
deve ser acolhida e confortada como uma criança de 2 anos seria (abraço,
aconchego, carinho na cabeça). Não é o momento para racionalizar ou dar
conselhos sobre comportamento (1).

No desenvolvimento de habilidades interpessoais, esses problemas


podem se manifestar sob a forma de:

• identificação com o agressor;


• hipervigilância;
• comportamento agressivo e cruel com outras crianças e animais;
• comportamento auto-destrutivo;
• problemas com intimidade;
• sentimentos de abandono e de ter sido traída.

Os distúrbios do desenvolvimento terão também um impacto sobre


o comportamento, manifestando-se sobre a forma de um ou mais dos
seguintes problemas: auto-isolamento, comportamento de dependência,
comportamento agressivo, compor-tamento hipersexualizado. As
experiências a que as crianças são expostas nos primeiros anos de vida
fornecem-lhes modelos de comportamento, com base na forma como as
pessoas de seu mundo se tratam entre si e tratam a criança. Como discutido
em capítulo anterior, tanto o auto-controle como as habilidades sociais se
desenvolvem fundamentalmente dentro da família, a qual lança as bases
para a capacidade de fazer e manter laços afetivos sadios, respeitar a si e
ao outro, amar, confiar – ou não! Muitos pacientes vítimas de abuso ou
negligência não sabem como interagir socialmente com outras pessoas,
devido ao ambiente caótico e imprevisível em que vivem ou viveram ou
aos modelos de desrespeito e abuso de que foram objetos e/ou também
presenciaram.
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Essas crianças sentiram-se enganadas e traídas por sua família mais de


uma vez.

Elas precisarão de ajuda, apoio e incentivo para o aprendizado e


desenvolvimento de comportamentos sociais adequados. Mais uma
vez, as atividades terapêuticas devem criar situações em que tais
comportamentos são representados e associados a conseqüências sociais,
conotações, etc. Além disso, a atividade lúdica dirigida e supervisionada
com outras crianças ajuda a desenvolver a inteligência social e melhora a
auto-estima da criança.

Algumas crianças com problemas de vínculo afetivo podem parecer


muito afetuosas com estranhos, tomando a iniciativa de abraçá-los, beijá-
los, sentar no colo. Bruce Perry alerta que este não é um comportamento
afetuoso, mas sim de “submissão” e que não deve ser incentivado. Ele
recomenda que não se rejeite a criança, recusando o beijo ou abraço, mas
que a seguir ela seja guiada a perceber o modo apropriado de interagir
com adultos e com outras crianças. Existem diversas abordagens e
técnicas para cada uma dessas questões, de forma que o especialista bem
informado e treinado saberá escolher, caso a caso, a melhor forma de
conduta.

Embora algumas crianças regridam a uma fase anterior de desenvolvimento


(e anterior ao início do abuso), com mais freqüência as vítimas de abuso
desenvolvem um padrão de comportamento dependente. Isso ocorre
pois a criança tem medo de ser rejeitada e sente ser inseguro e perigoso
expressar suas próprias opiniões e percepções. Desta forma, ela permite
que outros adultos ou pessoas em situação de poder tomem decisões em
seu nome, mesmo sabendo que elas estão erradas.

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Ou se oferece para fazer tarefas desagradáveis ou humilhantes para ser


agradável às pessoas. Crianças dependentes são vulneráveis à exploração
por indivíduos inescrupulosos e estão sujeitas a revitimização tanto na
infância quanto ao longo de suas vidas (2).

No desenvolvimento intrapessoal, os problemas derivados do maltrato se


manifestam como uma constelação de problemas, tais como:

• medo crônico e sentimento pervasivo de insegurança e perigo;


• desordens de síndrome do stress pós-traumático;
• ansiedade, depressão;
• inabilidade de expressar afeto;
• sentimentos de culpa;
• incapacidade de reconhecer, acusar ou responsabilizar o agressor;
• problemas de auto-estima, falta de senso de valor próprio, falta de
confiança em suas próprias capacidades;
• estigmatização;
• sentimentos de vulnerabilidade e desamparo.

Como já mencionado, crianças fisicamente maltratadas com freqüência


desenvolvem um padrão de comportamento irritante, visando atrair a
surra, pois preferem ter alguma previsibilidade e controle sobre a violência
que sofrem a serem pegas de surpresa. Além disso, para muitas, essa é a
única forma de atenção que conseguem dos pais. Cabe ainda lembrar ao
terapeuta que o abuso físico vem sempre acompanhado ou é precedido
de um processo de desmoralização da criança pelo adulto, levando-a a
ver-se e sentir-se como incompetente, inadequada, má, burra, indigna de
amor, merecedora da violência do adulto, etc.

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A criança que se sente rejeitada e desamada geralmente nutre uma


profunda mágoa pelo progenitor(a), mesclada de raiva de si mesma,
“por não ser digna de amor”. Uma grande carga de culpa e sentimentos
de inferioridade e desmerecimento pessoal acompanham a criança
maltratada.

Com freqüência, ela não sabe nem compreende quem é a vítima e quem
é o agressor, pois crê que foi a causadora da violência. A intervenção
terapêutica deve portanto abordar este problema levando a criança a
descobrir e reconhecer a situação real. Além disso, os seguintes fatores
podem estar presentes e contribuindo para as dificuldades do paciente:

• A criança sente vergonha ou nega-se a denunciar seu agressor. O adulto


abusivo pode ter cultivado uma relação de duplo vínculo com a criança,
oferecendo privilégios ou recompensas para que esta guarde segredo a
respeito do maltrato e esconda os sinais físicos de abuso.

• A criança não sabe como expressar seus sentimentos ou está completamente


confusa, sentindo-se culpada ou envergonhada por estar causando problemas
para a família, devido à intervenção, etc. Isso pode decorrer do fato de a
maioria dos adultos abusivos explicarem à criança que a surra foi um “ato
de amor”, para o “próprio bem dela” e que “dói mais na mãe (ou pai) ter
sido obrigada(o) a surrar a criança do que está doendo na criança”... “Afinal,
se ela não fosse tão má, tão terrível, nada disso teria acontecido”...

• A criança tem dificuldades em verbalizar ou limitações de vocabulário em


função da idade ou de atraso cognitivo em decorrência do maltrato e isolamento.
Atividade terapêutica apropriada à idade ou problema deve ser
introduzida mediante avaliação do desenvolvimento e/ou diagnóstico –
buscando-se outras formas de expressão para a criança poder representar
seus sentimentos e percepções.
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• A criança esconde seus sentimentos de dor, medo, tristeza, por receio de ser
rejeitada pelo terapeuta ou por não ter consciência do que sente. Vários recursos
podem ser utilizados para ensinar à criança os quatro diferentes tipos de
emoção: raiva, medo, alegria, tristeza. O terapeuta pode ainda expressar
em seu rosto esses diferentes estados, através de uma atividade lúdica,
a encenação de uma estória, ou em suas reações ao relato da criança
sobre o seu maltrato (tristeza, raiva); ou quando o paciente demonstra
uma nova habilidade ou talento, através de uma atividade, o terapeuta
pode demonstrar em seu rosto, voz e gestualística, expressões de alegria,
admiração, apreciação pela criança.

• Algumas crianças desenvolvem a capacidade de ignorar, esquecer, ou ainda,


dissociar os sentimentos de dor da lembrança dos fatos traumáticos que os
causaram, como uma técnica de sobrevivência muito eficaz. O terapeuta deve
ser cauteloso e respeitar a resistência do paciente em falar ou participar
de atividades que evoquem essas emoções dolorosas. Somente quando a
criança sentir-se completamente segura e confiante no terapeuta e tiver
certeza de que o abuso não voltará a ocorrer, será capaz de se expor.

Essas crianças precisam ser ouvidas. É importante que o terapeuta e outros


membros da equipe desenvolvam a capacidade de prestar atenção, ouvir
e brincar com elas.

Muitas vezes, uma criança que tem dificuldade de se expor, de falar


sobre o que a aflige, o faz quando você está simplesmente brincando ou
realizando uma atividade em conjunto com ela. Quando ela sente que
o terapeuta ou outro profissional com quem ela tem contato regular é
confiável, não vai rejeitá-la e genuinamente se importa com ela, ela começa
a falar e expressar o que realmente acontece dentro dela. É preciso saber
ouvir, sem interromper.

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Perry alerta que estes são os momentos em que a criança está pronta para
aprender a respeito dos diferentes tipos de sentimentos e ressalta que,
independente da atividade, os seguintes princípios são importantes (3):

1. Todos os sentimentos que ela sente são válidos: alegria, tristeza, raiva,
etc;

2. Ensine a ela modos saudáveis de agir quando ela estiver triste, alegre
ou com raiva;

3. Comece a explorar com a criança o que as outras pessoas sentem em


diversas situações e como elas demonstram suas emoções; por exemplo,
pergunte a ela “como você acha que o fulano se sente quando você bate
nele?” ou “como você acha que o ciclano se sente quando ninguém o
deixa brincar?”;

4. Quando a criança está visivelmente expressando um estado emocional


(seja ele tristeza, ou alegria, ou raiva), peça a ela que descreva o que
está sentindo, ajudando-a a encontrar palavras para classificar seus
sentimentos.

Nos momentos certos e de forma apropriada a cada criança, a terapia


deve abordar com ela questões de segurança, fazê-la distinguir entre
como ela se sentia na época da agressão e como se sente atualmente, livre
do abuso e protegida. Mostrar-lhe que hoje ela é maior e mais velha – ou
se encontra em uma situação ou local mais seguro – do que na época do
abuso, sendo capaz de lembrar-se e falar da agressão passada sem perder
contato com a realidade atual (2).

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O tratamento, apoio, orientação e educação da criança abusada não é


um trabalho fácil e os resultados vêm a duras penas, pois a criança ou
adolescente tem muito, muito mesmo a superar em termos de distúrbios
causados pelo abuso e /ou negligência. Algumas jamais superarão todos
os seus problemas. Perry alerta para a importância da consistênsia,
previsibilidade e repetição de atitudes e comportamentos dos profissionais
que atendem crianças abusadas, pois elas são extremamente sensíveis à
quebra de promessas, alterações bruscas de rotinas, situações sociais
caóticas, situações de transição e situações desconhecidas. Seus cérebros
precisam de rotina, previsibilidade e ambientes calmos – tanto na casa,
quanto na escola ou centro de atendimento – para sentirem-se seguros e
protegidos. Acima de tudo, precisam sentir que seus cuidadores atuais
e membros da equipe são dignos de sua confiança. Somente quando se
sentem seguros, esses pacientes conseguem usufruir de experiências
sociais, cognitivas e emocionais positivas e enriquecedoras (1).

Portanto, o preparo científico e treinamento clínico especializado devem


também ser enriquecidos com muita paciência, muita dedicação por parte
do terapeuta.

Expectativas realistas por parte de todos os profissionais (terapeutas,


professores, psicopedagogos) e por parte da família adotiva ou do
familiar cuidador são também desejáveis. A equipe multidisciplinar
é essencial, com cada profissional apoiando os demais e realizando
a sua parte do atendimento. Reciclagem profissional (vivências,
imersões, etc) e supervisão terapêutica regular – bem como períodos de
“reabastecimento” psico-emocional e físico são necessários para evitar o
“burn-out” profissional e pessoal.

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REFERÊNCIAS

1. Bruce D. Perry, M.D., Ph.D. Helping Traumatized Children, 2002. The Child
Trauma Academy, Houston, Texas.

2. Treatment Issues for Abused and Neglected Children and Specialized Interventions.
In: Treatment for Abused and Neglected Children: Infancy to Age 18 pp.62-85.
17
http://nccanch.acf.hhs.gov

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Somos Uma Espécie Muito Jovem


– Mas Que Rumo Devemos Tomar?

A primeira forma de vida – um organismo unicelular procarioto – surgiu


na Terra há cerca de 3,7 bilhões de anos, em fossas abissais, no fundo dos
oceanos primitivos. Nosso planeta é só um “pouco” mais velho do que
essa primeira forma de vida, cerca de 4,5 bilhões de anos. Se comparado
a esse imenso tempo geológico, nós os seres humanos, surgimos há
cerca de 1 minuto, no relógio planetário. Somos, portanto, uma espécie
muito jovem e – seria válido supor – ainda estamos aprendendo a ser
nós mesmos. Em outras palavras, ainda estamos tentando, como espécie
biológica, descobrir o melhor jeito de funcionarmos entre nossos pares
e no ecossistema planetário, para nos tornarmos uma espécie bem-
sucedida.

Possuímos o cérebro mais complexo do planeta, uma estrutura delicada e


plástica, que nos permite a adaptação e sobrevivência nos mais diferentes
ambientes e situações – em condições impossíveis para outros animais.
(Sim, somos animais, do ponto de vista biológico – no melhor sentido
da palavra.). Como as outras espécies animais, aprendemos por ensaio
e erro; e como elas, se não aprendermos com nossos erros, podemos
comprometer nossa própria sobrevivência como espécie.

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Diferentemente dos outros animais, no entanto, o sucesso de nossa


espécie depende não apenas de nossa capacidade de adaptação ao meio,
em resposta ao nosso programa genético; mas da compreensão do que
somos, de como funcionamos (biológica e psicologicamente), e dos
meio-ambientes – o auto-criado e o natural – dos quais depende a nossa
sobrevivência; e ainda, da compreensão do delicado equilíbrio entre
esses dois ecotômios e de seu impacto sobre a nossa saúde mental. A
palavra chave aqui é “consciência”.

Sim, é isto o que nos diferencia de nossos irmãos animais: a capacidade


de construir uma representação interna e externa de nossa própria
existência e do mundo em que vivemos, através de nossas experiências.
Nosso cérebro é tão sofisticado, que torna esse conhecimento não apenas
possível, mas ainda nos capacita a comunicar verbalmente, gestualmente
e através da escrita, música, dança e artes plásticas, nuances sutis,
informações complexas de estados emocionais, intenções e conotações a
nossos semelhantes. Supostamente, somos a única espécie capaz disso.
Essa nossa habilidade única nos permitiu expressar alguns aspectos do
imenso potencial de nossa própria natureza humana sob a forma de
sistemas religiosos, filosofias, ciências, artes e sistemas sócio-culturais,
econômicos, políticos, etc.

Na trilha evolucionária do ensaio-e-erro, temos errado muito e nossas


importantes conquistas em direitos humanos, legislação civil e códigos
de ética, muitas vezes desmoronam tão rapidamente frente a crises várias,
que C.G. Jung foi levado a afirmar que a “humanidade leva séculos para
subir um metro na escada do desenvolvimento de consciência; mas
retrocede 30 metros em apenas uma geração”.

