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Sacralidade e Secularização

Mário Ferreira dos Santos – Palestra no Centro Convivium, 1964

Na formação do Cristianismo uma das idéias centrais que predominou era a do


Juízo Final, aguardado como um acontecimento próximo. Os Evangelhos haviam
assegurado que ele começaria antes que os contemporâneos de Cristo tivessem
desaparecido. A interpretação dessa passagem bíblica provocou resultados
heterogêneos, porém, em regra geral, aceitou-se que o seu advento seria próximo.
Como não sobreveio, passados os anos foi marcada uma data, e o povo estabeleceu
que o ano mil seria o do juízo.
Neste momento dar-se-ia o fecho final da vida cristã, da passagem terrena do
homem. Haveria um grande julgamento: os bons ganhariam o céu e os maus seriam
eternamente condenado. Quando chegou o ano mil, que seja dito, foi desastroso, pois
pela sua aproximação em conseqüência de certos excessos religiosos, sobreveio uma
grande decepção no mundo europeu, o que foi gestar uma busca para esta vida, quer
dizer a sacralidade exagerada do Cristianismo foi se tornando mais secular.
Nota-se isso nos próprios protestantes que, posteriormente, vieram dar um
sentido mais secular à concepção cristã, buscar a realização do Cristianismo nesta
terra e, inclusive, também nos próprios cristãos, que começaram a procurar melhorar
a sua situação, a vida humana, lutando por melhores condições.
Há uma tendência bem desenvolvida neste período do movimento dos jesuítas;
já que eles foram acusados pelas escolas cristãs que mais defendiam a sacralidade, de
serem demasiadamente condescendentes para com o ser humano, de terem se
deixado empolgar pela filantropia.
Este é o caso, por exemplo, das penitências que, entre os jesuítas são sempre
suportáveis, não atingindo os graus exagerados levados à efeito pelas outras ordens,
como o de Pascal, representando o grupo de Port-Royal que combateu muito os
jesuítas. Foram eles, também, combatidos porque se opunham aos interesses de
outros setores, primeiro em relação à sacralidade, segundo quanto à nobreza que
perdera, graças à ação dos jesuítas a possibilidade de nomear, pelo princípio das
investiduras, bispos, cardeais, etc.

Eram também combatidos pela burguesia porque não aceitavam a escravidão do


homem, e veja-se a sua atuação na catequese dos povos indígenas. Eles também
defenderam, para o Cristianismo, a secularização da valorização da vida, “mente sã
num corpo são”, a ginástica, o abandono do misticismo, repudiando as torturas do
corpo, melhora da vida e possibilidade do homem participar do banquete da vida,
confirmando assim que os pecados não eram mortais. Daí terem sido acusados de
serem propugnadores de uma vida imoral.

A caridade não é propriamente dar. Esta virtude não significa apenas dar ao que
precisa, que é o sentido da filantropia, sentido vicioso dado à caridade. Ela é o amor ao
próximo, e este amar ao próximo é alguma coisa que não podemos adquirir por
hábito; é alguma coisa que temos por simpatia, que sentimos, que vivemos ou não
vivemos.

Por isso a caridade está colocada entre as virtudes teologais –as virtudes dadas por
Deus- e não as virtudes cardeais –as habituais e adquiríveis pelo homem. De maneira
que o que chamamos de Cristianismo aquariano, ou de Aquário, usando essa
expressão da mitologia, e também dos astrólogos (não tendo, entretanto, o sentido
astrológico comum) mas sim significando, na sua simbólica, um cristianismo do
homem coletivo porque é uma religião do homem, no sentido racional.

O principal caráter dele é a vigilância racional, não a dos sentidos, da afetividade mas
sim da intelectualidade, do homem inteligente, do homem criador, do que não pode
mais voltar à animalidade pois tem que seguir o seu caminho humano. É o
Cristianismo para o homem coletivo, para se realizar nesta terra uma maior soma de
bem-estar possível, sem a ociosidade, pois esta pode ser fonte de novos vícios. É
preciso ver-se que este Cristianismo exige que o homem trabalhe, aplique-se
intelectualmente para desenvolver-se plenamente no caminho do saber.

É uma constante histórica que não se pode deixar de respeitar, que alguma coisa liga o
homem ao transcendental, porque, embora alguns psicólogos digam o contrário (sem
fundamento porém), já que há um ou outro caso excepcional, que não serve de base,
sem isso o homem não se sente tranqüilo, não se liberta da sua angústia.

