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Escravos e escravidão em Indaiatuba

Nilson Cardoso de Carvalho

Menciona-se com freqüência, não sei se procedente ou não, o


esforço de Rui Barbosa quando ministro da fazenda, para eliminar a
documentação relativa à escravidão no Brasil, tida por ele como uma
mancha na nossa História.

O fato é que, se procedente, a atuação do inteligente baiano não


conseguiu apagar a grande mancha, pois a quantidade de documentos
existentes nos mais diversos arquivos é tanta que a toda hora estamos nos
deparando com eles. É o que acontece, por exemplo, ao examinarmos o
acervo documental de Indaiatuba existente nos cartórios judiciais, de
notas, eclesiásticos e arquivos diversos.

Graças a essa documentação é possível termos algum


conhecimento, embora superficial, sobre este tema que tentaremos abordar
de maneira sucinta neste artigo.

Traficantes

Com a descoberta do ouro em Minas Grais e do grande fluxo de


gente para aquela região, aumentou extraordinariamente a procura por
escravos africanos que passaram a ser comprados a peso de ouro para a
exploração das minas.

Até então os fornecedores de escravos eram traficantes ingleses,


franceses, holandeses, suecos e portugueses, passando nessa época a
aparecer, principalmente no Rio de Janeiro, traficantes brasileiros.

Era esse um negócio muito lucrativo que rendia a cada quatro


meses 50% do capital empregado, ou seja 150% ao ano, quando nesta
mesma época a renda de aplicação a juros era de 10% ao ano.

A viagem do navio negreiro

O traficante no Rio de Janeiro carregava seu navio basicamente


com fumo e cachaça que eram as moedas de troca preferidas pelos
fornecedores de escravos na África.

Existia um ponto na costa africana para onde convergiam os


traficantes; era um entreposto de compra e venda de escravos trazidos de
vários pontos do continente até ali, para venda aos capitães dos navios
negreiros europeus e brasileiros. Os europeus levavam todo tipo de
mercadoria para troca: seda e especiarias do oriente, tecidos ingleses,
armas, ferramentas, pólvora etc., e os traficantes do Brasil como foi dito
levavam fumo e cachaça.
Lá os capitães brasileiros trocavam metade da carga de fumo e
cachaça que haviam levado por mercadorias trazidas pelos europeus, e
estes trocavam fumo e cachaça com escravos que levavam para o Caribe e
América do Norte.

A outra metade da carga dos navios negreiros brasileiros, era


trocada por escravos trazidos para o Rio de Janeiro. A viagem de ida e volta
demorava quatro meses e, na viagem de volta, devido ao excessivo número
de passageiros amontoados nos porões e a parca alimentação, uma parte
morria e era atirada ao mar. Não era raro o naufrágio desses barcos. Os
que sobreviviam, não esqueceriam o horror desta viagem até o fim de seus
dias.

O desembarque no Brasil e a
viagem para Indaiatuba

Chegando ao Rio de Janeiro os


escravos desembarcavam tão debilitados
que mal conseguiam andar. Eram então
levados a um local para sua recuperação e
em seguida para à rua do Valongo, local
onde os traficantes estabeleceram seus
negócios. Era o ponto de venda de
escravos, e para lá se dirigiam os
compradores, que os adquiriam,
geralmente em lotes, conforme as
encomendas.

Os escravos vindos para a


capitania ou província de São Paulo
vinham por via marítima até Santos, porto
de desembarque de escravos e embarque
de açúcar, cachaça, fumo e outras
mercadorias.

Os escravos vindos para


Indaiatuba eram importados por traficantes
residentes em Itu que ai tinham a sede de
seu negócio.

Joaquim Duarte do Rego,


“negociante de açúcar e negros”

Ao final do século dezoito um dos mais prestigiados desses


traficantes era Joaquim Duarte do Rego (i), capitão de uma das
companhias do regimento de Itu e também familiar do Santo Ofício, isto é,
agente da Santa Inquisição, com a função de vigiar os habitantes da Vila,
denunciando os que, a seu juízo, poderiam ser considerados hereges. Além
de negociante era proprietário de terras, inclusive em Indaiatuba, às
margens do ribeirão do mesmo nome, atual córrego Barnabé.(ii)
Joaquim Duarte recebia os lotes de escravos e os vendia aos
senhores de engenho da região. A venda era a prazo, com juros, para
pagamento na safra seguinte, ocasião em que o senhor de engenho pagava
não em dinheiro, mas em açúcar e aguardente, mercadorias que Joaquim
Duarte remetia ao Rio de Janeiro como pagamento de novas levas de
escravos.

