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os equívocos de sérgio
jorge costa, luís fazenda, cecÍlia honório, francisco louçã e fernando rosas
VÍRUS setembro/outubro 2010 [4] ensaio geral
Os equívocos de Sérgio
jorge costa, luís fazenda, cecília honório, francisco louçã e fernando rosas | dirigentes do bloco de esquerda e autores de “os donos de
portugal“. a revista vírus Pré-publica um dos capítulos deste livro com lançamento previsto para breve.
1. Introdução o lugar perdido na revolução industrial após a expan- mínio quase absoluto do Transporte após as navegações
António Sérgio (1883-1969) trouxe à história de Por- são marítima. A “interpretação da história” definia duas e o estabelecimento das feitorias e colónias.
tugal o contributo precioso de uma “interpretação so- grandes linhas, “as duas políticas nacionais”, moldando Esse domínio do Transporte, só entrecortado por
ciológica”, como se lhe chamou. Sem a pretensão de a economia e o poder, a política do Transporte e a po- breves períodos, normalmente associados a desastres do
historiador, a leitura histórica das épocas carreou o ri- lítica da Fixação, vias adversas e opostas. Por política império e do Estado português. Desastres do império
gor de análise para um discurso de legitimação política. do Transporte entendia todo o quadro de navegação, comummente ligados à perda do comércio do Oriente,
Essa “interpretação sociológica” foi feita à contramão colonialismo, comércio. Na política da Fixação destacou das “Índias”, à perda da colónia brasileira, e desastres
da historiografia narrativa e/ou épica, ou da historio- o fomento da produção agrícola e industrial, a forma- do Estado nos conturbados séculos XVIII e XIX, com
grafia justificativa do império colonial. A influência es- ção do trabalho, o avanço do mercado na metrópole do as invasões napoleónicas e o protectorado britânico so-
truturante que desempenhou nos meios intelectuais da império. bre o rectângulo europeu e as guerras civis que se lhes
oposição ao Estado Novo é altamente significativa. Não Segundo ele, já a oposição destas duas políticas se seguiram.
menos importante foi o encorajamento que proveu a um manifestou no conflito entre os infantes de Avis, D. Na “Breve Interpretação da História de Portugal”, o
impulso académico dos vários olhares sobre o país, fora Henrique e D. Pedro. Para D. Pedro havia a prevenção autor estrutura a sua leitura das épocas em três partes:
da alçada salazarista. do perigo da “onda atlântica”: «Sacrificar a política da a incorporação e a organização da metrópole, expansão
A formação historiográfica das fileiras antifascis- produção às puras empresas de comércio – era trocar marítima e colonial, e tentativas de remodelação metro-
tas muito ficou a dever a obras como os “Ensaios” ou a (pensava ele) uma boa capa por um mau capelo». Diz politana, que correspondem grosso modo aos períodos
“Breve Interpretação da História de Portugal” ou, ainda, Sérgio: «Poderemos chamar às duas escolas, portanto, da pré-nacionalidade até Aljubarrota, dos descobrimen-
às “Considerações Histórico-Pedagógicas”. Se se des- a política da Fixação e a política do Transporte; a po- tos à revolução liberal, da Constituição ao Estado Novo.
taca este facto, tal acontece por menor relevo que lhe lítica da produção e a política de circulação; a política Na primeira parte, a Fixação foi o sentido, na segunda o
tem sido concedido. Isto apesar das críticas do menor da estabilidade e a política do aventureirismo; a política Transporte, e na terceira a hesitação da encruzilhada e
“rigorismo” histórico que Orlando Ribeiro lhe dirigia nuclear e a política periférica; a política de D. Pedro e a do conflito entre as duas vias.
(Ribeiro, 1977: 119-81), sem invalidar contudo as teses política de D. Henrique; a política da boa capa e do mau Ao vaticinar como desígnio nacional a política da
do ensaísta. capelo» (Sérgio, 1925: 70). Fixação, chegamos ao coração do objectivo de fomento
Sérgio formulou uma teoria explicativa para o de- Remontando, com grande minúcia, à edificação po- produtivo. O Fomento, transposto a categoria, tornou-
senvolvimento do país, seus fracassos e atraso. O termo lítica da nacionalidade as intermitências do predomínio se numa ideologia. No simples e geral sentido que expli-
comparativo eram as potências europeias, o tema axial de uma e outra orientação, Sérgio situa claramente o do- cava os atrasos de Portugal e previa uma solução com-
Fora prematuro, sem dúvida alguma, o socialismo de Antero de Quental, pois que, antes de revolucionar
de uma maneira profunda o regime social da produção, é necessário possuir-se algum que produza
com um mínimo de eficácia, e era isso o que faltava entre nós. antónio sérgio
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projecto global acerca da economia (…) Nas conclusões um remake tardio de Proudhon. Transporta esse espí- Afinal, a burguesia “adequada”, de natureza indus-
do relatório que precede o articulado da lei reitera a sua rito crítico para a revista Seara Nova, que fundou com trial, só se alavancou na República e, verdadeiramente,
crítica à política económica do fontismo, a identifica- Raul Proença e muitas outras figuras da nova intelec- apenas no fascismo. E no pós segunda Guerra Mundial
ção exclusiva entre desenvolvimento e viação” (Pereira, tualidade dos anos 20. triunfou, aproveitando o proteccionismo aduaneiro e a
2001: 148). E cita Oliveira Martins: “Despertou-nos Curiosamente, na Seara Nova, no seu primeiro nú- compressão dos salários, garantismo da Ditadura. Não é
do sono histórico o silvo da locomotiva e estonteados mero (Outubro de 1921), escrevia-se, pela pena de Pro- por acaso que Salazar e Caetano adoptam os conhecidos
por ele supusemos que o progresso estava em construir ença, que: “Todas as suas simpatias vão, pois, para os Planos de Fomento.