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Lewis Thomas – médico e pesquisador – em sua obra, “The Fragile


Species” (A Espécie Frágil), afirmou que nosso cérebro, devido à sua
complexidade, nos expõe a um alto risco para a loucura.

A neurobiologia está agora nos mostrando a necessidade urgente de


corrigirmos um erro muito grave, um erro que, mais do que qualquer
outro que cometemos nesse minuto geológico de nossa existência humana,
pode colocar em risco a nossa sobrevivência como espécie: o dano cerebral
que causamos à nossa espécie, a nós mesmos, através da forma como
tratamos e educamos as nossas crianças e dos tipos de sociedade que
criamos para nós mesmos ao redor do globo: a maioria delas, altamente
psicopatogênica. Em outras palavras, sociedades prejudiciais à saúde
mental de seus cidadãos – adultos e crianças.

Não se pode negar que muitos sistemas filosóficos, religiosos e estudos


acadêmicos de psicologia e sociologia vêm afirmando isso há muito
tempo, cada um em sua própria linguagem.

Mas o que até hoje parecia a muitos hipóteses apenas prováveis e a outros
improváveis, tornou-se ao longo dos últimos 30 anos um fato científico
difícil de ignorar: estamos danificando a nós mesmos, danificando nossos
cérebros, através do modo como nos organizamos e nos relacionamos em
diversos níveis: familiar, social, empresarial, econômico, governamental,
e assim por diante. Nosso problema maior não é a tecnologia, a engenharia
genética – ou qualquer outro tipo de conhecimento ou recurso de que
dispomos: mas o uso que fazemos disso. Nosso problema não está nos
armamentos nucleares, bombas biológicas ou armas de fogo: mas no
estado de nossa saúde mental – individual e coletiva – que permite que
fabriquemos e façamos uso desses instrumentos de destruição e auto-
destruição.

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O uso que damos a qualquer recurso natural, poder ou tecnologia de


que dispomos, expressa o grau de sanidade ou insanidade em que nos
encontramos.

Como espécie, somos um grande organismo, chamado Natureza


Humana. Como dizia Jung, “pessoas nascem e morrem todos os dias;
mas o Homem (leia-se, Ser Humano) surgiu uma única vez na face
da Terra”. Como indivíduos, somos células desse grande organismo
Humano e cada indivíduo que nasce dá à Natureza Humana uma nova
oportunidade de dar certo. O potencial criativo humano transforma-se
no mais destrutivo dos potenciais, quando nossa Natureza Humana é
violada, quando nossos cérebros são danificados ou seu funcionamento
saudável é comprometido. É difícil negar que somos atualmente uma
geração de indivíduos com uma alta incidência e/ou sob alto risco de
desenvolvimento de neuroses e outras desordens neuro-psiquiátricas
e que, em maior ou menor grau, estamos quase todos danificados, em
algum aspecto de nossa neuro-endocrinologia.

Mas aquilo que nos diferencia como espécie, contém em si mesmo o


remédio: nossa CAPACIDADE PARA A CONSCIÊNCIA. Esse atributo
de nossa natureza cerebral nos permite rever nossos passos, aprender
com nossos erros, corrigir nossos rumos, reavaliar e requalificar nossas
atitudes e valores. O atendimento das necessidades naturais para o
desenvolvimento sadio de nosso cérebro humano não é um evento
biológico automático e puramente instintivo. Ele exige um processo
de aprendizado ativo – exige consciência e desenvolvimento de
consciência. Aprendizado ativo requer um Ato de Vontade que nos torna
co-partícipes de nosso próprio desenvolvimento cerebral.

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Diferentemente dos nossos irmãos animais, para sermos completamente


humanos, precisamos contribuir ativamente para o nosso
desenvolvimento cerebral sadio, através da aplicação do conhecimento
que estamos adquirindo a respeito de nossa própria natureza psico-
biológica e de suas necessidades imperativas. O reconhecimento do
modo de ser de nossa própria neurobiologia nos remete a uma maior
responsabilidade quanto à forma como nos percebemos e aos nossos
semelhantes. Tal conhecimento implica responsabiblidade – ou seja – a
habilidade de respondermos adequadamente ao que hoje sabemos sobre
nós mesmos e o uso que fazemos de tal conhecimento. Em outras palavras,
o conhecimento da nossa neurobiologia nos impõe a responsabilidade de
reavaliarmos e requalificarmos nosso Ethos, nosso modo de tratar a nós
mesmos e a nossos semelhantes – pois agora sabemos as dimensões do
dano e da dor que podemos sofrer e causar ao Outro.

Se fomos nós mesmos danificados, isso não nos dá o direito de perpetuar


tal erro, danificando novos indivíduos, pois um erro não justica outro.
Auto-piedade é um sentimento mesquinho e auto-condescendente,
que nos lança na roda da perpetuação dos mesmos erros de que fomos
vítimas. Este ciclo vicioso e indigno de nossa própria humanidade
precisa ser rompido aqui e agora. Medidas terapêuticas e preventivas
precisam ser imediatamente introduzidas. Serviços de formação para a
maternidade/paternidade responsável são um imperativo na prevenção
dos danos do maltrato e da negligência, se quisermos realmente remover
as armadilhas e obstáculos do caminho das próximas gerações. Grupos
de apoio e de intervenção terapêutica para famílias problemáticas
podem interromper e/ou prevenir o abuso e a negligência de crianças e
adolescentes. Iniciativas individuais e grupais da sociedade civil podem
operar milagres, quando não apenas a cidadania consciente, mas a
Humanidade Consciente motiva nossos esforços.

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PANDORA - Conteúdo Virtual

Nessa luta pelo resgate do desenvolvimento saudável de nossa Natureza


Humana, todos podem ajudar: Famílas, Serviços Comunitários, Igrejas,
Professores, Psicopedagogos, Psicólogos, Médicos, Assistentes Sociais,
Órgãos de Defesa e Amparo à Família, Criança e Adolescente e,
eventualmente, até governos.

Mas a força dessa mudança está em nós, os indivíduos, em nosso


rompimento com os mitos e ilusões da paternalização estatal, no resgate
da confiança em nossa capacidade de buscar recursos criativos dentro
de nós e instrumentação cognitiva nas fontes adequadas, para nos
organizarmos e fazermos a nossa parte nesse processo de cura coletiva.

Precisamos dar uma chance às nossas melhores capacidades individuais


– a Humanidade em cada um de nós agradecerá nosso empenho nesse
aprendizado ativo.

Remeto o leitor que caminhou comigo até este posfácio, ao Anexo das
próximas páginas, onde modelos brasileiros são apresentados, bem como
entidades que se dedicam a este serviço, tais como ABRAPIA – Associação
Brasileira de Proteção à Infância e Adolescência, o Núcleo de Atenção à
Violência do Instituto Fernandes Figueira (FIOCRUZ), Núcleo de Atenção
à Criança Vítima de Violência – Instituto de Puericultura e Pediatria
Martagão Gesteira- IPPMG / UFRJ, Conselhos Tutelares – entre outras.
Na home page da ABRAPIA (http://www.abrapia.org.br) há material
2 informativo e indicação de livros publicados por autores brasileiros sobre
o assunto.

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PANDORA - Conteúdo Virtual

I - MODELOS BRASILEIROS DE ATENDIMENTO E APOIO À CRIANÇA


ABUSADA

MOSTRA SOCIEDADE VIVA – Violência e Saúde


Centro Cultural da Saúde – Rio de Janeiro, RJ

Oficinas sobre “Violência contra a criança”

Coordenação: Núcleo de Atenção à Criança Vítima de Violência –


Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG)/UFRJ

Foram propostas 3 Oficinas de Trabalho com o objetivo de discutir os procedimentos


relativos à identificação, acompanhamento e aplicação de medidas em casos de
violência contra a criança e o adolescente no Rio de Janeiro. As atividades têm
como objetivos específicos:

1. Apresentar a dinâmica de trabalho das várias instituições envolvidas


com a questão da violência contra a criança e o adolescente;
2. Dar a conhecer limites e possibilidades de trabalho de cada
instituição;
3. Dar a conhecer as demandas que cada instituição apresenta aos demais
órgãos e unidades envolvidos com a violência contra a criança e o
adolescente;
4. Criar canais de comunicação entre as diversas instituições;
5. Buscar a constituição de um sistema integrado de trabalho na área.

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Relatório da 1a. Oficina “Violência contra a criança”

Coordenadoras: Ana Lúcia Ferreira e Hebe Signorini Gonçalves


(IPPMG/UFRJ)

Para a primeira Oficina, realizada em 25 de agosto de 2003, de 9:00 às13:00 horas,


foram convidados representantes das entidades diretamente envolvidas com a
identificação, o acompanhamento e a aplicação de medidas em casos de violência
contra a criança. Nessa reunião, cada entidade fez uma descrição sistemática
de seu trabalho, contemplando os seguintes aspectos: rotina; dificuldades de
infra-estrutura e limites; canais de comunicação já estabelecidos com as demais
instituições; canais de comunicação necessários e demandas às demais instituições;
formas de recebimento e encaminhamento dos dados coletados; identificação
de superposições de trabalho. Cada participante dispôs de 10 minutos para
sua apresentação e, em seguida, os presentes tiveram a oportunidade de fazer
perguntas aos apresentadores e levantar alguns questionamentos que serão
discutidos na 2a. Oficina.

Foram convidadas as seguintes Instituições:

- Forum Nacional de Conselheiros Tutelares


- Conselho Tutelar de Ramos
- Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA)
- Juizado da Infância e da Juventude (1a. Vara)
- Defensoria Pública / CDEDICA
- Instituto Médico Legal
- Fundação para a Infância e a Adolescência
- DPCA / Núcleo de Proteção a Crianças e Adolescentes (NPCA)
- ABRAPIA
- Instituto Fernandes Figueira / FIOCRUZ
- Hospital Antonio Pedro (UFF)
- Hospital Pedro Ernesto (UERJ)

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- Núcleo de Atenção à Violência (NAV)


- Secretaria de Estado da Saúde – Assessoria de Prevenção de Ascidentes
e Violência (APAV)
- Hospital Municipal Ismélia da Silveira (Duque de Caxias)

Dentre os convidados, apenas os representantes da DPCA e do CEDCA


(representado pela SOBEPI) não compareceram à 1a. Oficina. As apresentações
da 1a. Oficina foram gravadas, transcritas de forma resumida e enviadas
individualmente a cada Instituição para revisão. Após recebimento das correções
e complementações foram reunidas neste documento, enviado a todos os
participantes para ser utilizado na 2a. Oficina.

1. Fórum Nacional de Conselheiros Tutelares


Representante: Conselheiro Tutelar Alexandre Nascimento (Niterói)

Na área de maus-tratos contra a criança, o papel do Conselho Tutelar é bastante


complexo, pois sua ação atravessa as ações de todos os demais órgãos.

É importante ressaltar que o Conselho Tutelar surgiu no Brasil em


contexto que pretendeu ampliar a participação social na questão da
formulação das políticas de atendimento à criança e ao adolescente.
Neste sentido, retirou-se do Judiciário uma série de atribuições, que
foram transferidas aos Conselhos Tutelares sem que houvesse para isso
a necessária preparação ou cessão de meios e estrutura para que essa
mudança ocorresse.

O Conselho Tutelar se diferencia de município para município. Em


Niterói, o processo de discussão junto à rede municipal de atendimento
à criança vítima de maus-tratos fez com que o Conselho amadurecesse
bastante.

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PANDORA - Conteúdo Virtual

Nesse processo de discussão, chegamos ao entendimento de que o


Conselho é o órgão centralizador das informações de maus-tratos,
entendimento pautado no art. 13 do Estatuto.

A rede de Niterói percebeu a necessidade de um órgão centralizador das


notificações. Não se trata de nortear a ação, mas centralizar informação.

Estamos tentando construir um fluxo de atendimento centralizado pelo


Conselho Tutelar, fluxo que admite várias portas de entrada.

Entendemos que todos os casos devam ser notificados, mesmo aqueles


que não necessitam de intervenção. Essa notificação de todos os casos visa
a formação de um Banco de Dados capaz de integrar todas as violações.
Como órgão sinalizador da necessidade de políticas públicas, o Conselho
Tutelar pode valer-se desse Banco de Dados em suas interfaces com o
Conselho Municipal de Direitos, com a assessoria ao Poder Executivo
municipal na elaboração do orçamento gerido pelo Conselho de
Direitos.

O Conselho Tutelar é o órgão que, conhecendo a realidade, pode provocar


a implementação de Políticas Públicas.

Quando a denúncia de maus-tratos chega ao Ministério Público – e


as Comarcas têm como prática proceder a ações de criminalização do
agressor – o Conselho Tutelar fica freqüentemente “dispensado” de ser
notificado.

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PANDORA - Conteúdo Virtual

2. Conselho Tutelar de Ramos


Representante: Conselheira Tutelar Maria José de Souza Ferreira
(Ramos)

O principal problema que está sendo trabalhado atualmente no CT de


Ramos é a parceria com os setores de Saúde e Educação. É necessário
aumentar o compromisso dos profissionais com os casos. O CT só
consegue dar retorno dos casos atendidos se os profissionais pedirem
este retorno.

O CT de Ramos também faz acompanhamento dos casos que atende.

3. Núcleo de Estudos da 1a. Vara do Juizado da Infância e da


Juventude
Representante: Psicóloga Regina Andreiouolo

A 1a. Vara tem como missão institucional a proteção e a garantia dos


direitos de crianças e adolescentes e, nos casos de violência doméstica,
responsabilizar os pais ou responsáveis, quando são eles os autores
da violência, mas dentro dos limites do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Ou seja: o Juiz pode aplicar as medidas do art. 129 e do art. 130, ou
multas (em geral de 3 salários mínimos) por não cumprimento da decisão
judicial.

MISSÃO INSTITUCIONAL DA 1a. VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE:

• GARANTIA E PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE.

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• RESPONSABILIZAÇÃO DOS PAIS/ RESPONSÁVEIS DENTRO DOS LIMITES


DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (MEDIDAS PARA OS PAIS
/RESPONSÁVEIS) E APLICAÇÃO DE MULTA POR DESCUMPRIMENTO DE
DETERMINAÇÕES JUDICIAIS.