Com esse tipo de operação, Joaquim Duarte ganhava três vezes:-


na venda do escravo, nos juros de mora que recebia, e ainda, na compra do
açúcar e aguardente a preços favoráveis. Foi assim que amealhou grande
fortuna, para si e seus descendentes.

“Quem tem escravos de Guiné que os batize”

Quando chegavam os escravos nas fazendas, geralmente em


lotes, o senhor os recebia e, a primeira medida era levá-los à igreja para
batizá-los, obrigação que não deixavam de cumprir porque a lei então
vigente determinava que todos os escravos africanos deveriam ser
batizados. Isto era feito também por razão de ordem prática, pois na
certidão de batismo do escravo constava também o nome de seu senhor,
sendo portanto um verdadeiro certificado de propriedade.

Os padrinhos, na cerimônia de batismo, eram também escravos


pertencentes ao mesmo senhor ou a seus parentes. Raramente se vê, nos
registros, escravos tendo como padrinhos pessoas brancas, havendo
entretanto exceção para os escravos domésticos e de estimação; seus filhos
com freqüência eram apadrinhados por familiares do senhor.

Origem dos escravos vindos para Indaiatuba

Em Indaiatuba temos registros de escravos vindos das mais


diversas nações africanas (iii) principalmente, pela ordem, Banguela ou
Benguela, Guenguela ou Ganguela, Congo, Songo, Angola, Monjolo, Mina,
Caçanga ou Caçange, Camunda e Muumbi, entre outros, a maioria deles
pertencentes a etnia dos bantos. (iv)

A escolha: adaptação, rebeldia, suicídio ou fuga.

Os escravos ou escravas, geralmente jovens, chegados da


extensa viagem desde a África, eram levados para os engenhos, um mundo
completamente desconhecido para eles, iniciando ali um aprendizado de
novos costumes, nova religião e nova língua; língua esta que não
conseguiriam falar fluentemente até o resto de seus dias. Mesmo a
comunicação com seus companheiros africanos nem sempre era possível,
por causa da diversidade dos idiomas falados pelas diversas tribos e povos
a que pertenciam.

Muitos não se adaptavam ao novo universo e se rebelavam


tornando-se vítimas de toda sorte de represálias; outros apelavam para o
suicídio, que segundo uma crença corrente entre eles, era uma forma de
regressar à África, regressar ao berço; outros escolhiam um caminho mais
criativo: a fuga para as matas e lugares ermos, onde tentariam reproduzir o
ambiente que deixaram na África.

Quilombo

A palavra “quilombo” pertence ao idioma quimbundo e tem o


significado de “união” e foi o nome que os próprios escravos deram ao local
onde se refugiavam ao fugirem de seus senhores.

Em Indaiatuba existe a fazenda e estação do Quilombo, em área


da antiga sesmaria deste nome, que tinha mais de mil alqueires e era
recoberta por extensa mata virgem.(v)

Foi dividida judicialmente em 1795 e recebeu este nome porque,


alguns anos antes, negros fugidos das fazendas vizinhas, formaram um
quilombo no seu interior.

Esse quilombo foi depois abandonado pelos negros seus


fundadores, quando tropas vindas da vila de Jundiaí para prendê-los,
começaram a penetrar na mata. Esta (mata) era tão fechada que os
soldados levaram dois meses para chegar ao local do quilombo,
encontrando-o abandonado.

Preços dos escravos

Os filhos de pais africanos que nasciam no Brasil eram


chamados “crioulos”, os quais sendo criados nos costumes da terra,
adaptavam-se às mais diversas tarefas e se ajustavam aos hábitos e
relações sociais vigentes tanto nas fazendas como nas cidades, e,
dependendo de sua robustez e habilidades, eram cotados a um preço
superior aos “gentios de guiné”, como eram chamados os trazidos da África.

Na avaliação do escravo levava-se em consideração alguns


parâmetros, principalmente a idade, condição física, habilidades para
execução de tarefas, inclusive as de ofício e, naturalmente, o seu
comportamento. Não havia em certas circunstâncias a distinção de sexo.
Tanto escrava como escravo, sendo produtivos nos serviços do engenho ou
do cafezal, tinham a mesma cotação.

Andei comparando os preços registrados em inventários e outros


documentos e constatei que um escravo adulto ou escrava custava mais ou
menos o equivalente ao preço médio de uma casa na vila.(vi)

Portanto, ter e manter escravos não saía barato, pois além do


alto custo, seu sustento exigia dispêndio com alimentação, vestuário e
cuidados especiais quando doentes.