Há, sem dúvida, várias exceções, no caso de exemplo de dignidade, sem ligar-se ao
transcendental, porém não se pode criar uma humanidade sobre exceções, e sim em
uma regra geral e ela só pode ser esta: o homem só encontra o equilíbrio dentro de si,
quando crê em algum princípio superior e se sente, de certo modo, assegurado por um
poder que o sustente, que possa servi-lo, que saiba que amanhã, no cumprimento do
seu dever, não está abrindo as portas para o seu próprio mal.
Assim como diziam os pitagóricos, já que Pitágoras aconselhava aos seus discípulos:
“lembrai-vos que os deuses sempre pouparam os sábios dos grandes males; acreditai
na sabedoria; acreditai no conhecimento; acreditai nesta luta pela elevação do homem
que ireis vos afastar, cada vez mais dos males que afetam àqueles que não tem esta
preparação”.

Este é o problema: o desenvolvimento do bem-estar humano que a ciência e a técnica


moderna podem nos dar, o progresso que ela pode nos oferecer, mas que pode,
também, ser o grande perigo para o homem, a sua destruição, porque o homem no
luxo, na ociosidade poderá decair.

Em que base se pode afirmar que o ser humano só possa salvar-se tendo crença num
ser transcendental?

Os que se sentem angustiados necessitam dessa crença. O ser humano não pode viver
dentro de uma situação agnóstica, céptica ou atéia, porque todas estas situações
foram passageiras na História e não produziram bons frutos; ao contrário, produziram
os piores frutos que a humanidade já colheu. O ser humano precisa ter uma crença,
mas que ela seja racional, bem fundamentada.

E os que trabalham para a formação de uma crença racional, fundada em bases


filosóficas com demonstrações rigorosas, como o fizeram em grande parte os
escolásticos, é preciso ser continuado.

Para compreender filosoficamente o ser humano a não ser que caíamos nas piores
aporias, numa concepção do mundo em que apenas se estabeleça a imanência e não
tenha uma transcendência, necessita-se de qualquer maneira, de um princípio que seja
a razão de ser de tudo quanto há, porque não se pode, de modo algum, cair nos erros
de aceitar formas perfectivas que tenham surgimento do nada.

E não poderíamos compreender a evolução, o desenvolvimento perfectivo, sem que a


origem tenha já, de antemão, toda esta perfeição, porque do contrário temos que
postular o surgimento do nada que é, fatalmente, uma concepção fundamentalmente
errada.
Esta posição não é hipotética, ou seja, fundada apenas numa concepção hipotética. Ela
é lógica e para isto necessita de uma demonstração. Não se pode, porém, provar a
existência de um ser transcendente em poucas palavras e as provas da Filosofia não
são iguais as da Ciência.

O filósofo é um homem desarmado, que não dispõe de instrumentos de pesquisa nem


de observação, apenas da luz natural da sua razão para pesquisar e estas
demonstrações sendo de caráter lógico e ontológico exigem, naturalmente, análises
sobre vários temas.

Mas é muito simples, coloquemos da seguinte maneira o argumento: o mundo que nós
pensamos, da nossa experiência, é um mundo de coisas que principiam e tem um fim,
embora possamos admitir que algumas perdurem constantemente, mas todas elas se
apresentam como algo que principia.

Ora estas que principiam, que nascem são, portanto, naturais, são físicas, tem um
nascimento e tem que ter, naturalmente, um princípio, de onde obtiveram o próprio
ser, ou então tem si mesmas, neste caso existiriam antes de existir ou receberam do
nada e aqui cairíamos no absurdo. Ou tem que receber de um outro ser antecedente
do qual depende, de onde pende esse ser que elas tem na admissão disso, deveríamos
então, chegar a uma série e esta não pode ser infinita, devido aos absurdos que
contém.

Temos que aceitar um princípio que seja fonte e origem de todos os entes, e deve
conter, com antecedência, toda a perfeição possível de atualizar-se, porque do
contrário as perfeições posteriores teriam sobrevindo do nada, o que é absurdo. Este
ser tem de ser, de certo modo, oniperfeito, tem que ter uma oniperfeição, que é a
origem de todas as coisas. Ele tem de ser também onipotente, porque tudo quanto
pode ser deve estar contido nele e chegamos, assim, ao que se chama o deus dos
filósofos.

As religiões vão emprestar a este deus um caráter pessoal, um certo antropomorfismo.