Isso é importante pois muitas vezes se confunde e se pensa que a 1a. Vara
vai responsabilizar criminalmente o agressor. Ela não tem competência
para isso, essa é a competência das Varas Criminais. Há um momento em
que o processo é remetido à Vara Criminal, e esse momento pode variar:
o Juiz pode se convencer de imediato, o Promotor pode desde o início
remeter peças do processo à Central de Inquéritos, o que já desencadeia o
processo criminal… vai depender enfim das circunstâncias de cada caso
e do convencimento do Juiz. Nem sempre o descumprimento do dever
enseja crime. Nos casos de violência, o Juiz pode aplicar as medidas
pertinentes aos pais. Em relação ao fluxo dos casos de violência na 1a.
Vara:

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PANDORA - Conteúdo Virtual

Em geral, as denúncias vêm do Conselho Tutelar, que comunica ao


Promotor de Justiça a existência de casos de violência. Os casos atendidos
podem também ser encaminhados pelo Plantão da 1a. Vara, pois as
pessoas ainda identificam a 1a. Vara como instância que pode receber
essas denúncias. Então, nesses casos, a equipe comunica diretamente ao
Juiz, que encaminha ao MP, e retomamos o fluxo. Uma outra forma de
encaminhamento são os serviços que atendem crianças e adolescentes no
bojo de outros processos. Por exemplo: casos de guarda, em que a questão
da violência é percebida. Nesses casos, a violência é comunicada ao Juiz, e
de novo retomamos o fluxo. As fontes de encaminhamento mais comuns
são os Conselhos Tutelares e o Plantão da 1a. Vara.

O Promotor solicita formalmente ao Juiz que seja aberto um processo, e


daí o processo segue um percurso: o Juiz, diante dos elementos do caso,
pode pedir um estudo antes de tomar qualquer medida. Pode necessitar
de outros elementos, que não estão presentes na comunicação do Conselho
Tutelar, ou do Ministério Público. Pede então um estudo psicológico
preliminar e aplica medidas intermediárias. Por exemplo: caso o estudo
psicológico constate que a criança corre risco junto à família, o Juiz pode
mandar abrigá-la. Entre a instalação do processo e a decisão judicial final,
o Juiz pode aplicar essas medidas, e solicitar estudos.

Em seguida ao estudo preliminar, o Juiz aplica a medida intermediária


e pode solicitar o estudo social ou novamente o estudo psicológico, para
avaliar a adequação das medidas aplicadas. Por exemplo: nos casos
graves de maus-tratos, em geral divulgados na imprensa, o Juiz pode
abrigar a criança e em seguida solicitar estudos psicológicos e sociais para
verificar a adequação do abrigamento, a necessidade de alguma medida
em relação aos pais, ou à família extensa, a necessidade de colocação em
família substituta, etc. Enfim, toda a medida que o Juiz determina vai se
embasar no estudo solicitado.

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Entre as medidas aplicáveis, estão: à criança, as previstas no art. 121 do Estatuto;


aos pais e responsáveis, as medidas previstas nos artigos 129 e 130.

CRIANÇA: MEDIDAS DE PROTEÇÃO (ART. 101 DO ECA)

• Entrega aos pais/responsáveis mediante termo de responsabilidade;


• Orientação, apoio e acompanhamento temporários;
• Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio à família, à
criança ou ao adolescente;
• Abrigo em entidade;
• Colocação em família substituta (guarda/adoção).

PAIS/RESPONSÁVEIS: MEDIDAS DO ARTIGO 129 DO ECA

• Encaminhamento a programa oficial/comunitário de proteção à


família;
• Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e
tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
• Encaminhamento a tratamento psicológico e psiquiátrico;
• Encaminhamento a cursos e programas de orientação;
• Obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado;
• Advertência;
• Perda da guarda;
• Destituição do poder familiar.

Art. 130: verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual


impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá
determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor do lar
comum.

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PANDORA - Conteúdo Virtual

Mas o aparato do Juiz para garantir o cumprimento das medidas é


pequeno. A rede de atendimento aos casos de violência é pequena.
Por exemplo, o Juiz pode determinar o afastamento do agressor do lar
comum, mas o pai não sai de casa. E o Juiz não tem um aparato capaz de
garantir o cumprimento dessa determinação.

Os estudos sociais e psicológicos

O Serviço Social da 1a. Vara recebe os casos quase sempre após tomadas
as medidas de proteção, para avaliar a adequação das medidas e
encaminhar ao Juiz um relatório. Não há no Serviço Social uma sistemática
de atendimento a casos de violência.

SERVIÇO SOCIAL

• Já foram tomadas medidas de proteção à criança e de responsabilização


do agressor, em caso de ser este pai/mãe/responsável pela criança/
adolescente;

• Pede-se um estudo social para verificar a adequação de tais medidas.

A equipe do Núcleo de Psicologia, ao contrário, tem pensado a questão e


atende conforme passos bem delineados:

NÚCLEO DE PSICOLOGIA

• Convoca a criança para entrevista;


• Faz entrevistas de revelação, quando não há estudo prévio de outra
instituição;
• Avalia a proteção da criança/adolescente;
• Orienta a família, explicando como proceder, as repercussões do caso
na família e na criança/ adolescente;

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PANDORA - Conteúdo Virtual

• Encaminha a terapia individual ou familiar;


• Quando o agressor é identificado, é encaminhado a terapia (familiar
ou específica para ele);
• Se o agressor não é identificado, as crianças/adolescentes e seus
responsáveis são orientados a evitar situações que podem colocá-los
em risco.

A equipe do Núcleo de Psicologia está fazendo uma pesquisa e está


pensando o fluxo de atendimento no Juizado, para os casos de violência.
Essa perspectiva leva a defender a “despsicologização” da violência, pois
consideramos que os psicólogos não dão conta sozinhos da questão.

Por isso cabe relatar também a experiência da Escola de Pais. A Escola de


Pais é um setor da 1a. Vara que funciona como retaguarda para os casos
de pais que estão descumprindo seus deveres de paternidade, e não estão
respeitando os direitos de seus filhos. Os pais são incluídos no Programa
por determinação judicial, e o Programa abarca três projetos:

1. A Escola de Pais dura dois meses. O Juiz inscreve os pais por


desrespeitarem os direitos dos filhos, ou por usarem de violência.
Recebemos casos de violência já processados pela 1a. Vara, já em fase de
finalização. O Juiz usa a Escola de Pais como retaguarda. São dois meses
de um programa reflexivo e informativo, em que os pais e responsáveis
assistem a palestras sobre vários temas: direitos e deveres de pais e filhos,
sexualidade, drogas e violência doméstica.

2. Depois disso, os pais ficam 1 ano recebendo atendimento individual


e em grupo. E recebem o apadrinhamento de 1 salário mínimo por mês,
durante 1 ano.

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3. No terceiro momento, são encaminhados para o trabalho. Tínhamos


um projeto muito modesto, uma cooperativa, mas atualmente – graças a
convênios com o Tribunal de Justiça e aos apoios do IBISS e da Central de
Oportunidades – temos mais de 200 empregos.

A Escola de Pais não é um programa específico para a violência doméstica.


Nos atendimentos, no entanto, temos observado que a Escola propicia
uma redução notável da violência. São crianças que estavam nas ruas
e retornam para suas casas, são mães e pais que estavam disciplinando
seus filhos com extremo rigor, enfrentando sérios problemas e conseguem
trazer suas crianças de volta, e pensar novas formas de disciplinarização,
são mulheres cujos companheiros são agressores ou abusadores e por
se sentirem amparadas e seguras são capazes de se separar desses
homens…

O aspecto mais importante da reflexão trazida aqui é esse: a


“despsicologização” e a atenção aos outros aspectos que contribuem para
a violência doméstica e para a violência em geral.

Vivemos em uma sociedade violenta, existem fatores estruturais na nossa


cultura e nos lugares onde as pessoas vivem que induzem o estresse,
os vários tipos de distúrbios pessoais que se articulam a problemas do
indivíduo; nesse cenário, um programa de apoio, de escora das famílias,
pode reduzir esses casos. Não podemos desconsiderar a questão do apoio
familiar quando se trata de violência doméstica.

NÚCLEO DE ESCOLA DE PAIS

Pais processados por negligência, maus-tratos ou descumprimento de


direitos básicos para com seus filhos são incluídos no programa por
determinação do Juiz.

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TRÊS PROJETOS:
ESCOLA DE PAIS: (2 meses)

• encontros informativo-reflexivos: direitos e deveres de pais e filhos,


drogas, sexualidade, maus-tratos, criação de filhos, vida comunitária;

• encontros lúdicos/expressivos: música, artes plásticas, trabalho


corporal.

FAMÍLIA SOLIDÁRIA: (um ano)

• acompanhamento familiar individual e em grupo/ obtenção de


documentos/ regularização do registro dos filhos/ aperfeiçoamento
educacional e profissional;

• apadrinhamento de 1 salário mínimo mensal por um ano.

PAIS TRABALHANDO:

• obtenção de emprego para os pais em frentes de trabalho abertas por


convênios entre a 1a. VIJ e o Tribunal de Justiça e a ABATERJ, com as
parcerias do IBISS e da Central de Oportunidades.

NEP é um programa de promoção familiar que perfaz um ciclo completo


de inclusão social, com impacto positivo nas situações de violência intra
e extra-familiar contra crianças e adolescentes.

Algumas dificuldades desse trabalho:

- Os problemas do trabalho interdisciplinar. É um trabalho crucial. É


preciso estabelecer um percurso para os casos de violência. Há tantas
pessoas fazendo trabalhos, e estão tão isoladas umas das outras…

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PANDORA - Conteúdo Virtual

É preciso que esses trabalhos se articulem, que uns saibam o que os


outros estão fazendo, para montarmos uma rede com um mínimo
de racionalidade, para pouparmos esforços, para pouparmos a
criança e a família. A rede precisa ser estruturada com a definição de
responsabilidades de cada ator.

- Capacitação, da qual precisamos muito. Temos uma carência imensa


de profissionais na área, e precisamos de capacitação em vários níveis,
inclusive para Juizes, Promotores, Legistas, Defensores, e técnicos (cujo
olhar às vezes falha).

- Criação de serviços de atenção a crianças vítimas de violência e agressores,


centralizando várias funções. Precisamos pensar na montagem de
centros integrados, considerando as regiões do Rio de Janeiro, em que as
funções de recepção, avaliação, atendimento médico, social e psicológico
pudessem ser centralizadas. Isso traria economia de esforços para os
técnicos e as famílias.

4. Defensoria Pública
Representante: Dr Tadeu Valverde (2a. Vara JIJ)

Por que a preocupação em notificar? Por que a preocupação em fazer


exames técnicos constatando a lesão ou a violência? O objetivo final é
punir o culpado. Só não podemos nos esquecer que há duas faces nessa
moeda: não podemos nos preocupar apenas em punir o culpado pela
violência sexual ou pelos maus-tratos; devemos também nos preocupar
em dar aporte para a pessoa que sofreu a violência.

Quais os problemas que temos enfrentado atualmente? A violência e os


maus-tratos não existem apenas dentro das famílias, mas também das
unidades de internação, nas quais o adolescente cumpre medida sócio-
educativa.

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Nas unidades de internação é que ocorre o maior número de violências


sexuais e de agressões físicas. Constatada a agressão física ou sexual, é
preciso requerer ao Juiz o exame de corpo de delito, visando comprovar
a existência da violência. O Juiz defere o exame. Então, surgem diversos
problemas, pois muitas vezes age o corporativismo da instituição.

O autor da agressão é funcionário da unidade, e a unidade não leva o


adolescente a exame, ou leva apenas quando as lesões já desapareceram,
o laudo do exame feito desaparece misteriosamente… é o que acontece
com freqüência, e são problemas sérios.

Além disso, há a violência dentro da família. Muitas vezes a própria


família resiste, não comunica, não quer fazer a denúncia. Mesmo quando
a denúncia é feita ao Conselho Tutelar, a falta de elementos faz com que o
Conselho não possa prosseguir com a denúncia. Por isso, o procedimento
correto me parece ser o encaminhamento do Conselho Tutelar à Delegacia
Policial para registro de ocorrência, sem prejuízo de outras providências.
Registrando a ocorrência, serão tomadas as medidas judiciais cabíveis
pois o Delegado vai dar andamento à informação, instaurando inquérito
se for o caso, e o suposto culpado responderá a processo penal e incidirão
as penas adequadas.

O registro dá início a uma investigação. A autoridade vai verificar se a


informação prestada procede ou não (é o que se chama Verificação de
Procedência de Informação), até para evitar injustiças.

É comum, em família, que brigas entre parentes gerem falsas denúncias.


É por isso que a autoridade policial antes verifica se a informação é
procedente e, sendo procedente, instaura o inquérito e remete as peças
oriundas dessa investigação ao Juízo competente (Criminal ou da Infância
e Juventude).

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Não é ainda uma confirmação, mas sim a demonstração de que há


elementos suficientes para iniciar a investigação. A polícia vai então
chamar testemunhas, investigar… não é necessária a perícia do IML. Existe
um princípio do processo penal e civil chamado “livre convencimento
motivado”; com base nele, o Juiz pode decidir da maneira que entenda
correta, desde que fundamente sua decisão.

Existem duas espécies de crime: o crime permanente e o crime não


permanente. O primeiro deixa vestígios: são as lesões corporais, os
estupros. O segundo tipo não deixa vestígios. No primeiro tipo, é
importante que se tenha um documento comprovando a existência do
crime – pode ser um laudo médico, o boletim de atendimento médico,
o prontuário… Muitas vezes eu mesmo requisito o prontuário médico,
quando o processo não tem elementos suficientes.
Esses documentos podem atestar a materialidade, ou seja, podem ser a
comprovação do crime ou da infração.

Outro problema: porque existem tantos abusos sexuais? Existem aí


questões sociais, sem dúvida, de desestruturação familiar sem dúvida,
mas a justiça não pune com celeridade os casos de abuso sexual. Muitas
vezes as equipes técnicas da 2a. Vara fazem o atendimento não só da
família da vítima como também da família do agressor sexual. A própria
equipe técnica pede que o autor do estupro ou do atentado violento ao
pudor não seja preso. Argumentam que prender não é a melhor solução,
e defendem que ele seja solto. Quer dizer, não há uma punição severa.
Não se entendeu ainda – e o próprio poder judiciário não entendeu – a
gravidade dos maus-tratos, do abuso sexual, e por isso dificilmente se vê
adolescente ser preso por haver cometido um abuso sexual. Geralmente
se aplicam outras medidas, principalmente a Liberdade Assistida.

