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A propriedade e o direito autoral

em tempos digitais.
Uma discussão
Pedro Paranaguá
Direitos autorais são bens não-escassos
E mais:
Pablo Ortellado >>Élida Azevedo Hennington:
O conhecimento é patrimônio comum
“Ato médico: na contramão da
da humanidade
saúde coletiva”

318
Ano IX
Ângela Kretschmann
Contracultura atual: o que interessa
>> Keith Ward:
Tanto a fé quanto a razão são
07.12.2009 é a “cultura livre” necessárias
ISSN 1981-8469
Propriedade e direito autoral
em tempos digitais

A época de grandes mutações que vivemos, ca-


racterizada pela era digital, traz consigo uma mu-
dança radical no conceito de propriedade. Ainda
tem sentido falar em direito autoral, copyright e
propriedade intelectual no universo do conheci-
mento, patrimônio comum da humanidade?

As Notícias do Dia, atualizadas de segunda a se-


gunda, e publicadas na página eletrônica do Insti-
tuto Humanitas Unisinos – IHU, têm abordado este
tema. Recentemente, foi publicada uma instigante
entrevista com Sergio Amadeu, professor na Facul-
dade Cásper Líbero e consultor do Instituto Campus
Party, intitulada “O mundo mudou e com ele as for-
mas de propriedade também mudaram”.

A IHU On-Line desta semana retoma o tema com


as contribuições de Pedro Rezende, professor de Ciência da Computação da UnB, Pedro Parana-
guá, professor da FGV-Rio, Marcelo Branco, diretor do Campus Party Brasil, Pablo Ortellado, pro-
fessor da USP e Ângela Kretschmann, professora da Unisinos.

Na próxima quinta-feira, dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, será
inaugurada a Sala Ignacio Ellacuría e companheiros. A Unisinos, numa promoção do Instituto Hu-
manitas Unisinos – IHU, encerra, dessa maneira, a celebração da memória do martírio dos seis
jesuítas, professores e pesquisadores da Universidade Centro-Americana “Simeón Cañas”, e duas
mulheres, barbaramente trucidados, há 20 anos em San Salvador. O “memorial” que pode ser con-
sultado na página eletrônica do IHU, é enriquecido com a entrevista de Cecília Santiago, professo-
ra de Psicologia na Universidad de La Tierra, no México.

A polêmica aprovação do assim chamado Ato Médico, tema de capa da revista IHU On-Line,
numa das edições de 2004, é discutido em duas entrevistas que podem ser consultadas nas páginas
desta edição.

A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769.
Expediente

Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisi-
nos.br). Redação: Márcia Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br) e Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br). Revisão: Vanessa
Alves (vanessaam@unisinos.br). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Traba-
lhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling,
Greyce Vargas (greyceellen@unisinos.br) e Juliana Spitaliere. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.unisinos.
br/ihu. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Concei-
ção. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.br).
Endereço: Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-mail: ihuonline@unisinos.br. Fone: 51 3591.1122 – ramal 4128. E-mail
do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 4121.
Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 05 | Pedro Paranaguá: Direitos autorais são bens não-escassos
PÁGINA 08 | Pedro Rezende: As lutas pela liberdade ao conhecimento e pela liberdade ao capital
PÁGINA 12 | Marcelo Branco: Uma grande mudança de paradigma com a internet
PÁGINA 14 | Pablo Ortellado: O conhecimento é patrimônio comum da humanidade
PÁGINA 16 | Ângela Kretschmann: Contracultura atual: o que interessa é a “cultura livre”

B. Destaques da semana
» Livro da Semana
PÁGINA 24 | Keith Ward: Tanto a fé quanto a razão são necessárias
» Entrevistas da Semana
PÁGINA 26 | Cecília Santiago: A psicologia da Libertação segundo Ignacio Martín-Baró
PÁGINA 28 | Marçal Paredes: “Os Sertões é uma obra matricial para pensarmos a cultura brasileira”
PÁGINA 32 | Gil Lúcio Almeida: “Enquanto o Governo alimentar a indústria da doença o SUS será apenas uma grande ideia”
PÁGINA 34 | Élida Azevedo Hennington: Ato médico: na contramão da saúde coletiva
» Coluna do Cepos
PÁGINA 36 | Luís A. Albornoz: Espanha: mídia e responsabilidade social
» Destaques On-Line
PÁGINA 38 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista
» IHU Repórter
PÁGINA 41| Adevanir Aparecida Pinheiro

SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 


 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318
Direitos autorais são bens não-escassos
“O direito autoral não é uma propriedade tradicional. Direito autoral é composto
por bens não-rivais. Ou seja, ao contrário da propriedade material, tradicional, o
meu uso, usufruto ou gozo, não exclui o uso de outros”, afirma o mestre em direito
da propriedade intelectual

Por Graziela Wolfart

“D
ireito autoral não é uma propriedade tradicional. Direito autoral é composto por
bens não-rivais. Ou seja, ao contrário da propriedade material, tradicional, o
meu uso, usufruto ou gozo, não exclui o uso de outros”, afirma o professor Pedro
Paranaguá, em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line. E ele continua
explicando: “Direitos autorais deveriam ser tratados de forma diferente da pro-
priedade material tradicional. Não tem como falar em roubo de algo imaterial. Roubo de uma música.
Pode-se falar eventualmente de utilização sem autorização, mas não de roubo. Por quê? Porque roubo
ou furto implica a subtração de algo, de outra pessoa. No direito autoral, o autor ou o titular da obra
continua tendo o bem, afinal é um bem não-rival”. Afinal, segue ele, “os direitos autorais servem para
incentivar a criatividade e a disseminação de entretenimento e cultura. Não o controle. Portanto,
temos de pensar se os direitos autorais têm servido para esses fins (criação e disseminação) ou se têm
sido utilizados para manter o status quo e o modelo de negócio de poucos (porém poderosos). Parece
ser necessário um maior equilíbrio, com remuneração não apenas à indústria autoral, mas também
aos autores, bem como uma efetiva disseminação cultural e benefício para os consumidores finais”.
E dispara: “A liberdade de expressão é condição essencial para uma sociedade livre, igualitária e rica
culturalmente. No momento em que leis de direitos autorais passam a limitar tais expressões, algo
está errado”.
Pedro Paranaguá é mestre em direito da propriedade intelectual pela Universidade de Londres e
doutorando na mesma área na Universidade de Duke, Estados Unidos. É professor da Fundação Getú-
lio Vargas - FGV-Rio e autor dos livros Direitos Autorais (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009) e Patentes
e Criações Industriais (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual sua opinião sobre cas. Hoje, como todos sabem, é muito gias e com a Internet?
o compartilhamento de arquivos pela utilizada também para troca de arqui- Pedro Paranaguá - Esta questão é im-
Internet? Que comportamento social vos protegidos por direitos autorais. portantíssima. Por isso começo com
essa iniciativa evidencia? Por um lado, pode gerar dor de cabeça uma historinha para ilustrar: se temos
Pedro Paranaguá - O compartilha- para a indústria do conteúdo, afinal de um celular e duas pessoas, enquanto
mento via redes peer-to-peer (P2P) contas, ameaça o tradicional modelo uma delas utiliza o celular, a outra
é uma tecnologia incrível para a troca de negócio da indústria do entreteni- não pode usá-lo, tem de aguardar. Se
de arquivos. É muito eficiente e muito mento. Por outro lado, é um inegável temos a música Stairway to Heaven
mais rápida. Isso encurta as distâncias avanço tecnológico, além de gerar e duas pessoas (ou mil pessoas), elas
e elimina consideravelmente custos bem estar social, conforme compro- poderão escutar a música ao mesmo
na distribuição. Elimina, junto, o pa- vado empiricamente por recentes pes- tempo (ainda que em lugares ou até
pel de intermediários (distribuidores). quisas econômicas da Universidade de mesmo países diferentes). O que isso
As redes P2P nasceram no meio acadê- Maastricht, bem como em outro estu- significa? Que direito autoral não é
mico, para troca de pesquisas científi- do independente feito por encomenda uma propriedade tradicional. Direito
 Peer-to-Peer (do inglês: par-a-par), do governo holandês. autoral é composto por bens não-ri-
entre pares, é uma arquitetura de sis- vais. Ou seja, ao contrário da proprie-
temas distribuídos, caracterizada pela
descentralização das funções na rede, IHU On-Line - O que muda em rela- dade material, tradicional, o meu uso,
onde cada nodo realiza tanto funções de ção ao conceito de propriedade e de usufruto ou gozo, não exclui o uso de
servidor quanto de cliente. (Nota da IHU direito autoral com as novas tecnolo- outros. Tal como no caso do celular.
On-Line)
SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 
digital?
Além disso, direitos autorais são bens
não-escassos. Ou seja: o uso contínuo
“O mundo digital Pedro Paranaguá - Creio que haja
do bem não o diminui, não o desgasta.
Portanto, direitos autorais deveriam
mostra que uma cópia ao menos dois temas essenciais atu-
almente. Um é a negociação secreta
ser tratados de forma diferente da
propriedade material tradicional. Não
ou mil cópias podem ser de um tratado internacional (o ACTA)
entre países ricos para enrijecer (ain-
tem como falar em roubo de algo ima-
terial. Roubo de uma música. Pode-se
idênticas, muito baratas da mais) as leis de direitos autorais e,
inclusive, como alguns têm dito, cor-
falar eventualmente de utilização sem
autorização, mas não de roubo. Por
e, ainda por cima, tar a conexão de Internet, caso cópias
não autorizadas sejam feitas. A França
quê? Porque roubo ou furto implica a
subtração de algo, de outra pessoa.
não exclui o uso de tem encabeçado tal iniciativa no âmbi-
to nacional, ao passo que EUA e União
No direito autoral, o autor ou o titular
da obra continua tendo o bem, afinal
terceiros” Europeia têm exercido grande influ-
ência na esfera internacional. O outro
é um bem não-rival. Além disso, você tema é uma solução inteligente para a
nunca vai perder a propriedade do seu de Belém do Pará, é um grande exem- questão. A cobrança de um valor fixo,
celular, do seu carro ou da sua casa plo. DJs de estúdio fazem a cópia sem mensal, de usuários de Internet banda
depois de X anos. Já o direito autoral, autorização. Depois, outros DJs con- larga que queiram compartilhar arqui-
apesar das várias extensões recentes, duzem suas festas com aparelhagem vos protegidos por direitos autorais
tem prazo limitado, o que a proprie- eletrônica também sem autorização. e que concordem em pagar um valor
dade tradicional não tem. A suprema Os camelôs fazem a distribuição, tam- fixo mensal para compartilhamento ili-
corte alemã, acertadamente, entende bém sem autorização. No final, os ar- mitado e sem restrições tecnológicas
que direitos autorais não são uma pro- tistas saem beneficiados, tamanha a que limitem ou impeçam a cópia ou o
priedade tradicional, mas sim um tipo divulgação feita. Seus shows atraem uso das obras em qualquer hardware
(diferente) de propriedade. As novas milhares de pessoas. Um modelo de (iPod, Zune etc.) ou software (Windo-
tecnologias evidenciaram mais ainda negócio novo, sem se basear nos direi- ws ou Mac ou GNU/Linux etc.). Des-
esses fatores de não-rivalidade e não- tos autorais, e que gera, literalmente, de 2002,há propostas nesse sentido,
escassez. O mundo digital mostra que milhões de reais. O cinema nigeriano, incluindo de professores de Harvard
uma cópia ou mil cópias podem ser conhecido como Nollywood, gera mais ou, mais recentemente, de estudos
idênticas, muito baratas e, ainda por de um milhão de empregos e é o que independentes. As redes P2P seriam
cima, não exclui o uso de terceiros. mais produz filmes no mundo, à frente legalizadas para quem concordasse
da Índia e dos EUA. Tudo isso filmado entrar no sistema. Alguns provedores
IHU On-Line - Qual sua visão sobre a em alta definição e distribuindo filmes de Internet mundo afora já têm dispo-
pirataria e como ela se contrapõe à através de camelôs, a preços aces- nibilizado sistemas semelhantes, mas
questão da propriedade intelectual? síveis. Portanto, eu diria que é mais normalmente com travas anticópia ou
Pedro Paranaguá - Eu prefiro o termo uma questão de modelo de negócio, via modelos que não são tão atraentes
cópia não autorizada. O termo “pi- de manutenção do status quo, do con- para consumidores. A questão é: de-
rataria” tem cunho emocional e ide- trole (da distribuição, cópia e compar- vem-se gastar milhões com lobby nos
ológico muito fortes. Remete aos sa- tilhamento), do que exatamente uma Congressos? Processando os próprios
queadores (às vezes sanguinários) que questão de ilegalidade. Enquanto uns consumidores e fãs? (aliás, para onde
eram financiados pela coroa inglesa olham com bons olhos, outros não têm vai o dinheiro das indenizações? Para
para subtrair bens de nações vizinhas. gostado muito. Claro que é preciso en- os artistas?) Indo contra a corrente do
Como eu disse acima, a cópia de uma contrar uma alternativa para que to- avanço tecnológico? Ou será que faria
música, ainda que não autorizada, por dos sejam devidamente remunerados mais sentido utilizarmos a tecnologia
exemplo, não constitui subtração, por- e para que o público consumidor seja para aumentar os lucros, beneficiar
tanto, não é roubo ou furto, no senti- beneficiado (com preços acessíveis). os consumidores e engrandecer o am-
do estrito da palavra. Não estou, em biente cultural?
hipótese alguma, incentivando a cópia IHU On-Line - Quais os principais te-
ilegal. Mas é preciso diferenciar a re- mas de debate hoje quando o assun- IHU On-Line - Considerando a articu-
tórica propagandista dos fatos reais. to é troca de informações via rede lação direta entre os cidadãos pelas
Não creio que a cópia não autoriza- (que ocorre nos meses de junho, julho e agos- redes virtuais, como fica a situação
da se contraponha, necessariamente, to) de 2002. Tem como característica festas de instituições como imprensa, par-
das aparelhagens com DJ’s, produtores casei-
aos direitos autorais. Temos exemplos ros e vendas alternativas de CD’s através de tidos políticos e indústria fonográfi-
crescentes de indústrias milionárias camelôs, para uma difusão mais rápida das ca, por exemplo?
que se baseiam na cópia (não autori- músicas e de acordo com o artista. Mistura Pedro Paranaguá - A maioria dos paí-
ritmos como carimbó, siriá, lundu e outros
zada). A cena musical do tecnobrega, gêneros populares como o calipso ribeirinho ses, pelo menos democráticos, garante
 O Tecnobrega é um gênero musical popular além de guitarradas, sintetizadores e batidas a liberdade de expressão de seus cida-
do estado do Pará, surgido no verão paraense eletrônicas. (Nota da IHU On-Line)

 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


“O Twitter tem uma força de multiplicação
instantânea incrível - tanto é que até mesmo as
grandes corporações passaram a utilizá-lo”

Acesse as Notícias do Dia.


dãos. E a Internet veio potencializar tário de Burma, que mata não apenas
isso tudo. Cidadãos passam a ser jor- cidadãos, mas monges budistas. Tudo
nalistas, “blogueiros”, seja em websi- é filmado por cidadãos-jornalistas
tes próprios, seja contribuindo direta- e enviado para a Suécia, que depois
mente com a grande mídia, enviando edita e repassa para a BBC e o mun-
relatos, fotos etc., como faz a BBC, O do inteiro. O Twitter tem uma força
Globo, Estadão e praticamente todos de multiplicação instantânea incrível
os principais veículos. Quanto à indús- - tanto é que até mesmo as grandes
tria fonográfica, é interessante porque corporações passaram a utilizá-lo.

www.ihu.unisinos.br
os próprios consumidores ou fãs podem
passar a ser o canal de distribuição e IHU On-Line - Qual a importância de
de marketing da indústria através de garantir a livre disseminação da cul-
redes P2P. Tudo isso sem custo algum tura numa sociedade que se baseia
para a indústria. Por que a indústria cada vez mais em informação? Quais
não aproveita essa grande oportuni- os desafios para se alcançar essa pos-
dade? Por que ela não cria um site ba- tura?
cana, sem “spoofing” (arquivos que a Pedro Paranaguá - A liberdade de ex-
indústria envia para as redes P2P com pressão é condição essencial para uma
arquivos falsos, vírus etc.), sem DRM sociedade livre, igualitária e rica cul-
(travas anticópia), com visual atraen- turalmente. No momento em que leis
te, com sistema de busca inteligente, de direitos autorais passam a limitar
ou faz uma parceria com provedores tais expressões, algo está errado. Não
de Internet banda larga e oferece com- sou eu apenas que falo isso. Em pro-
partilhamento (download e upload) ili- gramas de Direito das melhores uni-
mitado a preço acessível? Há diversos versidades do mundo o tema liberdade
estudos mostrando que o valor cobrado de expressão e direitos autorais ocupa
poderia ser baixo, atraente, como US$ papel importantíssimo. Afinal, os direi-
5 nos EUA. No Brasil, poderia (deveria) tos autorais servem para incentivar a
ser mais atraente, compatível com a criatividade e a disseminação de entre-
renda local. Por que não? tenimento e cultura. Não o controle.
Portanto, temos de pensar se os direi-
IHU On-Line - As redes sociais virtu- tos autorais têm servido para esses fins
ais podem ser um espaço de mobili- (criação e disseminação) ou se têm sido
zação social coletiva, capaz de pro- utilizados para manter o status quo e o
vocar mudanças reais significativas? modelo de negócio de poucos (porém
Pedro Paranaguá - Sem dúvida. Veja o poderosos). Parece ser necessário um
caso das recentes eleições no Irã. Por maior equilíbrio, com remuneração
mais que, infelizmente, não tenham não apenas à indústria autoral, mas
conseguido garantir o direito dos cida- também aos autores, bem como uma
dãos, ao menos o mundo inteiro ficou efetiva disseminação cultural e benefí-
sabendo as atrocidades que lá ocorre- cio para os consumidores finais.
ram logo após as eleições. Tudo através
de Facebook, Twitter, blogs etc. (des-
viando do bloqueio feito pelo governo Leia mais...

iraniano). O mundo inteiro assistiu a >> Pedro Paranaguá já concedeu outra


tudo. O mesmo com o governo totali- entrevista à IHU On-Line:

 Sobre as redes sociais virtuais leia a revista * Direito à propriedade intelectual, publicada
IHU On-Line número 290, de 20-04-2009, inti- nas Notícias do Dia do sítio do IHU em 09-05-2007
tulada Twitter, Facebook, MySpace e Orkut. As e disponível no link http://www.ihu.unisinos.br/
redes sociais na web e disponível em http:// index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task
www.ihuonline.unisinos.br//index.php?id_ =detalhe&id=7004
edicao=318 (Nota da IHU On-Line)

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As lutas pela liberdade ao conhecimento
e pela liberdade ao capital
Para o bem ou para o mal, esta sociedade está marcada pelos valores de uma mo-
ral utilitarista, de uma ideologia consumista e de uma ética hedonista. Em suma,
pelo signo da gratificação instantânea, acredita o professor de Ciência da Computa-
ção na UnB, Pedro Rezende

Por Graziela Wolfart

“A
crescente radicalização normativa do conceito de propriedade, mormente nos
regimes jurídicos das patentes e do direito autoral, segue a lógica desse anseio
utilitarista pela tutela dos bens simbólicos, que para mim é a característica prin-
cipal da sociedade da informação. Muito mais do que o volume ou o fluxo de in-
formações disponíveis: se essa informação em si fosse riqueza, material ou moral,
viciados em internet seriam bilionários”. A opinião é do professor Pedro Rezende, na entrevista que
segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line. Ao refletir sobre os impactos da Internet e das
tecnologias digitais em nossa sociedade, o professor da UnB entende que “num momento de reacomo-
dação das fronteiras de eficácia e de eficiência entre competição e cooperação (...) as oportunidades
se multiplicam e podem frutificar com abundância, como mostra a evolução do software livre. Mas
talvez só frutifiquem positivamente, no plano individual, enquanto não for crime produzir colabora-
tivamente, com autonomia de interesses e por iniciativa própria. Pois o tal livre mercado, a pretexto
de preservar essa possibilidade, parece determinado a empurrá-la à criminalidade, enquanto segue
sua lógica material e concentradora”. Rezende ainda identifica que “foi com a bandeira do conheci-
mento livre que a educação formal ganhou e cumpriu, desde a Renascença, um papel importante na
evolução da nossa civilização, que é o de alavancar o desenvolvimento científico e tecnológico”.
Pedro Antônio Dourado de Rezende é bacharel e mestre em Matemática pela Universidade de
Brasília. No vale do silício, trabalhou com controle de qualidade do sistema operacional Macintosh na
Apple Computer, com sistemas de consulta a bases de dados por voz digitalizada na DataDial, e com
as primeiras aplicações de hipertexto, precursoras da web, desenvolvendo HyperCard stacks para
Macintoshes. Seus interesses profissionais incluem o estudo de métodos formais para análise e proje-
to de protocolos criptográficos. Atualmente é professor do Departamento de Ciência da Computação
da Universidade de Brasília - UnB, onde tem lecionado, desde 1990, teoria da computação, teoria
dos grafos, linguagens formais, linguagens de programação, compiladores, organização de hardware
e software, criptografia e segurança de dados, informática e sociedade, entre outras disciplinas, e
exercido os cargos de coordenador do bacharelado em Ciência da Computação, do Laboratório de
Informática, e do ensino básico de programação. É co-autor do livro Burla Eletrônica (Rio de Janeiro:
Instituto Alberto Pasqualini, 2002), sobre vulnerabilidades do sistema eleitoral informatizado em uso
no Brasil. Sua página pessoal na Internet é http://www.cic.unb.br/~pedro/. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais as principais trans- e abertos, estratificados e indepen- ou seja, transformações nas relações
formações que a Internet tem provo- dentes entre si, o que possibilita inú- e nas interações que formam a socie-
cado na sociedade? O que de mais sig- meras novas formas de comunicação dade, realimentando inclusive a pró-
nificativo muda nas relações sociais? entre pessoas e instituições conecta- pria evolução das tecnologias digitais,
Pedro Rezende - A Internet inaugura das, de natureza horizontal e de al- das TIC (Tecnologias da Informação e
uma forma inédita de comunicação cance global. Quando disseminadas, Comunicação). A maneira como o di-
entre máquinas em rede, baseada em essas novas formas de comunicação nheiro hoje circula, de forma virtual
protocolos digitais descentralizados provocam transições sociotécnicas, no atacado, é um exemplo disso. De

