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Milo Manara: Uma aventura no mundo do erotismo

Fabio Luiz Carneiro Mourilhe Silva


(UFRJ / UFF / Rio Comicon)

Introdução

Muito se sabe de Milo Manara, porém pouco se conhece do artista Maurilio Manara antes
de seu sucesso mundial avassalador. Aqui, em retrospecto, busca-se apresentar um
panorama dessa fase que começa na Itália e de etapas posteriores quando sua carreira se
expande para a França e para o resto do mundo, como mostram as indicações de Giulio
Cesare Cuccolini (1999, p.507-508). Ao final, teceremos breves considerações sobre os
diálogos de seu trabalho com as obras de outros pintores, com o erotismo e com a estética.

Manara em retrospecto

O ilustrador e cartunista italiano Manara nasceu em 12 de Setembro de 1945 em Luson,


Bolzano. Estudou arquitetura e frequentou a Academia de Artes de Veneza, o que
provavelmente influenciou na formação de seu traço predominantemente realista. A partir
de 1962, realizou trabalhos para quadrinhos de edições de bolso, eróticos e criminais,
incluindo “Genius” – publicada como álbum em 1968 – e “Jolanda de Almaviva”, com
texto de Francesco Rubino – publicada como álbum em 1972 –, muito populares na Itália; e
também para as séries “Terror” e “Cosmine”.

Revistas Genius, Yolanda de Almaviva e Cosmine.


Páginas de Manara para a revista Genius.

Entre 1973 e 1975, para os textos de Pisu, desenhou 15 números da revista mensal
“Telerompo”, “Strategia della tensione” e “Alessio, il borghese rivoluzionario”. A partir de
1974, passou a produzir aventuras para a série “Il fumetto della realta” para o “Corriere dei
ragazzi”. Em 1975, começou a desenhar para a mesma revista a série “La parola alla
giuria”, escrita por Mino Milani. Nesta série, figuras históricas famosas como Nero,
Oppenheimer e Helena de Tróia eram levados ao júri e os leitores julgavam se eles eram ou
não culpados. Nesta fase, segundo Cuccolini (1999, p.508) o traço de Manara muda
completamente. Em 1976, desenhou para o Corrier Boy três episódios de um novo
personagem chamado “Chris Lean”, a partir de argumento de D’Argenzio.
Página de Manara para a revista Telerompo.

Começou a contribuir para a revista mensal Alter Linus com a hq “O Macaco” (“Lo
Scimiotto”), entre 1976 e 1977, com argumento de Silverio Pisu. Trata-se de uma
adaptação de uma novela chinesa do século XV que conta as aventuras de um macaco –
Sun Wukong, o deus-macaco da mitologia chinesa – que imita o homem em busca de
sabedoria e de liberdade em relação a qualquer tipo de submissão. A interpretação política
do autor transformou o macaco em um símbolo do presidente Chinês Mao Tse-Tung.

Capas do álbum “The ape” (“Lo Scimmiotto”).


Nessa época, Manara também contribuiu em coleções da editora francesa Larousse,
ilustrando a série “descoberta do mundo” com cinco episódios da “História da França em
BD” (1978), incluindo “James Cook” e “Sons le sceptre carolingien”; “História do
Mundo”; e alguns episódios da “História da China” (1979). Outros trabalhos de 1978
incluem ilustrações para alguns episódios da “História da Itália em quadrinhos” (“Storia
d’Italia a fumetti”) de Enzo Biagi. Segundo Manara (1999, p.10), trata-se de trabalhos com
rigor histórico e iconográfico, mostrando que os quadrinhos se prestam de fato ao ensino.
Esses quadrinhos foram coproduzidos com o Canal 3 de TV francesa e Ministério de
Cultura Francesa. A Larouse preparou uma documentação extensa e detalhada, o que
facilitou o trabalho dos artistas.

Página de “James Cook”.

Realiza também desenhos para a série “Um homem / uma aventura”, com a hq “O homem
da neve” (“L’uomo delle nevi”) que se passa no Tibet, escrito por Alfredo Castelli; e a série
em preto e branco “HP e Giuseppe Bergman” na revista francesa A Suivre. O “HP” do
título do álbum se refere ao amigo de Manara Hugo Pratt. As aventuras de Giuseppe
Bergman foram desenvolvidas em narrativas e álbuns posteriores. Para a realização dessa
obra, Manara realizou viagens pela Ásia nas quais tirou muitas fotos e realizou muitos
sketches (Manara, 2001, p.57) que lhe serviram de referência. O semblante de Giuseppe,
segundo Jones (2003, p.275), é um reflexo do próprio autor. Conforme a introdução do
álbum, trata-se aqui de uma aventura, uma aventura que nos salva da civilização capitalista,
“a aventura como cultura, como ética, como modo de vida... A aventura é
autodeterminação” (Manara, 1999, p.5). Nessa época, conforme entrevista fornecida por
Manara (1999, p.5), temos a definição de um estilo próprio a partir da influência do
trabalho de Moebius, que teria servido como catalisador deste estilo, e dos conselhos de
Hugo Pratt. Para Manara (ibid), Moebius representa um elo entre as HQ e a tradição
clássica.
Capa de “L’uomo delle nevi” e página de “HP y Giuseppe Bergman”.