Argumentam que isso não é grave, que na unidade de internação o


adolescente acusado de abuso sexual vai “casar” com outro adolescente…

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Existe um código de honra nessas unidades, e os adolescentes não


admitem crimes sexuais nem crimes em família.

Por isso, acho que uma medida importante seria tratar com maior
severidade os casos de abuso sexual.

5. Instituto Médico Legal


Representantes: Monica Vasconcelos, Abisai Israel Fernando Leite e
Edna Maria dos Santos Costa

O Instituto Médico Legal (IML) é o órgão da Polícia Civil responsável


pelas perícias realizadas a pedido das autoridades competentes. São
autoridades competentes: a Promotoria, os Juizes e os Delegados de
Polícia; em casos de maus-tratos, também os Conselheiros Tutelares.

No IML, são feitos exames de lesão corporal, atentado violento ao pudor


e conjunção carnal. Os exames de maus-tratos são considerados como
um exame de lesão corporal específico pois não se restringem ao exame
imediato. Eles enfocam o passado e o presente, pois são vistas inclusive
lesões antigas, e abordam questões como a adequação do peso e da altura
da criança à idade cronológica.

Para ser submetida a exame, a criança deve estar acompanhada de um


responsável, que podem ser o pai ou a mãe mas também um funcionário
do Juizado, um policial ou um parente mais distante. Na sala de exames,
entram a criança e o responsável. O perito, além dos exames habituais,
colhe uma breve história acerca do que ocorreu. Para colher essa história,
a criança é convidada a falar, mas nunca obrigada nem forçada. Caso
a própria criança não queira se pronunciar, o responsável é quem vai
relatar o que sabe. Essas falas, da criança e do responsável, vão somar-se
às informações que já são encaminhadas na própria requisição de perícia,
encaminhada pela autoridade competente.

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Os laudos podem ser solicitados pelo Juiz, pelo Delegado, pela Promotoria
ou pelos Conselheiros Tutelares, que são autoridade competente para
solicitar o laudo quando se trata de casos de maus-tratos contra crianças.
Alguns Conselhos Tutelares encaminham a requisição por intermédio das
Delegacias Policiais, e às vezes alguns técnicos recusam a feitura do laudo
se o solicitando é o Conselho Tutelar; em outras palavras, não há consenso
sobre esse procedimento. No entanto, o IML pode atender à solicitação
direta do Conselho Tutelar, até porque o Conselho tem autoridade legal
para requisitar qualquer serviço público.

Mas a investigação dos casos de maus-tratos só poderá ser feita pela


polícia civil.

Mesmo em casos de maus-tratos, a família não tem acesso ao laudo. Os


laudos são encaminhados à autoridade que os solicitou. Após os exames
de corpo de delito, a família é informada dos resultados preliminares.
Essa primeira devolução à família acerca dos resultados dos exames é
feita no NAVIS (ver detalhes adiante), que conversa com os familiares
presentes, e ouve os conflitos, dá um primeiro apoio à família e explica as
razões pelas quais a criança está sendo examinada.

Depois desse primeiro atendimento, a notificação de maus-tratos é sempre


encaminhada aos Conselhos Tutelares e à Secretaria de Estado de Saúde.
Esse procedimento é adotado como regra pois é comum que as Delegacias
Policiais encaminhem o pedido de exame de corpo de delito sem fazerem
a notificação ao Conselho Tutelar. A equipe do NAVIS entende que, a
partir da notificação, o Conselho Tutelar passa a ser o responsável pelos
desdobramentos do caso.

O IML não tem conhecimento se a Delegacia Policial, ou a autoridade que


solicitou o laudo, dá conhecimento dele à família.

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A elaboração do laudo é demorada, em primeiro lugar porque deve ser


lavrado (digitado); além disso, porque há um grande número de laudos
a serem elaborados e lavrados. Em cada turno, são feitos cerca de 100
exames com vistas à elaboração de laudos. Em cada turno de trabalho,
o IML conta com 8 plantonistas que se dividem entre as atividades de
necrópsia e exame de corpo de delito.

Podem ser solicitados exames de lesão corporal em casos de violência


contra a criança, atropelamentos de crianças ou adultos, e até mesmo
casos de atropelamentos antigos, em que a vítima solicita o laudo para
requerer o seguro. Todas as requisições de laudos de exame de lesão
corporal solicitados às Delegacias Policiais são encaminhados ao IML.

Diante desse grande número de laudos, e para agilizar os processos, o


IML pode emitir o laudo prévio. O laudo prévio é um procedimento de
exceção, só emitido mediante pedido expresso da autoridade policial. A
maior parte dos exames feitos em crianças visam a avaliação de lesão
corporal, e nesses casos não costuma haver solicitação de laudo prévio;
os técnicos do IML, no entanto, encaminham esses laudos por fax, para
atender às urgências da família da criança ou dos casos em que os autores
da agressão foram detidos em flagrante delito.

As condições de realização dos exames têm melhorado. Os exames de


corpo de leito em geral são feitos nas próprias salas de exames, há espaço
e condições para isso. Se é preciso fazer exame de genitália, então é preciso
usar a sala própria. Hoje, há uma sala que é reservada para exames de
genitália de mulheres e crianças. Nesses casos, quando é preciso fazer
o exame de genitália, alguns médicos sequer permitem que a mãe (ou
o responsável que acompanha a criança ou a adolescente, que pode ser
um Oficial de Justiça ou um Conselheiro Tutelar) assistam ao exame. O
responsável fica presente na sala, pois essa é uma exigência legal, mas a
criança e a adolescente têm assegurado seu direito à privacidade.

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Essas medidas atendem a uma mudança de mentalidade do IML, que


visa a humanização dos serviços, e que pode ser atribuída tanto à política
da atual direção do Instituto quanto aos próprios médicos, na maioria
jovens e com essa mesma preocupação.

Outro aspecto que é pouco conhecido e divulgado é o valor legal dos


registros feitos por profissionais de saúde (médicos, psicólogos...).
Qualquer peça, inclusive peças clínicas, pode ser valiosa para efeito
de investigação policial. Os profissionais deveriam por isso registrar
detalhadamente os exames, e toda a observação que realizarem. De posse
desse material, os legistas transcrevem as informações para o linguajar
técnico, mas a informação do profissional de saúde é preservada.

O registro detalhado de informações é importante em particular nos casos


em que a criança chega a ser internada – às vezes por longo tempo – em
decorrência dos maus-tratos que sofreu.

Nos casos de abuso sexual, em que é preciso exame do estado himenal,


pode contudo ser importante solicitar exame de um ginecologista ou
mesmo de um perito, pois o médico pediatra não tem a informação
necessária para a realização deste exame em particular.

A informação sobre o valor desse registro tem sido divulgada pela


Secretaria de Estado de Saúde em vários treinamentos e capacitações. É
uma orientação do próprio Ministério da Saúde.

O NAVIS é um projeto que dá um primeiro apoio/acolhimento às


crianças, adolescentes e mulheres vítimas de violência que comparecem
ao IML para realização de exames de corpo de delito. Atua sempre que os
primeiros contatos destas vítimas não foram considerados “humanizados”
(ocorreram nas Delegacias e IML), às vezes nem mesmo houve assistência
prévia do Conselho Tutelar.

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O NAVIS é formado por 8 profissionais (dois psicólogos, um historiador


e quatro atendentes de enfermagem) e um Coordenador e funciona de
8:00 às 18:00 horas, de segunda a sábado. A equipe do NAVIS recebe a
família depois dos primeiros exames periciais e aprofunda a entrevista.
Esse diálogo mais detalhado tem dois propósitos: primeiro, prestar certos
esclarecimentos à família, e ouvir seus conflitos (como já dito acima);
segundo, ampliar os elementos para avaliação do caso, através da escuta
ativa. As vítimas são ouvidas e encaminhadas inclusive ao Conselho
Tutelar. O enfoque da atual direção do IML visa incorporar a visão do
usuário e das comunidades à investigação, somando esses aspectos à
visão dos profissionais de saúde e vigilância. Em particular nos casos de
maus-tratos contra crianças e violência contra a mulher, esses aspectos da
investigação têm sido bastante considerados.

O NAVIS pretende ser também um espaço de atendimento psicológico


continuado, de psicoterapia, de acordo com o novo Projeto de Ampliação
encaminhado à Secretaria de Estado de Saúde.

Um problema diagnosticado como generalizado, durante os debates, foi a


questão do retorno da informação. No entender dos presentes, “ninguém
retorna a informação para ninguém”. Por isso, é preciso pensar o fluxo da
informação, a referência e a contra-referência.

6. Fundação para a Infância e a Adolescência (Programa de Atenção a


Crianças e Adolescentes Vítimas de Maus-tratos)
Representante: Angelo de Oliveira Diniz

O Programa de Atenção a Crianças e Adolescentes Vítimas de Maus-


tratos foi criado na FIA há cerca de 2 anos e meio, com a perspectiva de
dar suporte aos Conselhos Tutelares. Desde sua criação, 6 núcleos foram
implantados no Estado do Rio de Janeiro: em Volta Redonda, Nova
Friburgo, São Gonçalo, Duque de Caxias, Nova Iguaçu e no município do
Rio.

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PANDORA - Conteúdo Virtual

A estatística dos atendimentos feitos pelo Programa é necessária, mas


ainda não subsidia nenhuma pesquisa, sequer em nível de Estado, que
dirá algo mais abrangente, nos moldes do Relatório da OMS, lançado
recentemente, no qual se apontava já essa deficiência acerca da produção
de dados. Esse quadro mostra a necessidade de nos aproximarmos de
instituições de ensino. O Programa tem interesse nessa aproximação, pois
ela poderia viabilizar a discussão de propostas técnicas de levantamento
de dados consistentes, de estruturação de documentos técnicos, de
informatização do sistema. Mas não vemos que essa intenção possa se
concretizar à curto prazo, mas articulações já estão sendo feitas nesse
sentido.

O que o Programa tem feito é investir em capacitação, com vistas


a aprimorar a técnica da intervenção e melhorar a qualidade do
atendimento prestado à criança e ao adolescente vítimas de maus-tratos.
Para essa capacitação, firmamos convênios com três instituições não
governamentais: o Movimento de Mulheres de São Gonçalo (nosso mais
recente parceiro), a SOBEPI (responsável pelos núcleos de Nova Iguaçu
e Caxias) e a Casa da Criança de Nova Friburgo (que faz acontecerem os
núcleos de Friburgo e Volta Redonda).

Com a iniciativa de constituir parcerias, o Governo do Estado visa suprir


as necessidades de pessoal, já que não tem havido concurso público
para provimento de cargos. Só com as parcerias foi possível implantar e
implementar os seis núcleos do Programa. Por outro lado, os parceiros
puderam trazer experiências e contribuições, pautadas em suas próprias
práticas, de modo a dar prosseguimento ao Programa. E esse é um
aspecto importante: o investimento na qualificação do atendimento, de
modo a que possamos lidar com as muitas dificuldades que enfrentamos:
as violências propriamente ditas, entre as quais a mais contundente é o
abuso sexual, os entraves de fluxo...

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É preciso levar em conta ainda as diferenças de procedimento entre os


Conselhos Tutelares dos diversos municípios. Em Caxias, por exemplo, os
técnicos se perguntam a razão da falta de demanda do Conselho Tutelar
para investigação de maus-tratos numa área tão sofrida como a Baixada
Fluminense.

Parece faltar uma visualização da problemática dos maus-tratos contra


a criança. O que mais nos preocupa nesse cenário é que os especialistas
decidam conduzir as investigações a nível pessoal, fazer o atendimento
à criança sem o devido preparo, e com isso produzir revitimizações. Mas
ainda assim achamos que a falta de clareza no entendimento do fenômeno
refreia as demandas aos Conselhos Tutelares, às Delegacias Policiais, e
aos Hospitais. Por isso, estamos investindo em esclarecer o problema da
violência para as pessoas que devem compor a rede.

A porta de entrada da rede é o Conselho Tutelar. Mas podem e devem


encaminhar casos os Juizados da Infância e da Juventude, as Promotorias,
as Delegacias Policiais (no caso, as delegacias especializadas, como o
NPCA). O NPCA é nossa vizinha, e temos conversado bastante com
Dr. Leonardo sobre isso. Lá estão lotados dois psicólogos que ouvem a
criança, e que certamente não vão dar conta da demanda. Além dessa
dificuldade de demanda, achamos que seria importante o diálogo com
o NPCA pois parece importante esclarecer: esses profissionais vão ouvir
a criança como? Para quê? E por quê? Como podemos trabalhar em
conjunto?

Os especialistas de diversos programas têm dito que “não escutar às vezes


ajuda”. Mas ao receber uma família encaminhada pelo Conselho Tutelar,
com o relato de que, no Conselho, tanto a mãe quanto a criança relatam
o abuso, eu não posso, como técnico, me furtar a ouvir a família sob o
mero argumento de que o abuso já foi revelado e não devo revitimizar a
criança; Tenho a obrigação de me colocar a seguinte questão: que escuta
foi essa que estou legitimando?

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Parece-me que os diversos Programas devem ter uma escuta diferenciada.


Essa é uma tarefa extremamente difícil, mas de capital importância:
definir que instância escuta quem, e para que. Se não dermos conta dessa
definição, vamos superpor ações; mas se cada programa e cada técnico
sabe exatamente o que faz, não me parece haver risco de revitimização.

Apenas como exemplo, vou tomar como exemplo o atendimento do IFF.


Não sei exatamente até onde vai o atendimento prestado, e nem sei também
se a equipe chega a fazer laudos periciais (como os NACAs, por exemplo).
É certo que o atendimento especializado deve chegar a produzir uma
prova técnica. Mas onde essa prova técnica deve ser produzida? O IFF a
produz? Em caso positivo, parece-me que a equipe do IFF pode produzir
a prova técnica respeitando o limite de sua intervenção, e não mais que
isso. É o limite que vai nos permitir evitar a revitimização, a duplicidade
de intervenção e a pulverização da família na rede de serviços.

Essa é uma tarefa de capital importância, urgente e complexa. Mesmo


dentro do Programa temos dificuldade em definir esses limites, pois os
parceiros têm investimentos e potências diferentes. Mas é preciso definir
um padrão para o atendimento. Precisamos urgentemente escrever o
Plano Municipal, que pode ser um balizador das ações e que nos permitiria
nos aproximarmos daquele padrão. Este tem sido nosso esforço básico e
nossa preocupação mais contundente nos Comitês e Fóruns de que temos
participado.