 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


mais significativo, as transições socio- “Com a Internet, as adaptando-se às novas formas e rela-
técnicas alteram as relações de po- ções de poder. Porém, esses interesses
der, projetando a natureza política, relações de poder vão parecem antes alinhar-se numa luta
instrumental e estratégica das TIC. mortal pela sobrevida de seus mode-
E a política se realiza, basicamente, sendo alteradas, los, coordenada por controladores fi-
através de processos normativos que nanceiros. Eles preferem readaptar
buscam estabelecer e fazer valer cos- principalmente, por os pontos cegos da sua ideologia, ao
tumes, normas e leis. Daí porque tan- invés dos seus modelos arcaicos, haja
ta discussão hoje sobre “regras para a deslocamentos nas vista o que revela a crise econômica
Internet” e cibercrime. Com a Inter- atual. Nessa luta, as principais táti-
net, as relações de poder vão sendo fronteiras de eficácia cas que empregam são a radicalização
alteradas, principalmente, por des- progressiva do conceito de proprie-
locamentos nas fronteiras de eficácia ou de eficiência entre dade, o controle estatal para impô-la
ou de eficiência entre cooperação e seletivamente a ferro e fogo, a depre-
competição. Alavancas de dominação cooperação e ciação do conceito de bem público e a
se formam, como mostra Lawrence fusão dos negócios com o mando po-
Lessig no seu livro Code is Law, pelo competição” lítico. Então, penso que os rumos da
controle das configurações e das ope- nossa sociedade serão definidos pelo
rações de uso das TIC, e pelo dirigismo desfecho desta luta.
maticamente extensível ao imaterial,
em processos legislativos destinados
como se a liberdade em meio digital
a obrigar usos sob tais controles, ou IHU On-Line - Como o senhor carac-
violasse essa extensão, é base da sua
a coibir usos que deles escapem. teriza a sociedade do conhecimen-
estratégia. Esses interesses veem a
to, ou a sociedade da informação?
evolução tecnológica como oportu-
IHU On-Line - Que rumos nossa so- Quais são os valores dessa sociedade?
nidade para mais sinergia entre eles,
ciedade está tomando a partir da Pedro Rezende - Recorro ao juris-
para mais controle hegemônico ca-
concepção de que o conhecimen- ta Eben Moglen, da Universidade de
paz de alavancar seus poderes, como
to é livre, de que mudou a ideia Columbia. Nesta sociedade, as ativi-
bem descreve o filósofo Paul Virilio.
de propriedade na era digital? dades produtivas mais importantes
Pedro Rezende - Rumos só se reve- não ocorrem mais em fábricas, nem
Tais interesses veem a outra face
lam em perspectiva. Então, recuemos mais por iniciativa individual, mas
dessa sinergia, aquela que a Internet
no tempo. A liberdade e o direito de em comunidades conectadas por sof-
propicia aos que buscam livremente
conhecer sempre estiveram no centro tware. Daí a importância do softwa-
o conhecimento, como ameaça a seus
da luta entre as duas naturezas huma- re como infraestrutura fundamental
modelos de negócio e de gestão do
nas, animal e espiritual, desde nossas para a economia pós-industrial. Essa
poder. Pintam-na como ameaça con-
origens míticas. A concepção moderna importância não é pelo software
tra toda a ordem social, e usam-na
do conhecimento como algo que deve em si ser um tipo de bem valioso,
para camuflar a sua cobiça, apelando
ser livre, vem do Iluminismo, e foi o que é verdade, nem é pelo fato
ao medo insuflado e à própria cobiça
resgatada da última aventura global do software intermediar a produção
de cada um. Mas se, como prega sua
pelo totalitarismo com a Declaração de atividades úteis, o que também
ideologia, é o mercado que tem antes
Universal dos Direitos Humanos, em é verdade. É pelo fato dele prover
que ser livre, e é papel primordial do
seu artigo 48. Todavia, como a Histó- meios alternativos e eficientes de
Estado o de proteger esta liberdade,
ria tende a mover-se pendularmente, produção, transformação e trans-
então são os seus modelos negociais
vemos agora esse direito universaliza- porte de bens de natureza simbó-
e políticos que deveriam evoluir, re-
do sendo novamente atropelado. Na lica, inclusive do próprio software.
 Paul Virilio: urbanista e filósofo francês,
transição sociotécnica atual, quem nascido em 1932. Estuda e critica efeitos Desses bens simbólicos, os mais va-
está tentando mudar a “ideia de pro- perniciosos da velocidade nas relações so- liosos são os que intermediam fluxos
priedade” não são os defensores desse ciais contemporâneas, desde os seus reflexos de bens essenciais, principalmente
no processo cognitivo até suas implicações
direito na esfera digital, pelo contrá- na política. É autor, entre outros, de Guerra bens materiais de demanda inelás-
rio. São os interesses corporativos e Pura (São Paulo: Brasiliense, 1984); O espaço tica. Como as moedas internacio-
institucionais que querem anulá-lo, na crítico (Rio de Janeiro: Editora 34, 1993); A nalmente aceitas. Bens simbólicos
máquina de visão (Rio de Janeiro: José Olym-
sua luta por dominância, frente às al- pio, 1994); Velocidade e Política (São Paulo: se distinguem de bens materiais por
terações nas relações de poder provo- Estação Liberdade, 1996); A bomba informáti- não lhes tocarem a escassez natu-
cadas pela disseminação e convergên- ca (São Paulo: Estação Liberdade, 1999) e Ville
panique (Paris: Galilée. 2004). Reproduzimos  Eben Moglen: professor de Direito e de His-
cia das TIC. Fazer parecer o contrário, duas entrevistas com Virilio sobre o seu livro tória do Direito na Universidade de Columbia,
pintar os cavalos dessa batalha como Ville Panique, uma na 108ª edição da IHU On- em Nova Iorque, e o fundador, diretor-conse-
se o conhecimento livre fosse inimi- Line, de 05-07-2004, outra na 136ª edição, de lheiro e presidente do Software Freedom Law
11-0-04-2005. Dele, também publicamos outra Center, que presta serviços jurídicos a nume-
go da propriedade, como se a ideia entrevista na 95ª edição da IHU On-Line, de rosos clientes, como a Free Software Founda-
de propriedade fosse natural e auto- 05-04-2004. (Nota da IHU On-Line) tion. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 


ral; em economês: por terem cus- camp. Para o bem ou para o mal, esta tica de mundo e num enrijecimento
to marginal irrisório, ou por serem sociedade está marcada pelos valores da divisão geopolítica do trabalho e da
não-rivais. No capitalismo tardio, de uma moral utilitarista, de uma ide- produção. Vemos o cerco deste com-
concentradores financeiros contro- ologia consumista e de uma ética he- bate na agenda política que busca for-
lam os meios de produção de bens donista. Em suma, pelo signo da grati- çar os Estados, começando pela peri-
essenciais. É lógico, portanto, que ficação instantânea. feria do capitalismo, a abrir mão desta
eles vejam como necessário, para a sua missão, de guiar e prover o pro-
manutenção desse controle em so- IHU On-Line - Em que medida a área cesso da educação formal. Nas demo-
ciedades informatizadas, estender da educação acaba atingida pelo uni- cracias modernas, a educação formal
o conceito jurídico de propriedade verso do conhecimento livre? é tida como função do Estado devido
para poderem tutelar o usufruto de Pedro Rezende - Ela acaba atingi- ao seu papel principal, que tem sido o
bens simbólicos. Nessa tutela, além da indiretamente, depois de crescer de preservar e retransmitir valores e
das moedas, a do software também nele. Foi com a bandeira do conheci- saberes que mantêm a coesão social.
é estratégica. Pois software, como mento livre que a educação formal ga- E essa agenda busca transformar a
diz o professor Gustavo Torres, são nhou e cumpriu, desde a Renascença, educação formal em mais um mercado
próteses do pensamento. Ele molda um papel importante na evolução da selvagem, com o mínimo de regulação
a percepção humana na esfera vir- nossa civilização, que é o de alavancar e de fronteiras, e com o máximo de
tual, onde o dinheiro e o conheci- o desenvolvimento científico e tecno- conversão em dividendos políticos, na
mento hoje mais circulam. Não é à lógico. Nesse papel, ela nos trouxe, irrefreada fusão dos negócios privados
toa que o fornecedor dominante de com o poder público.
software trata seus clientes como
inquilinos de suas próprias máqui- “Bens simbólicos se IHU On-Line - O que muda no mundo
nas. A crescente radicalização nor- do trabalho, no conceito de trabalho
mativa do conceito de propriedade, distinguem de bens a partir da internet e do conheci-
mormente nos regimes jurídicos das mento livre?
patentes e do direito autoral, se- materiais por não lhes Pedro Rezende - Creio que a mudan-
gue a lógica desse anseio utilitarista ça mais notável, como já frisei antes,
pela tutela dos bens simbólicos, que tocarem a escassez é a sinergia que a Internet propicia
para mim é a característica principal aos que buscam livremente o conhe-
da sociedade da informação. Muito natural” cimento. Num momento de reacomo-
mais do que o volume ou o fluxo de dação das fronteiras de eficácia e de
informações disponíveis: se essa in- eficiência entre competição e coo-
formação em si fosse riqueza, mate- dentre outros frutos, a revolução in- peração, como o que estamos viven-
rial ou moral, viciados em Internet dustrial e a revolução digital, que, por do, as oportunidades se multiplicam
seriam bilionários. sua vez, acabou precipitando o fim da e podem frutificar com abundância,
Hoje, essa radicalização permite era industrial. Na era pós-industrial, como mostra a evolução do softwa-
explorar incertezas nos limites do cer- o neoliberalismo passa a combater re livre. Mas talvez só frutifiquem
camento jurídico em torno de ideias ferozmente essa bandeira, sob o ver- positivamente, no plano individual,
e expressões criativas, e miragens da niz ético-moral do utilitarismo, face enquanto não for crime produzir co-
proprietarização do conhecimento à consequente crise do capitalismo laborativamente, com autonomia de
como fonte de riqueza coletiva ines- tardio. É a forma que essa ideologia interesses e por iniciativa própria.
gotável. Tal exploração atinge não encontra de seguir produzindo escas- Pois o tal livre mercado, a pretex-
só as trocas simbólicas, mas também sez artificial de bens imateriais, rumo to de preservar essa possibilidade,
os mercados de sementes, de remé- à miragem do perpétuo crescimento parece determinado a empurrá-la à
dios, de bens culturais. Transgênicos econômico. Ela quer nos vender um criminalidade, enquanto segue sua
ou não, tradicionais ou não, coletivos sonho de loteria, o da produção in- lógica material e concentradora.
ou não. O efeito prático disso é gerar telectual como fábrica de dinheiro; e
escassez artificial de bens imateriais muitos caem nessa, dispostos a pagar IHU On-Line - Qual a pertinência de
para neutralizar efeitos dissipativos pelo bilhete com a sua liberdade de discutir a questão da propriedade
que a hiperconectividade provoca em acesso ao saber alheio útil acumulado. intelectual e do direito autoral no
concentrações de renda. Mas, quando A História pode então seguir mais um mundo da Internet, onde o conhe-
sua eficácia se esvair, talvez atropela- movimento pendular, onde a educação cimento se constrói coletivamente?
da pela vindoura escassez de insumos volta a ser um instrumento de controle Pedro Rezende - Esta questão é in-
materiais, tal radicalismo poderá ser- social, onde seu papel volta a ser o de teressante pelos possíveis desdobra-
vir a outros fins. Como outrora serviu adestrar as massas numa visão dogmá- mentos. A luta que mencionei antes,
ao nazi-fascismo, conforme explica que define os rumos da sociedade
Departamento de Ciência Política do Instituto
a socióloga Walquiria Rego, da Uni- de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
da informação, é uma luta por cora-
 Walquiria Leão Rego: professora titular do (Nota da IHU On-Line) ções e mentes, essencialmente. En-
10 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318
tre os que lutam pela liberdade ao da criptografia para a questão das
conhecimento, e os que lutam pela “Não é à toa que o mudanças na ideia da propriedade
liberdade ao capital. Nela, porém, com a era digital?
muitos se confundem ou se perdem fornecedor dominante Pedro Rezende - Em rede aberta,
entre sentimento e razão. E, flagra- como a Internet, a única coisa que
dos em distopias ou emaranhados em de software trata seus a criptografia pode fazer é traduzir
contradições, atiram a esmo. Pois, a o problema da identificação de in-
questão abarca um feitiço juridiquês, clientes como inquilinos terlocutores que desejam, através
figura de linguagem estranha, tan- da rede, comunicar-se em privado
to oximoro quanto sinédoque. Essa de suas próprias ou com garantias de integridade,
figura em questão não é nem con- seja da origem ou do conteúdo dos
ceito, pois, o que define seria uma máquinas” dados, para o problema da distribui-
contradição performativa. É uma ção de certificados-raiz, para o da
justaposição de dois conceitos anta- custódia de chaves privadas, e para
gônicos: pro­priedade, que é outorga o da integridade das plataformas
tecnologias digitais. Para termos boas
de privilégios in­dividuais exclusivos onde chaves criptográficas operam.
estratégias de defesa, locais e sistê-
para posse e usufruto e gozo; e in- E os problemas traduzidos, confor-
micas, para médio e longo prazos.
telecto, que desde o latim pré-cris- me explico em “Modelos de Confian-
Já os pontos mais polêmicos dizem
tão significa ação do entendimen- ça” (www.cic.unb.br/~pedro/tra-
respeito ao foco da proteção. Dados
to. A propriedade restringe algo bs/modelos_de_confianca.pdf), só
só informam quando comunicados,
a um só, enquanto o intelecto para terão solução eficaz em situações
voluntariamente ou não. E a comu-
existir precisa compartilhar o algo. onde haja um canal de confian-
nicação tem dois interlocutores, que
A Internet forma o último campo de ça entre os interlocutores que seja
podem até ser o mesmo agente em
tensionamento entre esses dois con- adequado ao objetivo e ao método
tempos distintos. Mas nem sempre
ceitos. Para uma disputa política es- de proteção escolhidos, e que lhes
os interesses dos interlocutores a
clarecida entre os interesses envol- esteja disponível tempestivamente.
respeito desses dados se alinham.
vidos, é preciso então separá-los. É Qualquer agregado de procedimen-
Dentre muitos casos emblemáticos,
preciso revisitar o direito autoral em tos e mecanismos de segurança di-
por brevidade, cito a recente cria-
sua origem, como armistício nego- gital, como, por exemplo, uma ICP
ção do blog corporativo da Petro-
ciado que foi, antes do feitiço pegar. (Infra-Estrutura de Chave Pública),
brás, e seu motivo como exemplo.
Para que a Internet continue a pres- não pode proteger quem quer que
Segurança, como diz o criptógrafo
tar-se ao que veio, é preciso re- seja além de suas fronteiras virtu-
Bruce Schneier, é, ao mesmo tem-
negociar esse armistício com base ais. Não pode impedir que computa-
po, um processo de riscos e probabi-
nas novas fronteiras. É preciso se- dores e redes sejam atacados atra-
lidades, e um teatro de percepções
parar o direito autoral desse ouro- vés dessas fronteiras de confiança.
e sentimentos. Quando há conflitos
de-tolo, dessa impertinente ense- Na realidade, tais ataques são tão
de interesse entre interlocutores,
bação que empurra a agenda de plausíveis quanto indicarem as rela-
“segurança da informação” deixa de
radicalização normativa de quem ções custo/benefício em se penetrar
fazer sentido, apesar de ser o ter-
descabe em sua cobiça. Pois, caso essas fronteiras de confiança, sob o
mo habitual de quase todos para se
contrário, seremos enganados por recrudescente cerco do risco moral
referirem ao processo. Mas, quando
uma miragem coletiva a qual pro- à disseminada tecno-imersão de prá-
há conflitos desse tipo, esse hábito
fecias bíblicas possivelmente se ticas sociais. Por isso, a importância
leva a confusões entre o processo e
referem como “operação do erro”. da criptografia será sempre limita-
o teatro da segurança. Nesses casos,
da às condições de confiança dispo-
o foco da proteção nos dados, e não
IHU On-Line - Quais os maiores desa- níveis ao contexto de uso. Forçar a
nos interesses, ofusca conflitos e
fios e pontos mais polêmicos hoje na barra, ou obscurecer esses limites,
empoderamentos, que só beneficiam
área da segurança computacional? por exemplo, decretando fé públi-
os que disso se locupletam. Os quais,
Pedro Rezende - Em minha opinião, ca por atacado e invertendo o ônus
via de regra, são os que controlam o
os maiores desafios estão em enten- da prova de fraude na identificação
uso das tecnologias intermediadoras.
der o que é confiança. Para saber- do titular do certificado, como faz
mos quando, como e onde, na esfera a ICP Brasil, em relação à seguran-
IHU On-Line - Qual a importância
digital, ela ocorre ou é demandada, ça de usuários constitui puro teatro.
por quem e a respeito do quê. Para  Bruce Schneier (1963): é um criptógrafo es- Teatro que tem como efeito real o
tadunidense, especialista em segurança com-
sabermos avaliar melhor os riscos, putacional e escritor. É autor de muitos livros de agravar riscos no processo, para
identificar as ameaças e os conflitos sobre segurança computacional e criptogra- quem se vê obrigado a se comunicar
de interesse a que nos expomos com fia e é fundador e chefe de tecnologia da BT com base nela.
Counterpane (“Counterpane Internet Security,
a virtualização das práticas sociais, Inc.”) (Nota da IHU On-Line)
em meio ao fascínio coletivo com as
SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 11
Uma grande mudança de paradigma com a internet
Para Marcelo Branco, estamos passando por uma transformação muito profunda da
forma como se distribuem e se armazenam os conteúdos culturais