Não discutimos esse deus das religiões e sim o deus da Filosofia, e este pode ser e é
bastante suficiente, para fundamentar o cristianismo e o sentido aquariano. Chamem-
no matéria, energia, mas ele tem que ser um ser a se, e não pode ser um ser que
recebe de outro, um ser ab alio, pois tem em si o seu próprio princípio, é
imprescindível, não começou a ser, sempre foi, aquilo que Moisés chamou de Jeová,
cuja palavra é formada de três tempos do verbo ser: o ser que é, foi e será.

É a concepção de Deus quando perguntou: “Quem és tu?” -”Sou quem sou”, quer
dizer, sou aquele ser que não tem princípio, que não provem de outro, princípio de
todos os outros; concepção que pode, perfeitamente, adequar-se com uma série de
outras concepções. Ela permite um ecumenismo, aproximando-nos das diversas
crenças religiosas numa fusão universal, não subordinando-se a uma crença de um
deus personalista, mas de um deus neste aspecto genérico.

As diversas maneiras de conceber deus personalísticamente podem pertencer a estas


religiões, pois dentro do aspecto genérico, podem coincidir com este cristianismo do
sentido aquariano, coletivo e específicamente, ter as suas concepções não divergentes
no aspecto genérico, apenas no específico; já que o deus da filosofia não está
especificamente determinado, pois a filosofia não dispõe de meios suficientes para
estabelecer o que as religiões estabelecem; caso isso se desse as religiões seriam
desnecessárias e substituídas pela filosofia.

As religiões fundam-se na fé, a única coisa que a filosofia pode fazer é mostrar que
aqueles princípios de fé não são absurdos, mas não poderá demonstrar que eles são
verdadeiros, porque se ela fosse capaz de demonstrar esses princípios de fé, deixariam
de ter razão as religiões e a filosofia as substituiria.

De forma que o que pregamos não ofende as idéias religiosas de quem quer que seja,
e podem ser aceitas dentro do seu ângulo por aqueles que apenas aceitam um
princípio que seja fonte e origem de todas as coisas, e mesmo pelos que não aceitam a
concepção de um deus pessoa.

Aqui se encontram e atuam como cristãos, no sentido do mandamento de Cristo que é


o seu principal mandamento: amai-vos uns aos outros, ajudai-vos uns aos outros. Isto
é possível sem que ninguém violente as suas próprias condições.

O ateísmo

Em primeiro lugar não temos conhecimento de nenhum grande filósofo ateísta. As


grandes obras filosóficas não foram escritas por ateístas. Em segundo lugar a
concepção, por exemplo, do deus dos filósofos, que é combatida pelas religiões, é
aceita por muitos indevidamente chamados ateístas, porque eles não o são no sentido
das religiões.

Sócrates era chamado ateísta no sentido do teísmo da religião grega, mas não era
ateu no sentido pessoal, porque acreditava no seu deus; não acreditava nos deuses da
mitologia grega. Daí se ver que o ateísmo pode ser relativo, assim alguém pode ser
ateu em relação a Brahma e não o ser em relação a Tao, que é uma divindade
caracterizada e não determinada.

Na concepção, por exemplo, chinesa. que não tem caracterização nem pessoal, pode
ser, ateu em relação à divindade budista e não o é em relação a outra divindade.

De maneira que o ateísmo deve ser assim compreendido: o que os filósofos


consideram o seu deus e é combatido tenazmente pelos católicos e também pelas
religiões é o seguinte: eles admitem que há um principio que é a origem de todas as
coisas, cujo princípio tem todo poder para que as coisas surjam, que dá as coisas o
seu nascimento, porque não defendem uma tese ex nihil, já que admitir que o nada
seja capaz de dar alguma coisa que ele não tem, é cair, obviamente, numa
contradição, já que estamos simultaneamente, afirmando que o nada não tem e que o
nada dá o que não tem, o que é um absurdo.

Eles admitem um deus não pessoal, no sentido que a humanidade sempre emprestou a
este conceito; um ser todo poderoso que é a fonte e que regula, e de onde surge todos
os outros. Esta concepção é universal.

Quanto à questão dos dogmas e as questões das idéias religiosas, assim como a
demonstração da filosofia, observa-se que ela não demonstra a verdade como a lógica
também não demonstra a verdade de coisa alguma. Ela apenas pode nos guiar para
evitar que erremos, já que a demonstração da verdade cabe a outras providências que
não são as propriamente lógicas. O que a filosofia pode mostrar é que uma idéia não é
absurda.