Os NACAs estão dispostos a essa discussão, e o fato da gerência do


Programa disponibilizar técnicos para participar nas diversas frentes de
discussão é indício dessa disponibilidade.

Quando os Coordenadores de Núcleo vão buscar interface com outros


programas nos diversos municípios, estamos afinal interessados em
encontrar a forma mais acertada de contribuir.

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Parece-nos improdutivo que vários profissionais atuem num mesmo


caso, realizando inúmera entrevistas e intervenções; ao final, termos
destruído mais que construído. Além disso, a “revelação” a que sempre
nos referimos não tem como horizonte apenas a elaboração de um laudo
técnico.

Ela permite mais que apenas saber se houve, ou não, o abuso.

A proposta do Programa (ainda tímida) é acompanhar a criança por no


mínimo 6 meses. Isso se deve a nossa percepção de que a rede é frágil, de
que a disponibilidade da rede para o acompanhamento psicoterápico é
insuficiente, e de que se encaminharmos todos os casos ao IFF ou ao Ismélia
vamos gerar uma sobrecarga que pode inviabilizar esses programas.

Por tudo isso, precisamos redimensionar: em primeiro lugar as ações de


cada um (e entendo aí que, se cada um souber se posicionar e dimensionar
sua ação, não há risco de revitimização); e em segundo lugar, avaliar o
que ainda falta na rede.

Soubemos por exemplo que o Conselho Estadual devolveu recursos do


Fundo porque nenhuma instituição apresentou projeto de atendimento à
criança vítima de violência. Houve, sim, muitos projetos de capacitação.
Não conheço os detalhes dessa discussão, mas um Conselheiro manifestou
essa avaliação, o que indica a necessidade de chamarmos a atenção para
a necessidade de políticas públicas que permitam atender à demanda de
assistência.

Não acreditamos que essa seja uma tarefa apenas do Programa de Atenção
a Crianças e Adolescentes Vítimas de Maus-tratos da FIA. Não cabe aí
orgulho nem vaidade, que não contribuem em nada para a proteção da
criança. A capacitação feita pela SOBEPI, contratada pelo Programa, foi
aberta a todos os profissionais interessados.

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Estamos discutindo o protocolo de atendimento junto a nossos parceiros;


nesse particular, estudamos as propostas de Cleveland, do CRAMI,
entre outras; mas é preciso adequá-las a nossa realidade; o protocolo do
CRAMI por exemplo, recomenda visita domiciliar, mas como não levar
em conta as dificuldades para fazer visita domiciliar nas favelas do Rio
de Janeiro?

Acho que devemos ir com vagar, consolidando aos poucos as ações. O


Plano Municipal ainda não é uma realidade, mas se não começarmos a
discuti-lo (como hoje se faz em Niterói) ele nunca o será.

7. Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência


(ABRAPIA)
Representante: Psicóloga Daisy Veiga de Carvalho

A ABRAPIA, através do Programa Sentinela, em convênio com o governo


federal e a Prefeitura, atende casos de abuso e exploração sexual, realizando a
avaliação e averiguação da ocorrência de abuso e exploração sexual em situações
que envolvem crianças, adolescentes e suas famílias (a denominada “Entrevista
de Revelação”).

Nesses casos, trabalhamos não só com a criança ou adolescente, mas


também com a mãe (ou outro responsável), com as outras crianças /
adolescentes da família e com qualquer outra pessoa / familiar que tenha
contato com a criança / adolescente vítima de abuso sexual que possa
trazer informações que possibilitem o esclarecimento da suposta situação
de violência.

O suposto autor do abuso também é entrevistado após o atendimento da


criança ou mesmo concomitantemente ao atendimento desta.

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O atendimento é prestado a crianças a partir dos 3 anos, embora já


tenhamos atendido a crianças a partir de 2 anos e 6 meses que possuam
um vocabulário pequeno, porém o resultado é difícil em razão do pouco
desenvolvimento da criança.

Ao término das entrevistas, que dependendo da idade da criança /


adolescente pode variar de 2 a 8 sessões, é elaborado um relatório e um
parecer técnico, que são encaminhados ao Conselho Tutelar, que por sua
vez encaminha à 1a. Vara da Infância e da Juventude, com cópia para as
demais instituições solicitantes (Delegacias, Varas de família, etc).

Também trabalhamos com a prevenção primária, realizando palestras


em escolas e em outras entidades que nos solicitam, além de capacitações
sobre violência intrafamiliar, focalizando especialmente a questão do
abuso sexual voltada para profissionais que necessitam e queiram
aprender a aplicar as entrevistas de revelação.

Estas palestras e capacitações acontecem no Rio de Janeiro e em


outros Estados, sendo muitas vezes promovidas por instituições
governamentais.

As dificuldades que encontramos:

1. A criança é solicitada a revelar a situação de abuso sexual pelas diversas


instituições em que é atendida. Caso não seja uma demanda da criança /
adolescente, deve ser evitada esta forma de revitimização. Contar o abuso
sexual, sem necessidade, é reviver todo o sofrimento causado à vítima
pela pessoa que abusou.

2. Só existem dois pólos de atendimento no Programa Sentinela no nosso


Município (ABRAPIA e em Santa Cruz), o que acarreta um número de
casos elevado para cada uma destas instituições.

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Como realizamos uma sessão por semana com cada criança, geralmente
entre 6 e 10 atendimentos, e a equipe técnica é pequena (2 psicólogos e 2
assistentes sociais), o trabalho com cada criança leva 3 meses ou mais para
ser terminado. Isso ocorre também em razão da necessidade de elaboração
de relatórios e pareceres técnicos apurados. A fila de espera, portanto, é
inevitável, não sendo possível ao Programa limitar as inscrições (por
orientação da Prefeitura) e encaminhar para outra instituição que tenha o
mesmo tipo de atendimento.

3. Há casos na ABRAPIA em que o atendimento é prolongado para além


da revelação, pois percebemos que algumas crianças não têm condições
de serem desligadas do acompanhamento; embora a equipe tente apoiar
ao máximo a criança e seus familiares, percebemos que esse apoio, restrito
na ABRAPIA, não é suficiente. Muitos casos são encaminhados ao NAV
ou ao Serviço de Psicologia da UERJ e a outros serviços de Psicologia
Aplicada existentes nas Universidades, mas a rede é insuficiente e, como
sabemos, não é possível limitar o tempo de uma terapia.

4. Por fim, é muito desmotivante para os técnicos que o pagamento de


seus salários pelo Programa Sentinela ocorra de 3 em 3 meses, o que causa
saída de bons profissionais do programa.

8. Instituto Fernandes Figueira


Representante: Dra Rachel Niskier

O Instituto Fernandes Figueira (IFF) é a unidade materno-infantil da


Fiocruz. Atende mulheres, crianças e adolescentes, estes desde 1986,
em ambulatório coordenado pela Dra. Olga Bastos. É uma unidade de
referência, o que significa que não é porta de entrada nem unidade de
primeiro nível, mas referência para diversas patologias. É uma instituição
de assistência, de ensino e de pesquisa.

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Para o adolescente, no entanto, ele funciona de modo diferente: é porta


de entrada para qualquer cliente, portador de qualquer patologia. O
adolescente pode chegar diretamente, fazer sua matrícula e ser atendido.

Há 5 ou 6 anos, Dra. Vera Bonfim – então ocupando o cargo de diretora


de Assistência – notou que chegavam à Diretoria muitas solicitações de
esclarecimentos encaminhadas por médicos, enfermeiros, assistentes
sociais e outros profissionais. Essas solicitações diziam respeito a
dúvidas quanto aos procedimentos a serem adotados no atendimento a
crianças e adolescentes que haviam sofrido violência. Que fazer? A quem
encaminhar? Eram perguntas freqüentes. Dra Vera Bonfim começou
então a se interessar por tais perguntas e buscar o encaminhamento mais
adequado a esses casos, buscando inclusive o Conselho Tutelar da área.
Como Conselheira Titular do CONANDA, procurei colaborar na solução
daquelas dificuldades.

Há três anos – em agosto de 2000 – decidimos criar o Núcleo de Apoio


aos Profissionais (NAP) que atendem crianças e adolescentes vítimas
de maus-tratos. O NAP não é um núcleo de atendimento, até porque a
estrutura do IFF faz com que as crianças e adolescentes vítimas de maus-
tratos sejam atendidas em vários ambulatórios diferentes. O NAP é um
núcleo de apoio a qualquer tipo de demanda do profissional: o que fazer,
como encaminhar…

Desde sua criação, o NAP tem sido muito demandado pelos profissionais
do IFF. Embora o NAP só se reúna a cada 15 dias, as consultas que os
membros do Núcleo recebem são diárias.

As reuniões do NAP acontecem de 12 às 13 horas. O calendário e o horário


das reuniões é cumprido religiosamente.

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Esse horário foi um dos fatores de seu sucesso, pois não impede nem
prejudica outros compromissos dos membros do Núcleo nem daqueles
interessados em participar das reuniões. Por outro lado, esse tempo
não permite que tudo se resolva durante as reuniões. Mas os membros
do Núcleo estão abertos às consultas diárias, encaminhadas pelos
profissionais.

Essas dúvidas podem ser traduzidas em questões como: como agir em


casos específicos? Quando encaminhar ao IML? O laudo do obstetra, do
ginecologista ou de outros profissionais supre o laudo do médico legista?
Se o caso exigir um processo criminal é preciso o parecer do legista?

Esse sistema de reuniões periódicas e consultas diárias tem funcionado


bem.

Por demanda do corpo técnico do IFF, realizamos dois cursos. O primeiro,


em 2002, capacitou 56 profissionais do IFF que atendem vítimas de maus-
tratos; foi dirigido exclusivamente à comunidade interna. O segundo foi
aberto e capacitou 100 profissionais inscritos. Os cursos têm uma parte
teórica (pela manhã) com estudos de caso (à tarde). Essa estrutura tem
sido satisfatória por proporcionar discussões muito ricas, que se não
permitem consenso ao menos reduzem as divergências de pontos de vista
quanto à melhor abordagem nos casos particulares.

Já capacitamos, portanto, quase 160 profissionais, o que pode ser


interpretado como uma expressão da necessidade dos profissionais em
conhecerem esse tema. Os maus-tratos contra crianças e adolescentes têm
exigido uma luta diária e uma demanda por respostas mais adequadas.

A relação do NAP com os Conselhos Tutelares é estreita e proveitosa. Na


época em que foi criado, o NAP contava com a contribuição de Mariângela
Barsa, conselheira tutelar e funcionária do IFF.

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Ela trouxe ao NAP sua experiência de duas gestões como conselheira


tutelar e ainda compõe a equipe do Núcleo. O Conselho Tutelar está agora
com nova gestão e estamos ainda nos aproximando, pois a sobrecarga de
trabalho deles é grande. Mas os contatos telefônicos são freqüentes. O
trabalho do NAP não supre todas as necessidades e esses contatos são
necessários.

Em termos de demanda, o que é mais visível no IFF são os casos de


abuso sexual. Acredito que isso se deva em parte à dedicação de
nossa ginecologista, Dra. Ana Cristina Paixão. Ela atende a meninas
(eventualmente chega até mesmo a aceitar o encaminhamento de
meninos). Sua dedicação torna mais visíveis os casos de abuso sexual.
Convém dizer que Dra Ana tem dificuldades com relação a coordenar
suas atribuições e as atribuições do IML, questão que podemos discutir
mais tarde.

No Ambulatório de Pediatria, no entanto, o que avulta é a negligência.


A população atendida no IFF vem das zonas mais pobres da cidade,
habitadas pelas camadas populares. Sendo assim, há muitos casos de
crianças fora da rede escolar porque precisam ficar em casa e cuidar
dos irmãos menores, crianças com deficiências que não encontram
atendimento adequado na rede pública, ou crianças sem condições de
ir às unidades de saúde para receber o atendimento de que necessitam.
Nesse contexto, distinguir entre negligência e precariedade de recursos
tem sido para nós uma questão delicada. Nós a temos discutido muito
junto à equipe e, em particular, junto aos residentes e aos profissionais
mais jovens dos quadros do IFF. O desemprego dos pais, a nosso ver,
deve ser visto principalmente como uma patologia social, não como
negligência.

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O abuso sexual é (infelizmente) de detecção mais simples; sinais como


hematomas, ou as fraturas, de certo modo facilitam o diagnóstico de MT
físicos.

A principal dificuldade do NAP está na rede de apoio social, necessária


sobretudo nos casos de negligência. No CONANDA, essa discussão vem
sendo conduzida no presente, acompanhada de uma análise da questão
dos abrigos. Outra dificuldade importante é a relação com o IML e com
a família, e essas dizem respeito mais diretamente aos casos de abuso
sexual. No nosso dia-a-dia, batemo-nos com muitas dúvidas acerca da
notificação. Por exemplo, uma criança de 2 anos portadora de condiloma
apresenta indícios de abuso sexual; deve-se notificar? Até que ponto
deve-se arcar com o risco de gerar dificuldades no núcleo familiar em
razão da notificação?

Há mais de uma corrente no NAP. Pessoalmente, defendo a notificação ao


Conselho Tutelar. Se o Conselho, no correr da investigação, achar que não
é abuso, ótimo. Mas é para isso que existe o Conselho Tutelar. Acredito
que o ECA deva ser respeitado, e ele diz que a suspeita deve ser notificada.
Mas há resistência a essa posição entre meus colegas, que argumentam
que a possibilidade de ser apenas uma suspeita pode desencadear um
drama na família. Acho no entanto que essa posição faz com que às vezes
a notificação seja retida às vezes durante anos, e não sabemos o que vem
acontecendo com a criança enquanto isso… Não há donos da verdade no
NAP. Mas acho que a lei deva ser cumprida e essa discussão se mantém
viva nas reuniões do Núcleo.

No IFF, não é o NAP que notifica o caso. O NAP não tem nenhuma
ação direta. Quem notifica é o profissional que acompanha o caso. Esse
acompanhamento deve, acredito, seguir as mesmas regras da Pediatria:
o profissional deve se interessar pelos desdobramentos do caso, pelos
resultados dos exames…

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Mas é preciso dizer que o acompanhamento após a notificação deixa a


desejar.

Para notificar, usamos a Ficha de Notificação. A Ficha é encaminhada


à Direção do IFF, que fica com uma cópia. Toda nossa estatística é feita
com base nos casos notificados, independente de serem suspeitos ou
confirmados. Até porque essa resposta - sobre o caso ser suspeito ou
confirmado – deve ser dada não por nós, mas pelos Conselhos Tutelares
ou pela Secretaria de Saúde, que tem a responsabilidade de consolidar os
dados. Ao IFF cabe apenas notificar e acompanhar os casos.