estradas e caminhos de ferros, esquecemos tudo o res- que lutam dentro da ordem, dos métodos democráticos Como já depois do 28 de Maio reconheceria António
to. Não pensávamos que as facilidades de viação, se fa- e desse espírito de realidades sem o qual são inteiramen- Sérgio:
voreciam a corrente de saída dos produtos indígenas, te ilusórias quaisquer reformas sociais, pelo triunfo do “Em 1910 (5 de Outubro) abolia-se enfim a reale-
favoreciam igualmente a corrente de entrada dos foras- socialismo” (cit. in Santos, 1979: 23). za. Fez-se então uma verdadeira República? Não se fez.
teiros, determinando internacionalmente condições de Mas muito mais do que divulgar o seu “arremedo Fora prematuro, sem dúvida alguma, o socialismo de
concorrência para que não estávamos preparados e para de socialismo”, o ensaísta tinha a ambição de sugerir a Antero de Quental, pois que, antes de revolucionar de
que não soubemos preparar-nos” (ibid.). Esclarecidos, a burguesia adequada para o Fomento. E essa seria aquela uma maneira profunda o regime social da produção, é
ferrovia não era só por si Fomento. que impusesse ao Estado a política de Fixação, a pro- necessário possuir-se algum que produza com um míni-
Sérgio, martiniano, foi em demanda do agente polí- dução, para além do comércio ultramarino, visto como mo de eficácia, e era isso o que faltava entre nós; a propa-
tico. Sérgio não só bebeu a inspiração de Martins sobre complementar. ganda, porém, surgira abstracta e atrasada, não somente
o vírus nacional do anti-produtivismo como lhe tomou “Desgraçadamente”, na óptica do seareiro Sérgio, em relação a Antero, mas em relação a um Herculano
o programa, exposto em 1885: «As linhas gerais desse a perda do Brasil como colónia não tinha sido suficien- e um Garrett. Não passava de formalismo político (de
programa (…) era a colonização do sul do reino, despo- te para dinamizar a produção interna do país. Entre a simples negação, por assim dizer, da monarquia e do
voado e inculto, derivando para aí a emigração agrícola perda do Brasil e a legislação africana de Sá da Ban- clericalismo) sem conteúdo concreto reformador na eco-
minhota e açoriana; e protecção pautal à indústria fabril, deira, mediaram apenas catorze anos. Sá da Bandeira nomia e na educação. (…) reformas que favorecessem,
desenvolvendo a produção interna para nos libertar das legislou o fim da escravatura em África e lançou as enfim, a passagem do oligarquismo e comunitarismo do
importações; a instrução técnica ou profissional e o re- bases da colonização e administração das possessões Estado a um regime progressivo de que beneficiasse o
gulamento do trabalho nas suas relações com o capital; o africanas. A juntar a isso, as remessas dos emigrantes, povo.” (Sérgio, 1929: 144-5)
fomento das instituições cooperativas de crédito, de se- a dívida externa do fontismo, e o comércio colonial,
guros de produção e consumo; a protecção às pescarias prolongaram a agonia do modelo em que a classe do- Essa visão precisava de uma “boa” burguesia. Para
nacionais, explorando convenientemente a riqueza das minante, fundada na finança e no negócio ultramarino, desconsolo da tese, saiu a burguesia “errada”.
costas e preparando também o viveiro de mareantes; a ditava a sua lei. O colonialismo africano era incipien-
restauração da marinha mercante nacional, e finalmente te, como seria, mas mesmo assim a burguesia vivia do 3. A sopa do Sidónio
a ordenação do sistema colonial» (Martins, 1881: 12). capitalismo agrícola e da dívida, na idolatria do livre- É sempre muito falível projectar cenários não acon-
António Sérgio foi muito além de vagas incursões câmbio. Essa era a burguesia execrada. E a adequada? tecidos. Sérgio, apesar da sua aproximação ao sidonismo,
pelo socialismo cooperativo baseado no crédito popular, Qual seria? foi um homem da República. Ministro da Instrução na
aos trabalhadores da indústria, redundando numa compressão brutal dos salários – o sector
industrialista do regime só triunfou após 1945. Só no final dos anos 50 o país teve o seu
Ou de súbita aportação a Angola, sem retorno de capitais lusos, residentes em paraísos fiscais.