O cotidiano nas fazendas

A vida diária do escravo no engenho ou no cafezal era muito


exaustiva. O trabalho começava com o toque do sino da fazenda de
madrugada e encerrava ao anoitecer. Era de sol a sol, com intervalo às 10
horas para o almoço, que consistia basicamente em feijão, toucinho, angu,
farinha de mandioca e abóbora. Café adoçado com açúcar mascavo ou
rapadura no meio da tarde e o jantar às 4 horas feito com o que restou do
almoço. À noite na senzala comia-se alguma coisa colhida no quintal, fruta
ou verdura, cultivadas pelo próprio escravo, ou carne de alguma caça,
obtida por ele nos campos e matas.

O escravo “coisa”

Desde a sua compra na África o escravo não era considerado


gente e sim apenas uma “coisa” um “bem” ou “mercadoria”, e como tal
pagava imposto de importação ao entrar na alfândega do Rio de Janeiro.
Mesmo depois de receber o batismo, o que teoricamente o tornaria cristão,
era esse o tratamento que recebia, inclusive por parte da legislação.

Muitos documentos demonstram a condição de “coisa” a que era


submetido o escravo. Dos mais ilustrativos dos que tenho visto estão num
processo de justificação (vii) proposto por um senhor de escravos de
Indaiatuba (viii), ao juízo municipal da comarca de Itu. Este processo
encontra-se hoje sob custódia no arquivo do Museu Republicano
Convenção de Itu, pertencente a Universidade de São Paulo.

A história é a seguinte:

Em julho de 1860, o proprietário da fazenda Sertão no município


de Indaiatuba, comprou de um traficante da cidade de São Paulo, chamado
Romão Teixeira Leomil, um lote de 5 escravos por nove contos de réis.
Entre eles havia um de nome André com trinta anos de idade, portador de
uma doença que o impossibilitava de trabalhar na lavoura. Passados dois
meses da chegada daquele lote de escravos à fazenda, o proprietário levou
André a Itu (Indaiatuba pertencia à comarca de Itu) e o apresentou ao juiz,
requerendo que ele fosse examinado por um médico que atestasse sua
doença e incapacidade para o trabalho. O juiz determinou que o escravo
fosse examinado pelo Dr. Kellin, que constatou ser ele portador de uma
inflamação crônica do baço e anemia acentuada que o impedia de trabalhar
na lavoura. Cópia deste processo foi fornecida ao senhor, livrando-o de
pagar a Teixeira Leomil uma parcela referente ao escravo enjeitado.

Esse direito à devolução da mercadoria defeituosa estava


assegurada ao fazendeiro num código de lei que dizia: “Qualquer pessoa
que comprar algum escravo doente de tal enfermidade, que lhe tolha servir-
se dele, o poderá enjeitar a quem lho vendeu, provando que já era doente
em seu poder de tal enfermidade, com tanto que cite ao vendedor dentro de
seis meses do dia, que o escravo lhe for entregue.”(ix)

O escravo “gente”

Havia, entretanto, situações em que o escravo “coisa” virava


escravo “gente”; isto ocorria quando o escravo assassinava brancos ou
quando empreendia fugas freqüentes. Estes dois crimes eram passíveis da
pena de morte na forca para servir de exemplo e dissuadir aos demais
escravos porventura imbuídos das mesmas intenções. Praticado o crime o
escravo deixava de ser coisa e adquiria sua identidade como “pessoa” a fim
de receber a punição.

O assassinato de feitores era episódio dos mais freqüentes no


Brasil todo e aqui em Indaiatuba também ocorreram. Vou abordar um
desses assassinatos, o ocorrido no ano de 1856, também na fazenda
Sertão, quando Indaiatuba era ainda um distrito da vila de Itu.(x)

No dia 25 de julho de 1856, uma sexta feira, por volta das onze
horas da manhã, na fazenda a pouca distância da casa grande estava uma
turma de escravos roçando um capoeirão, isto é, roçando um local onde
havia uma vegetação densa, comandados pelo feitor Vicente do Amaral
Campos.

Iam todos roçando em linha no eito, mais ou menos juntos,


menos o escravo Manoel que ficou para trás por levar mais tempo cortando
um pau, mais grosso, difícil de cortar.

Foi quando o feitor foi ao seu encontro esbravejando e,


empunhando um relho, deu-lhe uma relhada da qual ele desviou
levantando a foice como anteparo; ai o feitor retirou a foice das mãos do
escravo, atirou-a ao chão e começou a surrar o escravo. Depois de dar-lhe
a última relhada, pegou a foice do chão e deu-a na mão do escravo para
que este continuasse o serviço. Quando o feitor virou as costas o escravo
deu-lhe uma foiçada na cabeça que o derrubou, e quando tentou levantar-
se deu outra foiçada com a qual acabou de matá-lo.