A equipe do IFF conta com uma boa estrutura de atendimento. Dispomos


de serviços de Ginecologia, Obstetrícia, Saúde Mental… Essa é em parte
uma das razões para certas divergências com o IML, pois os profissionais
entendem que seu preparo técnico de certo modo os capacita a emitir
laudos, e além disso evitar a ida da criança ao IML contribui para evitar
nova violência e reduzir o estresse que um exame como esse provoca.

Se o laudo é bem preparado, e se o caso não gerar processo criminal que


requeira a intervenção formal do IML, poder-se-ia prescindir da ida a
perícia.

Mas nenhuma dessas posições está fechada. O NAP está aberto à


discussão.

9. Hospital Universitário Antonio Pedro (UFF)


Representante: Assistente Social Izabel Cristina Soares de Mello (chefe
do S. Social do HUAP)

Nosso caminhar é muito semelhante ao do Hospital Universitário Pedro


Ernesto (UERJ).

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Nosso atendimento surgiu também da demanda interna do Hospital, dos


atendimentos informais, não sistemáticos, dos casos de crianças vítimas
de violência. Essa experiência nos mostrou a necessidade de sistematizar
o trabalho.

Mesmo na época em que os atendimentos não eram sistematizados, já havia


um fluxo, estabelecido na prática, de encaminhamento e acionamento do
Conselho Tutelar. Isso fez com que o Hospital se inserisse no núcleo gestor
da rede de atendimento à criança vítima de violência. Na rede, pudemos
perceber que nossa realidade e nossos problemas não eram isolados; o
Azevedo Lima e o Getúlio Vargas Filho tinham as mesmas preocupações
e a mesma necessidade de sistematizar seu trabalho.

Com essa perspectiva, criamos um Comitê interno que não foi à frente
em parte devido à falta de sensibilização dos profissionais da equipe.
Quando elaboramos nosso primeiro projeto, com base no treinamento
da Secretaria Estadual de Saúde, constituímos o Comitê pretendendo
que ele fosse o ponto chave para a orientação das diversas equipes que
lidam com crianças e adolescentes. Mas observamos que essa proposta
não foi viável, pois o Comitê nem sempre podia estar presente, como por
exemplo nos plantões da Emergência. Então, o Comitê saiu do Hospital e
tentou se articular à rede, capacitar e instrumentalizar seus profissionais
para formar uma equipe de atendimento mais dinâmica.

O Comitê dá suporte, mas não é responsável pelas notificações. Nosso


objetivo é que todas as equipes que lidam com crianças e adolescentes
(pediatras, assistentes sociais e psicólogos) das diversas portas de entrada
do HUAP (Emergência, Ambulatórios e Enfermarias) estejam capacitados
a lidar com as questões relativas ao atendimento e ao encaminhamento
dos casos.

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Em relação a alguns pontos de nosso fluxo de encaminhamentos:

a) Só temos capacidade de absorver os casos oriundos do próprio hospital:


a demanda espontânea, a demanda das enfermarias e dos ambulatórios
(os diagnósticos secundários). Os casos encaminhados pela Emergência
são acolhidos pela recepção do Comitê; é feita uma ficha de notificação,
e a criança é encaminhada ao setor de Pediatria e ao Serviço Social. O
Serviço Social, em conjunto com a Enfermagem, faz o primeiro contato e
o acompanhamento;

b) O Formulário de Notificação fica disponível nos diversos setores que


lidam com crianças e adolescentes; nesses setores ficam também cartilhas
e orientações para esclarecimento.

c) São solicitados exames complementares para complementar o laudo:


radiológicos, toxicológicos, ginecológicos, psiquiátricos e outros;

d) É feito um Relatório Social, que é anexado à Ficha de Notificação;

e) Uma estratégia que adotamos como forma de sensibilizar a Direção é


encaminhar a Ficha de Notificação através de Ofício do Diretor. Desde
que esse fluxo foi montado, o ofício fez com que a Direção da unidade
hospitalar observasse o alto índice de notificações. Com isso, a Direção
fica sensibilizada para a necessidade de formação de um Ambulatório,
fica mais preocupada com o acompanhamento dos casos e com o
investimento nos programas;

f) Na Emergência, em casos mais graves (quando a criança está em


situação de risco, abandonada ou convive com violência familiar), a alta
fica na dependência da orientação do Conselho Tutelar ou do Juizado;

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g) Uma cópia de toda a documentação fica arquivada no Serviço Social,


outra cópia é anexada ao Prontuário e uma terceira segue para a Vigilância
Epidemiológica. Essa foi outra forma que encontramos para fazer com
que a Secretaria Municipal fique ciente dos casos atendidos.

Quanto à avaliação que nos foi solicitada, levantamos:

a) A necessidade de sistematização do Programa através da formação de


um Comitê Institucional (que já está sendo criado, mas deve ser ampliado)
visando fornecer apoio e esclarecimento às equipes;

b) A necessidade de criar um Ambulatório da Família, pois não se trata


apenas de tratar a violência mas também de prevenir as reinternações. Os
casos de negligência, desnutrição, pequenas queimaduras ou acidentes
domésticos provocados por negligência familiar podem também ser
tratados no Ambulatório da Família.

c) A necessidade de capacitação profissional para o diagnóstico e o


tratamento. Já iniciamos um programa de educação continuada em
parceria com a Universidade; temos agora um curso em parceria com
o Conselho Tutelar e outras instituições da rede, nas áreas de saúde,
assistência, jurídica e de educação;

d) A necessidade de contato e troca de informação durante o


acompanhamento dos casos. Existe uma ruptura: em muitos casos, a
criança tem alta no HUAP e a equipe não é informada daquilo que ocorre
após a alta hospitalar. Só vamos descobrir quando a criança é reinternada,
às vezes em condições muito mais graves. A intenção do curso, e da rede,
é buscar o retorno da informação sobre os casos;

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PANDORA - Conteúdo Virtual

e) A necessidade de atendimento integrado e coeso, de modo a evitar a


superposição de trabalhos, a exposição da criança e a duplicação de seu
relato a vários profissionais diferentes. A rede visa evitar essa exposição
da criança.

f) A criação de um banco de dados, uma necessidade da rede que a


Universidade já vem atendendo. O Serviço Social e o Conselho Tutelar
estão construindo esse Banco, que facilita o retorno da informação;

g) A integração dos programas internos – por exemplo o de Violência


contra a Mulher. Trabalhávamos em separado e observamos que isso não
é eficaz; a profilaxia de DST, fomentada pelas Secretarias Municipal e
Estadual de Saúde, exigem a implantação de um protocolo que pode ser
estabelecido em conjunto.

10. Hospital Universitário Pedro Ernesto (UERJ)


Representante: Dra Anna Tereza Soares de Moura (pediatra)

O serviço de Pediatria do HUPE desenvolve pouco trabalho de pesquisa,


mas muito ensino e assistência. Este é um cenário que estamos tentando
modificar.

O início do atendimento às crianças vítimas de violência pode ser


atribuído à sensibilização de alguns profissionais do ambulatório geral
de pediatria do HUPE. A professora Maria Luiza, psicóloga, que possui
grande interesse no tema, junto com alguns outros profissionais do
serviço, iniciou a abordagem destas crianças. Este atendimento foi feito de
modo pouco sistematizado entre 1997 e 2001. Em 2001, conseguimos criar
um Ambulatório e um atendimento organizado. Esta estratégia é comum
em hospitais: o ato de colocar uma placa na porta e abrir uma agenda de
atendimento, sensibiliza a equipe e estimula os encaminhamentos.

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O Ambulatório foi criado diante da necessidade de estruturação observada


pelos profissionais do serviço interessados nesta questão. Os resultados
da pesquisa realizada em 2001 sobre a prevalência da violência contra a
criança na porta de entrada do Ambulatório de Pediatria corroborou ainda
mais esta necessidade. Os resultados da pesquisa foram aterrorizantes.
Um grande número de crianças, atendidas por razões as mais diversas,
tinham a violência presente em seu histórico de vida familiar e isso não
vinha sendo identificado no dia-a-dia do atendimento pediátrico.

O Ambulatório de crianças vítimas de violência do HUPE pretende atender


apenas os casos oriundos do próprio hospital. Não somos referência, até
porque não dispomos de pessoal suficiente para isso. Atendemos uma vez
por semana (nas terças feiras pela manhã); são duas consultas de primeira
vez e outras quatro de seguimento a cada dia. Este número de consultas
é insuficiente para atender à demanda externa ao HUPE. Também já tem
se mostrado insuficiente para atender às necessidades do próprio serviço,
pois o número de encaminhamentos vem crescendo muito.

O trabalho conjunto com a Psicologia foi prejudicado com a queda do


telhado do prédio do Ambulatório de Pediatria; na época, a Psicologia
foi transferida para o campus da UERJ, e essa mudança de espaço físico
dificultou a integração dos serviços. Mais recentemente, a Psicologia
Médica disponibilizou uma psicóloga para atendimento junto ao nosso
Ambulatório.

A suspeita de violência em geral é levantada pelos alunos internos e


residentes no atendimento ambulatorial; dali, a criança é encaminhada
ao Ambulatório da Família.

No Ambulatório, o atendimento é feito por equipe multi-profissional


composta por pediatra, psicóloga, assistente social e enfermeira.

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Tentamos sempre fazer a primeira entrevista com a participação


da pediatra, da psicóloga e da assistente social, para evitar que a
criança tenha que repetir sua história. Propomo-nos também a fazer o
acompanhamento de longo prazo para toda a família. Num momento
seguinte do acompanhamento, chamamos o pai, a avó, a tia, outros
irmãos… Enfim, acolher toda a família. Imaginamos que essa seria uma
forma mais eficaz de abordar a violência contra a criança.

Além do acompanhamento pela equipe, com muita freqüência a criança


é encaminhada à psicoterapia no SPA – Psicologia da UERJ; estes
atendimentos correm em paralelo. Existe aí uma dificuldade pois o
SPA tem uma fila enorme, o que faz com que a criança às vezes precise
aguardar. Eventualmente a mãe ou o casal também são encaminhados
para atendimento psicoterápico. O Serviço Social também conta com
poucos profissionais. As reuniões da equipe não são suficientes para
discutir todos os casos. Existe uma dificuldade logística de agendar as
discussões, pois somos poucos profissionais, com múltiplas funções.

Para tentar minimizar alguns destes problemas, estamos agora tentando


incluir os residentes da Medicina Geral e Comunitária (seriam os Médicos
de Família) nesta rede de atendimento. São profissionais em formação,
que têm uma visão mais ampla da família e do problema da violência.
Temos feito reuniões semanais de leitura crítica de artigos, tentando
preparar esses profissionais para atender conosco e acolher os pais das
crianças.

Sempre notificamos os casos de violência contra a criança ao Conselho


Tutelar e à Secretaria Municipal de Saúde. Esta notificação, na maioria
das vezes, fica a cargo do Serviço Social. Mas sabemos que nem sempre
essas notificações chegam a seu destino. No HUPE, há problemas neste
fluxo.

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11. Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG/


UFRJ) –Núcleo de Atenção à Criança Vítima de Violência
Representante: Dra Ana Lúcia Ferreira (pediatra)

O Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG) é o


hospital pediátrico da Universidade Federal do Rio de Janeiro e unidade
de referência no atendimento a crianças e adolescentes no município.

Em 1996 foi criado, nesta instituição, o Ambulatório da Família (AF),


vertente assistencial do Núcleo de Atenção à Criança Vítima de Violência,
com o objetivo de prestar atendimento a crianças e adolescentes
vitimizados que começavam a ser identificados nos serviços hospitalares
do IPPMG. Desde então, o AF presta atendimento às vítimas e suas
famílias, e para isto conta com equipe multiprofissional atualmente
composta por dois pediatras, uma enfermeira, duas psicólogas e uma
assistente social.

Para que a instituição como um todo fosse sensibilizada para a questão


da violência, ainda em 1996 foi realizado treinamento de profissionais
de diversos setores da assistência (triagem, ambulatório geral e de
especialidades, emergência e enfermarias). A proposta de trabalhar com
o tema trouxe para a instituição uma nova visão das relações familiares:
a atenção deixou de se voltar apenas para a reparação dos efeitos da
violência e passou a englobar aspectos psicossociais e psicológicos
envolvidos na questão.

A proposta de trabalho da equipe é identificar, acompanhar e prevenir


recorrências em casos de violência contra a criança e o adolescente,
caracterizando uma ação preventiva de nível terciário. A esta, associa-
se uma ação de nível secundário, uma vez que identificadas famílias de
risco, a abordagem é feita no sentido de proteger outras crianças que
vivem na mesma família.

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Orientação aos pais, controle dos fatores de risco identificados, mapeamento


da rede social de apoio que possa colaborar em nível comunitário,
encaminhamento para outras instituições e visitas domiciliares fazem
parte das medidas adotadas pelo AF durante o acompanhamento dos
casos. Os Conselhos Tutelares, para onde são feitas as notificações, têm
sido parceiros importantes na condução destas medidas uma vez que
articulam a ação de instituições sociais capazes de oferecer à família uma
série de recursos que, embora necessários, encontram-se fora do alcance
da intervenção de uma unidade hospitalar. Desde 2001, as notificações
passaram a ser encaminhadas também à SMS-RJ.

Desde que começaram as atividades do AF, 615 pacientes foram


encamihados ao serviço. A faixa etária variou de 0 a 16 anos, com maior
concentração entre 5 e 10 anos. Os abusadores da nossa clientela são, em
sua grande maioria, pessoas da família da vítima.

Recebemos elevado número de casos de abuso sexual, provavelmente


devido ao fato do serviço sediar-se numa unidade hospitalar e configurar-
se como programa de saúde.

A equipe do AF entende que, para tratar da violência na família, é preciso


adotar uma abordagem que alguns autores qualificam como empática, o
que não implica em endossar ou diminuir a responsabilidade do agressor,
mas sim em entender o ato violento como resultado de elementos
associados à dinâmica da família, contribuindo para precipitar conflitos
que culminam na explosão da violência. Se incorrermos no simplismo da
culpabilização, corremos o risco de exercer nós mesmos uma violência
que pode ter efeitos iatrogênicos.