Por Graziela Wolfart

N
a entrevista exclusiva que concedeu, por telefone, para a IHU On-Line, Marcelo Branco
identifica, no cenário atual, com a Internet, “uma grande mudança de paradigma, e não
podemos aceitar o enquadramento da política de direitos autorais encima de um modelo
antigo que não existe mais”. Ele considera que “o importante é que os autores sejam
respeitados no seu direito autoral e, no entanto, como os produtos na Internet são imate-
riais, eles não podem se valer das regras da propriedade intelectual do século XVIII e XIX. É um con-
ceito novo, que não é fácil de ser aceito por setores conservadores que se criaram em torno do direito
de propriedade dos séculos passados. Mas lutar contra a tecnologia não é uma boa estratégia”. Na
opinião de Marcelo, “o conhecimento e a inovação hoje estão distribuídos na Internet, não estão mais
nas empresas e organizações”. Ele percebe que o conceito de “propriedade intelectual” está seria-
mente abalado pelo cenário das tecnologias digitais. “Não estou dizendo que o mundo da Internet e
das sociedades em redes necessariamente é um mundo melhor ou mais democrático. As disputas que
fizemos nos momentos anteriores da história, por liberdade, por direitos, são disputas que devemos
continuar fazendo no cenário da Internet, senão podemos ter um ambiente tecnológico fantástico e
uma sociedade muito mais controlada e com muito menos liberdade do que no passado”.
Marcelo D’Elia Branco é diretor do Campus Party Brasil. Consultor para sociedade da informação,
Marcelo é coordenador do projeto Software Livre Brasil, e também ocupa o cargo de professor hono-
rário da Cevatec, além de ser membro do Conselho científico do programa internacional de estudos
superiores em software livre na Universidade Aberta de Catalunha. Seu blog pessoal é http://wiki.
softwarelivre.org/bin/view/Blogs/MarceloBranco. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que deveria fazer ca de distribuição. Ele tinha que viajar a indústria que intermedia a criação
parte de um modelo que leve em de avião ou de caminhão para chegar entre o criador e o público. O resulta-
consideração a nova realidade em até as lojas e, a partir disso, chegar do disso é que a obra cultural pode ser
que vivemos, onde a cultura e a in- até o público. Esse processo era caro, infinitamente mais barata, e o autor/
formação sejam realmente livres e então tinha que remunerar, na cadeia criador ser melhor remunerado. Então
o acesso a elas possa ser garantido produtiva, vários componentes: o cria- as obras precisam ser protegidas por
como direito humano fundamental? dor, o produtor e o intermediário, que outros direitos, não mais os direitos
Marcelo Branco – Estamos passando é quem fazia a cópia e a distribuição. autorais da época da indústria. Agora
por uma transformação muito profun- Essa indústria se tornou poderosa no existem muito mais possibilidades des-
da da forma como se distribuem e se século XX: as grandes editoras, a in- sas obras culturais serem distribuídas
armazenam os conteúdos culturais. No dústria fonográfica, a indústria da có- livremente através da Internet, com o
período da era industrial, a revolução pia e distribuição do cinema etc. O que direito autoral protegido para que não
tecnológica dos séculos XVIII e XIX, acontece nesse momento da revolução haja plágio ou violação das obras sem
essas obras, para que chegassem ao digital é que esse processo mudou to- autorização do autor, mas, obviamen-
grande público, tinham que necessa- talmente. A cadeia produtiva não tem te, o custo desta obra para o público
riamente passar pelo processo indus- mais o processo industrial, não tem pode ser zero ou muito próximo de
trial. Isto é, a partir de uma extração mais a pesada logística de distribui- zero. Temos aqui uma grande mudança
de matéria-prima e de um processo fa- ção. Porque uma obra cultural digital de paradigma, e não podemos aceitar
bril, literalmente, que prensava o Cd e é armazenada em qualquer dispositivo o enquadramento da política de direi-
o vinil, ou uma editora que imprimia o digital e essa obra cultural chega até tos autorais encima de um modelo an-
livro, esse produto chegava até o pú- o público por meio do ambiente tec- tigo que não existe mais.
blico por meio de uma pesada logísti- nológico da Internet. Não existe mais
12 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318
IHU On-Line - Em que medida a tec- cença livre, do software livre, do siste-
nologia permite hoje que os gover-
“A ideia da empresa ma GNU Linux. Ele defende que se pode
nos sejam mais democráticos, com copiar livremente, distribuir, modificar a
mais transparência, e que haja uma
aberta é um conceito obra original e transformá-la numa deri-
aproximação maior entre os cidadãos vada, desde que, se foi usada uma obra
e o sistema político?
novo no mundo protegida pela licença livre, tem que de-
Marcelo Branco – Estamos vivendo essa senvolver a obra derivada protegida pela
revolução que falei anteriormente.
capitalista” mesma licença. Isso gerou uma inovação
Pela primeira vez, a base tecnológica nunca antes vista no cenário tecnológi-
empresa aberta é um conceito novo no
do governo, dos veículos de comunica- co. Os produtos tecnológicos produzidos
mundo capitalista. As empresas têm
ção, e do público é a mesma. Eles têm por licenças livres evoluem muito mais
necessidade de abrir a sua proprieda-
disponível a mesma base tecnológica. rápido do que os produtos com reserva
de para que a inovação gerada pela In-
No período anterior, da era industrial, de propriedade privada e fechados sob
ternet possa agregar valor à empresa.
as empresas de comunicação tinham o ponto de vista do seu ambiente tec-
O importante é que os autores sejam
um potencial tecnológico, que é a TV, nológico. As licenças Creative Commons
respeitados no seu direito autoral e,
a rádio e o jornal de massa. E o público podem estabelecer o direito de cópia, o
no entanto, como os produtos na In-
tinha possibilidades infinitamente infe- direito de modificar a cópia original e o
ternet são imateriais, eles não podem
riores de se comunicar com esses veí- direito de comercializar e distribuir, tudo
se valer das regras da propriedade in-
culos, que tinham uma potência e uma depende. As licenças Creative Commons
telectual do século XVIII e XIX. É um
base tecnológica muito diferente da do determinam de que forma a obra pode
conceito novo, que não é fácil de ser
público. Da mesma forma o governo, ser distribuída, copiada e modificada.
aceito por setores conservadores que
que tinha mecanismos de divulgar suas Para cada caso existe um tipo de licença
se criaram em torno do direito de pro-
políticas, e o público votava de quatro que o autor escolhe conforme seu inte-
priedade dos séculos passados. Mas
em quatro anos ou algumas vezes par- resse.
lutar contra a tecnologia não é uma
ticipava de orçamentos participativos
boa estratégia. O conhecimento e a
etc. Com a revolução tecnológica da IHU On-Line - A expansão do conhe-
inovação hoje estão distribuídos na In-
Internet, pela primeira vez, o público cimento, tornando-o livre, traz que
ternet, não estão mais nas empresas e
pode fazer um blog da mesma forma tipo de consequências para a socie-
organizações. E é claro que o concei-
que o Planalto faz seu blog. Temos aqui dade, nos aspectos econômico e cul-
to de “propriedade intelectual” está
uma relação mais horizontal. Com isso, tural, por exemplo?
seriamente abalado pelo cenário das
o governo terá que ouvir e usar as redes Marcelo Branco – No período anterior,
tecnologias digitais. Não estou dizendo
sociais nos ambientes tecnológicos não as pessoas não estavam conectadas
que o mundo da Internet e das socie-
só para mandar informações, como era globalmente de forma tão fácil como
dades em redes necessariamente é um
feito no passado. Nesse novo período, hoje para trocar conhecimentos. Hoje
mundo melhor ou mais democrático.
os governos devem se abrir para rece- estamos conectados globalmente atra-
As disputas que fizemos nos momentos
ber sugestões de quais políticas devem vés da Internet. Então é óbvio que o
anteriores da história, por liberdade,
implementar e o que deve aparecer nas conhecimento e a cultura que estão
por direitos, são disputas que devemos
leis que estão elaborando. Isso muda o fora das organizações são muito maio-
continuar fazendo no cenário da Inter-
conceito de governo. res do que o que está dentro delas. O
net, senão podemos ter um ambiente
conhecimento, a tecnologia e a cultu-
tecnológico fantástico e uma socieda-
IHU On-Line - Com a Internet, o que ra livres das amarras do período ante-
de muito mais controlada e com muito
muda em relação ao conceito de pro- rior já estão provocando um benefício
menos liberdade do que no passado.
priedade? para toda a humanidade.
Marcelo Branco – Acho que não muda
IHU On-Line - Como funciona o Crea- nológico de Massachusetts (MIT) antes de se
o conceito de propriedade, mas a sua
tive Commons? Quais são seus usos, converter no grande libertário da informática.
forma. Estamos falando na Internet de Em 1984, fundou a Free Software Foundation
sua função social e seus impactos
bens imateriais, de conhecimentos, de (www.fsf.org). Publicamos uma entrevista com
econômicos e culturais? Richard Stallman na IHU On-Line, 69ª edição,
ideias, de cultura. Não estamos mais
Marcelo Branco – O conceito de copy- de 4 de agosto de 2003, em que discutimos a
falando de propriedade física. Então, questão do software livre. Ele concedeu uma
left foi o que levou à criação das licen-
a propriedade intelectual no cenário entrevista exclusiva à revista IHU On-Line na
ças Creative Commons. Esse conceito edição número 136, de 11 de abril de 2005.
da Internet é um tema muito discutido
de “esquerda da cópia”, ou de esquer- Sua página pessoal na Internet é http://www.
no mundo inteiro. Por um lado, temos stallman.org/ (Nota da IHU On-Line)
da autoral, foi criado nos anos 1980 por
os conservadores que querem manter  Sobre as licenças Creative Commons leia a
Richard Stallman, e é o conceito da li- entrevista Direitos autorais e Creative Com-
a estrutura para um cenário novo, e,
 Richard Stallman: Conhecido no mundo in- mons, com Sérgio Branco, publicada nas No-
por outro lado, há várias organizações teiro pela sua defesa e desenvolvimento do tícias do Dia do sítio do IHU em 12-11-2009
e empresas globais que pensam que software livre. Ele é o fundador do projeto e disponível no link http://www.ihu.unisinos.
o conceito de propriedade intelectu- GNU, lançado em 1984, para desenvolver o br/index.php?option=com_noticias&Itemid=1
sistema operacional do software livre. Estudou 8&task=detalhe&id=27442 (Nota da IHU On-
al atrapalha seus negócios. A ideia da Física em Harvard e trabalhou no Instituto Tec- Line)

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O conhecimento é patrimônio comum da humanidade
Toda a produção de novos bens culturais é baseada nas anteriores, de modo que
existe uma espécie de contribuição coletiva da humanidade em cada novo bem
cultural produzido, defende Pablo Ortellado

Por Graziela Wolfart

P
ara o professor da USP, Pablo Ortellado, o que estamos vendo no momento atual é o embate
entre dois modelos: “o modelo tradicional e o modelo novo, digital, no qual os intermediá-
rios são menos importantes. E o direito autoral, que era o instrumento jurídico que organi-
zava essa cadeia produtiva, está se tornando menos fundamental, para não falar obsoleto,
que talvez seja uma palavra muito forte”. Em entrevista concedida, por telefone, para
a IHU On-Line, ele reflete sobre o universo digital e suas consequências na produção intelectual e
cultural, argumentando que “o direito autoral seguramente não vai desaparecer, mas terá que ser
reformulado de maneira que se encaixe em uma realidade onde ele não é mais o elemento estrutu-
rante da indústria cultural”.
Pablo Ortellado possui graduação e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, onde
atualmente é professor. Tem experiência na área de Políticas Públicas, com ênfase em Políticas para
acesso a informação, atuando principalmente nos seguintes temas: propriedade intelectual, movi-
mentos sociais, teoria política, comunicação. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como falar deste uni- IHU On-Line - Quais os entraves para ter um papel mais ativo na regulação
verso de conhecimento livre na In- a ampliação da banda larga no Brasil? do setor de Internet, de provimento
ternet em um país onde o acesso às Qual sua opinião sobre a proposta de de acesso à Internet.
tecnologias está longe do ideal? torná-la regulada?
Pablo Ortellado – Em primeiro lugar, Pablo Ortellado – O principal entrave IHU On-Line - Como entender o para-
as políticas que temos de acesso às à ampliação da banda larga no país é doxo das indústrias de copyright no
tecnologias, mesmo se pensarmos em o custo, e isso é um consenso. A banda universo das redes digitais?
uma perspectiva global, são muito mais larga no Brasil é cara. E isso tem dois Pablo Ortellado – O problema do di-
um potencial do que uma possibilida- fatores: o fator de natureza interna- reito autoral no universo digital é o
de efetiva de acesso ao conhecimen- cional, como o sistema de distribuição seguinte: esse modelo que temos de
to. Então, deve acontecer simultane- de custos na Internet se dá, e esse é direito autoral vigente se consolidou
amente um processo de ampliação do um problema que está muito além da na sua forma atual por organizar a in-
acesso à tecnologia por meio de políti- capacidade do país resolver, ou seja, dústria cultural na sua capacidade de
cas de promoção de acesso à Internet, o Brasil como ator internacional pode produção mecânica de bens culturais
banda larga, computadores; mas não ajudar na mudança disso; e existe um reprodutíveis. Ela foi criada basica-
devemos esperar a universalização do problema interno no Brasil que é a mente para regular a distribuição de
acesso para promover, por meio dessa forma como a regulação da telecomu- livros, de LPs, fitas, CDs. É para isso
tecnologia, um acesso universal aos nicação e da Internet se dá no país. que existe, é assim que foi desenha-
conteúdos. Do contrário, teríamos um E, nesse sentido, o governo brasileiro da e ocupa o papel de organizadora de
fato consumado de acesso à tecnologia tem bastantes meios de interceder de todo esse sistema. Então, ela concen-
num ambiente de alta restrição. Então, maneira a baratear o custo do acesso tra a propriedade no intermediário,
a missão é dupla: ampliar o acesso à à banda larga. As medidas que estão que cumpre o papel cultural de sele-
tecnologia, simultaneamente fazendo aparecendo no debate vão desde ofe- cionar o conteúdo. Temos vários artis-
uso do parcial acesso que se tem às recer este acesso como serviço públi- tas que buscam visibilidade, ele sele-
tecnologias, explorar o seu limite por co, que implicaria toda a camada mais ciona esses artistas, porque o meio de
meio de licenças livres, práticas de di- básica de infraestrutura do acesso à produção física é oneroso, produz es-
gitalização de conteúdo, políticas de banda larga ser assumida pelo Estado; ses artistas com a capacidade que tem
fomento ao compartilhamento e assim como também a Anatel (Agência Na- de financiamento, e depois divulga
por diante. cional de Telecomunicações) passar a esses artistas e distribui o conteúdo.

14 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


Esse modelo está sendo completamen-
te subvertido pelas novas tecnologias,
“O principal entrave à cidade, num filme, qualquer contexto
comercial relevante, o direito auto-
porque o papel do intermediário não é
mais necessário. Com a Internet, em
ampliação da banda larga ral continua valendo. Mas para a re-
lação entre o músico e o público, a
particular, temos uma rede de distri-
buição que não é global, porque tem
no país é o custo, e isso mediação do direito autoral enquanto
instrumento jurídico, que limitaria o
o problema do limitado acesso às tec-
nologias, como falamos há pouco, mas
é um consenso. A banda acesso em troca de uma remunera-
ção, desapareceu. Mas ele continua
que é potencialmente universal. Num
prazo muito pequeno – comparando
larga no Brasil é cara” operando nessas outras esferas no
caso da música. No caso do livro, essa
com a história da indústria cultural situação está muito menos avançada,
- estaremos perto da universalização porque o acesso digital aos conteú-
do acesso a essas tecnologias. Falo de pria. Por isso, é preciso que ele incor- dos literários avançou muito menos,
um par de décadas, no máximo. Temos pore exceções e limitações bastante em parte porque é muito difícil ainda
a capacidade com computadores nas amplas, para que esses usos que estão ler na tela do computador um livro
casas das pessoas, com uma rede de sendo feitos da Internet passem a ser grande. Agora, com a expansão dos
distribuição como a Internet, temos considerados legais, uma vez que já dispositivos portáteis, tipo Kindle,
socialização dos meios de produção, são situações de fato. É preciso que ou o dispositivo da Sony, que são os
então todos têm meios para fazer seu a lei reconheça isso por meio de ex- dois grandes dispositivos de leitura
livro, para compor, para editar e gra- ceções e limitações, e é preciso tam- de textos digitais que entraram no
var sua música, e isso está distribuído bém, nessa lei, reequilibrar a relação mercado e começaram a se expandir
nas casas. Tenho uma rede de promo- entre intermediários, produtores e neste ano, vemos uma mudança pare-
ção que é a Internet. Monto meu site, consumidores. cida no âmbito da indústria editorial,
uso serviços na Internet como o mys- porque os conteúdos serão digitaliza-
pace, para promover a música, ou sites IHU On-Line - O momento atual, com dos, e o papel das editoras na inter-
de distribuição de conteúdo acadêmi- a Internet, acaba dissolvendo a ques- mediação também será questionado,
co ou literário. Tenho vários veículos tão da autoria. Que problemas apa- com a diferença de que a produção
que estão disponíveis e estão abertos recem com essa ideia? de textos literários requer muito me-
a todos, nos quais eu posso promover Pablo Ortellado – Esses novos mode- nos investimento. Eu não preciso de
e tornar público o conteúdo que pro- los que estão aparecendo na Internet um estúdio, preciso basicamente de
duzi domesticamente. E esses mesmos funcionam com pouco apoio no direi- um computador e um processador de
sites que fazem as promoções, propor- to autoral. Não é sem nenhum apoio, texto. Então, penso que o direito au-
cionam o acesso por meio de downlo- é pouco. Os chamados novos modelos toral seguramente não vai desapare-
ad. Na medida em que os conteúdos de negócio que estão se desenvolven- cer, mas terá que ser reformulado de
estão sendo digitalizados, essa cadeia do no ambiente digital normalmente maneira que se encaixe em uma reali-
produtiva está sendo feita. E o que deslocam a fonte de remuneração dos dade onde ele não é mais o elemento
estamos vendo, nesse momento, é o artistas e produtores culturais para estruturante da indústria cultural.
embate entre dois modelos: o modelo outras direções. O acesso aos bens
tradicional e o modelo novo, digital, deixa de ter a barreira do preço. Eu IHU On-Line - Que cenário podemos
no qual os intermediários são menos produzo meu bem cultural, uso dos vislumbrar a partir da retomada da
importantes. E o direito autoral, que meios digitais para promovê-lo e dis- noção de que a cultura é um bem co-
era o instrumento jurídico que orga- tribuí-lo, sem intermediação mercan- mum e que a maior parte das criações
nizava essa cadeia produtiva, está se til, muitas vezes, e a sustentabilidade têm como base a própria cultura?
tornando menos fundamental, para da atividade cultural é normalmente Pablo Ortellado – É curioso porque
não falar obsoleto, que talvez seja deslocada para o serviço e, às vezes, essa mudança, esse movimento de
uma palavra muito forte. é deslocada para a publicidade. Ao acesso à informação e de reivindi-
fazer esse processo, que não envolve cação da cultura como bem comum,
IHU On-Line – Está na hora, então, de basicamente direito autoral, desloco não apareceu enquanto pauta polí-
uma renovação na legislação? minha fonte de remuneração para os tica própria. Ele veio como uma es-
Pablo Ortellado – O direito autoral, se shows. Durante a atividade de perfor- pécie de justificação ou a posteri de
continuar do jeito que está, ficará ob- mance, eu arrecado dividendos que uma situação de fato. Quando as no-
soleto nesse cenário. Por isso é preciso sustentam a atividade artística e o vas tecnologias permitiram que, por
uma reforma da lei do direito autoral acesso à música gravada passa a ser
para ele se adequar a esse novo pa- gratuito. Obviamente que o direito  Kindle é um pequeno aparelho criado pela
empresa americana Amazon, que tem como
norama da distribuição digital, porque autoral continua aí. Quando tenho função principal ler e-books (livros digitais) e
aí ele cumpre uma nova função, muito execução comercial em rádios, o di- outros tipos de mídia digital. O primeiro mo-
menos importante daquela que cum- reito autoral continua sendo relevan- delo da plataforma foi lançado nos Estados
Unidos em 19 de Novembro de 2007. (Nota da
te, se tenho o uso da música na publi- IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 15


“As políticas que temos
de acesso às tecnologias,
mesmo se pensarmos em
uma perspectiva global,
Contracultura atual: o que interessa
são muito mais um é a “cultura livre”
potencial do que uma Ângela Kretschmann defende que a propriedade sempre foi vista
como algo absoluto, intocável, e agora não é mais assim, desde
possibilidade efetiva de
que se discute tanto a função social da propriedade, e o próprio
acesso ao conhecimento” sentido de dignidade humana, base dos direitos humanos

meio da digitalização dos conteúdos, Por Graziela Wolfart


nós tivéssemos uma universalização

N
do acesso aos bens culturais, criou-
se uma espécie de argumentação, a visão da professora Ângela Kretschmann “no plano da proprie-
reivindicando o acesso. E só a par- dade intelectual, e em especial no campo da propriedade indus-
tir do momento em que foi possível trial (...), as mudanças introduzidas pela Internet são altamente
falar em acesso universal aos bens positivas, pois trazem a publicidade necessária para os desenvol-
culturais foi que se criou um movi- vimentos e inovações tecnológicas, estreitando aquele espaço
mento em defesa dessa bandeira. De de tempo e aproximando os interessados em desenvolvimentos e inovações
maneira que essa situação que vi- às informações detalhadas da tecnologia”. Na entrevista que concedeu, por
vemos hoje precedeu a demanda. A e-mail, à IHU On-Line, a advogada e professora na Unisinos identifica que
demanda é um movimento para utili- “há uma verdadeira guerra entre aqueles que se acostumaram a manipular
zar o potencial das novas tecnologias
o mercado da cultura e, agora, os consumidores de cultura que estão mais
no seu limite máximo. E, a partir do
interessados na liberdade de escolha, no sentido de escolher o que consumir
momento em que foi possível pensar
no acesso universal aos bens cultu- em termos de cultura”. Ela entende que “as pessoas podem e devem conti-
rais, começaram a se desenvolver nuar sendo proprietárias, mas conscientes de que vivem em sociedade, pre-
argumentos, que são essencialmente cisam dela e desejam contribuir com ela. Dificilmente se cria uma obra para
corretos. Por exemplo, a produção ficar admirando-a sozinho. Coisa sem sentido. Então a questão é equilibrar o
cultural é cíclica. Toda a produção interesse do autor com o do público, lembrando que o interesse do autor não
de novos bens culturais é baseada é totalmente oposto ao interesse público”. Para a professora, “uma cultura
nas anteriores, de modo que existe de direito autoral existe hoje para poucos, e, no lugar de desenvolvermos
uma espécie de contribuição coleti- uma cultura saudável de direito autoral, de respeito efetivo a autores que
va da humanidade em cada novo bem admiramos, já vivemos numa época de contracultura, onde o que interessa
cultural produzido. Quanto menos é a ‘cultura livre’, e o resto é lorota”.
empecilho existir nesse ciclo produ-
Ângela Kretschmann possui doutorado em Direito pela Unisinos. Realizou
ção/consumo/produção, mais viva e
seu mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
dinâmica será a produção cultural.
Hoje temos meios econômicos para do Sul – PUCRS, e a graduação em Ciências Jurídicas pela Unisinos. É professo-
aumentar a velocidade e potenciali- ra nos cursos de Direito, Segurança da Informação, Gestão Cultural e Design,
zar ao máximo as voltas desse ciclo. da Unisinos, lecionando Direito da Propriedade Intelectual, Direitos de Autor
Além disso, nos fundamentos da nos- e Propriedade Industrial (Marcas, Patentes, Software, Cultivares). Sócio-fun-
sa sociedade, desde a época do ilu- dadora de Kretschmann, Koff & Rabello Sociedade de Advogados, atualmente
minismo e da consolidação da ideia integra a Comissão de Propriedade Intelectual (CEPI) da OAB/RS. Entre seus
de direitos humanos, pressupõe-se principais livros publicados citamos Dignidade Humana e Direitos Intelectuais:
que o conhecimento produzido pela re(visitando) o Direito Autoral na Era Digital (São José - SC: Conceito, 2008);
humanidade é patrimônio comum. E Universalidade dos Direitos Humanos e Diálogo na Complexidade de um Mun-
agora temos a possibilidade prática do Multicivilizacional (Curitiba: Juruá, 2008); e História Crítica do Sistema
desse ideal iluminista ser efetiva-
Jurídico: da prudência à ciência moderna (Rio de Janeiro: Renovar, 2006).
mente realizado.
Confira a entrevista.

