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Aluno: Camilo Lelis Jota Pereira

e-mail: camilofilosofia@yahoo.com

A arte afirmativa em Martin Heidegger

A tese central da estética proposta por Heidegger em “A origem da


obra de arte” é claramente comprometida com a questão ontológica, isto é,
sua argumentação procura demonstrar que a arte revela, de um modo
particular, a verdade do ser. Com isto neste artigo pretendemos demonstrar
que a estética de Heidegger, lida por uma via valorativa, confirma a abertura
de perspectivas pluralistas para a compreensão da vida e um “novo infinito”
para o mundo, anunciados na obra de Nietzsche.

O que é este remanejamento do questionamento estético para o


campo ontológico? O que, este remanejamento, muda em relação à
compreensão tradicionalista? Para procurar responder a estes
questionamentos, voltemos o olhar para a análise realizada por Heidegger
no livro citado.

O livro subdivide-se em A coisa e a obra, a obra e a verdade, a


verdade e a arte e como ressalta Moosburger “Os títulos indicam o primado
da pergunta pela verdade – verdade que, (...), é pensada no sentido de não-
encobrimento ou não-velamento (unverborgenheit).” Este direcionamento à
pergunta sobre a verdade demonstra a dimensão ontológica da investigação
heideggeriana no campo estético, proporcionando à filosofia voltar seu olhar
para estudar a obra de arte no que, segundo Heidegger, realmente ela é.

A arte esta na origem, transcende o homem, por isto é ontológica,


este é o direcionamento da reflexão de Heidegger, em vista a demonstrá-la
efetua-se uma análise da obra de arte; a análise da obra permite a
Heidegger caminhar por raciocínios que levam a conceitos que reconfiguram
a maneira de entender a arte e já na primeira parte do livro, uma forma que
foge ao pensamento lógico é colocada, o filósofo demonstra a circularidade
que circunscreve a discussão artística:

Segundo a compreensão normal, a obra surge a


partir e através da atividade do artista. Mas por meio e a
partir de que é que o artista é o que é? Através da obra;
pois é pela obra que se conhece o artista , ou seja: a obra
é que primeiro faz aparecer o artista como mestre da arte.
O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista.
(HEIDEGGER, 1997)

O que realmente a obra de arte é? Para descobrir o que a obra de arte


é, Heidegger percorre a história da filosofa ocidental e demonstra que a
caracterização comumente usada da arte sugere que esta, é um objeto,
impreterivelmente, relacionada ao sujeito. A prevalência desta
caracterização da obra de arte conduz a um estado limitante da
possibilidade da arte, pois para o pensamento do filósofo alemão a arte
estaria em outro patamar, como um lugar privilegiado para que ocorra a
verdade, sua dimensão não seria restrita à do conhecimento humano.

Mas como pode a arte estar limitando-se? Para entendermos esta


limitação, vamos abordar como que Heidegger define a estética moderna.

A estética tradicional trabalha dentro da perspectiva subjetivista, que


tem em Kant seu maior expoente, por isto iremos lançar mão da
interpretação do pensamento deste filósofo com vista a clarificar a posição
de Heidegger.

A inversão copernicana, promovida por Kant, confere ao sujeito


transcendental status de agente idealizador da realidade, promove o eu
como medida de tudo, a realidade é compreendida em referência ao
aparelho cognoscitivo, isto é, o sujeito impõe estruturas cognitivas prévias
sobre o objeto, sendo assim, a verdade – pensada como adequação – pode
ser fundamentada na autoconsciência deste sujeito, pois este não pode
acessar a coisa em si, sua ação esta direcionada aos fenômenos, que
respeitam as regras prévias dos juízos subjetivos.
Dentro desta posição subjetivista, a estética transfere para o homem o
centro da manifestação artística, o estudo acerca da arte é transferido para
a interpretação do estado sentimental do homem em relação ao belo, este
entendido como produção intelectiva do sujeito criador e contemplador. Esta
visão da arte é compreendida como redutora da manifestação do novo, a
abertura do mundo que encontra no artístico um lugar propicio para
acontecer é restringido à lógica – demasiadamente humana.