Manara em exposição mundial

Em 1981, Manara desenhou e escreveu um western para a revista Pilot entitulado “L’uomo
di carta” e em 1983 publicou “O Click” (“Il Gioco”) na revista Italiana Playmen. A partir
dessa hq, Manara se torna um autor conhecido mundialmente com diversos álbuns
cotejando o gênero erótico, como “O perfume do invisível” (“Il profumo dell’invisible”)
com suas respectivas continuações. A opção por assumir o texto das hq teria sido, segundo
Manara (1999, p.10), sugestão de Hugo Pratt.

Capas de “Le déclic” e “Le parfum de l’invisible”.


Com Hugo Pratt, lançou duas longas obras em quadrinhos. A primeira, “Verão Índio”
(“Tutto ricomincio com um estate indiana”), foi editada originalmente entre 1983 e 1985 na
revista Corto Maltese. A hq é ambientada na Nova Inglaterra do século XVII com
descrições e uma atitude crítica em relação ao período colonial Americano. A segunda, “O
gaúcho” (“Il gaucho”), foi publicada inicialmente na revista Italiana Il Grifo a partir de
1991 e posteriormente na revista francesa A Suivre. É uma aventura ambientada na
Argentina do século XIX. Segundo Manara, Pratt escreveu o texto e os diálogos, mas deu
total liberdade a ele para a criação das imagens (Manara, 1999, p.6).

Capas de “Indian Summer” e “El Gaucho”.

Na revista Il Grifo, Manara publicou ainda com texto de Fellini “Il viaggio di G. Mastorna
detto Fernet” e o álbum “L’Apparenza inganna” (1988). Realizou várias capas da Il Grifo
desde seu número inicial.

Capas de “L’apparenza inganna” e da revista Grifo.


Em 1988, também publicou a coletânea de pequenas hq “Curta Metragem” (“Courts
metrages” / “Storie brevi”), com a indicação de que as cartas dos leitores podem se
transformar em hq – nos “Diários de Sandra F.”; e, em 1991, “Breakthrough”, parceria com
Neil Gaiman, “Il sogno di Oengus” com Giordano Berti, e “Cristóvão Colombo”
(“Cristoforo Colombo”), baseado em texto de Biagi.

Capa de “Courts métrages” e página de “Cristoforo Colombo”.

Outros álbuns lançados na década de 1990 foram “Gulliveriana” (1995), “Fatal


Rendezvous” (1996), “Kamasutra” (1997), “Ballata in si bemolle” (1997), “L’asino d’oro”
(1999) e “Bolero” (1999). Esse último traz tiras que formam um longo códice para tratar a
evolução da humanidade com toda sua “prepotência, crueldade e ferocidade” (Manara,
1999b, p.5).

Página de “Gulliveriana” e Capa de “Bolero”.

Na década de 2000, foram lançados outros álbuns de sua autoria, como “Tre ragazze nella
rete” (2000), “Rivoluzione” (2000), “Fuga da Piranesi” (2002), “The Sandman: Endless
Nights” (2004), com texto de Neil Gaiman, a série bienal (2004, 2006 e 2008) “Borgia” em
pareceria com Alejandro Jodorowsky e “Quarantasei” (2006) com Valentino Rossi.

Capas de “Borgia” e “Cuarenta y Seis”.

Além de seus álbuns, existem diversas edições no mercado de portfólios com seus trabalhos
acompanhando textos ou grandes pranchas ilustradas em torno de um tema, como
“Erotique” (1984); “Nubinlove”(1985); “Un’ Estate indiana” (1987); “De Zonnevogel”
(1990), com texto de Wilbur Smith; “A arte do espancamento” (“L’arte della sculacciata” /
“L’art de la fessee”) (1991), com texto de Jean-Pierre Enard; “Seduzioni” (1993); “La feu
aux entrailles” (1993), com texto de Pedro Almodóvar; “Vênus e Salomé” (1994); “Porte
de Clichy” (2000), com texto de Henry Miller; “Sensualitars” (2001); “Casanova” (2000);
“Le donne di Manara” (2001); Memory (2001); Pin-up art (2002); Il pittore e la modella
(2002), reedição de “Seduzioni”; “Aphrodite”, Book 1 (2003), escrito por Pierre Louÿs;
“Donne e motori” (2003); “Creature di sogno” (2003), com sketches de Fellini e desenhos
de Manara; e “Mozart” (2006).