16 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


IHU On-Line - Quais as principais mu- marcas) e transparente. Já no que diz há um artigo que especifica as obras
danças que a Internet deve introdu- respeito ao direito autoral, a Internet que são protegidas, do modo amplo,
zir na questão do direito autoral e da revoluciona tudo, desde a própria con- e, nesse sentido, são protegidas “as
propriedade intelectual? cepção do que significa um autor ou criações do espírito, expressas por
Ângela Kretschmann - São duas ques- um produtor. É dramático deparar-se qualquer meio ou fixadas em qualquer
tões, uma mais restrita, a do direito com novas formas de expressão cria- suporte, tangível ou intangível, co-
autoral, e outra mais ampla, que en- tiva, que nem são tão criativas assim nhecido ou que se invente no futuro”
volve o direito autoral, a propriedade e que estão também sendo protegidas (art. 7º.). Sempre gosto de lembrar
intelectual. No plano da propriedade pelas regras do direito de autor, como aos alunos que a primeira lei brasilei-
intelectual, e, em especial, no campo um banco de dados, por exemplo. O ra veio justamente proteger as aulas
da propriedade industrial (patentes de direito autoral pode ser visto, assim, dos professores, em 1827, na Semana
invenção, modelos de utilidade, dese- como um cabo de guerra, onde temos da Arte Moderna. Com isso, enquanto
nho industrial, marcas, concorrência de um lado uma equipe (representada estou falando na sala de aula, auto-
desleal), as mudanças introduzidas pela indústria cultural, editoras, em maticamente, produzo obra e eles
pela Internet são altamente positivas, especial fonográficas, e de software, têm o direito de fazer anotações, mas
pois trazem a publicidade necessária mas não apenas elas) puxando para o jamais reproduzir (gravar, por exem-
para os desenvolvimentos e inovações reforço da proteção das regras, e, de plo) sem autorização. E até aqui tudo
tecnológicas, estreitando aquele es- outro, uma equipe, em geral represen- muito bem. Que eu saiba, a maioria
paço de tempo e aproximando os inte- tada por criadores singulares, pessoas dos professores autoriza a gravação
ressados em desenvolvimentos e ino- das aulas. Mas todos devem saber
vações às informações detalhadas da que é um direito do professor recusar,
tecnologia. Isso apenas contribui para “Eu trabalho com pois, sendo uma obra protegida, a lei
que os investimentos sejam sempre especifica de modo bastante enfático
melhor dirigidos para o que ainda não transferência de tudo o que precisa de autorização. O
foi criado, e a Internet constitui, por- problema é que, a princípio, pratica-
tanto, um imenso banco de dados onli- tecnologia e patentes, mente tudo está protegido, inclusive o
ne onde se acessa de qualquer lugar do rabisco no guardanapo, feito durante
mundo e se toma conhecimento do que e ergo as mãos para o uma refeição. Mas até aí tudo ainda
há de mais recente em matéria de pa- vai muito bem. O pior sempre está por
tentes, o que não é possível patentear céu pela facilitação que vir. Ah, e sem esquecer que sempre,
mais, e o que ainda é possível. Assim mas sempre mesmo, pode ficar mui-
também com relação às marcas, sinais a Internet proporciona to pior. Tudo praticamente depende
distintivos que identificam produtos e de autorização, não apenas a fixação
serviços. Bem, esse é o lado da pro- nesse campo” de obra, a reprodução, a adaptação,
priedade industrial, um dos campos da como qualquer transformação da obra
propriedade intelectual. Eu trabalho originária. A lei, então, com uma reda-
com transferência de tecnologia e pa- físicas, artistas, músicos, que dese- ção que julgo fantástica e assustadora-
tentes, e ergo as mãos para o céu pela jam apenas poder compartilhar o que mente exata, deixa claro que “quais-
facilitação que a Internet proporciona criam, e, se possível, viver disso, mas quer outras modalidades de utilização
nesse campo. Já no caso do direito sem “neuras”, ou, pelo menos, sem existentes ou que venham a ser inven-
de autor, a situação não é assim, tão o excesso mercantilista que a indús- tadas” (art. 29, X). Ou seja, se alguém
otimista, nem tão romântica. Há uma tria que comercializa cultura possui, inventar um modo de usar uma obra
verdadeira guerra entre aqueles que se e, nesse sentido, desejam que as re- simplesmente assoprando ou sei lá,
acostumaram a manipular o mercado gras do direito autoral se flexibilizem, utilizando uma luz refratária através
da cultura e, agora, os consumidores permitindo maior acesso sem tanta de cristais, ou o que é mais provável,
de cultura que estão mais interessados necessidade de autorização prévia. criando uma nova tecnologia, bom, a
na liberdade de escolha, no sentido de Quem vai vencer? E de que lado está o lei já, desde 1998, previa essa capaci-
escolher o que consumir em termos restante do público, e o que deve ser dade humana impressionante, e desta-
de cultura. Para não me alongar de- público, e o que deve ser privado, no cou então que tudo isso seja lá o que
mais, e buscando responder com uma conhecimento que produzimos? Essas for que se inventar, e que servir para
certa objetividade, eu diria que, no questões merecem profunda reflexão. usar alguma obra intelectual, terá que
que diz respeito à propriedade indus- antes pedir autorização para o titular
trial, as mudanças tendem, portanto, IHU On-Line - Como se estrutura hoje da obra. É aí que chega a Internet.
a aperfeiçoar o sistema de proteção, no Brasil a lei de direito autoral? Ora, diante disso tudo, é óbvio (mas
tornando-o mais acessível, rápido (no Ângela Kretschmann - A lei de direito não para maioria da população, e de
que diz respeito à expedição de car- autoral, hoje, no Brasil, seria cômica qualquer idade) que obras intelectu-
tas-patentes, registros de desenhos e se não fosse dramática. Observe bem: ais colocadas na Internet estão pro-

SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 17


tegidas pelo direito autoral. Ou seja, “A lei de direito a criatividade e possibilitar o desen-
não é porque a tecnologia permite o volvimento da cultura, observa-se que
acesso, que a lei permite o acesso, ou autoral, hoje, no Brasil, o excesso de proteção pode antes ter
seja, que a lei autoral permite o uso efeito contrário, de inibir a criativida-
de uma obra intelectual protegida só seria cômica se não fosse de (pois ninguém pode acessar a obra,
porque você tem acesso a ela atra- transformá-la, revivê-la) e impedir o
vés do meio digital. E usar significa, dramática” desenvolvimento cultural. A era digital
inclusive, fazer download, gravar no não tem o condão de mudar o sentido
disco rígido ou em pendrive, ou ainda da propriedade. Ela apenas expõe de
rio. Portanto, estamos todos em busca
imprimir. E nem se fale em uso priva- modo bastante claro o problema e a
de um equilíbrio, e não está fácil, pois
do, pois o uso privado que a lei autoral necessidade de mudança. Nada acon-
não obstante os próprios esforços do
permite é apenas de pequenos trechos teceria se não houvesse uma pressão
Ministério da Cultura, no Brasil, tor-
e dificilmente alguém acessa e repro- enorme de setores industriais que to-
nando possível o debate público, que
duz apenas “pequenos trechos”. Isso maram conta, apropriaram-se do direi-
constituiu uma verdadeira esfera pú-
falando no aspecto civil. Portanto, a to autoral. Nesse sentido, o problema
blica (no sentido habermasiano mes-
princípio, estaríamos em permanente é que as pessoas acessam bens dispo-
mo!), fato é que o diálogo mostrou-se
violação a direitos autorais no âmbito níveis no meio digital, e os tradicionais
bastante rude, em certo sentido, pois
civil, podendo sofrer uma ação e con- proprietários dos bens culturais dese-
é notória a preocupação da indústria
denação a pagamento de indenização. jam ganhar muito mais cobrando por
cultural em geral de manter e ainda
Mas, pelo menos, podemos escapar de tudo o que está acessível na Internet.
reforçar as regras, impedindo o livre
sermos presos já que, em 2003, a lei O que precisa mudar é o excesso de
acesso a obras protegidas. De outro
penal mudou para permitir o down- poder existente sobre a obra protegi-
lado, isso leva ao restante dos interes-
load de obra integral se for para uso da, cujo titular quase sempre nem é
sados, inclusive os autores de obras a
privado. o autor original, este que cedeu o di-
questionar o próprio sentido do direi-
reito à indústria pode ser proibido até
to autoral, e se ele tem servido hoje
IHU On-Line - Qual a importância de mesmo de cantar sua própria música
aos propósitos que servia no passado,
se revisitar o direito autoral na era (o que também já aconteceu no Bra-
de motivar a criatividade, ou se tem
digital? sil). O ECAD é um bom exemplo, pois
antes apenas servido a certos titula-
Ângela Kretschmann - Parece que a deseja a todo custo cobrar por toda
res derivados (que não são os autores,
importância é bastante grande se não execução musical que existe através
mas quem comprou, ou cessionários
quisermos prender todo mundo. Mas da Internet. E os escândalos envolven-
das obras) para não apenas explorar
há outras incongruências de grande do o ECAD também seriam dignos de
comercialmente as obras, mas pior,
profundidade, como a questão coloca- graça se não fossem trágicos. Imagine
manipular a própria cultura que nos
da por um professor da Alemanha, que se você é um quitandeiro e está pesan-
é acessível, escolhendo o que iremos
nos visitou recentemente e com quem do batatas e cebolas na sua balança
consumir em termos de cultura. Prova
pudemos compartilhar quatro noites e ouvindo seu radinho de pilhas que
disso é o jabá no Brasil que ainda não é
de congresso exclusivamente nesse está sempre ao lado da balança... de
proibido. Então ficamos com essas mú-
assunto. O professor Rainer Kuhlen repente, o ECAD entra com uma ação
sicas que são horríveis e que estão em
perguntava para quem serve o direito judicial contra você, cobrando direito
primeiro lugar nas paradas de “suces-
autoral. E essa pergunta é chave, afi- autoral sobre a execução, pois, afinal,
so”, simplesmente porque uma grava-
nal, a lei foi feita para quem, uma vez você está escutando rádio em “am-
dora pagou para que ela estivesse ali,
que obviamente serve aos interesses biente de frequência coletiva”. Essa
e ali permanecesse até nosso ouvido
dos grandes conglomerados interna- ação tramitou aqui no Tribunal gaúcho,
se acostumar com aquela coisa.
cionais que negociam a cultura? Outra e, felizmente, nesse caso, o ECAD per-
pergunta fundamental, que mexe na deu, era demais! Perdeu mas deve ter
IHU On-Line - Que novos paradigmas
estrutura do direito autoral, é sobre a provocado um dano irrecuperável no
se fazem necessários para a área do
medida em que o conhecimento e a in- quitandeiro! Talvez ele tenha jogado
direito a partir da mudança radical
formação devem ser públicos, e a me- seu radinho pela janela. Mas será que
na ideia de propriedade com a era
dida em que devem ser privados. Na o ECAD vai perder a causa da Internet?
digital?
Alemanha, a preocupação com o ex- Já se está falando de uma taxa que
Ângela Kretschmann - A propriedade
cesso de proteção levou à criação até teríamos que pagar para acessar as
sempre foi vista como algo absoluto,
do Partido Pirata. E ele é levado a sé- obras protegidas. No YouTube, já exis-
intocável, e agora não é mais assim,
 Não só na Alemanha. Sobre o Partido Pirata tem vários vídeos cujos sons já foram
desde que se discute tanto a função
no Brasil, leia a entrevista Os piratas brasilei-  O Escritório Central de Arrecadação e Distri-
ros, publicada nas Notícias do Dia do sítio do social da propriedade e o próprio sen- buição - ECAD é o órgão brasileiro responsável
IHU em 10-11-2009, disponível no link http:// tido de dignidade humana, base dos pela a arrecadação e distribuição dos direitos
www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_ direitos humanos. Enquanto a lei auto- autorais das obras musicais, tendo sua sede
noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=27376 localizada no Rio de Janeiro. (Nota da IHU On-
(Nota da IHU On-Line) ral sempre teve por escopo fortalecer Line)

18 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


bloqueados por questões de direitos sidade de pedir autorização, terá que cença que desejar, para uso comercial
autorais. Na França, já começaram a fazer isso através dos instrumentos ou não, para adaptação ou não etc.
bloquear o sinal de Internet caso você desenvolvidos como reação ao exces-
acesse conteúdo protegido e faça do- so de proteção. Essas reações podem IHU On-Line - Quais os principais
wnload. E, na Alemanha, nem se fala, bem ser vistas através do software li- conflitos que aparecem nos proces-
você pode facilmente ser chamado vre e do Creative Commons. Os novos sos que envolvem a questão dos di-
para prestar esclarecimentos à polícia. paradigmas, portanto, vêm da ideia de reitos intelectuais?
Aqui, no Brasil, ainda estamos vivendo commons, do que deve ser de acesso Ângela Kretschmann - Citei os con-
numa espécie de paraíso da Internet. público, como a água e o ar, a infor- flitos envolvendo a indústria cultural
Mas a lei não é diferente dos demais mação, a educação e a cultura, que (em geral produtores de fonogramas
países, pelo contrário, é até mais rígi- mostram uma nova era onde o sentido e audiovisuais, editoras em geral) e
da. Ações judiciais contra usuários de- de propriedade, de dono de algo não é os consumidores de cultura. Inclusi-
savisados já estão sendo tomadas, e, mais o valor supremo em uma ordem ve entre autores e as gravadoras, por
muitas vezes, com sentido muito mais jurídica, pois outros valores têm se exemplo. Tanto é assim que a pirata-
de marketing do que repressor. Bas- elevado e tornado mais importantes. A ria veio a ser comemorada por vários
ta lembrar uma notícia passada, um ideia de propriedade deve, portanto, músicos como uma forma de enfra-
tempo atrás (quase todo mundo viu), ser compreendida junto com outros quecer a indústria fonográfica, vista
em pleno Jornal Nacional da Globo, direitos. As pessoas podem e devem como inimiga de vários músicos. Entre
sobre uma mulher que foi condenada continuar sendo proprietárias, mas outros conflitos, podemos citar o pro-
nos Estados Unidos por ter baixado conscientes de que vivem em socieda- blema da própria estrutura das biblio-
da Internet cerca de 18 músicas... e de, precisam dela e desejam contri- tecas, que se veem diante da possibi-
a condenação ultrapassou a cifra de buir com ela. Dificilmente se cria uma lidade tecnológica de digitalização de
um milhão de dólares. E logo depois obra para ficar admirando-a sozinho. materiais, o que poderia ser tecnolo-
de dar a notícia, o apresentador de te- gicamente facilmente disponibilizado
lejornal simplesmente disse: E agora aos alunos, mas, hoje em dia, não sem
a nossa previsão do tempo... Sem ne-
“Aqui, no Brasil, ainda o risco de prisão dos bibliotecários (o
nhum comentário, nenhum! Ora, isso é que também já aconteceu no Bra-
para dar um recado bastante enfático
estamos vivendo numa sil...). Então, o principal conflito exis-
e, certamente, auxiliar ao combate à te a nível de direitos fundamentais,
pirataria no Brasil. Aliás, o combate à
espécie de paraíso da pois o direito de autor é um direito
pirataria é fortemente financiado pe- fundamental, ao lado de outros direi-
las ações da Microsoft. Nada contra o
Internet” tos tão fundamentais quanto o direito
combate à pirataria, mas não vamos à educação, à informação e à cultura
confundir piratas com cidadãos hones- Coisa sem sentido. Então a questão é (ainda que na hermenêutica jurídica
tos, trabalhadores e que têm sensibi- equilibrar o interesse do autor com o vamos dizer que não existe conflito,
lidade cultural e desejam se sentirem do público, lembrando que o interesse ou ele é só aparente, entre direitos
humanos ouvindo uma boa música, do autor não é totalmente oposto ao fundamentais, e o que precisamos é
sem ter que pagar quase 20% de um interesse público. ponderar os interesses em jogo em
salário mínimo para comprar a música. cada caso concreto). Um outro pro-
Mas ninguém percebeu o tom da notí- IHU On-Line - Como se obtém uma blema sério que merece ser citado
cia, ninguém se deu conta de onde se licença Creative Commons? é relativo à própria necessidade de
pretendia chegar. Ninguém questionou Ângela Kretschmann - As licenças mudança de modelo de negócios das
nada. Claro que também não puderam Creative Commons estão disponíveis empresas que vivem de bens culturais
prestar atenção na previsão do tempo, no site do próprio Creative Commons protegidos pelo direito autoral – que
pois a notícia era de assustar qualquer (www.creativecommons.org). São de por muito tempo se acostumaram aos
um. E o recado foi dado: não baixem fácil compreensão e de várias espé- monopólios e resistem a fazer certos
músicas da Internet, pois a condena- cies. Usuários de obras intelectuais e investimentos para saber lidar com a
ção pode ser muito, muito cara. E a autores têm se valido das licenças para era digital.
lei não é diferente no Brasil. Se não se eliminar os intermediários de obras in-
souber o número de cópias piratas, a telectuais, como um canal direto de IHU On-Line - Como se caracteriza a
lei determina que o valor seja calcula- negociação entre aqueles que criam, base de valores morais que rege as
do em 3.000 exemplares. Imagine 18 por exemplo, uma música, e aqueles decisões acerca do direito autoral e
músicas diferentes multiplicadas cada que desejam utilizá-la, por exemplo, da propriedade intelectual?
uma por 3.000. Sobre o valor que ain- em um audiovisual. O autor simples- Ângela Kretschmann - Basicamente,
da o juiz determinar para cada música. mente escolhe uma das licenças e o que choca as editoras em geral é a
Fica impagável. Se o autor deseja que cadastra sua obra, autorizando ante- facilidade com que hoje se realizam
o público acesse sua obra sem neces- cipadamente (a qualquer pedido) a li- cópias ofendendo dramaticamente

SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 19


as regras de direito autoral. Mas não que todos tenham acesso às rique-
é só isso, o que os editores em ge- zas culturais?
ral comentam é justamente a total Ângela Kretschmann - Vejo que a
ausência de “consciência pesada”, Internet é o grande canal de comuni-
ou seja, quem copia em geral não cação que até o momento encontra-
se sente mal, ou não tem nenhuma se livre – ao menos no Brasil, mas
noção de “imoralidade”. Pelo con- não na China! – para que possamos
trário. O que se verifica, portanto, nos comunicar e acessar bens cultu-
são decisões que são tomadas com rais. Por enquanto, esse acesso está
base na legislação, e especifica- ilimitado, mas a nova lei de Infor-
mente de direito autoral, raramen- mática está prestes a ser aprovada,
te alguma decisão faz referência e dependendo de seu formato final,
ao acesso à cultura, informação e nossa liberdade poderá estar cor-
educação para restringir o direito rendo algum risco. A sociedade será
do autor. O que posso referir é que, mais justa e igualitária sempre que
apesar de eu conviver há quase 20 for possível às pessoas exercerem de
anos, seja como professora, seja modo efetivamente livre suas esco-
como advogada e perita judicial na lhas. Não me sinto totalmente livre
área dos direitos intelectuais, fato como gostaria, na atualidade, em

Orações Ilustradas.
é que uma cultura de direito autoral meio a jornais e emissoras de TV que
existe hoje para poucos, e, no lugar praticamente acertam os assuntos
de desenvolvermos uma cultura sau- que vão passar no noticiário, esco-

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dável de direito autoral, de respeito lhendo o que deverei e poderei ouvir
efetivo a autores que admiramos, já e eventualmente ainda aconselhan-
vivemos numa época de contracultu- do sobre certos assuntos para trazer
ra, onde o que interessa é a “cultura uma comodidade bastante perigosa
livre”, e o resto é lorota. O Brasil ao pensamento humano. Não sinto
é singular nesses saltos “ornamen- efetivamente liberdade nem igual-
tais”. Mas não podemos fazer as coi- dade, e muito menos justiça num sis-
sas sem pensar, pela simples paixão tema agressivo que utiliza os meios
pelas aventuras, irresponsabilidade de comunicação para manipular mi-
inaceitável para um Brasil que assu- nha autonomia enquanto indivíduo
me um papel importante na esfera que nasceu para ser livre e se auto-
mundial, um Brasil que convive hoje determinar. A maioria da população
com leis de incentivo à inovação e não tem condições de se autode-
à cultura, leis pouco aproveitadas terminar na medida em que recebe
pelo setor empresarial e mesmo tudo pronto, mastigado e planejado
universitário. E serão ainda menos quase que em total conjunto pelas
aproveitadas se desejarmos banir emissoras de TV, numa tamanha po-
os direitos intelectuais, certamen- breza de comentários que chega a
te, então poderemos nos preparar constituir um crime contra os cida-
para continuar adquirindo cultura e dãos, numa manipulação ostensiva
tecnologia de estrangeiros, no lugar e efetivamente criminosa. Por isso,
de produzirmos e vivermos de nossa precisamos de uma Internet livre,
produção intelectual. Isso sim seria pois os meios de comunicação não
emocionante, aventureiro, desafia- são livres, são veladamente livres.
dor e, ainda, enriquecedor, tanto São manipulados pelos interesses de
em termos morais quanto financei- grandes conglomerados da comuni-
ros. O povo brasileiro é considerado cação de massa, que desejam uma
criativo, imagine se aproveitarmos massa cada vez mais apta a consu-
toda essa criatividade e ganharmos mir os produtos que eles querem
dinheiro com ela, quanto samba que sejam consumidos. Esse domínio
também poderemos fazer. subliminar é muito mais perigoso do
que o domínio ostensivo. Onde está
IHU On-Line - Em que sentido a Inter- o acesso livre às informações? Eu di-
net e o acesso livre às informações ria, na Internet e nos canais, alguns,
podem contribuir para uma socieda- pagos, mas quem pode acessá-los?
de mais justa e mais igualitária em Tão poucos.
20 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318
SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 21
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SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 23