Esta posição antropocêntrica em relação à obra de arte é atacada por


Heidegger, pois tratando a obra como um objeto que supõe a existência de
um sujeito, o jogo desta compreensão de mundo delimita de tal maneira a
estética, que direciona sua ação apenas ao sujeito, o começo e o fim da arte
relaciona-se ao homem. Com vista a reestruturar esta via de reflexão sobre a
arte, é proposto o direcionamento da investigação para o que é uma obra de
arte.

Na primeira parte do livro surge diante da reflexão realizada, uma


característica da obra de arte: seu caráter de coisa; concernente a esta
definição a pergunta: como a obra pode ser considerada uma coisa? Esta
pergunta é respondida através da análise acerca de como que a obra é o
que é e como é. No desenrolar desta análise, Heidegger demonstra que a
obra de arte esta aí no meio de nós de forma não muito diferente das outras
coisas que compõe nosso ambiente.

O quadro está pendurado na parede, como a arma


de caça, ou um chapéu. Um quadro como, por exemplo, o
de van Gogh, que representa um par de sapatos de
camponês, vagueia de exposição em exposição. Enviam-se
obras como o carvão de Ruhr, os troncos de árvore da
Floresta Negra. (...) Os quartetos de Beethoven estão nos
armazéns das casas editoriais, tal como batatas na cave.
(HEIDEGGER, A origem da obra de arte, 1977)

Diante deste caráter coisal da obra de arte, o pensamento tradicional –


metafísico – trabalha de maneira dicotômica, produz um ajunte que separa
matéria e forma às perspectivas que caracterizam as coisas; para Heidegger
a arte não pode estar situada nesta redução proporcionada pela metafísica,
a inseparabilidade entre matéria e forma implica uma nova compreensão da
arte e das coisas.

Como já vimos acima, a concepção da estética tradicional produz esta


definição pelo desdobrar da posição subjetivista para a compreensão da
arte, pois, segundo Kant, os fenômenos são apresentados de maneira
dividida em forma e matéria; dentro desta linha a estética kantiana
pressupõe que existi uma matéria – uma coisa material – que recebe uma
intervenção, de caráter intelectual, que produz a forma nesta simples
matéria – a criação artística.

A obra seria uma coisa que remete a algo de outro. A matéria – que
esta contida na obra de arte – sendo dotada de sentido só após a
intervenção “artística” do homem, permite interpretações que usem, para
definir a obra, conceitos que falam da intervenção humana como processo
de cópia ou expressão histórica; a obra seria um símbolo, “se a obra é
símbolo, ela é um ente de duplo caráter: uma coisa produzida e cindida em
estrutura coisal e superestrutura artística.” (Moosburger, 2008)

Mas esta definição, proveniente da incorporação do modo de pensar


metafísico, é atacada por Heidegger como a posição com a qual se tenta
trazer para o domínio do prazer humano os objetos do mundo através da
relação sujeito-objeto, escondendo a natureza da obra de arte, por
conseguinte, fazendo que a arte desapareça.

A opção por descrever a arte através de uma via metafísica, acarreta


em limitar a arte ao deleite humano, o que para Heidegger foge
completamente a verdadeira essência da arte; assim a estética ontológica
de Heidegger procura demonstrar, através de uma via não metafísica, que a
arte pode ser compreendida distintamente do domínio da estética.
Aqui deparamos com um ponto convergente, o deslocamento do
entendimento da obra de arte para o campo ontológico esclarece que a arte
não pode ficar vinculada apenas ao processo de subjetivação da realidade,
pois esta maneira metafísica de entendimento sugere uma postura, que tem
por detrás, uma moral relativa a uma determinada compreensão de mundo.

Faremos um paralelo com a obra de Nietzsche, porque acreditamos


que com este instrumento possamos compreender melhor o que esta por
trás desta postura moral que a investigação heideggeriana sobre a obra de
arte nos colocou como evidente.