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A equipe enfrenta algumas dificuldades nesta proposta de


acompanhamento das crianças e suas famílias. Nos casos em que a
violência é extrafamiliar, a abordagem inicial é facilitada e a revelação
ocorre de forma mais aberta, no entanto há dificuldade de adesão ao
acompanhamento depois de resolvidas as questões clínicas da criança.
Nos casos em que a violência é intrafamiliar os problemas são ainda
maiores: muitas vezes ocorre uma crise familiar no período em que há a
revelação, em outros casos a violência é ocultada até mesmo pelo familiar
que procura ajuda para a criança, e há ainda os casos nos quais a situação
de violência é negada como problema, uma vez que faz parte dos valores
culturais da família.

A diversidade das reações familiares faz com que a equipe busque


soluções individualizadas para os problemas identificados no curso do
atendimento.

Temos tido um expressivo índice de abandono do acompanhamento.


Fizemos pesquisa para entender os motivos que levaram à interrupção
do acompanhamento e temos trabalhado para reinserir estes pacientes no
serviço.

A ação da equipe leva em conta os fatores mais amplos que geram a


violência, assim como as condições mais imediatas. Para tal, é essencial a
construção de um vínculo de confiança entre os profissionais que atendem
e os membros da família. É nesse espaço de confiança que serão discutidas
decisões tais como a notificação da violência aos Conselhos Tutelares e o
encaminhamento dos casos a outras instituições que podem dar suporte
às dificuldades identificadas, em especial o atendimento psicoterápico
individual, do qual não dispomos em nossa Unidade.

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12. Hospital Municipal Ismélia da Silveira (Ambulatório de Apoio à


Família) – Duque de Caxias
Representante: Dra Denise de Souza Cordeiro Vaz

O serviço foi implantado em janeiro de 2000 e já atendeu a 635 casos até o


momento, sendo a maior parte de abuso sexual na faixa etária de 4 a 8 anos de
idade. Conta com equipe multidisciplinar e a triagem é feita pelo Serviço Social e
pela Pediatria. Recebe encaminhamentos dos setores de Emergência, Ambulatório
e Enfermarias do próprio hospital, de outras unidades de saúde, do Conselho
Tutelar, do Juizado, do Programa Sentinela, da FIA/NACA e de Delegacias.

A rotina de atendimento inclui: entrevista social, visita domiciliar, consulta


médica, terapia individual e em grupo e discussão dos casos em reunião semanal
de equipe.

Formas de recebimento e encaminhamento dos dados dos pacientes


atendidos:

- Prontuário único;
- Ficha de notificação – uma via para SMS e outra para Conselho Tutelar;
- Relatório quando solicitado.

Os canais de comunicação do serviço são com Conselho Tutelar, NACA, Programa


Sentinela, Delegacia, Secretaria de Esportes e Cultura, PAM, CDVIDA, Juizado,
Ministério Público e Varas de Família.
Dificuldades e limites:

Internos: viatura, vale transporte, espaço físico, profissionais exclusivos


para o AAF, computador próprio.

Externos: atendimento para adolescentes, falta de recursos sociais,


programa de renda, cursos profissionalizantes, projeto Família
Substituta.

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Problemas identificados:

Falta melhorar: Conselho Tutelar e Ação Social.


Superposições de trabalho: NACA, Sentinela.
Tentativa frustrada de implantação da “rede”.

13. Núcleo de Atenção à Violência (NAV)


Representante: Psicóloga Paula Mancini Ribeiro

O Núcleo de Atenção à Violência (NAV) é uma organização não-


governamental que oferece atendimento psicanalítico para crianças,
adolescentes e autores de agressão, envolvidos em situações de violência
doméstica, abuso e exploração sexual comercial.

O NAV começou esse atendimento ainda de forma voluntária em 1994 e


está desde 1996 no Ambulatório da Infância e Juventude, agora CARIM, no
Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Lá são recebidos os casos, encaminhados
principalmente pelo campo jurídico – Conselhos Tutelares e Varas de
Justiça – mas também pelos Hospitais e Escolas. Não é impossível que
a pessoa chegue diretamente, mas isso é muito raro; e essa não é nossa
proposta. Nossa proposta é receber os casos encaminhados pela rede de
atendimento.

No momento, o NAV tem três núcleos de atendimento: o primeiro,


no Ambulatório da UFRJ. Outros dois, em projeto com as Secretarias
Municipais de Desenvolvimento Social e de Habitação e o BID – PROAPII,
foram criados na Ilha do Governador (no Posto de Saúde Madre Tereza de
Calcutá, para atender a Comunidade do Dendê) e na ONG CAMPO, em
Campo Grande (para atender três comunidades: Vila São Jorge, Jardim
Moriçaba e Ana Gonzaga).

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Em todos os núcleos, é oferecido atendimento individual para a criança


e o adolescente, com acompanhamento para os pais e responsáveis. Em
Campo Grande e na Ilha do Governador, trabalhamos também com a
inserção social. Este trabalho de inserção em atividades variadas - como
futebol, natação, ballet, cursos... – é feito a partir de uma escuta clínica,
onde cada situação é considerada em sua particularidade, levando em
consideração o momento, as dificuldades e, principalmente, o desejo de
cada um, assim como de suas famílias.

Este trabalho têm repercutido de maneira positiva na criança e na família,


principalmente por possibilitar a construção de novos laços sociais,
proporcionando diferentes formas de interação e vivência.

Essa é a vertente clínica do trabalho do NAV. Temos ainda um trabalho


preventivo de capacitação e sensibilização de profissionais e de
comunidades; e oferecemos campo de estágio e pesquisa.

Funcionamos com plantões fixos. Na UFRJ, esse plantão é às sextas


feiras, entre 9 e 12 horas; em Campo Grande e na Ilha do Governador, às
quartas feiras no mesmo horário. As crianças, os adolescentes, seus pais
e responsáveis podem ser encaminhados diretamente ao NAV, nesses
horários, sem marcação prévia, para a primeira entrevista.

O NAV é formado por psicólogos e psicanalistas. E contamos com a rede,


tanto com o IPUB, quanto com Postos de Saúde, Conselhos Tutelares e
Coordenadorias de Educação, para o encaminhamento das situações que
precisam de atendimento médico, jurídico ou de outros tipos de suporte.
Consideramos que em determinadas situações é importante a participação
de diferentes profissionais com suas respectivas funções.

Todos os casos encaminhados são atendidos, e esse atendimento supõe


discussão pela equipe, com acompanhamento de um supervisor; fazemos
isso em duas reuniões semanais.

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Essas condições e exigências do trabalho impõem um limite: há uma fila


de espera para o atendimento.

Fazemos um trabalho de acompanhamento da fila de espera, tentando


evitar que a pessoa espere muito tempo sem poder falar sobre o que está
acontecendo com ela; nesse acompanhamento, verificamos inclusive se
é possível continuar esperando ou se é preciso incluir essa pessoa na
agenda de atendimento, ou encaminhá-la a outro serviço. Mas esta é uma
dificuldade: não é fácil encontrar locais que ofereçam o atendimento. E a
demanda é muito grande.

O atendimento no NAV não tem tempo marcado, estende-se na


dependência de cada caso. A violência não precisa estar confirmada
para que o paciente seja atendido, muitas vezes a suspeita de uma
situação violenta já é suficiente para que haja indicação e demanda para o
atendimento psicanalítico.

Com relação à notificação, a maioria dos casos chega notificada. Mas


pode acontecer da pessoa que encaminhou o caso ao NAV nos procurar
para discutir a dificuldade da notificação. Nesses casos, a equipe se reúne
– com a participação de quem encaminhou – e discute a melhor forma
de notificar. Estamos abertos à discussão das dificuldades com relação à
notificação.

Outra questão que merece ser pensada é a do número de encaminhamentos


de “vítimas” de violência, muito mais expressivo que o encaminhamento
de autores da agressão. Parece que há uma tendência a pensar com horror
no autor de violência doméstica. Mas a violência doméstica envolve
muita ambivalência, e muita dificuldade na relação cotidiana entre os
pais e as crianças. Muitos casos que nos são encaminhados se desdobram
em atendimento para os pais e responsáveis, autores da agressão.

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Nossa experiência com autores da agressão, em casos de violência


doméstica, mostra que é comum que os autores entrem em tratamento.
Esta entrada depende de uma implicação ou de um incômodo com
relação à própria posição na situação vivida. E isto está para além de ter
sofrido ou cometido um ato violento. Por isso, as questões de adesão ao
tratamento são complexas.

Às vezes, o início do tratamento é difícil. No caso dos autores é preciso,


em primeiro lugar, desvincular o tratamento da ótica punitiva, dar espaço
para falar, não partir de verdades estabelecidas.

Cerca de 50% dos casos que chegam ao IPUB são casos de abuso sexual.
Essa porcentagem é ainda maior entre os autores da agressão.

No Projeto do PROAP II, em Campo Grande e na Ilha do Governador,


a maioria dos casos não é encaminhada pelo campo jurídico. A área de
educação tem sido importante para o encaminhamento de casos, nessas
comunidades.

Neste projeto do PROAP II, atendemos apenas a clientela que reside


nestas comunidades. Essa é uma exigência do convênio firmado com
a Prefeitura. Esse limite exigiu que trabalhássemos para chegar à
comunidade, e que explicássemos à comunidade qual era nosso trabalho.
É muito diferente do IPUB, onde recebemos os casos encaminhados pelo
campo jurídico. Foi preciso uma aproximação da comunidade, fizemos
eventos de sensibilização, falamos sobre o que é violência. De início, nós
ouvíamos que ali não tinha problema nenhum de violência. A equipe
teve que começar seu trabalho ao contrário: dizendo o que é que nós
chamávamos de violência, o que significa viver em uma situação violenta,
o que é possível fazer, o que nós oferecíamos, e o que o atendimento
poderia mudar… Agora, o convênio está sendo renovado pelo terceiro
ano e os dados do atendimento, deste projeto como de outros, encontram-
se sistematizados no livro Lugar de Palavra.

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Quanto à nossa sistemática de trabalho, o primeiro passo é a entrevista


inicial. Quando a criança é levada ao atendimento pela família, ela tende
a permanecer em atendimento. Cerca de 60% das crianças que chegam
para a entrevista inicial ficam em tratamento. No livro, apresentamos
uma estatística sobre isso. Em alguns casos, fazemos a entrevista inicial,
mas a criança não fica no atendimento. Há também alguns casos que
iniciam o atendimento, e depois o interrompem. Quando permanecem,
o tempo médio de tratamento é de 1 ano e meio, que parece ser o tempo
necessário para promover mudanças nas relações.

A direção do tratamento está para além da mera identificação de uma


dificuldade: ela exige uma implicação, uma responsabilização daquele
que busca o atendimento por sua palavra, seja a criança, o adolescente,
seus responsáveis ou os autores da agressão.

14. Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro (Assessoria de


Prevenção de Acidentes e Violência – APAV)
Representante: Dra Corina Helena Figueira Mendes

A APAV foi criada em 1999, e nos moldes em que funciona só existe


no Estado do Rio de Janeiro. De tal forma que a Secretaria de Estado
de Saúde esta firmando convênio com a OPAS para que nos tornemos
Centro Colaborador para outros estados brasileiros. Entre suas principais
atividades estão:

- Elaborar diagnóstico das causas externas de morbi-mortalidade;


- Promover a capacitação de recursos humanos;
- Articular diferentes setores do Estado;
- Prestar cooperação técnica para os Municípios (e as unidades hospitalares
da rede estadual);
- Promover a adoção de hábitos e estilos de vida saudáveis.

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A APAV tem como objeto de trabalho a morbidade e mortalidade por


causas externas (acidentes e violência); dentre elas, uma de nossas
principais frentes de trabalho é o abuso contra crianças e adolescentes.

Em 1999, através de uma Resolução da Secretaria Estadual de Saúde, foi


criada a Ficha de Notificação de Maus-tratos; na mesma época, criou-se o
Comitê de Acompanhamento dessas notificações.

A APAV coordena a análise, a avaliação das notificações e a capacitação


dos profissionais para a notificação de maus-tratos na área da saúde.

Em 2002, o Comitê reavaliou e reformulou a Ficha de Notificação. Hoje ela


é uma ficha de notificação de maus-tratos e abuso sexual. No setor saúde,
existe uma grande discussão acerca das classificações destes agravos a
serem notificados. Achamos por bem incluir de forma clara na Ficha que
se trata de um instrumento de suspeita de maus-tratos e abuso sexual.

A Ficha deve ser preenchida pelo profissional de saúde, diante das


circunstâncias singulares e específicas do atendimento. Estamos atentos
à necessidade de cumprir a lei e notificar os casos de maus-tratos, mas a
ficha não visa apenas o cumprimento da lei; com a notificação, queremos
buscar a proteção da criança e do adolescente.

Assim, as circunstâncias em que a notificação tem lugar - na Emergência


ou nas unidades básicas de saúde - vão diferenciar os desdobramentos do
caso. É importante, contudo, não perder a oportunidade, às vezes única,
de intervir numa situação e proteger a criança.

A Ficha deve ser preenchida pelo profissional de saúde e encaminhada


pela Direção da Unidade ao Conselho Tutelar e à Secretaria Municipal de
Saúde, que por sua vez a encaminha à Secretaria Estadual.

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A análise dessa ficha é extremamente rica. A APAV contratou uma


consultoria para fazer essa análise, que deve ser concluída ainda este mês.
Estão sendo examinados não só os números gerados pelas notificações
como também o próprio processo de notificação. O período em análise vai
de 1999 até hoje. Temos percebido que há uma subnotificação, apesar do
número crescente de denúncias de maus-tratos; temos percebido também
o quanto é importante dar aos profissionais o retorno das notificações
feitas.

Em evento organizado pelo PAISMCA com a região Metropolitana


II, que ocorreu no Hospital Estadual Alberto Torres em São Gonçalo,
apresentamos que no período de 1999 até hoje apenas 4 notificações
de maus-tratos contra crianças foram feitas em São Gonçalo. Esse dado
nos assusta, até porque sabemos que vários programas estão em curso
naquele município. A análise do processo de notificação mostra, no
entanto, que as informações nem sempre chegam às instâncias que devem
propor, orientar e sugerir políticas públicas na área da saúde, o que é de
fundamental importância.

Trata-se então de discutir o fluxo dessa informação, pois um dado como o


citado acima compromete a análise da situação no município, ou da ação
das instituições que operam no município.

Esse é um problema relacionado também às estruturas das Secretarias


Municipais de Saúde. A APAV existe na Secretaria Estadual, mas não em
todas as Secretarias Municipais (especificamente voltados para causas
externas, somente os municípios de Nova Friburgo e São João do Meriti).
Em conseqüência, o fluxo da informação termina dependendo também
do grau de comprometimento dos profissionais nas diversas secretarias
municipais.