Livro da Semana
Tanto a fé quanto a razão são necessárias
Racionalidade e provas científicas são equiparadas por fundamentalistas ateus. A fé
precisa ser razoável, e a razão exige fé básica na racionalidade do universo, acen-
tua o teólogo Keith Ward, autor de Deus, um guia para os perplexos

Por Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander

“O
fundamentalismo ateu supõe que a ciência forneça toda a verdade existente a
respeito do universo. Ele parodia as crenças religiosas e não quer dar ouvidos a
argumentos baseados no raciocínio”. A afirmação é do teólogo e filósofo inglês
Keith Ward, na breve entrevista exclusiva que concedeu, por e-mail, à IHU On-
Line. Segundo ele, há uma equiparação entre racionalidade e descoberta de
provas científicas. “O que se faz necessário é uma percepção mais forte da racionalidade presente na
arte, música, ética, história e filosofia”. Sobre Deus é um delírio, de Richard Dawkins, Ward diz que,
se tivesse lido o seu Deus, um guia para os perplexos (São Paulo: Difel, 2009), não teria escrito um
livro “tão tolo”. E arremata: “A fé tem de ser razoável, e a razão exige uma fé básica na racionali-
dade do universo e na capacidade do pensamento humano de entendê-lo. Tanto a fé quanto a razão
são necessárias”.
Ward é graduado pela Universidade de Walles. Estudou, ainda, em Cardiff, Oxford e Cambridge, an-
tes de ser ordenado padre pela Igreja da Inglaterra em 1972. É membro do conselho do Instituto Real de
Filosofia da Universidade de Oxford, Inglaterra. É professor visitante das universidades de Drake, Iowa
e Tulsa em Oklahoma. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Mesmo tendo sido pu- “Deus, um guia para os perplexos” maiores expoentes em nossos dias?
blicado antes de “Deus é um delí- seria uma resposta a essa obra? Por Keith Ward - O fundamentalismo
rio”, de Richard Dawkins, o seu quê? ateu supõe que a ciência forneça
 Clinton Richard Dawkins (1941): zoólogo,
Keith Ward - Meu livro foi publica- toda a verdade existente a respeito
etólogo, evolucionista e escritor britânico, do em 2002, muito antes de Richard do universo. Ele parodia as crenças
nascido no Quênia. Catedrático da Universi- Dawkins escrever o dele. Mas, se ele religiosas e não quer dar ouvidos a
dade de Oxford, é conhecido principalmen-
te pela sua visão evolucionista centrada no
tivesse lido meu livro, talvez não ti- argumentos baseados no raciocínio. É
gene, exposta em seu livro O gene egoísta, vesse escrito um livro tão tolo. rejeitado pela maioria dos cientistas.
publicado em 1976. O livro também introduz
o termo “meme”, o que ajudou na criação da
memética. Em 1982, realizou uma grande con-
IHU On-Line - Como compreende o IHU On-Line - O que essa fúria anti-
tribuição à ciência da evolução com a teoria, fundamentalismo ateu, que tem em religiosa demonstra sobre a raciona-
apresentada em seu livro O fenótipo estendi- Dawkins e Onfray alguns de seus lidade contemporânea?
do. Desde então escreveu outros livros sobre
evolução e apareceu em vários programas de 2006 sob o título The God delusion. Confira o
Keith Ward - Ela equipara a raciona-
televisão e rádio para falar de temas como debate sobre diversas de suas ideias na edição lidade à descoberta de provas cientí-
biologia evolutiva, criacionismo, religião. Por 245 da IHU On-Line, de 26-11-2007, intitulada ficas. O que se faz necessário é uma
sua intransigente defesa à teoria de Darwin, O novo ateísmo em discussão, disponível para
recebeu o apelido de “rottweiler de Darwin”, download em http://www.ihuonline.unisinos.
percepção mais forte da racionalida-
em alusão ao apelido de Thomas H. Huxley, br/uploads/edicoes/1197028900.5pdf.pdf. ção 245 da Revista IHU On-Line, de 26-11-2007,
que era chamado de “buldogue de Darwin (Nota da IHU On-Line) intitulada As ficções religiosas existirão enquan-
(Darwin’s bulldog). Recentemente está envol-  Michel Onfray: filósofo francês, doutor em Filo- to houver humanos e disponível para download
to em grande polêmica por conta das ideias sofia, é autor do livro Traité d’Athéologie (Trata- em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
contidas em sua obra Deus, um delírio (São do de Ateologia. Paris: Grasset, 2005). Confira a php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=d
Paulo: Cia das Letras, 2007), publicada em entrevista exclusiva concedida por Onfray à edi- etalhe&id=840. (Nota da IHU On-Line)

24 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


“A fé tem de ser razoável, e a razão exige uma fé
básica na racionalidade do universo e na capacidade

Sala Ignacio Ellacuría e companheiros.


do pensamento humano de entendê-lo. Tanto a fé
quanto a razão são necessárias”

de presente na arte, música, ética, movemos e existimos”, como diz São

Informações em www.ihu.unisinos.br
Inauguração em 10-12-2009, no IHU.
história e filosofia. Nenhuma delas é Paulo.
uma questão de prova científica, mas
todas elas podem ser racionais em IHU On-Line - Retomando uma ideia
maior ou menor grau. de Wittgenstein, mencionando que
sobre aquilo que não se pode falar,
IHU On-Line - Qual é a validade de se deve calar, como compreender a
usar argumentos que consideram a experiência do divino na sociedade
religião como manifestação de in- pós-metafísica, cada vez mais secu-
fantilidade ou projeção antropocên- larizada?
trica para desqualificá-la? Keith Ward - Deus está de fato além
Keith Ward - Um primeiro teste do de nossa compreensão plena, mas
discurso racional é ver se ele leva em muitos físicos quânticos falam de
consideração os mais fortes argumen- uma possível consciência além do es-
tos dos oponentes com que se defron- paço-tempo – isto dá alguma ideia de
ta, e não os mais fracos. Dawkins não Deus.
passa nesse teste.
IHU On-Line - É preciso racionalizar
IHU On-Line - Por que a ideia de Deus “entregando-lhe um compas-
Deus continua tão fundamental para so”, ou fé e razão podem ser conci-
os seres humanos? liadas sem que uma adentre o terri-
Keith Ward - A maioria dos filósofos tório da outra?
pensa que a base última da realidade Keith Ward - A fé tem de ser razo-
é espiritual – não-física e de valor su- ável, e a razão exige uma fé básica
premo. E milhões de pessoas fizeram na racionalidade do universo e na ca-
a experiência de que isto é assim. pacidade do pensamento humano de
entendê-lo. Tanto a fé quanto a razão
IHU On-Line - Qual é a grande ruptu- são necessárias.
ra que acontece entre o conceito de
Deus no pensamento clássico greco-
cristão em relação à modernidade?  Ludwig Wittgenstein (1889-1951): ���������
filósofo
Keith Ward - Não penso que haja austríaco, considerado um dos maiores do sé-
uma ruptura. Mas as ideias modernas culo XX, tendo contribuido com diversas inova-
ções nos campos da lógica, filosofia da lingua-
acentuam mais a história, a particu- gem, epistemologia, dentre outros campos. A
laridade e o tempo – como a fé cristã maior parte de seus escritos foi publicada pos-
comum com efeito faz. tumamente, mas seu primeiro livro foi publi-
cado em vida: Tractatus Logico-Philosophicus,
em 1921. Os primeiros trabalhos de Wittgens-
IHU On-Line - Qual é a peculiarida- tein foram marcados pelas ideias de Arthur
de do conceito de Deus hegeliano, o Schopenhauer, assim como pelos novos siste-
mas de lógica idealizados por Bertrand Russel
Absoluto? Qual é a atualidade desse e Gottllob Frege. Quando o Tractatus foi publi-
conceito? cado, influenciou profundamente o Círculo de
Keith Ward - Falar de Deus como o Viena e seu positivismo lógico (ou empirismo
lógico). Confira na edição 308 da IHU On-Line,
Absoluto pode ajudar a superar a de 14-09-2009, a entrevista O silêncio e a ex-
impressão errônea de que Deus seja periência do inefável em Wittgenstein, com
uma pessoa “fora” do universo. Deus Luigi Perissinotto, disponível para download
em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
é, pelo contrário, a base espiritual do php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task
universo, e “em Deus vivemos, nos =detalhe&id=1810. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 25


Entrevistas da Semana
A Psicologia da Libertação segundo Ignacio Martín-Baró
Para a psicóloga Cecília Santiago, falar dos mártires de El Salvador é necessário e
atual, principalmente considerando as situações de opressão que ainda persistem
na América Central

Por Patrícia Fachin | Tradução Benno Dischinger

I
gnacio Martín-Baró, um dos seis jesuítas assassinados brutalmente pelo exército salvadorenho no
dia 16 de novembro de 1989, em El Salvador, foi o precursor da psicologia da libertação. Defensor
de uma psicologia que se dedicasse ao atendimento dos problemas das maiorias populares, ele
argumentava que era preciso “fazer uma psicologia política que leve em conta o poder social na
configuração do psiquismo humano e que, portanto, contribua para construir um novo poder histó-
rico como requisito de uma nova identidade psicossocial das maiorias até hoje dominada”, disse Cecília
Santiago, psicóloga de Chiapas, à IHU On-Line, na entrevista que segue, concedida, por e-mail.
Baró ficou conhecido na América Latina após divulgar o contexto social e político de El Salvador,
mostrando a realidade sofredora do povo salvadorenho. Recordando o martírio, Cecília Santiago diz
que, como psicóloga chiapaneca e centro-americana, acredita “que estas pessoas, que há vinte anos
deram sua vida, nos falaram com tal clareza que a vigência de suas palavras nos alenta e nos orienta
nesta época de injustiça e opressão”.
Na opinião de Cecília, o sofrimento ainda está presente na América Central e, por isso, a realidade
centro-americana de pobreza extrema, de violência e morte “nos chama a participar no fortalecimento
de uma trama social que busca a vida, a paz e a dignidade”. Ela informa que em Chiapas, o governo e
empresários “assassinaram lideres comunitários e jovens integrantes de organizações camponesas e in-
dígenas”. Aqueles que mantêm Honduras sob estado de sítio, acrescenta, “são os mesmos que mataram
Martín-Baró, os que assessoram o exército salvadorenho e mataram centenas de milhares de pessoas,
de jovens, de crianças”.
Em homenagem aos seis jesuítas e às duas mulheres que foram brutalmente assassinados em El
Salvador, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU inaugura, na quinta-feira, 10-12-2009, a sala Ignacio
Ellacuría e Companheiros. Na ocasião, será exibido o debate Memory and it Strength: The martyrs of El
Salvador (A memória e sua força: Os mártires de El Salvador), que ocorreu no Boston College, nos EUA,
no dia 30 de novembro. Mediados pelo jesuíta e reitor emérito do Boston College, J. Donald Monan,
Noam Chomsky e o jesuíta e teólogo Jon Sobrino discutem a importância dessa memória.
Cecília Santiago é professora de Psicologia na Universidad de La Tierra, no México. Confira a
entrevista.

IHU On-Line - Como você descreve a formar a realidade de seu país. ção de instâncias universitárias que
participação de Ignacio Martín-Baró Como pesquisador, pôde situar o mantiveram a vinculação direta com a
nas lutas sociais em El Salvador na contexto em que se vivia no país, de- cidadania, como o instituto de opinião
década de 80? finindo os conteúdos de uma guerra na pública, a partir do qual fazia pesqui-
Cecília Santiago - Na universidade, qual os perdedores eram a população sas de opinião que permitiam dar a voz
ele promoveu a desideologização de civil. Localizou as consequências psi- à população em geral e, simultanea-
professores, alunos e da sociedade cossociais na população, dando pistas mente, mediante estas perguntas, as
em geral. Como professor, promoveu para a atividade pastoral e de acom- pessoas podiam questionar a realidade
a conscientização de seus alunos e a panhamento. em que viviam. Dando, assim, impor-
participação ativa em analisar e trans- Como acadêmico, promoveu a cria- tância à participação da população ci-

26 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


vil em meio a um conflito. da atividade do psicólogo e do papel vos oprimidos e não para o hedonismo
Este papel ativo a partir da univer- transcendente que desempenha entre científico.
sidade lhe possibilitou abrir as frontei- contextos que laceram e humilham os
ras do país, ministrando conferências pobres, para aprofundar-se no concei- IHU On-Line - Como se integra a éti-
em diversos países, mostrando a reali- to psicossocial da libertação, consoli- ca e a política no fazer da psicologia
dade sofredora do povo salvadorenho, dando uma psicologia popular e uma social de Martín-Baró?
além de promover laços de solidarie- psicologia política. Cecília Santiago - Se você se refere
dade. à ética, temos que perguntar-nos de
Como sacerdote, acompanhou sua IHU On-Line - Qual é, segundo Igna- que lado estão os psicólogos: do lado
Igreja, o povo mais pobre com uma cio Martín-Baró, a função da psicolo- do opressor? Ou do oprimido? Aí está a
cotidianidade em meio aos confrontos gia da libertação ante a realidade da opção ética que cada um deve fazer.
armados, massacres, perseguições e injustiça e da violência na América Também é preciso repetir a pergunta
cárceres. Brindava espaços de refle- Latina e em El Salvador? constantemente ao longo de toda a
xão à luz do Evangelho, análises da vida. E se perguntar quais são as con-
realidade para situar o papel dos ato- sequências históricas concretas que
res políticos locais e internacionais, e “Temos que essa atividade está produzindo.
promovia a motivação para viver, para Martín-Baró falou de fazer uma psi-
a solidariedade e a compaixão entre perguntar-nos de que cologia política que tome em conta o
irmãos. poder social na configuração do psi-
lado estão os psicólogos: quismo humano e que, portanto, con-
IHU On-Line - Em que consiste a tribua para construir um novo poder
psicologia da libertação de Ignacio do lado do opressor? histórico como requisito de uma nova
Martín-Baró? Quais são as fontes de identidade psicossocial das maiorias
inspiração e sua contribuição funda- Ou do oprimido? Aí está até hoje dominada.
mental?
Cecília Santiago - Martín-Baró assi- a opção ética que cada IHU On-Line - 20 anos depois do mar-
nalou que a psicologia devia estar tírio, quais são os reflexos da psico-
orientada para a libertação dos povos um deve fazer” logia da libertação na América Cen-
oprimidos. Falou de como libertar a tral?
psicologia de sua origem como ciência Cecília Santiago - A partir de Chiapas,
ao lado dos opressores e com base na Cecília Santiago - 1. A recuperação da posso dizer que a presença de Martín-
cultura ocidental, como uma ciência memória histórica, para haurir lições Baró como sacerdote e amigo ainda
que não contribui à humanização das da própria experiência, encontrar as está viva no meio do povo daquela
pessoas, e sim a sua alienação. Citou raízes da própria identidade para in- que fora sua paróquia Jayaque. E suas
os objetivos da psicologia social lati- terpretar o presente e vislumbrar al- análises de saúde mental em contexto
no-americana: re-estabelecimento de ternativas realmente úteis para a li- de guerra recordam nas pessoas des-
toda a sua bagagem teórica e fortale- bertação; mobilizadas de alguns departamentos,
cimento das opções populares. Deli- 2. Desideologizar a experiência como Cabañas.
neia três tarefas libertadoras: o estudo cotidiana, para sair do fictício senso Suas contribuições foram e serão
sistemático das formas de consciência comum, enganoso e alienador, que é parte do povo porque dali vieram e
popular, o resgate e potenciação das transferido pelos meios de comunica- sempre estarão presentes de uma ou
virtudes populares e a análise das or- ção de massa. Promover espaços para outra forma, mais ou menos visível.
ganizações populares como instrumen- que o povo veja o que conseguiu, o que
to de libertação histórica. está fazendo e dê validez a seu pró- IHU On-Line - Qual a importância de
Assim ele propõe que a psicologia prio modo de entender o que se passa, recordar e celebrar a memória dos
devia descentrar sua atenção de si fazendo-o para seu próprio bem; mártires? Como essas vítimas nos
mesma, de seu status científico e so- 3. Trabalhar para potenciar as vir- chamam à libertação?
cial, para dedicar-se ao atendimento tudes de nossos povos. Tantos valores Cecília Santiago - Como psicóloga
dos problemas das maiorias popula- que estamos construindo para sobrevi- chiapaneca, que também me sinto
res. Ter nova práxis psicológica para ver à adversidade. centro-americana, creio que estas
a transformação da sociedade latino- pessoas, que há vinte anos deram sua
americana. Propôs, assim, ter um novo IHU On-Line - O que caracteriza a vida, nos falaram com tal clareza que
horizonte e uma nova epistemologia. psicologia da libertação enquanto a vigência de suas palavras nos alenta
Foi um acadêmico em sentido proposta crítica da psicologia social? e nos orienta nesta época de injustiça
estrito, que buscou tanto o trabalho Cecília Santiago - Martín-Baró assina- e opressão.
teórico como uma práxis sólida. Falou lou que a psicologia tinha que estar Eles nos trouxeram valentia e deter-
com dedicação e firme compromisso orientada para a libertação dos po- minação. A convicção de que nossa voz e

SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 27


“Eles nos chamam a não
ter medo, a sentir sua
“Os Sertões é uma obra
presença que nos impele
a buscar dentro das matricial para pensarmos
profundezas de nossa a cultura brasileira”
identidade ancestral “De acordo com alguns intérpretes, Euclides da Cunha talvez
caminhos iluminados tenha escrito Os Sertões de trás para frente”, conta o historia-
dor Marçal Paredes
para caminhar em meio
às lutas de libertação” Por Graziela Wolfart e Greyce Vargas

D
nosso agir têm relevância. Por isso, falar outor em História, Marçal de Menezes Paredes nos concedeu a
deles e de nossa realidade atual é tão ne-
entrevista a seguir sobre Euclides da Cunha, dando continuidade
cessário como participar de movimentos
ao debate feito na revista IHU On-Line da semana passada. “O
amplos de transformação social. Os atores
que mantêm Honduras sob estado de sí- paradoxo de Euclides da Cunha reside justamente naquilo que
tio após o golpe de Estado são os mesmos ele consegue manifestar – através da utilização dos oximoros
que mataram Martín-Baró, os que asses- – apesar do que os pressupostos da ciência do século XIX permitiam ver. Ou
soraram o exército salvadorenho e mata- seja, Euclides trabalha com a ambiguidade entre os conceitos do “sujeito”
ram centenas de milhares de pessoas, de (da ciência, do ponto de vista abstrato) e as características de seu ‘obje-
jovens, de crianças. Nossa realidade cen- to’”, escreveu ele na entrevista que nos concedeu por e-mail.
tro-americana de pobreza extrema, de Marçal de Menezes Paredes é graduado em Ciências Sociais pela PUC-
violência e morte nos chama a participar RS, onde também fez o mestrado em História. Na Universidade de Coimbra
no fortalecimento de uma trama social (Portugal), realizou o doutorado em História. Atualmente, é professor na
que busca a vida, a paz e a dignidade. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Também é professor no Progra-
Em Chiapas, nos últimos meses, o gover-
ma de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS. É autor de Um Ser
no, empresários e sicários assassinaram
(tão) brasileiro: Tempo, História e Memória em Os Sertões de E. da Cunha
líderes comunitários e jovens integrantes
de organizações camponesas e indígenas, (Curitiba: Juruá, 2002). Confira a entrevista.
como Trinidad Martínez, Mariano Abar-
ca, entre outros, são nossos mártires de
hoje. E eles nos chamam a não ter medo, IHU On-Line – O que caracteriza se verdadeiramente um clássico e,
a sentir sua presença que nos impele a a visão de Euclides da Cunha da como tal, sofreu (e sofre) múlti-
buscar, dentro das profundezas de nossa identidade brasileira? plas interpretações. Obviamente, a
identidade ancestral, caminhos ilumina- Marçal de Menezes Paredes – A in- cada nova interpretação, novas ca-
dos para caminhar em meio às lutas de terpretação que Euclides da Cunha racterísticas de sua obre são posta
libertação. faz da Identidade Brasileira tornou- em evidência. Em minha opinião,
em Os Sertões, Euclides funda uma
 Euclides da Cunha (1866-1909): engenhei-
ro, escritor e ensaísta brasileiro. Entre suas compressão da Identidade brasileira
obras, além de Os Sertões (1902), desta- a partir da oposição entre Litoral e
Leia mais... ca-se Contrastes e confrontos (1907), Peru Interior. Para ele, dois tipos de mes-
>> Para saber mais sobre Ignacio Martín- versus Bolívia (1907), À margem da histó-
ria (1909), a conferência Castro Alves e seu tiços havia no país: o do litoral, que
Baró, acesse o Memorial disponível na página do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU: http://www. tempo (1907), proferida no Centro Acadê- vivia sob uma “civilização de em-
ihu.unisinos.br/index.php?option=com_content& mico XI de Agosto (Faculdade de Direito), préstimo” e, outro, do interior, que
task=view&id=330&Itemid=102 de São Paulo, e as obras póstumas Canudos:
diário de uma expedição (1939) e Caderneta mesmo se afastando dos parâmetros
>> Confira detalhes sobre a inauguração da Sala de campo (1975). Confira a edição 317 da re- tomados como certos pelo eurocen-
Ignácio Ellacuría e Companheiros, que acontece vista IHU On-Line, de 30-11-2009, intitulada trismo científico do final do século
nesta quinta-feira, dia 10 de dezembro, no Insti- Euclides da Cunha e Celso Furtado. Demiur-
gos do Brasil, disponível para download em XIX, apresentava o que mais faltava
tuto Humanitas Unisinos – IHU: http://www.ihu.
unisinos.br/index.php?option=com_content&tas http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ aos brasileiros do litoral: vínculo à
k=view&id=330&Itemid=102 edicoes/1259610538.5626pdf.pdf. (Nota da terra. O sertanejo torna-se “antes
IHU On-Line)