Nietzsche faz um resgate da meditação sobre o sentido e o valor da


existência, através da análise da manifestação cultural, “os festivais
trágicos”, de um povo – o grego – que mantinha uma postura apreciativa da
existência na sua multiplicidade e com isto aventa a disposição em favor de
contemplar a vida em todos os aspectos. A boa disposição com o mundo,
encontrada na leitura que Nietzsche faz da cultura grega pré-filosófica,
sofreu um processo de decadência junto ao surgimento da filosofia idealista
que tem como ícone Platão e Sócrates, cabe ressaltar aqui, que também
Heidegger vai procurar resgatar o modo de pensar o mundo que existiria
antes de Sócrates.

A decadência da boa disposição com a existência, que começa com o


pensamento do filósofo Sócrates onde “conhecer é o caminho para o agir
perfeito”, é acusada por Nietzsche em seu livro de estréia, a saber, “o
nascimento da tragédia”, emerge junto à problemática da teorização
racional do saber, o sujeito capaz de enxergar a “verdade” procura
fundamentar a sua vida na descoberta da essência fundamental da
realidade.

No campo da arte temos o “socratismo estético”. A arte agora se


enquadra em aspirações do conhecimento, a possibilidade de criar novas
interpretações sobre a vida e de ter prazeres inesperados é atacada por uma
filosofia que privilegia espíritos do estável em detrimento das novas
sensações. Com o aparecimento da consciência filosófica a busca, pela via
da teoria, a aprender viver melhor, limita o homem a lançarem-se ao
desconhecido, assim como na vida, na arte, de acordo com a “estética
inovadora” de Heidegger as “coisas” estão aí sendo compreendidas pelo
ponto de vista do deleite humano.

O otimismo teórico e, ou, “socratismo estético”, depende da


duplicação metafísica da realidade, pois, só funciona fundamentada em uma
dicotomia moral absoluta. Aqui entendemos como o inicio do processo de
subjetivação, que passa por Descartes – onde é levantado o problema
gnosiológico – até chegar a Kant, que configura através das doze categorias
a perspectiva única e universal de compreensão do mundo, teve sua origem,
segundo Nietzsche, em uma posição de envergadura moral em relação à
vida.

Esta consciência tipicamente metafísica opera de forma a busca, em


meio à multiplicidade, aquilo que é invariável, para tanto aplica, um
esquema de leitura que reduz as possibilidades de abertura do mundo à
compreensão racional da atividade criadora humana, em vista disto,
podemos ter com Heidegger uma forma mais dignificante de expansão das
possibilidades humanas através da arte.

Heidegger apresenta o quadro de Van Gogh, onde esta retratada um


par de sapatos de um camponês, este quadro de um instrumento, na
verdade resgata a matéria que foi consumida na instrumentabilidade e
manifesta o mundo do camponês, feito de trabalho e esperança. O mero
instrumento em seu uso, em sua faculdade de servir, esconde o seu ser. O
par de sapatos não foi adequado à realidade através da pintura, mas
desvelado o seu mundo. À reflexão acerca da arte, Heidegger introduz novas
características: a apresentação do mundo e a revelação da terra.
A criação artística do homem é um processo complexo, o homem que
se coloca a fabricar seu mundo não pode negar a terra, assim a obra de arte
não se compõe de matéria à qual se acrescenta um valor estético, a arte se
manifesta no domínio aberto por ela mesma.

Partimos do questionamento sobre o que seria a proposta de


deslocamento da reflexão sobre a arte para o campo ontológico,
apresentado o caráter moral da opção pela postura subjetivista que reduz as
possibilidades de compreender o mundo, adentraremos na mudança da
investigação artística e suas concepções afirmativas.

O conceito de mundo apresentado por Heidegger, não se refere ao


conjunto de coisas que nos cercam, aos objetos dados, mas deve ser
entendido como aquilo que de concreto, dá sentido às manifestações
humanas. Neste sentido a obra de arte abriga todo o relacionamento de um
povo com sua cultura, seus anseios e celebrações, ou seja, a obra de arte
apresenta, pois, um mundo.