Seus companheiros de eito só perceberam o que ocorrera,


quando se estabeleceu um silêncio após o esbravejar do feitor. Matias,
africano de 40 anos de idade, chegou ao local primeiro e vendo que o feitor
estava morto amarrou o escravo Manoel e quando chegaram os demais
companheiros estes o conduziram para a casa grande. No caminho
encontraram o proprietário da fazenda acompanhado de várias pessoas,
seus companheiros de caça, os quais no momento em que aconteceu a
tragédia estavam caçando numa mata próxima.

Levado para Indaiatuba, o corpo do feitor foi encaminhado à


casa do subdelegado José Manoel da Fonseca, onde foi feito o exame de
corpo de delito constatando-se que havia “um golpe de foice da nuca até o
alto da cabeça com cinco polegadas e meia de comprido e um outro golpe
atravessando a cabeça de uma orelha a outra com sete polegadas de
comprido e profundidade que não se pode saber por estar vazando muito
miolo.”

A 16 de agosto de 1856, o escravo Manoel foi submetido a um


tribunal de júri em Itu, composto de 11 jurados, a maioria deles senhores
de engenho. Não foi condenado à forca, como era o esperado, mas
condenado a galés perpétuas, isto é, prisão perpétua com trabalhos
forçados, com os pés acorrentados.
Manoel era filho de pais africanos, brasileiro, natural de Ouro
Fino, Minas Gerais e tinha apenas 16 anos de idade!

Tal como Rui Barbosa, nós também nos sentimos incomodados


com esta mancha que pesa sobre nossa História; mas ao invés de tentar
esquecê-la e apagá-la, não seria mais positivo relembrá-la e reavivá-la para
servir de contraponto e nos ajudar a construir uma sociedade mais justa,
fraterna e civilizada, como todos nós desejamos?

(i) Fogo 51 Joaq.m Duarte do Rego Cap.m Aux de idade 46 / Izabel Novais de Mag.es m de idade 45
/ F.os / Joaq.m de idade 20 / J.e de idade 20 / Anna de idade 18 / M.a de idade 12 / Izabel de idade 11 / Antonia
de idade 7 / Escr: 11 // Vive de seu Negocio de escravos, q’ traz do Rio de Janeiro e acçucar, q’compra e vende na
prassa de S.tos, e no Rio / Planta mantim.to p.a seu gasto.

(Mapa dos habitantes da vila de Itu – 1798, Bairro de Indayatuba, Comp.a do Capitam Joze de
Goiz da Ribeira e Morais; Maços de população – DAESP)

(ii) Cartório de Notas de Itu, livro 3, fls 14V, ano de 1791.

(iii) Lista retirada da relação dos escravos do capitão Felipe de Campos Almeida, senhor de
engenho no bairro de Pirai de baixo - “1801 / Mappa Geral dos Habitantes da Villa de Itú e seo destrito em o
presente anno. Seos nomes empregos Naturalidades, Idades, Estados, Cores, e Ocupaçoens”, Maços de
população DAESP / Inventário do tenente Pedro Gonçalves Meira; Cartório de Órfãos de Itu, ano de 1814.

(iv) Banto.[Do Cafre ba-ntu, ‘homens’ ‘pessoas’ ] S. m. 1. Indivíduo dos bantos, raça negra sul
africana à qual pertenciam, entre outros, os negros escravos chamados no Brasil angolas, cabindas, benguelas,
congos, moçambiques. (Aurélio)

(v) Abrangia áreas das, hoje, fazendas do Quilombo, Itaoca, Sertão, Santa Maria, Itaguassu e
outras.

(vi) Uma das primeiras escrituras lavradas no primeiro livro de notas do cartório da freguesia de
Indaiatuba , em 1833, referia-se a troca de uma escrava por uma casa.

(vii) Auto de deposito em que são: José Estanislao do Amaral Camargo Supplicante / Romão
Teixeira Leomil Supplicado; Cartório do Primeiro Ofício da Comarca de Itu / Arquivo do Museu Republicano
Convenção de Itu / USP, maço 76, ano 1860.

(viii) José Estanislau do Amaral, grande fazendeiro em Indaiatuba, proprietário entre outras, das
fazendas Sertão, Santa Maria, Cachoeira e Quilombo. Era dotado de uma disposição extraordinária para o
trabalho e desde os 16 anos, quando pediu a seu pai para ser emancipado, geria seus próprios negócios,
chegando a ser uma das pessoas mais ricas da província de São Paulo ao final do século XIX.

(ix) Ordenações Filipinas, vols. 1 a 5; Edição de Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro,
1870, vol. 4, p. 798 - Título XVII do livro 4.

(x) Summario Crime ex-officio, pela morte de Vicente do Amaral Campos, em que são A Justiça
Autora / Manoel, escravo de José Estanislau do Amaral Réo; Cartório do Primeiro Ofício de Itu / MRCI/USP,
maço 68, ano de 1856.

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