28 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


de tudo, um forte”, como diz Euclides,
por estar harmonizado com o sertão,
“Pela lógica de Os mero fez para recepcionar Euclides
da Cunha na Academia Brasileira de
por defendê-lo na luta e não abando-
ná-lo na seca. Deste modo, além da
Sertões, o sertão é o Letras: o ingresso nas letras e na cons-
ciência nacional da problemática do
oposição entre litoral e interior, Eu-
clides também manifesta os proble-
cerne do interior do povo do interior brasileiro.

mas de interpretar o Brasil profundo


a partir das lentes etnocêntricas do
Brasil e o interior do IHU On-Line – Onde reside o parado-
xo de Euclides da Cunha em relação
cientificismo de sua época. Euclides
percebeu este problema, que de algu-
Brasil é a essência à questão da identidade nacional em
Os Sertões?
ma forma, ainda é o nosso problema:
fundar uma hermenêutica histórica da
da nação” Marçal de Menezes Paredes – O pa-
radoxo de Euclides da Cunha reside
cultura brasileira. justamente naquilo que ele consegue
manifestar – através da utilização dos
ciplinas) e o autor soube com maestria
IHU On-Line – Quais os principais oximoros – apesar do que os pressu-
aglutinar esteticamente a contribui-
pontos da releitura que o senhor faz postos da ciência do século XIX per-
ção de tão variados conhecimentos.
da obra Os Sertões, sob o viés da for- mitiam ver. Ou seja, Euclides trabalha
É neste ponto que entra sua riqueza
mação das identidades nacionais? com a ambigüidade entre os conceitos
estilística e literária.
Marçal de Menezes Paredes – De acor- do “sujeito” (da ciência, do ponto de
do com alguns intérpretes, Euclides vista abstrato) e as características de
IHU On-Line – Em que sentido esta
talvez tenha escrito os Sertões de trás seu “objeto”. É fato que o brasileiro
obra de Euclides da Cunha pode
para frente. Explico. Na releitura que nunca se ajustou aos enquadramentos
ser entendida como uma resposta à
faço da obra, percebo grande eco dos civilizacionais difundidos pela Europa.
questão sobre quem é o brasileiro?
escritos do seu Diário (publicado pela Mais evidente ainda é que sempre ti-
Marçal de Menezes Paredes – Em sen-
Cia das Letras, sob organização de vemos gerações de intelectuais e polí-
tido total. Pela lógica de Os Sertões, o
Walnice Nogueira Galvão) na terceira ticos tentando brincar de Dr. Jeckyl e
sertão é o cerne do interior do Brasil
parte do livro, A Luta. Por isso, acre- Mr. Hyde, “saneando”, “civilizando”,
e o interior do Brasil é a essência da
dito que a primeira parte e segunda “branqueando” a nação. Em suma,
nação. O responsável pela tradução
– A Terra e o Homem – são ensaios que transformando o país num pseudo-la-
do livro para o alemão, o professor
buscavam compreender – através dos boratório sociológico, tentando mudar
Bertold Zilly, explica isso muito bem.
parâmetros do Determinismo Geográ- a cara do povão para que ela ficasse
Quando Euclides fala do jagunço ele
fico e do Determinismo Biológico – “o mais “nos conformes”, nos preceitos
está falando, de alguma forma, de
fato” da Guerra de Canudos. Nestas ditos corretos. Preceito difundidos por
todos os habitantes do interior, dos
partes, o autor se utiliza de grande uma Ciência que se dizia “universal”
lugares mais recônditos e inóspitos.
manancial de conhecimentos que vão mas que na verdade era profundamente
Euclides traz ao de cima, à “consci-
da Geologia e da Botânica à Etnologia “local” (uma espécie de regionalismo
ência nacional” a importância de se
e Sociologia. Na terceira parte, por europeu), e, assim sendo, era severa-
pensar naquela “terra ignota” (aliás,
sua vez, ainda está vibrando o jorna- mente etnocêntrica. Euclides chega no
título de um livro excelente de Luiz
lista (Euclides foi para o sertão como limite dessa discussão: ele afirma que
Costa Lima, Terra Ignota. A Constru-
enviado especial do Jornal A Província o sertanejo é “desgracioso, desengon-
ção de “Os Sertões”. Rio de Janeiro,
de S. Paulo), mas este vem mesclado çado e torto” mas também diz que ele
RJ: Civilização Brasileira, 1997). Aliás,
com o historiador da batalha. Como se representa a “rocha viva da nossa na-
este o sumo do discurso que Silvio Ro-
vê, concordo com Guilhermino César cionalidade”. Daí a riqueza do oximo-
quando ele diz que Os Sertões é um ro “Hercules-Quasímodo”, que expõe
 Bertold Zilly: professor e tradutor do Insti-
“livro-estuário”, pois para lá correram tuto Latinoamericano da Universidade Livre de esta tensão e não a “resolve”. E por
águas de diversos rios (as diversas dis- Berlim. É formado em literatura alemã e ne- quê? Por que ela deve ser solucionada,
 Guilhermino César (1908-1993); escritor, olatina. Fez doutorado sobre Moliére na Uni- como se de uma equação se tratasse.
jornalista, professor e historiador brasileiro. versidade Livre de Berlim, onde leciona língua
Aos 19 anos, em Cataguases, foi um dos funda- portuguesa e literatura latino-americana. É Deve ser refletida. Pensada. E isso a
dores da Revista Verde, de caráter modernista. membro do grupo internacional de pesquisa leitura de Os Sertões propicia. Se pen-
Mudou-se para o Rio Grande do Sul, onde tor- em Literatura e História - Cliope. Tem vários sarmos bem, quando Euclides fala que
nou-se cronista e crítico literário do Correio do artigos publicados em revistas e livros cole-
Povo. Foi chefe do gabinete do governo de Er- tivos no Brasil e na Alemanha. (Nota da IHU o sertanejo tem um misto de Herói
nesto Dorneles, professor da UFRGS, ministro On-Line) Grego com o Corcunda de Notre-Dame
do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande  Luiz Costa Lima (1937): crítico literário, ele está quase no ponto de reconhecer
do Sul e Secretário da Fazenda. Foi também nasceu em São Luiz do Maranhão. Iniciou a car-
presidente do Instituto Histórico e Geográfico reira universitária em 1962, na Universidade que não interessa esperar encontrar a
do Rio Grande do Sul. Atuou na dramaturgia de Pernambuco. Estudou na Espanha e nos Es- Grécia Clássica (como faziam os par-
como diretor de algumas peças de teatro na tados Unidos e doutorou-se em 1972 pela USP  Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Rome-
década de 1940. Foi escolhido patrono da Fei- em Teoria da Literatura e Literatura Compara- ro (1851-1814): poeta, escritor, crítico literá-
ra do Livro de Porto Alegre em 1990. (Nota da da. Foi professor visitante na Ruhr-Universität, rio, filósofo e político brasileiro. (Nota da IHU
IHU On-Line) Alemanha. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 29


nasianos) quando se olha para o povo “A admiração dele pelo tem papel importante, até porque seu
brasileiro; interessa, sim, reconhecer livro se tornou uma referência obriga-
este povo, respeitá-lo e vinculá-lo a jagunço se alimenta do tória no assunto (embora não a única,
uma imagem positiva da nação. Embo- nem naquele contexto).
ra este passo só será dado pelo elogio fato de ele
do Aleijadinho, feita pelo Modernismo IHU On-Line – Como Euclides da
(por Mário de Andrade, por exemplo) é enxergar no sertanejo Cunha evidencia que as dualidades
importante deixar manifesto que Eu- tradição/modernidade e objetivida-
clides da Cunha já aponta nesse sen- aquilo que mais faltava de/subjetividade não estão dissocia-
tido, embora de forma ainda tensional das na construção do discurso acerca
e ambígua. aos brasileiros da nacionalidade brasileira?
Marçal de Menezes Paredes – A re-
IHU On-Line – Como aparecem na obra urbanos, do centro lação entre tradição/modernidade e
de Euclides da Cunha os conceitos de objetividade/subjetividade aparecem
identidade, memória e tempo? do país: amor à terra, em dois planos: o individual e o cole-
Marçal de Menezes Paredes – O con- tivo. Ou seja, o do intelectual, do au-
ceito de identidade aparece de for- apego ao seu quinhão tor, e o do discurso sobre a Identidade
ma ambígua, como tentei demonstrar Nacional. No primeiro, o individual, é
mencionando a importância dos oxi- de origem, bravura na fundamental perceber que Euclides
moros, sobretudo o Hérculos-Quasímo- muda seu posicionamento político em
do. Os conceitos de Memória e Tempo luta, harmonia social” relação à Guerra de Canudos confor-
ficarão articulados e de alguma forma me ele vai se aproximando do local da
imbricam-se, embora sejam distintos. Batalha, conforme ele vai conhecendo
Como não podia deixar de ser, Euclides de perto o sertanejo e o sertão. Seu
é um homem do seu tempo e é nesse Claro que esta aproximação é ilusó- espanto pela força indômita do jagun-
sentido que se deve entender a famosa ria, mas ela revela a maneira como se ço, pela beleza do sertão em época de
referência que ele faz sobre a “força pensava a República no Brasil e a pró- chuvas, pela diferença radical entre
motriz da história”. Esta idéia remete pria História da Humanidade. Euclides aquelas paragens e o “centro” do país
à uma percepção universalista, racio- acreditava que se a França teve que vai alterando gradualmente suas certe-
nalista, teleológica e ontologizada do passar pela estágio de uma revolta zas tomadas de acordo com as teorias
tempo histórico. Remete à tradição anti-republicana também o Brasil teria aprendidas desde os anos de formação
iluminista, à crença da época que di- de passar pela mesma experiência his- militar. A subjetividade do homem Eu-
zia que a História tinha um “H” maiús- tórica. Esta idéia alimentou a constru- clides, então, interfere profundamente
culo, tinha um rumo único, etapas de ção ideológica do movimento de Canu- na certeza do intelectual que era. Lá
desenvolvimento bem estabelecidas e dos com sendo o principal obstáculo à pelas tantas, no meio do caminho en-
universais (as mesmas para todas as evolução civilizacional brasileira, que tre Salvador e Monte Santo, Euclides se
sociedades). Diz respeito, portanto, na época era sinônimo de República. ajoelha e reza junto com os sertanejos,
àquelas compreensões que o próprio Passada a Guerra e depois de sua ex- num povoado simples, ao lado dos ser-
Euclides tinha, antes viajar ao sertão, periência no front de batalha, Euclides tanejos, prenhes daquela religiosidade
sobre a Guerra de Canudos. Dizia ele revê essa noção e faz, n’Os Sertões, simples e sincrética que lhe é própria.
que Canudos era um movimento aná- um verdadeiro mea culpa republicano. E lembre-se que Euclides era um repu-
logo à Revolta da Vendéia, movimento O conceito de memória, por sua vez, blicano fervoroso, militar positivista e,
monárquico contrário à República pro- se relaciona à produção da memória obviamente, anticlerical. Mas a pro-
clamada na França em 1879. Euclides social deste conflito, onde Euclides ximidade, a influência da ambiência
faz um paralelo entre os anti-repu- ção: os candidatos que apoiava sempre saíam social que ele experimentou indo para
blicanos franceses – les chuan – e os vencedores. Com a queda da monarquia, ma- profundo Brasil fazem-no relativizar
jagunços liderados pelo Conselheiro. nifestou-se em protesto profetizando que o isso. E é aí, na minha opinião que come-
fim do mundo seria em 1900. Retirou-se com
 Antônio Vicente Mendes Maciel, dito Antô- os seus adeptos para Canudos, às margens do ça a aparecer a força dos oximoros que
nio Conselheiro (1828-1897): chefe religioso rio Vaza-Barris. Aí fundou uma “cidade santa”, ele utiliza: Tróia de Taipa (Canudos),
brasileiro, que comandou a Guerra de Canu- comunidade baseada na propriedade coletiva Hércules-Quasímodo (o sertanejo). No
dos, na Bahia. Exerceu várias profissões antes da terra e dos rebanhos, limitando-se a pro-
de se tornar beato e pregador. Depois de per- priedade privada às casas e aos bens móveis. outro plano, o relativo à construção
correr todo o interior nordestino, chegou a Ita- Em pouco tempo entrou em conflito com os da identidade nacional, deve-se voltar
picuru de Cima (BA), onde foi preso sob acu- grandes proprietários da região. A situação ao oximoro novamente, mas para ob-
sação de assassinato. Provando sua inocência, agravou-se, provocando a intervenção federal
foi libertado e voltou a caminhar pelo sertão. (1896-1897). Quatro expedições oficiais foram servar a tensão entre a Ciência e sua
Sua fama de milagreiro crescia sem encontrar necessárias para derrotá-lo e a sua gente. O proclamada “objetividade”. Como já
oposição nos padres do interior, que viam nas episódio de Canudos está contado no livro de disse, Euclides desnuda os limites des-
suas pregações um elemento favorável ao re- Euclides da Cunha, Os sertões. Morreu dois
nascimento da fé entre a população. Sua força dias antes da derrota dos seus homens pelas sa “objetividade” universal, e, portan-
se revelava principalmente em época de elei- tropas federais. (Nota da IHU On-Line)

30 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


to, do próprio conteúdo emancipatório
da ciência, Quando ele afirma que a
“Como pensar o Brasil nacional, da definição sobre quem
é o brasileiro pressupõe que aceite-
“campanha de Canudos foi um crime.
Denuncie-mo-lo”, como o faz na Nota
com nossos critérios? mos o artesanato lingüístico-popular
que temos nas ruas, em cada esqui-
Preliminar do livro, ele está apontan-
do para um problema epistemológico
Como olhar para nós na do Brasil. Euclides coleta isso lá
no sertão. Depois dele, Guimarães
sério que só depois da Segunda Guerra
Mundial o Ocidente começou a encarar.
mesmos despidos de Rosa reinventará isso e de maneira
absolutamente brilhante.
Afinal, o genocídio de Canudos foi feita
em nome do Progresso Nacional, contra
preconceitos que IHU On-Line – Quais os principais di-
lemas que envolvem a formação his-
“rebeldes monárquicos” inventados,
onde os liderados pelo Conselheiro ti-
fizeram parte da nossa tórica do Brasil e em que sentido Eu-
clides da Cunha contribuiu para esse
veram apenas o papel de bucha de ca-
nhão, pois foram “construídos” na mí-
própria formação? Este debate?
Marçal de Menezes Paredes – Em
dia da época, como os inimigos do país.
Euclides faz um mea culpa republicano
ainda é o nosso desafio minha opinião, o principal dilema
em seu livro.
e este também era o que temos, ainda hoje, para pensar-
mos a formação histórica da cultura
IHU On-Line – Como a proximidade
com o sertão modificou a compreen-
desafio de Euclides” brasileira diz respeito aos critérios
a serem utilizados. Como pensar o
são de Euclides da Cunha do sertane- Brasil como nossos critérios? Como
jo e da nacionalidade brasileira? brasileiro? olhar para nós mesmos despidos de
Marçal de Menezes Paredes – A proximi- Marçal de Menezes Paredes – A preconceitos que fizeram parte da
dade foi o grande motivo da mudança de questão as identidades nacionais nossa própria formação? Este ainda
opinião de Euclides da Cunha. Depois de é bastante complexa e mereceria é o nosso desafio e este também era
ver que aquele jagunço era forte, honra- maior espaço para um adequado o desafio de Euclides (e ele estava
do, bom de briga e, sobretudo, um tipo desenvolvimento. Contudo, quero consciente disso, creio). Por isso,
brasileiro que estava muito adaptado destacar uma coisa: mesmo sendo usa o oximoro, como tentei atrás ex-
à região, Euclides modifica sua opinião um verdadeiro obcecado pela forma plicar. Sua contribuição é, portanto,
sobre ele. Passa de uma condenação su- literária – ele mexeu e alterou in- fundamental. Os Sertões é uma obra
mária a um elogio (embora às vezes am- cessantemente no estilo de todas as matricial para pensarmos a cultura
bíguo). O sertão fez com que a certeza reedições que o livro teve enquan- brasileira porque ela inaugura a per-
dele sofresse um processo de descentra- to esteve vivo – Euclides teve muito cepção desta tensão epistemológica
mento radical e é esse descentramento respeito com os cadernos de notas e cultural ao mesmo tempo.
que cauciona a relativização daquela an- dos jagunços, que os soldados do
terior condenação do jagunço. De inimi- exército coletaram depois da queda
go público numero 1 ele passa a “rocha de Canudos. Notas escritas com er-
viva da nacionalidade”. Portanto, a via- ros gramaticais e ortográficos gran-
gem à Monte Santo foi importantíssima des, mas Euclides os transcreve na
 João Guimarães Rosa (1908-1967): escritor,
nesse processo. íntegra, deixando manifesto com a médico e diplomata brasileiro. Como escritor,
grafia dos jagunços as profecias de criou uma técnica de linguagem narrativa e
Antonio Conselheiro. Acho que isso descritiva pessoal. Sempre considerou as fon-
IHU On-Line – Como entender a ad- tes vivas do falar erudito ou sertanejo, mas,
miração de Euclides da Cunha pelo dá um bom exemplo da honestida- sem reproduzi-las num realismo documental,
jagunço? de intelectual do autor de Os Ser- reutilizou suas estruturas e vocábulos, estili-
tões e, em ultima análise, mostra zando-os e reinventando-os num discurso mu-
Marçal de Menezes Paredes – A admi- sical e eficaz de grande beleza plástica. Sua
ração dele pelo jagunço se alimenta um respeito grande pela memória obra parte do regionalismo mineiro para o uni-
do fato de ele enxergar no sertanejo coletiva dos sertanejos. No limite versalismo, oscilando entre o realismo épico
isso lembra um pedaço do Manifesto e o mágico, integrando o natural, o místico,
aquilo que mais faltava aos brasileiros o fantástico e o infantil. Entre suas obras, ci-
urbanos, do centro do país: amor a ter- Pau Brasil, publicado 26 anos depois tamos: Sagarana, Corpo de baile, Grande ser-
ra, apego ao seu quinhão de origem, por Oswald de Andrade: “A contri- tão: veredas, considerada uma das principais
buição milionária de todos os erros. obras da literatura brasileira, Primeiras estó-
bravura na luta, harmonia social. rias (1962), Tutaméia (1967). A edição 178 da
Como falamos. Como somos”. Falar IHU On-Line, de 02-05-2006, dedicou ao autor
IHU On-Line – Pode explicar a forma de memória coletiva e identidade a matéria de capa, sob o título Sertão é do
 Oswald de Andrade (1890-1954): poeta, tamanho do mundo. 50 anos da obra de João
como Euclides da Cunha focaliza a romancista e dramaturgo. Nasceu em São Guimarães Rosa, disponível para download em
construção de discursos sobre a me- Paulo, e estudou na Faculdade de Direito do http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/
mória coletiva e qual é a sua relação Largo São Francisco. Sua poesia é precursora edicoes/1158345778.17pdf.pdf. De 25 de abril
do movimento que marcou a cultura brasileira a 25-05-2006 o IHU promoveu o Seminário Gui-
com as identidades nacionais para na década de 1960, o Concretismo. (Nota da marães Rosa: 50 anos de Grande Sertão: Vere-
recolocar a questão sobre quem é o IHU On-Line) das. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 31


“Enquanto o Governo alimentar a indústria da doença
o SUS será apenas uma grande ideia”
Segundo o fisioterapeuta Gil Lúcio Almeida, muitos médicos levam cinco minutos
para definir um diagnóstico. Para ele, a atitude torna moralmente inaceitável que
o Conselho Federal de Medicina queira reivindicar para os médicos a primazia de
estabelecer diagnósticos