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Em algumas, a informação é transmitida pelo PAISMCA, em outras pela


Saúde Coletiva, pela Epidemiologia ou pelo Serviço Social. A estrutura não
está bem montada e com isso a informação pode acabar se perdendo.

Importante, contudo, é que fique claro para o profissional que essa


informação reverte na formulação de políticas públicas. Os maus-tratos
são de notificação compulsória semanal. Eles integram uma relação
de agravos de notificação compulsória entre as quais estão a AIDS. O
profissional de saúde notifica a AIDS e a tuberculose, por exemplo,
porque entende esse vínculo.

Como a notificação de maus-tratos é compulsória, outra frente de


trabalho da APAV é a sensibilização para a questão dos maus-tratos dos
profissionais dos núcleos de vigilância hospitalar. É o profissional desse
núcleo que tem a obrigação de encaminhar as notificações dos outros
agravos, e por isso é preciso que ele também entenda que os maus-tratos
devem receber o mesmo tratamento que outros agravos de notificação
compulsória.

A avaliação da ficha de maus-tratos indica também os impasses do


profissional em seu campo de trabalho. Um desses impasses diz respeito
à responsabilidade que decorre da notificação. Muitas notificações
têm desdobramentos legais, e o profissional entende às vezes que está
notificando à Justiça, como se o mero ato de preencher a ficha implicasse
em envolver instâncias perante as quais o profissional deverá assumir
certas responsabilidades.

Quanto ao retorno da notificação, se o Conselho Tutelar retorna a


informação ao profissional, e este passa a ter ciência das conseqüências que
se seguem à notificação, pode haver dois desdobramentos: o profissional
vai se sentir desestimulado (e nunca mais vai notificar), ou vai se sentir
estimulado (e passar a notificar todos os casos). Pela nossa experiência, o
retorno é ponto fundamental para o encaminhamento das notificações.

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A saúde tem um grande desafio. Esse desafio é o trabalho junto ao


Programa de Saúde da Família (PSF). Estamos começando a enfrentá-lo.
No município de Itaboraí, 350 profissionais foram sensibilizados para a
notificação.

Lá, pudemos perceber que há dificuldades próprias da notificação e outras


que decorrem da percepção que o profissional constrói junto às famílias.
Essas dizem respeito a práticas culturais permissivas, aos limites entre a
negligência dos pais e as respostas do Estado a determinadas privações
impostas a grupos sociais específicos. Por exemplo, a questão do Registro
Civil: há gerações sobrevivendo sem registro civil. Como se poderia, de
repente, tomar a ausência de registro como sinal de negligência e notificar
aquela família?

A análise da notificação tem mostrado ainda que a ficha, no dia-a-dia do profissional


de saúde, pode ser um instrumento de poder. Há notificações bizarras, como por
exemplo, uma que registra “alta sem aleitamento materno exclusivo”. Parece
haver aí um abuso do profissional e uma utilização do instrumento como meio de
coação e de poder diante do cliente. Essa avaliação só é possível na medida em que
a notificação aconteça em toda a extensão proposta, e possa assim ser avaliada.

Relatório da 2a. Oficina “Violência contra a criança”

Coordenadoras: Ana Lúcia Ferreira, Rita Helena Gomes Lima e Mônica


Moreira Alves Lanfredi (IPPMG/UFRJ)

Para a segunda Oficina, realizada no dia 27 de outubro de 2003, de 9:00 às 13:


00 horas, foram convidadas as mesmas organizações governamentais e não
governamentais acima, além de representantes do CRIA (FIA) e do CACAV
(FAETEC).

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Não compareceram os representantes da DPCA, do CRIA, do CACAV, da


ABRAPIA e do HUAP. Nesta oficina a representante do CEDCA, Ângela Maria
dos Santos (da SOBEPI) esteve presente.

É importante ressaltar também que a 1a. Vara do JIJ enviou mais uma
representante (assistente social Glícia N.O. Morais e Silva) e que o CT de Ramos
esteve representado por mais 3 Conselheiros (Karina Nunes da Silva, Soraia
Denise de Brito e Célio Marcelino Gomes). O NAV esteve representado por
Bárbara Souza e Ingrid Dako, e as demais instituições pelos mesmos membros da
1a. Oficina.

De posse do relatório e de questões pendentes da primeira oficina (anexo 1) foram


esclarecidas diversas dúvidas, sendo sugerida a possibilidade de se criar um fluxo
de atendimento para crianças e adolescentes vítimas de violência no Município
do Rio de Janeiro, tomando por base as informações coletas nas duas oficinas.
Não foi possível organizar este fluxo no decorrer da discussão, ficando a cargo da
instituição coordenadora (IPPMG/UFRJ) elaborá-lo posteriormente.

A seguir relatamos resumidamente os principais pontos que foram discutidos na


2a. Oficina e que complementaram as informações da 1a. Oficina:

1. A SOBEPI (Sociedade Brasileira de Estudos e Pesquisa da Infância) é uma


instituição que tem como objetivos estudar (de forma multidisciplinar) e
prestar atendimento clínico a crianças e adolescentes. Trata-se de uma equipe
de psicanalistas qualificados voltada para o campo da infância, buscando maior
qualidade em saúde mental. Tem convênio com a FIA para atendimento a
violência doméstica e abuso sexual nos núcleos. Dispõe de uma Clínica Social em
Botafogo.

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2. A 1a. vara do JIJ tem como função primordial a proteção da criança.


Sempre que à questão de violência estão acopladas outras questões
(relacionadas a guarda, visitação, pensão etc), os processos são
direcionados para a Vara de Família. A 1a. Vara atua em casos de
destituição do Poder Familiar que necessitam família substituta ou
responsabilização dos pais.

3. O NACA (FIA) atende todos os casos de violência doméstica e abuso


sexual que recebe. Os encaminhamentos vêm prioritariamente de órgão de
defesa da criança (CTs, JIJ, Promotoria), o que legitima as ações do NACA.
Só são encaminhados os casos em que há dúvida sobre a ocorrência do
abuso. Há acolhimento e orientações à família. São ouvidos o elemento
protetor da criança, a criança e, por último, o agressor. O atendimento
é prestado por, no máximo, 6 meses. A denúncia é averiguada de forma
aprofundada, com objetivo de diagnosticar a situação que se apresenta,
responsabilizar os agressores e fazer os encaminhamentos necessários.
Sempre há a atuação de um advogado, que trata da defesa dos direitos da
criança e orienta sobre os direitos dos familiares.

4. Segundo Dra Mônica (IML), o CT só deve requisitar exame de corpo


de delito quando a situação tiver a probabilidade de desdobramentos
jurídicos e tal exame só se justificaria caso houvesse marcas evidentes. A
maioria dos exames realizados pelo IML não são conclusivos. Esclarece
que os legistas do IML são orientados a realizarem, a pedido dos CTs,
unicamente exames de lesão corporal por maus-tratos contra crianças
(não está incluído o abuso sexual, que por se caracterizar como crime,
demandaria solicitação de juízes).

Quando o pediatra descreve as lesões verificadas em seu atendimento, os


legistas utilizam esta descrição como laudo indireto.

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5. Esclarecimentos em relação aos órgãos judiciais:

• 1a. Vara do JIJ – é a vara cível da infância e adolescência – encaminha


para abrigos, trata de questões de tutela, etc. Nesta vara, o promotor
fiscaliza a aplicação da lei e busca tutelar os direitos da criança e do
adolescente. O defensor, nesta vara, dá assistência jurídica gratuita à
criança, ao adolescente e à família (promove ações de adoção, guarda,
destituição do poder familiar, defende quem não quer que o filho seja
adotado, etc).

• 2a. Vara do JIJ – é a vara criminal para adolescentes (perante a lei, só


adolescentes cometem ato infracional). Nesta vara, o promotor funciona
como acusador e trata da aplicação de medidas sócio-educativas. O
defensor, nesta vara, faz a defesa criminal do adolescente.

• O poder judiciário é formado por juízes e funcionários de apoio, e


distribuídos nas diversas varas cíveis, criminais, da infância, etc. A
Defensoria Pública (defensores) e o Ministério Público (promotores)
não têm personalidade jurídica. São autônomos e pertencem ao poder
executivo. Os promotores podem solicitar exames periciais (os defensores
não). Os defensores são responsáveis por levar os casos ao poder
judiciário.

6. Diante de casos como alta à revelia e intoxicações exógenas, as unidades


de saúde têm dúvidas quanto ao melhor procedimento. A APAV orienta
que em ambos os casos seja feita a notificação ao CT.

Nos casos de alta à revelia, se o profissional de saúde considerar que a


criança corre risco de vida, pode recorrer à autoridade policial ou à 1a.
Vara do JIJ para impedir que a criança seja levada pelos responsáveis.

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O Relatório final das 2 Oficinas foi apresentado na 3a. Oficina, realizada


em 25 de novembro de 2003, de 10:00 às 12:00 horas. Esta última atividade
foi aberta ao público interessado no tema. Deu-se início à discussão
sobre o fluxo de atendimento de crianças e adolescentes vítimas de
violência no município do Rio de Janeiro e houve o compromisso,
por parte da equipe do IPPMG, de marcar uma nova reunião entre
as instituições presentes nas oficinas, no início do próximo ano, para
elaborar o referido fluxo.

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Anexo 1

MOSTRA SOCIEDADE VIVA – Violência e Saúde


Centro Cultural da Saúde – Rio de Janeiro, RJ

2a. Oficina sobre “Violência contra a criança” – 27/10/03

Coordenação: Núcleo de Atenção à Criança Vítima de Violência


- Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG)/
UFRJ

1. Esclarecimentos

Para o Juizado: Quais os casos em que o JIJ declina para a Vara de


Família?

Para o NACA: Os casos que vão para investigação são somente aqueles
que se avalia a necessidade da mesma?

Como é a porta de entrada das notificações (ou pedidos, ou solicitações)


que não partem dos órgãos de defesa?

O NACA verifica as denúncias?

Para o IML: Quanto ao procedimento do Conselho Tutelar requisitar


exame para o IML: divergências de entendimento

Para o NAV: Quem é o órgão fomentador do NAV? Qual a área de


abrangência de seu atendimento?

Para os Órgãos Judiciais: especificar as diferenças de suas atribuições (ex:


MP, 1a. e 2a. Varas do JIJ)

Que medidas sócio-educativas estão sendo adotadas pelo MP com relação


à família da vítima, visando diminuir a incidência dos casos?

Quais as perspectivas de se implementar programas como o Núcleo de


Escolas de Pais para outros municípios?

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2. Discussão

Para o NACA: Problema de descontinuidade dos programas


governamentais.

Quanto à APAV: O que as unidades de saúde devem notificar: entraves nos


casos de negligência (por exemplo falta de registro civil de nascimento);
de alta à revelia (responsabilidade do hospital) e de intoxicações exógenas,
etc.

Quanto aos Conselhos Tutelares: O CT é o órgão que vai preencher as


lacunas do sistema, como por exemplo, é ele que tem que subsidiar o
Delegado para manter o agressor preso?

Gerais: Como fica a questão da superposição dos atendimentos (super-


exposição da vítima que será abordada diversas vezes e por diversos
profissionais)?

Estabelecimento de um percurso para os casos de violência doméstica


que poupe as crianças e as famílias, com definição das responsabilidades
de cada ator.

Opções de atendimento / tratamento para o adolescente agressor /


Necessidade / opções para a troca de informações e referência/contra-
referência entre as instituições

Informatização dos dados dos diversos serviços: há alguns que já


dispõem de bancos de dados, outros necessitando implementar este tipo
de tecnologia. Discutir possibilidade de trocas.

Se o CT é reconhecido como “autoridade competente” para solicitar


ECD ao IML e alguns técnicos do IML não reconhecem esta competência,
exigindo a ida da família às DPs, que instância teria que ser mobilizada
para que os técnicos tivessem todos uma mesma conduta?

Identificar o que falta na rede de assistência

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3. Propostas

• programas de capacitação para os profissionais que atuam nos casos de


violência, inclusive juízes, promotores e legistas;

• criação de serviços de atendimento às famílias, às vítimas e aos agressores,


centralizando várias funções: recepção, avaliação, atendimento médico,
social e psicológico.

4. Recomendações

• os programas de retaguarda devem evitar a institucionalização da


vítima, visando sua permanência preferencialmente com sua família
(nuclear ou estendida) ou, quando isso não é possível, em famílias
acolhedoras;

• as universidades deveriam inserir no currículo questões relacionadas à


violência.

Contatos:

IPPMG - Av. Brigadeiro Trompowsky s/ nº


Ilha do Fundão - Rio de Janeiro CEP: 21941-590
Telefones: 21-2562-6185 ou 21-2562-6160

* Ana Lúcia Ferreira - pediatra - coordenadora da equipe


* Adriana Cunha de Souza Loureiro - psicóloga
* Mario José Ventura Marques - pediatra
* Mônica Moreira Alves Lanfredi - psicóloga
* Rita Helena Gomes Lima - enfermeira
* Theresinha de Jesus Pimentel da Rocha - ginecologista
* Verônica Simões Silveira Busch - assistente social

E-mails:
Ana Lúcia Ferreira - anaferr@gbl.com.br
Mario José Ventura Marques - mjvmarques@uol.com.br
Mônica Moreira Alves Lanfredi - mlanfredi@hotmail.com
Verônica Simões Silveira Busch - vssbusch@bol.com.br

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II - LITERATURA RECOMENDADA

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serviço público. Tese de Doutorado em Saúde Pública. Rio de Janeiro: Escola Nacional
de Saúde Pública (ENSP)/FIOCRUZ

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Congresso Brasileiro Psicologia: Ciência & Profissão, São Paulo.

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contra crianças e adolescentes”. Anais do III Congresso Ibero-Americano de
Psicologia Jurídica. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pp 160-162

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infância e na adolescência.

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Família: entraves e possibilidades de atuação”. Ciência e Saúde Coletiva 4 (1): 123-30

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atenção a crianças vítimas de violência doméstica”. Revista de Saúde Pública 33 (6):
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Gonçalves, H. S. (1999). A Psicologia e os direitos da criança e do adolescente. III


Congresso Ibero Americano de Psicologia Jurídica. São Paulo: v. 1, n. 2, p. 15-16

Gonçalves, H. S. (1999). Mitos e controvérsias da violência familiar. XV Congresso


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