Por exemplo: que a idéia da Trindade, mistério cristão (quer dizer, está oculto) e o
cristão sabe que não pode entender, mas a filosofa pode mostrar que esta idéia não
contém absurdos, mostrando que, na Eucaristia, não há absurdos, assim como em
diversas concepções, mas não prova que estas sejam verdadeiras, já que isto não cabe
à filosofia nem a religião, pois esta não prova a sua verdade, ela propõe a sua
verdade, o homem aceita por fé, senão a religião deixaria de ser religião.

O que a caracteriza é uma crença que brota da fé e não da ciência, porque se brotasse
desta, não seria mais religião.

Se a religião representa um estágio inferior da humanidade ou não –tema discutível


na filosofia- se a filosofia e a ciência com o tempo poderão substituir a religião, será
quando ambas possam demonstrar de maneira completa, aquilo que na religião
constitui os seus mistérios.

Nos estudos sobre a Aporética, parte da Dialética que se dedica ao estudo das
dificuldades teóricas, toda concepção melhor construída que o seja, sempre deixa
diversas aporias insolúveis que passam a ser os problemas que desafiarão a argúcia
dos futuros estudiosos. Verifica-se que pode-se, aporeticamente, estabelecer o valor
de uma doutrina pelo números das suas aporias.

Uma doutrina que apresenta duas aporias, quer dizer, tem suas dificuldades teóricas
que não são solucionáveis, é teoricamente mais sólida que uma concepção que
apresenta três ou quatro aporias. Assim se pode avaliar o valor de uma concepção pelo
número de suas aporias. Se tem só aporias, que não dá solução a nenhum problema,
tem naturalmente, de ter menos valor do que aquela que oferece solução.

Não estamos aqui defendendo uma idéia religiosa, estamos admitindo que a religião
pode ser apenas a conseqüência de um estágio humano e que o homem possa, plela
luz natural da sua razão, alcançar a explicação total do Universo.

Podemos admitir, embora os religiosos digam que não, que há mistérios que o homem,
nesta vida, no estado de queda, de pecado em que se encontra, pela sua fraqueza,
pela sua ignorância natural, pelas suas limitações naturais, jamais conseguirá resolver.

Entretanto, muitos concebem que o homem, pela luz natural poderá não dar a solução,
no sentido das religiões, mas sim no da filosofia. Esta é a minha posição.
As concepções religiosas afirmam que não basta apenas a prática deste ato de respeito
e de veneração a um principio superior interno, apenas intrínseca, mas precisa
também se exteriorizar, deve manifestar-se em rituais, porque tem um poder
exemplar, e seria uma reverência mais justa em face dos outros, o que é matéria
discutível da teologia.

Mas, para os pitagóricos, cuja orientação sigo, porque considero que foram os grandes
iniciadores da filosofia, abrindo as portas para o grande caminho do pensamento
humano, estabeleciam isto: a religião nós as respeitamos todas, mas cada um de nós
conservará para si a sua crença. Agora, pergunto: qual é o nosso trabalho?

Estudar, analisar, procurar solucionar, dentro dos meios naturais do homem, o que ele
possa solucionar. Eles julgavam que os limites estavam muito longe e que o homem
tinha possibilidades imensas de percorrer, dentro do pensamento e encontrar uma
solução.

Quanto a dizer que o nosso problema atual é puramente econômico, político, social, de
vida prática ( religião também a esta pertence ) e que esta última não interessa para a
solução, estamos enganados, porque a falta de crença num principio superior, não
desperta nos seres humanos uma convivência, um amor ao próximo.

Há aqueles que não precisam ter uma crença para cumprir o seu dever, porque basta o
orgulho de serem humanos, de terem uma inteligência, de saber que o homem é capaz
de realizar formas perfectivas cada vez superiores, mas a maioria não é assim, precisa
o temor a algo superior para que cumpram o seu dever.

Não queremos culturalizar a humanidade porque não há mais tempo. A pedagogia


exige mestres e estes levam tempo para se fazer, é preciso uma longa experiência e
muito tempo. A população, por sua vez, cresce numa velocidade maior do que a
formação de educadores.

O nosso problema é gravíssimo: estamos ante um mundo que está repleto de


universidades, de escolas, mas o nível cultural baixou muito a ponto de alguns
psicólogos e psiquiatras afirmarem que, dentro de dez ou vinte anos, formaríamos uma
humanidade de estúpidos, débeis mentais e alucinados.

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