Capas de “Seduzioni” e “L’arte della sculacciata”.


Após este panorama geral, tratarei de alguns tópicos relevantes, como sua relação com
Fellini em “Viagem a Tulum”, seu posicionamento em relação ao erotismo, sua visão do
erotismo na pintura e sua interpretação para as super-heroínas americanas.

Viagem a Tulum

Como artes gêmeas, por sua origem coeva no final do século XIX e fixação em uma
imagem que pode assumir um caráter estático ou dinâmico, cinema e quadrinhos cresceram
paralelamente. Em “Viagem à Tulum”, elas se encontram.

Para Cirne (2000, p. 156), o trabalho teria sido o último grande filme de Fellini na forma de
uma novela gráfica quadrinizada. Nasceu de um projeto cinematográfico de Fellini que não
se realizou como filme, mas, inicialmente, como folhetim publicado no Corriere della Sera.

A história é uma tentativa de mostrar as aventuras vividas por Fellini em uma viagem
realizada ao México para encontrar Carlos Castañeda. Temos, aqui, um delírio felliniano,
que escapa ao realismo tradicional, em um Manara atravessado por Fellini.

Na relação com Manara durante o processo de trabalho, Fellini interferiu nas decisões sobre
os visuais dos personagens. Exigiu, por exemplo, que sua representação pessoal na hq fosse
substituída pela figura de Marcelo Mastroiani, conforme ocorre normalmente no cinema
(Mollica, 1992, contracapa).

Página de “Viagem a Tulum”.

Sensualitars
Diferente de a “Viagem a Tulum”, por não seguir um roteiro, sem uma narrativa
quadrinística e com pranchas isoladas com universos diegéticos próprios, no livro
“Sensualitars”, temos, conforme o neologismo sugerido no título, pranchas com
referências a manifestações artísticas onde se faz presente a marca da sensualidade e a
figura da mulher. Aqui, são apresentadas visões alternativas aos quadros originais a que se
faz referência, revelando novos aspectos antes escondidos ou simplesmente indicando
releituras em novos ângulos com o estilo peculiar do traço de Manara. Em diversas
pranchas, temos também a inclusão do autor na tela como cúmplice de seu trabalho.

Prancha de Manara “Theodora of Bizantium” e mosaico com a representação de Theodora na Basilica di San
Vitale em Ravenna, século VI.

Prancha de Manara “Sandro Bottilcelli's wedding gift” e quadro de Botticelli de 1483 “The Story of Nastagio
degli Onesti”.
Prancha de Manara “Giorgioni's Venus” e quadro de Giorgione “Sleeping Vênus” de 1510.

Prancha de Manara “Raphael and La Fornarina” e quadro de Raphael “Fornarina” de 1519.

Prancha de Manara “Anna Bianchini” e quadro de Caravaggio “Anna Bianchini” de 1596.


Prancha de Manara “Who was the Maja Desnuda” e quadro de Goya “Maja desnuda” de 1800.

Prancha de Manara “A shower of gold” e quadro de Klimt “Danae” de 1907-8.

Na prancha “The Male and Female Artist”, temos certas inversões de papéis em relação ao
quadro original a que se faz referência, “Las Meninas” de Velázquez. O pintor aqui é
retirado de cena, ficando apenas visíveis sua mão, palheta, sombra e reflexo no espelho. A
mulher desnuda talvez seja uma das meninas que cresceu e adquiriu habilidades artísticas.

Prancha “The Male and Female Artist” de Manara e quadro de Velazquez “Las meninas” de 1656.
Em “The Origin of the World”, mais uma vez o pintor, no caso Courbet, é incluído na
prancha, mudando o ponto de vista em relação ao quadro original, “L’Origine du monde”,
mostrando não mais o que o pintor vê e sim o ato de ver em si. Mantém o erotismo, porém
sem o foco na genitália.

Prancha “The Origin of the World” de Manara e quadro de Courbet “Origin of the World” de 1866.

Duas pranchas que se referem a Picasso, “The amusement of artistic genius” e “The bull
and the model”, mostram uma referência direta não a outros quadros do pintor, mas sim a
seu estilo, tendo a ousadia como enfoque principal.

Pranchas de Manara “The amusement of artistic genius” e “The bull and the model”.