Por outro lado, a obra de arte é sempre aquilo de que é feita, a “mão”
do homem utiliza a matéria que encontra aí na terra e fabrica algo que
relaciona e faz sentido ao seu mundo. Este fabricar algo significa, segundo
Heidegger, revelar o que estava oculto, trazer para o sensível o que estava
no mais profundo da realidade do material.

A superação da estética tradicional, traz para a reflexão de Heidegger


uma experiência originária: a arte sendo origem é entendida como
acontecimento. A arte como acontecimento remete à abertura de mundo
pela obra de arte, a matéria é envolvida pelo artista, desvelando um mundo
que está se pondo em obra através da obra.
O artista e a obra ocorrem ao mesmo momento, não esta em jogo a
causa e a razão da arte, mas a arte em processo de des-ocultação da
verdade do ser:

Aonde a obra se recolhe e o deixa vir à luz a nesse


recolher-se, a isso chamamos terra. Ela é a acolhente que
vêm-a-frente. A terra é a incansável e sem esforço
impelida para nada. Sobre a terra e nela o homem historial
funda sua morada no mundo. Na medida em que a obra
instala um mundo, elabora a terra. O elaborador é aqui
para ser pensado no sentido estrito da palavra. A obra faz
a própria terra voltar-se para o aberto do mundo e nele
mantém. A obra deixa a terra ser uma terra (Der ursprung
des kunstwerkes. 2003; in: Moosburger, 2008)

Através do combate entre terra e mundo, a arte possibilita o des-


velamento daquilo que se esconde, segundo Heidegger, não há esperanças
de um acordo sobre este combate: “ele deve permanecer como combate
para dar unidade e autonomia à obra de arte”, terra e mundo apesar e por
causa de sua diferença essencial, mantêm uma dependência recíproca.

A manifestação artística não é compreendida em sua relação com os


sentimentos humanos, a perspectiva agora coloca a obra e o artista dentro
do mesmo “barco” em relação à arte. A essência da criação é determinada,
segundo Heidegger, pela des-oucultação da verdade, não esta mais restrita
ao processo estético.

Esta desumanização da arte nos permite aludir à pluralidade de


perspectivas que nos fala Nietzsche, pois, o sujeito foi deslocado da posição
que permitia ao homem se impor pelo julgo estético acerca do mundo, a
verdade encontra-se em um processo em aberto como nos fala a obra de
arte.

Então, daí a possibilidade de um novo infinito para o mundo junto aos


diversos focos humanos individuais que se depara com a abertura ao
desconhecido, encantam-se novamente com os des-velamentos do ser e
novas maneiras de “colorir o mundo”.

Entender a obra de arte como abertura de mundo, remete a uma


postura afirmativa em relação à existência, Heidegger coloca a arte em uma
posição muito além de ideologias ou posturas morais que possam descrever
o mundo e, conseqüentemente, a obra de arte.

Antes de tudo ela ensinou, através de milênios, a


olhar com interesse e prazer para a vida em todas suas
formas e a levar nossa sensação tão longe que finalmente
exclamamos: ‘Seja como for, a vida, é boa!’ esse
ensinamento da arte, que consiste em encontrar prazer na
existência e considerar a vida humana como quem
considera um pedaço de natureza, sem se empolgar
demais, vendo-a como um objeto de um desenvolvimento
conforme a leis. (NIETZSCHE, 1978)

Bibliografia :

MOOSBURGER, Laura de Borba. Mundo, terra e “não-encobrimento”


em A origem da obra de arte, IN: Revista
Artefilosofia; Tessitura, Belo Horizonte, 2008.

HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, Lisboa: Edições 70, 2004.

NIETZSCHE, Obras incompletas / Friedrich Nietzsche ; seleção de


textos de Gerard Lebrun ; tradução e notas de Rubens
Rodrigues Torres Filho, São Paulo : Abril Cultural, 1974.

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