Por Patrícia Fachin

“D
efendemos as virtudes que os médicos agregam à vida. Porém, o projeto de lei
aprovado na Câmara dos Deputados é bastante corporativista”. A opinião é do
fisioterapeuta Gil Lúcio Almeida, docente da Unicamp, em entrevista concedida
por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, o maior problema do projeto de lei do
ato médico é o fato de ele ser muito específico, “dando aos médicos o direito
de exercer com exclusividade atos privativos ou compartilhados com outros profissionais”. Se a lei do
ato médico for sancionada pelo presidente Lula, alerta o pesquisador, o Conselho Federal de Medicina
– CFM “pode tentar usar a lei para subjugar os profissionais da saúde, impedindo que a população
tenha o livre acesso a esses serviços. Isso vai aumentar ainda mais os custos com saúde”.
Gil Lúcio Almeida é doutor em Fisioterapia pela Iowa State Univeristy e Rush Medical Center. É pro-
fessor do Programa de Biologia Funcional e Molecular do Instituto de Biologia da Unicamp desde 1995 e
do Curso de Pós-graduação em Fisioterapia da Unaerp. Também é presidente eleito do Conselho Regio-
nal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Estado de São Paulo – CREFITO-3. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o fundamento vida. Porém, o projeto de lei aprovado como fisioterapia, psicologia podem
do ato médico? na Câmara dos Deputados é bastante perder autonomia no processo de
Gil Lúcio Almeida - É um projeto de corporativista. No Brasil é livre o exer- atuação, caso o projeto seja apro-
lei que pretende regulamentar os atos cício de qualquer profissão e cada um vado e sancionado pelo presidente
privativos dos médicos. Alega o Con- pode fazer o que quiser, a menos que a Lula?
selho Federal de Medicina que essa lei proíba explicitamente. As leis que Gil Lúcio Almeida - As campanhas de
profissão é a única que ainda não foi criaram as 13 profissões da saúde são vacinação são um sucesso. Com a apro-
regulamentada, impedindo uma fis- bastante genéricas a ponto de não cer- vação do Projeto de Lei, a população
calização apropriada da profissão. Na cear essas garantias individuais. Essas vai ter que pegar uma receita médica
verdade, a medicina é, há muito, re- leis também não autorizam os Conse- para conseguir tomar uma vacina no
conhecida no Brasil. A prova maior é lhos a usar o poder de policia. O maior músculo. Os fisioterapeutas não pode-
que o CFM exerce todas as prerrogati- problema do projeto de lei do ato mé- rão fazer as costumeiras próteses e ór-
vas de uma autarquia pública federal dico é que ele é muito específico, dan- teses externas e tampouco ajudar as
autorizada pelo Estado para fiscalizar do aos médicos o direito de exercer pessoas a respirar melhor nas UTIs. A
o exercício dessa profissão. Inclusive, com exclusividade atos privativos ou população teria que pedir autorização
a própria Justiça do país já acolheu compartilhados com outros profissio- dos médicos para ser atendida por um
vários pedidos dos conselhos federais nais. Da forma aprovada, o CFM pode psicólogo.
e regionais. tentar usar a lei para subjugar os pro-
fissionais da saúde, impedindo que a IHU On-Line - No que se refere ao
IHU On-Line - Quais são, na sua opi- população tenha o livre acesso a esses  Órteses: refere-se unicamente aos aparelhos
nião, as implicações da aprovação do serviços. Isso vai aumentar ainda mais ou dispositivos ortopédicos de uso provisório,
destinados a alinhar, prevenir ou corrigir de-
ato médico, tal os custos com saúde. formidades ou melhorar a função das partes
como ele foi proposto? móveis do corpo. São exemplos de órteses as
Gil Lúcio Almeida - Defendemos as IHU On-Line - Em que medida pro- palmilhas ortopédicas, tutores, joelheiras,
coletes, munhequeiras entre outros. (Nota da
virtudes que os médicos agregam à fissionais de outras áreas da saúde IHU On-Line)

32 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


acesso à saúde, que alterações a população.
aprovação do ato médico pode pro-
vocar? A atividade médica pode per- IHU On-Line - Em que medida o ato
der a perspectiva da interdisciplina- médico pode ser um obstáculo à saú-
riedade? de coletiva?
Gil Lúcio Almeida - Como já coloca- Gil Lúcio Almeida - Não existe saúde
do, o CFM, que possui um histórico coletiva sem um diagnóstico e uma
corporativista, poderia tentar usar seu prescrição terapêutica feita por uma
poder de polícia para tentar impedir equipe multidisciplinar. O projeto de

Leia as Notícias do Dia e a Entrevista do Dia


que a população tenha livre acesso lei iria apenas espalhar o ódio onde
aos serviços dos profissionais de saú- hoje impera a paz e o respeito entre
de. Isso porque a lei estabelece que os profissionais da saúde.
o diagnóstico da doença e a prescri-
ção terapêutica seria um ato privativo IHU On-Line - Qual é a importância

no endereço www.ihu.unisinos.br
do médico. O Estado não pode aceitar de discutir o ato médico tendo o SUS
que um profissional da saúde não saiba como pano de fundo?
fazer o diagnóstico da doença que está Gil Lúcio Almeida - Enquanto o Go-
tratando. O fato é que as doenças não verno alimentar a indústria da doença
possuem um diagnóstico único e cada o Sistema Único de Saúde (SUS) será
profissional foca em um aspecto da apenas uma grande ideia, mas sem re-
doença. Os médicos precisariam de 50 solutividade. Contratar os profissionais
anos de estudo para adquirir as habi- da saúde e colocá-los para atuar em
lidades e competências para fazer um equipes multidisciplinares na família,
diagnóstico multiprofissional. Infeliz- nas escolas e na indústria e comércio é
mente, os médicos gastam hoje apenas o caminho para implementar o SUS na
5 minutos para fechar um diagnóstico, sua plenitude.
o que não dá tempo para sequer saber
os dados pessoais do paciente. Logo,
não me parece ético e moralmente Leia mais...
aceitável que o CFM queira reivindicar
para os médicos a primazia de fazer >> SUS: 20 anos de curas e batalhas, edi-
ção 260 da IHU On-Line, de 02-06-2008, dispo-
diagnóstico. nível no link http://www.ihuonline.unisinos.br/
uploads/edicoes/1212435884.3956pdf.pdf
IHU On-Line - Na área da saúde co-
>> Saúde coletiva. Uma proposta integral e
letiva foi superada a ideia de que a transdisciplinar de cuidado, edição 233 da IHU
saúde se resume a um modelo mé- On-Line, de 27-08-2007, disponível no link
dico-centrado. Nesse sentido, o ato http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/
edicoes/1188245454.71pdf.pdf
médico é um contra-senso? Partindo
desta perspectiva (saúde coletiva), >> O ato médico, edição 188 da IHU On-Line,
é possível pensar em um cuidado in- de 04-10-2004, disponível no link http://
www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/
tegral caso o ato médico seja apro- 1158265154.97pdf.pdf
vado?
Gil Lúcio Almeida - O Estado reali-
za anualmente 1 bilhão de consultas  Sistema Único de Saúde (SUS): criado pela
Constituição Federal de 1988 e regulamentado
médicas que geram meio bilhão de pelas Leis n.º 8080/90 (Lei Orgânica da Saú-
exames e um gasto bilionário com de) e nº 8.142/90, com a finalidade de alte-
medicamentos. Apesar dessa grande rar a situação de desigualdade na assistência
à Saúde da população, tornando obrigatório
cobertura, temos 50 milhões de por- o atendimento público a qualquer cidadão,
tadores de doenças crônicas e ainda sendo proibidas cobranças de dinheiro sob
vivemos uma década a menos do que qualquer pretexto. Do SUS fazem parte os cen-
tros e postos de saúde, hospitais - incluindo
poderíamos. No Brasil o Ministério da os universitários, laboratórios, hemocentros
Saúde está a serviço da indústria da (bancos de sangue), além de fundações e insti-
doença. Para mudar essa realidade é tutos de pesquisa, como a Fiocruz - Fundação
Oswaldo Cruz e o Instituto Vital Brazil. Con-
preciso contratar e colocar as virtudes fira a edição 260 da Revista IHU On-Line, de
dos 3 milhões de profissionais a serviço 02-06-2008, intitulada SUS: 20 anos de curas
da vida. Essa medida vai reduzir cus- e batalhas, disponível para download em
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/
tos e melhorar a qualidade de vida da edicoes/1212435884.3956pdf.pdf. (Nota da
IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 33


Ato médico: na contramão da saúde coletiva
Na avaliação de Élida Azevedo Hennington, o conteúdo do ato médico aponta preo-
cupações corporativas e não leva em consideração a realidade social

Por Patrícia Fachin

“A
credito que o ato médico como apresentado hoje está na contramão de uma visão
mais ampliada e integral de saúde e das formas de construção de projeto terapêu-
ticos de maior alcance e efetividade”, diz a pesquisadora da Fiocruz, Élida Azevedo
Hennington, em relação ao projeto de lei do ato médico aprovado pela Câmara
dos Deputados. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, a
pesquisadora defende a regulamentação das profissões e argumenta que percebe “uma motivação legí-
tima por parte da categoria médica de regulamentar a profissão, mas ao mesmo tempo o seu conteúdo
aponta preocupações meramente corporativas, sem levar em consideração a realidade social e o desejo
dos demais atores envolvidos com o tema saúde que é caro a todos nós”. Na opinião de Elida, uma me-
dida que causa tamanha reação negativa como o projeto de lei do ato médico, “já demonstra o caráter
controverso da proposta e a necessidade de um maior debate em torno dos pontos polêmicos”.
Élida Azevedo Hennington é graduada em Medicina pela Universidade Federal Fluminense – UFF,
mestre e doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente
é docente da Fundação Oswaldo Cruz, do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa clínica em doenças
infecciosas do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec/Fiocruz). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as dife- to, o estabelecimento de atos priva- IHU On-Line - Em que sentido a
renças entre o projeto original, de tivos à determinada categoria pro- proposta de lei do ato médico pode
2002, e a atual proposta de regula- fissional deve ser democraticamente oferecer uma nova perspectiva
mentação do ato méco? debatido, de forma ampla e ouvindo para a medicina? Tal projeto pode
Élida Azevedo Hennington - Pelo o além das corporações, o Estado e a suscitar, diferente da ideia inicial,
que pude acompanhar, não são mais própria sociedade civil. Uma medi- um debate sobre a atualidade da
atividades privativas dos médicos “os da regulatória que causa tamanha profissão médica?
diagnósticos psicológico, nutricional reação negativa por parte de prati- Élida Azevedo Hennington - Nesse
e socioambiental, e as avaliações camente 100% das outras profissões sentido foi até bom que surgisse o
comportamental e das capacidades de saúde por si só já demonstra o debate em torno da profissão. Vai
mental, sensorial, perceptocognitiva caráter controverso da proposta e a depender da sociedade e de seu
e psicomotora” e também foi retira- necessidade de um maior debate em jogo de forças e interesses refletir e
do “o estímulo cutâneo em tonifica- torno dos pontos polêmicos. se posicionar sobre qual medicina a
ção ou sedação”, abrindo a possibili- sociedade brasileira deseja e qual o
dade de outras profissões exercerem IHU On-Line - Quais são, para a se- papel do médico no cenário da saú-
a acupuntura, por exemplo. nhora, as motivações que estão por de, espero eu, em consonância com
trás do ato médico? as demais profissões de saúde, a
IHU On-Line - Quais são, na sua Élida Azevedo Hennington - Eu vejo partir das necessidades de saúde da
opinião, as implicações da aprova- uma motivação legítima por parte da população e do bem comum.
ção do ato médico, tal como ele foi categoria médica de regulamentar a
proposto? Esta proposta tem fun- profissão, mas ao mesmo tempo o IHU On-Line - A medicina precisa se
damento? seu conteúdo aponta preocupações atualizar no sentido de compreen-
Élida Azevedo Hennington - A re- meramente corporativas, sem levar der que atuação na área da saúde
gulamentação de qualquer profissão em consideração a realidade social não é uma prerrogativa apenas dos
é algo necessário e desejável e faz e o desejo dos demais atores envol- médicos?
parte da história das profissões, or- vidos com o tema saúde que é caro Élida Azevedo Hennington - Cer-
ganizando e regulando a sua forma a todos nós. tamente. Entendendo-se que saúde
de atuação na sociedade. No entan- não é mercadoria e cabe a nós tra-

34 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


balhadores da saúde fundamental- “A saúde está para que existe esse movimento constante
mente a defesa da vida, não é acei- e histórico de resgate dos preceitos
tável que a medicina queira tornar além do diagnóstico e éticos e de compromisso inalienável
privativo certas ações e procedi- com a saúde das pessoas, compro-
mentos e limitar a atuação de outras da prescrição” misso que vem desde Hipócrates e
profissões que estão aí no dia-a-dia que muitas vezes quase se perde em
prestando assistência, reconhecidos meio ao modo de funcionamento de
pela sociedade e contribuindo de mentação da estratégia de saúde da uma sociedade capitalista como a
maneira decisiva para a melhoria da família e da política de humaniza- nossa que coloca a saúde e a medici-
saúde das pessoas. Basta observar a ção, ainda estamos longe, penso eu, na em constante tensionamento com
crescente busca por práticas com- de superar esse modelo e implemen- a lógica de mercado.
plementares/alternativas de saúde. tar ações e práticas de saúde assen-
Já está mais do que provado que a tadas numa concepção de trabalho IHU On-Line - Gostaria de acrescen-
medicina não consegue dar conta so- multiprofissional e interdisciplinar, tar algo que considera importante?
zinha das necessidades de saúde da numa perspectiva de horizontali- Élida Azevedo Hennington - Mais
população e muitas vezes ela pode dade, em que as várias profissões uma vez ressaltar que as discussões
ser até mesmo prejudicial, iatrogê- possam contribuir igualmente e de e demandas de cunho corporativo
nica. Sabemos também que não deve maneira de conjugar e integrar os di- sempre existiram e existirão e não
ser a lógica de mercado, incluindo versos conhecimentos na construção são um mal em si, servindo até para
o mercado de trabalho, a principal de um projeto terapêutico comum, sacudir a sociedade e propiciar a dis-
indutora de atos de regulamentação construído em conjunto e para de- cussão de temas controversos e rele-
das profissões, pois isto leva a sé- terminado sujeito, em prol da saúde vantes e que afetam a vida de to-
rias distorções e contraria precei- do usuário. A saúde está para além dos nós. Assim como a medicina, as
tos importantes como a imperiosa do diagnóstico e da prescrição. outras corporações também buscam
necessidade de uma abordagem de defender seus desejos e interesses,
equipe multiprofissional e interdis- IHU On-Line - Qual é a importância lutando em determinados momen-
ciplinar para construir intervenções de discutir o ato médico tendo o tos por ampliação e/ou reserva de
mais efetivas referentes ao proces- SUS como pano de fundo? mercado. O que não se deve admitir
so saúde-doença. Além disso, não se Élida Azevedo Hennington - Acre- é que esses desejos e interesses se
pode desconsiderar o Sistema Úni- dito que o ato médico como apre- sobreponham às necessidades da po-
co de Saúde, conquista histórica do sentado hoje está na contramão de pulação. Por isso, é importante es-
povo brasileiro, cujas políticas estão uma visão mais ampliada e integral tender e aprofundar o debate para
alicerçadas numa atuação solidária de saúde e das formas de construção que os diferentes atores exponham
e cooperativa visando o enfrenta- de projeto terapêuticos de maior e discutam abertamente os pontos
mento dos grandes desafios postos à alcance e efetividade. Não há como críticos, as divergências junto com o
saúde pública. pensar o SUS sem a participação dos Estado e a sociedade civil para que
diferentes atores - gestores, traba- juntos consigam superar os conflitos
IHU On-Line - Em outra entrevista lhadores, usuários - e das diferentes e construir consensos, que ainda que
que concedeu à nossa revista, a profissões contribuindo com sua ex- provisórios, tenham sempre como
senhora disse que na área da saú- pertise, solidariamente e respeitan- base o bem comum.
de coletiva foi superada a ideia de do-se as competências e especifici-
que a saúde se resume a um mode- dades de cada uma, mas visando,
lo médico-centrado. Nesse sentido, sobretudo enfrentar os desafios da
que alterações a aprovação do ato atenção à saúde da forma competen-
médico pode provocar na área da te do ponto de vista técnico-cientí-
saúde coletiva? A atividade médica fico, mas também assumindo uma Leia mais...
pode perder a perspectiva da in- postura ético-política de oferecer >> A IHU On-Line produziu uma edição
terdisciplinariedade? atenção humanizada e digna. especial sobre o ato médico, em 4-10-2004.
Élida Azevedo Hennington - Eu creio A edição número 118 está disponível no link
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/
que o ato médico acaba reforçando IHU On-Line - Podemos dizer que edicoes/1158265154.97word.doc.
uma prática ainda comum nos ser- este debate em torno do ato médi- Nesta edição Élida Azevedo Hennington concedeu
viços de pautar a atenção à saúde co reflete em alguma medida uma a entrevista Ato médico: para que e para quem?
>> Germinal e o mundo do trabalho. Entrevista
tomando o modelo da biomedicina, discussão entre uma medicina ofi- especial com Élida Azevedo Hennington, publi-
médico-centrado e hospitalocêntri- cial e uma nova medicina? cada nas Notícias do Dia 19-09-2006, disponível
co. Ainda que se observem avanços Élida Azevedo Hennington - Eu diria para download em http://www.ihu.unisinos.br/
index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task
importantes nesse campo, como a que essa nova medicina já não é nem =detalhe&id=156
ampliação da rede básica, a imple- tão nova assim - na verdade, penso

SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318 35


Espanha: Mídia e
responsabilidade social
Referir-se à responsabilidade social (RS) dos
meios de comunicação implica em avaliar o papel
que estes cumprem no seio das economias de mercado
no que diz respeito a questões tão delicadas como a
educação, a saúde, o desenvolvimento sustentável ou
o meio ambiente.

Por Luis A. Albornoz*

O Laboratório da Fundação Alter- des grupos empresariais, reconversão


nativas (Espanha) acaba de publicar tecnológica e consolidação da rede
o relatório La responsabilidad social Internet, entre outros aspectos im-
corporativa ante la crisis. Informe portantes.
2009 (ver: www.falternativas.org). Devido ao valor estratégico dos
Coordenado por profissionais da em- meios de comunicação frente à
presa de consultoria Global Sustain- opinião pública (formulação e difu-
nability Services de KPMG, este tra- são de padrões, modelos e estere-
balho examina as responsabilidades ótipos), o informe argumenta que
sociais (RS) das empresas espanholas “as companhias do setor deveriam
num contexto específico de aguda cri- contemplar os mais altos níveis de
se econômica: queda do PIB, recessão transparência e ir além do simples
econômica e aumento da taxa de de- cumprimento da legislação e regu-
semprego. lações aplicáveis, adotando avança-
Uma parte deste novo trabalho dos códigos de comportamento que
está dedicada à análise de alguns levem em consideração sua impor-
setores-chave para a economia es- tante função de serviço à sociedade
panhola: o turístico, o transporte aé- e a influência positiva ou negativa
reo, as pequenas e médias empresas que possam exercer sobre diversos
e os meios de comunicação. No caso grupos de interesse”.
deste último, o relatório destaca as Além do papel de incidência dos
importantes transformações pelas meios de comunicação, não se pode
quais está passando: perda de mais deixar de mencionar certas obriga-
de 3.000 postos de trabalho entre o ções como transparência, veracidade
segundo semestre de 2008 e o primei- e imparcialidade que as empresas têm
ro de 2009, reconfiguração dos gran- para com os seus trabalhadores, audi-

* Doutor em Ciências da Comunicação. Professor da Universidade Carlos III de Madri, presidente


da União Latina de Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura (ULEPICC) e coorde-
nador do Observatório de Cultura e Comunicação da Fundação Alternativas (www.falternativas.
org/occ-fa). Integrante do CEPOS.