Antes, em “Le avventure metropolitane di Giuseppe Bergman” (1998), também temos a


introdução de referências explícitas a obras de arte, porém em diálogo com a narrativa, a
começar com a capa inspirada em “Nascita di Venere” de Botticelli.
Capa de “The urban adventures of Giuseppe Bergman” de Manara e quadro de Botticelli “Nascimento de
Vênus” (1482).

Manara e as X-Woman

Não mais como um reflexo de obras de arte e artistas, mas como, talvez, uma paródia dos
super-heróis americanos, temos um dos mais recentes trabalhos de Manara. Com texto de
Chris Claremont para a Marvel Comics, foi lançado “X-men: Ragazze in fuga”, em abril de
2009 na Itália e em Julho de 2010 nos Estados Unidos como “X-Woman”. Uma
aproximação improvável que foi agora materializada.

Diferente do trabalho junto a outros escritores europeus, como Fellini e Hugo Pratt, os
trabalhos direcionados para o trabalho americano indicam uma relação onde não se
estabelece uma forte amizade – a princípio – e nem se conhece pessoalmente, como no caso
de Neil Gaiman e Chris Claremont. Manara ficou grato pelo roteiro de Claremont com
ênfase quase exclusiva em personagens femininas e sem destaque para os superpoderes,
indicando uma possibilidade de adentrar o universo dos super-heróis sem ter de abandonar
o seu próprio universo.
Capa de “X-men: Ragazze in fuga”.

Pornografia x Erotismo

Manara indica uma distinção entre erotismo e pornografia que não está pautada na
qualidade da representação. Para Manara (2001, p.25), o que estabelece a distinção entre
pornografia e erotismo seria o humor e o distanciamento da culpa. Assim, é possível expor
todo tipo de prática sexual.

A indústria da pornografia existe para suprir uma demanda. Frisa a vergonha do ato para
um consumidor que só pode se sentir culpado. Para ele, não se deve ter vergonha. Com um
nível de ironia é possível recontar tudo. As fantasias devem ser descobertas e assumidas.

“A linha divisória entre erotismo e pornografia é subjetiva. Não se trata apenas de uma
questão de qualidade. Se o trabalho nos agrada e atinge nossas expectativas ao expressar
nossas fantasias, refere-se ao erótico. Eu concordo com a assertiva de Woody Allen de que
a pornografia é o erotismo dos outros” (Manara, 2001, p.25).

Conclusão

Belezas caprichosas e impudicas, belezas apolíneas que se prestam ao erótico. Pode-se


supor uma amoralidade, porém essa é articulada através de um grafismo e uma narrativa
marcados por uma limpeza sígnica, caracterizando o avesso do que seria o ideal de um
amor platônico (Silva, 2010).

Se houver de fato uma distinção entre erotismo e pornografia, existe na obra de Manara a
possibilidade de articulação como uma mimesis que se desenvolve em prol de valores
morais positivos, posicionamento antes aceito por Sócrates na República, antes de rejeitá-la
por completo (Silva, 2010).
Contudo, em Manara, talvez seja desnecessário se ater a preocupações morais no ato de
relacionamento com a obra em si, sob o risco de perder sua essência, a sensação por ela
suscitada que nos atinge e se reflete como desejo, em meio a um devaneio não
necessariamente racional. Temos, em Manara, acima de tudo, uma valorização do corpo em
sua plenitude, beleza e pureza; e uma ênfase no ato sexual em si.

Bibliografia

Cirne, Moacy. Quadrinhos Sedução e paixão. Petrópolis: Editora vozes, 2000.

Cuccolini, Giulio Cesare. “Manara, Milo”, In: The world encyclopedia of comics. Ed.:
Maurice Horn. Broomall: Chelsea House Publishers, 1999.

Jones, Matthew. Reflexivity in Comic Art. In: International Journal of Comic Art. Vol. 7,
No. 1, Spring 2005, p.270-286.

Manara, Milo. Le Dossier Manara. Entrevistado por Olivier Maltret e Frédéric Bosser.
França: DBD, 1999.

___________. Bolero. Roma: Edizioni Di, 1999b.

___________. Memory. Brussels: Paquet, 2001.

___________. Intervista a Milo Manara: a cura di Luca Scatasta. In: X-men: Ragazze in
fuga. Modena: Marvel Comics / Panini, 2009.

Mollica, Vincenzo. Introdução. In: Viagem a Tulum. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1992.

Silva, Fabio Mourilhe. Por una teoría estética en las historietas. In: Congreso Internacional
de Historietas. Buenos Aires: Viñetas Serias, 2010.

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