36 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


ências, organizações sociais, alianças a promover a sustentabilidade e o res-
institucionais e empresariais, anun- peito pelo meio ambiente, e o próprio
ciantes, sócios tecnológicos e para comportamento dos agentes empresa-
com a sociedade. É evidente que, ao “Num presente riais na sua gestão responsável de re-
existir uma RS neste terreno, os mem- cursos (energia, água e resíduos).
bros das audiências não podem ser turbulento, os cidadãos Além desses louváveis desafios,
considerados como meros consumido- o estudo dos comportamentos das
res ou clientes. olham com desconfiança empresas de comunicação em con-
Neste sentido, o relatório assinala textos específicos, tanto na Espanha
três desafios principais que as empre- as instituições como em outros países, assinala que
sas de comunicação devem afrontar: o conjunto de princípios que dão
1. Exibir um comportamento ético: empresariais em geral, vida à doutrina corporativa da RSC
neste sentido, é relevante “a indepen- é, na melhor das hipóteses, um in-
dência produtiva sem a influência dos e os meios de grediente de um cenário utópico ou,
proprietários da mídia ou dos aspectos na pior, simplesmente uma maquia-
comerciais, como o ganho ou a perda comunicação em gem empresarial dos tempos de crise
de publicidade”. As empresas devem em que estamos vivendo.
ser “excepcionalmente transparentes particular” Num presente turbulento, os ci-
em matéria de contabilidade, audi- dadãos olham com desconfiança as
torias, políticas editoriais e tipos de instituições empresariais em geral,
mativa honesta e precisa desempenha
financiamento que possam influir nos e os meios de comunicação em par-
um papel vital na hora de limitar os
conteúdos publicados, incluindo anun- ticular, setor este que é um dos úl-
possíveis abusos econômicos, sociais
ciantes e subvenções recebidas, entre timos a se interessar pela RSC. Com
e ambientais que possam ser come-
outros”. ou sem esta, por quanto tempo os
tidos”.
2. Contribuir para o desenvolvi- gestores de comunicação continua-
3. Fomentar o desenvolvimento
mento social: um aporte que deve rão fugindo as suas responsabilida-
ambiental: mediante a elaboração e
estar sustentado no princípio da vera- des sociais?
circulação de conteúdos que tendam
cidade, já que “uma cobertura infor-

Mídia e boas ações: para compreender melhor


O relatório 2009 de responsabi- associação de organizações in- audiovisuais (televisão, cine e In-
lidade social corporativa na Espa- ternacionais (BBC World Service ternet) problemáticas relacionadas
nha resenha três exemplos de “boas Trust, Fundação Reuters, Fundação com questões humanitárias e com
práticas” no terreno das empresas Thompson e TVEAP; por exemplo) o desenvolvimento sustentável nos
de comunicação: a Aliança de co- e de profissionais comprometidos países da região Ásia-Pacífico.
municações para o desenvolvimento em empregar as comunicações para
sustentável (Com+ Alliance), a Tele- promover a visão de um desenvolvi- Finalmente, o Grupo British Sky
visão para a educação Ásia-Pacífico mento econômico, social e ambien- Broadcasting (www.sky.com) está
(TVEAP) e o plano “Neutros em car- tal sustentável em escala mundial. trabalhando para reduzir as emis-
bono” do Grupo britânico Sky Bro- sões de CO2. Para isso, pôs em
adcasting. A TVEAP (www.tveap.org) é uma prática um plano de fornecimento
organização independente e sem de energia para suas instalações e
A Com+ Alliance (www.com- fins lucrativos que dedica os seus es- um programa de compensação de
plusalliance.org) é o resultado da forços a comunicar através de meios emissões.

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Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponí- “Até hoje não existe uma clara ideia do que é tecno-
veis nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisi- logia limpa’’
nos.br) de 01-12-2009 a 04-12-2009. Entrevista com José Marengo
Confira nas Notícias do Dia de 03-12-2009
As perspectivas do mercado de carbono Para o físico José Marengo, países ricos, pobres e em
Entrevista com Flávio Gazani desenvolvimento devem ter metas diferenciadas em
Confira nas Notícias do Dia de 01-12-2009 relação às emissões de gases de efeito estufa. Embora
O advogado especialista em Direito Ambiental, Flávio diferenciadas, as metas devem ser obrigatórias. Marengo
Gazani, fala sobre as movimentações e perspectivas falou sobre as metas de redução de emissão de gases dos
do mercado de carbono, e quanto às expectativas para EUA, China e Brasil.
a Conferência do Clima em Copenhague, bem como a
“moda” da sustentabilidade entre as empresas. Confecom. As propostas do governo e a democratiza-
ção da comunicação
Dorothy Stang. Um crime ainda impune Entrevista com Jonas Valente
Entrevista Kátia Webster Confira nas Notícias do Dia de 04-12-2009
Confira nas Notícias do Dia de 02-12-2009 Jonas Valente, do Intervozes, fala sobre as propostas
“O principal legado que a Dorothy deixou foi a forma como que o governo pretende discutir na Conferência Na-
ela viveu, ou seja, tratando a terra como se fosse sua cional de Comunicação, assim como os eixos centrais
mãe”, revela a irmã Kátia. Ela relembra momentos da vida que devem fazer parte dos debates do evento. Precisa-
da irmã Dorothy Stang, com quem trabalhou durante 11 mos modernizar a nossa legislação, disse o jornalista. O
anos, no Pará, lutando pelos pobres que não têm terra e evento é fruto da luta dos movimentos que defendem a
são oprimidos pelos madeireiros e fazendeiros da região. democratização da comunicação.

Leia as Notícias do Dia em

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Confira as publicações do
Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica


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40 SÃO LEOPOLDO, 07 DE DEZEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 318


IHU Repórter
Adevanir Aparecida Pinheiro
Por Patricia Fachin | Foto Arquivo Pessoal

A
infância difícil, vivida no norte do Paraná e em São Paulo, despertou
em Adevanir Aparecida Pinheiro, conhecida, na Unisinos, como Deva,
a vontade de trabalhar com movimentos sociais e lutar por direitos
igualitários. Militante, ela sempre foi engajada nas pastorais sociais,
como grupo de mulheres, famílias negras, meninos de rua e, hoje, na
universidade, segue trabalhando na organização dos trabalhos com o GDIREC,
sob a assessoria geral do Pe. José Ivo Follmann e coordenação do Irmão Inácio
Spohr. Deva coordena também projetos afrodescendentes no sentido de contri-
buir com a Implementação da Lei 10639/2003 e possibilitar melhor acesso para
a população negra na Universidade. Na entrevista que segue, a assistente social
conta alguns aspectos de sua trajetória, fala do racismo existente na academia,
e do sonho de ver negros, brancos e índios comungando e tratando a reeducação
das relações étnico-raciais como ponto de partida para uma sociedade justa.
Confira a seguir.

Origens - Sou natural do Paraná. Mi- retornei ao Paraná e trabalhei mais um Romarias da Terra na fazenda Annoni,
nha família é mineira, mas mudou para tempo na roça e também de empregada no RS. Meu pai tinha vergonha do meu
o norte do Paraná no final da história do doméstica. De lá, fui para Santa Catari- envolvimento com os Sem-Terra. Ele di-
“Café com Leite”, após serem dispensa- na onde morei por um tempo numa casa zia: “Por que você tem que morar com
dos da fazenda dos Majós (antigos fazen- de formação religiosa e fui trabalhar no os Sem-Terra? Você tem um pedaço de
deiros) em Minas Gerais e com o obje- Parque Dom Bosco, em Itajaí, com crian- terra, não precisa acompanhá-los”. Mais
tivo de superar a situação de pobreza. ças e adolescentes do Morro da Cruz. A tarde, ele acabou gostando da Romaria
Nesta região, meus pais, pequenos agri- partir daí, passei a trabalhar nos Direitos da Terra lá no Paraná e entendeu o meu
cultores, trabalhavam com plantação Humanos de Itajaí, com grupo de mulhe- trabalho. Até hoje acompanha a luta dos
de café, arroz e milho. Nós somos sete res na delegacia da mulher e trabalhei movimentos sociais que apoiam os ne-
irmãos, um é de criação. Todos estuda- no presídio central do município com gros, os Sem Terra e os bóias-frias.
ram; eles concluíram o segundo grau e as famílias dos presos e organizei o pri-
optaram pelo casamento, e eu decidi meiro movimento negro na cidade. Em Movimento afrodescendente - De
continuar meus estudos. Trabalhei por 1991, mudei para São Leopoldo, onde 1990 até 1998, trabalhei na Pastoral do
um período na roça, ajudando minha fa- já havia também organizado a primeira Menor, com meninos de rua. Depois, fui
mília, e, depois, fui morar em São Paulo pastoral negra na Paróquia José Beato promovida para trabalhar na Universi-
com meus tios e trabalhar de emprega- de Anchieta com assessoria do Pe. José dade. Já em 1994, ingressei na Unisinos
da doméstica, com 11 anos. Eu pulava o Ivo Follmann, Pe. Levino Camilo e depois como bolsista do padre José Ivo Foll-
muro da casa da madame à noite, na Av. com o Pe. Luiz Haas e o Pe. Constâncio. mann. Concluí a graduação em Serviço
Rebouças, esquina com a Faria Lima, em A Pastoral negra se tornou, mais tarde, o Social, e especializei-me em famílias de
São Paulo, para estudar; com 14 anos, Grupo Zumbi dos Palmares, o que hoje é raízes africanas do norte do Paraná. Meu
ia para a escola escondida, acompanha- a DIMPPIR. Esse trabalho teve seu início orientador foi o Pe. Hilário Dick. Nesse
da da minha amiga Nara. A madame não com os jesuítas na Paróquia José de An- trabalho, coletei depoimentos dos meus
queria que eu estudasse porque tinha de chieta, na Vila Duque de Caxias. Assim, pais e aprofundei minhas raízes. Foi uma
acordar cedo para trabalhar. iniciei minha trajetória nos movimentos experiência muito legal, aguçou ainda
sociais: atuei no Movimento dos Traba- mais minha identidade negra. Fiz o mes-
Trabalho com movimentos sociais - lhadores Rurais Sem-Terra, na Fazenda trado em Ciências Sociais, analisando as
Depois de ficar um período em São Paulo, Santa Rita, em Canoas, acompanhei as práticas sociais religiosas e a emancipa-

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ção dos sujeitos aqui na Unisinos. criando as condições de acesso para a Doutorado - Quando fui contatada
Em 1999, fui contratada para organi- população negra na educação, no Brasil. para iniciar o doutorado, apresentei meu
zar o programa das religiões, e, enquan- Nesse momento, percebi que estávamos tema e o assunto que gostaria de pesqui-
to esse trabalho foi sendo construído, fui no caminho certo, porque iniciamos nos- sar. Estou desenvolvendo a pesquisa so-
também organizando o primeiro grupo sos trabalhos antes mesmo da promulga- bre a temática da branquitude e da ne-
de estudantes afrodescendentes na uni- ção da assinatura e aprovação da Lei, ou gritude em três estados: Paraná, Santa
versidade: O ECAU – Estudante Afro da seja, não inventamos trabalho nenhum Catarina e Rio Grande do Sul. A pesquisa
Unisinos. Esse grupo durou alguns anos na Universidade com a população negra, centra-se em torno da Lei 10.639/2003 e
e não teve mais como continuar. Depois, nós só adiantamos o processo de inclu- como se dá essa inclusão dos diferentes,
nesse processo, fui elaborando projetos são e de obrigatoriedade da Lei. Acho principalmente, no contexto acadêmico.
de Cidadania e Cultura Religiosa Afrodes- um absurdo ter de incluir os negros e os Já estou em fase final e tranquila diante
cendente, ao perceber que a população indígenas através de obrigatoriedade de desse trabalho de pesquisa. É um desa-
negra não tinha acesso à universidade. Lei. Mas se não se inclui por vias normais, fio para qualquer pesquisador, e isso é
Há seis anos, todas as sextas-feiras, en- porque não se enxerga o diferente, a Lei bom.
contramo-nos com essas famílias, jovens é necessária.
e adolescentes das vilas, dos bairros, ou Universidade e o movimento afro-
seja, da comunidade. Preconceito no Rio Grande do Sul descendente - Estou muito feliz porque
Durante dois anos, fiquei observando – Quando cheguei ao estado, percebi a “universidade” e, em especial os je-
as crianças negras que participavam da que, no Rio Grande do Sul, havia uma suítas, abraçaram a implementação da
Informática, de modo geral, e as crian- exclusão e uma cegueira muito séria em Lei de inclusão dos afrodescendentes.
ças do PEI na universidade. Percebia que relação ao negro. Nesta região, os bran- Padre José Ivo é o protagonista do traba-
elas não conseguiam chegar perto do cos não enxergavam os negros. Com o lho afro em São Leopoldo, e foi reconhe-
computador. Quando queriam se aproxi- tempo, compreendi que, em partes, isso cido pela população negra leopoldense
mar da máquina, outra criança pegava ocorre devido à colonização alemã nes- por isso. O MEC já tem clareza de que a
o lugar delas. Essa atitude deixava as se território. Os brancos empobrecidos Unisinos está assumindo um trabalho de
crianças negras inibidas e dificultava a e os indígenas também não são vistos. reeducação das relações étnico-raciais,
interação delas com a tecnologia. A par- Nesse sentido, o nosso trabalho de mi- que envolve a implementação da Lei
tir dessa realidade, elaborei um projeto litância acadêmica representa também nos currículos e nos diversos cursos da
de inclusão Digital Afrodescendente na um desafio para muitas pessoas na uni- academia. Na semana passada, aconte-
Unisinos para criar possibilidade de aces- versidade. Porque, até então, a história ceu o III Fórum de Implementação da Lei
so. Para nossa surpresa, hoje não damos verdadeira não foi contada nem para os dentro da universidade. O MEC sempre
conta dos negros, adultos, crianças, jo- brancos e muito menos para a popula- apoiou essas iniciativas em universida-
vens e adolescentes que participam e já ção negra. Com a Lei 10.639, todos os des federais, estaduais, mas aceitou que
conseguiram avançar neste aprendiza- saberes devem ser valorizados. A mu- o encontro acontecesse na Unisinos, que
do, inclusive com outra autoestima, com dança de paradigma mexe também com é confessional e privada, devido aos tra-
outra visão da universidade. Hoje eles as questões científicas e com as teorias, balhos que foram iniciados aqui antes da
realmente gostam de vir para a Unisinos ou seja, com o modo de pensar da aca- Lei. Hoje, estamos ligados à Secretaria
e falam disso com alegria, com perten- demia, que sempre viveu num conforto de Educação Continuada, Alfabetização
cimento, além de estarem preparados em termos de transdisciplinaridade. Há e Diversidade – Secad-Brasília, e a Unisi-
para o mercado de trabalho. Eles fazem outros saberes que a própria ciência nos tem espaço na comissão estadual do
seus currículos e aprendem, através da deixou para trás, e agora isso deve ser fórum de educação das relações étnico-
metodologia diferenciada, sobre sua his- resgatado. As tradições orais, as cultu- raciais. Esse é um trabalho também de
tória, identidade e sobre as celebridades ras africanas vêm da oralidade, e nada militância e, às vezes, para muitos inte-
negras, quilombos, ou seja, não ensina- se debateu sobre isso na academia. Tam- lectuais, a militância é questionada. Mas
mos apenas a informatização tecnológi- bém não se discute a história dos povos os autores que sigo dizem que a militân-
ca, vamos além, buscando resgatar essa indígenas nesta região. cia acadêmica também é científica. Sigo
história e origem da população negra, Muitas histórias ficaram esqueci- a metodologia de Paulo Freire e Flores-
que ficou muito apagada e esquecida no das, mas, na minha região de origem,  Paulo Freire (1921-1997): educador brasileiro.
Como diretor do Serviço de Extensão Cultural da
território leopoldense. as histórias são contadas e lembradas Universidade de Recife, obteve sucesso em pro-
Em 2003, foi alterada a Lei nº.9.394, com muito orgulho. Existe uma creche gramas de alfabetização, depois adotados pelo
de 20 de dezembro de 1996, que esta- chamada Dona Nina, em homenagem a governo federal (1963). Esteve exilado entre
1964 e 1971 e fundou o Instituto de Ação Cul-
belece as diretrizes e bases da educação uma parteira da cidade que fazia parto tural em Genebra, Suíça. Foi também professor
nacional, para incluir, no currículo oficial de todas as mulheres. Ela é minha avó. da Unicamp (1979) e secretário de Educação da
da Rede de Ensino, a obrigatoriedade da Na minha família, sempre partimos do prefeitura de São Paulo (1989-1993). Confira a
edição 223 da revista IHU On-Line, de 11-06-
temática “História e Cultura Afrobrasilei- princípio de tratar as pessoas como seres 2007, intitulada Paulo Freire. Pedagogo da es-
ra”, e das outras providências. Foram al- humanos diferentes na cor, na origem, perança, disponível para download em http://
terados os artigos 26-A, 79-A e 79-B. Com mas iguais nos direitos, na humanidade www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/
1181737027.4pdf.pdf. (Nota da IHU On-Line)
isso, foi instituída a Lei 10.639/2003, e na educação!

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tan Fernandes. Depois que li Flo- sua história, sua origem, e isso Religião – Sou católica. Hoje
restan Fernandes, descobri que também acaba ocultando essa trabalho com o diálogo inter-
ele renovou e questionou a socio- estatística. religioso e aprendi a preservar
logia; ele era branco, dedicou- muito mais a minha identidade.
se ao estudo do negro no Brasil Racismo – Para superar o ra- Respeito e participo de celebra-
e perguntava qual era a chance cismo, os brancos precisam as- ções inter-religiosas com afros,
que os negros teriam no futuro sumir os seus problemas. Se anglicanos, espíritas, luteranos,
para participar da sociedade mo- eles assumirem com categoria o e tenho consideração por todas
derna colonizada. racismo e se envolverem no tra- as religiões porque elas têm uma
balho com os negros, sem querer ética e respeito com as diferen-
Vida pessoal – Sou solteira. ganhar em cima ou ter lucro, a ças e também com o evangelho,
Decidi estudar e desenvolver coisa mudaria com mais tranqui- as divindades e outras formas
trabalhos sociais e raciais. Sou, lidade. O mais problemático é a espirituais. Meu santo protetor é
acima de tudo, uma Assistente indiferença, e isso cega os seres São Sebastião, um jovem romano
Social. Moro em São Leopoldo e, humanos. Enquanto os brancos que lutou pelos cristãos empo-
com frequência, meus pais vêm não reconhecerem e assumirem brecidos em Milão. O imperador
me visitar e ficar comigo. Meus esse aspecto discriminatório ba- romano Diocleciano queria que
vizinhos me adotaram e meus ir- seado na cor da pele e a domi- ele negasse a sua vida de cristão
mãos também tomam conta de nação sobre o sujeito negro e e ele preferiu obedecer a Deus.
mim. Acho desafiador morar aqui indígena não terá muito como
em função do racismo, o qual é apressar a Lei. As situações são Lazer – Gosto de dançar, ir
muito forte. Hoje entendo por- profundamente veladas no coti- ao cinema e viajar para casa dos
que os negros da região não par- diano e não se tem como provar meus pais e amigos.
ticipam das atividades. A postura nada. Isso acaba voltando a ve-
e os olhares dos brancos no Rio lha e ultrapassada ideia de uma IHU – Sempre gostei muito do
Grande do Sul são muito fortes. cordialidade falsificada ou da tal IHU e vejo que, hoje, ele está
Mas entendo que eles foram en- democracia que são todos iguais. mais aberto e tem uma amplitu-
ganados com histórias mal conta- É um processo que ainda vai lon- de muito grande na universidade.
das. Quando eles se dão conta da ge e teremos de ter muita paci- O IHU é um ponto de produção
discriminação, nós ainda preci- ência e coragem para enfrentar. importantíssima e sabe acolher
samos pedir desculpas, dizer que O aspecto positivo é que agora os todos os saberes. Com a chegada
está tudo bem, pois eles ficam brancos também devem se per- concreta dos saberes das tradi-
envergonhados porque, às vezes, ceber e entrar nessa reeducação ções orais como a africanidade e
não se dão conta do racismo in- das relações étnico-raciais, sem os saberes indígenas, penso que
ternalizado. Já me perguntaram jogar o problema só para os ne- o IHU vai ser um grande divulga-
qual é a situação mais difícil gros. Eles também guardam mui- dor desses novos saberes menos
para enfrentar na Unisinos, e eu tas internalizações históricas de academizados.
disse que não gostaria de falar de superioridades, das quais não são
dificuldades, e sim de coragem: culpados. De qualquer modo, não Unisinos – Sou assistente so-
precisa ter muita coragem para dá para continuar se ausentando cial por opção, e tenho a missão
enfrentar o preconceito e as dis- disso. de atuar também na ideia de uma
criminações. No Rio Grande do universidade humana, justa e
Sul, nunca existiram denúncias Sonhos – Meu sonho é que que possa reconhecer e valorizar
claras sobre isso. Em Santa Ca- brancos e negros comam no mes- os diferentes saberes acadêmi-
tarina, essa questão é mais avan- mo prato. Que brancos possam cos. A Unisinos poderá ser o pólo
çada, e, no norte do Paraná, o se libertar deste racismo e des- da reeducação das relações étni-
racismo é bem menor. Na Unisi- sa domesticação e consigam co- co-raciais, onde índios, negros e
nos, existem poucos profissionais mungar com a cultura brasileira brancos vão poder mostrar que
negros que residem em São Leo- negra que ajudou a enriquecer o seres humanos são humanos aci-
poldo, a maioria mora em outras país. E que brancos, negros, ín- ma de tudo. A Unisinos tem essa
cidades, e isso já é um sinal de dios possam comungar essas di- missão de formação e a promo-
interrogação. A maior parte da ferenças tratando a reeducação ção da pessoa humana, nisso eu
população negra sempre esteve como ponto de partida para uma sempre acreditei. A Unisinos, por
na área de trabalho menos va- sociedade justa, sem opresso- meio de sua missão, pode trilhar
lorizado; poucos em cargos mais res e oprimidos, sem superiores um caminho paradigmático sem
elevados. Isso começou a mudar. e inferiores, mas todos por uma perder a sua sustentabilidade e
Não sei qual é a estatística de reeducação teórica, científica e empreendedorismo e sem perder
negros na universidade. Muitos também mais humanizada. Sem a o seu equilíbrio de justiça e va-
negros ainda carregam a identi- violência simbólica do cotidiano. lorização científica e também a
dade de branco, não reconhecem diversidade humana e racial.
Destaques
20 anos de memórias. Os mártires
de El Salvador
Há vinte anos, a sociedade salvadorenha e
o mundo conheceram os mártires de El Sal-
vador. No dia 16 de novembro de 1989, seis
padres jesuítas e duas mulheres foram as-
sassinados brutalmente por paramilitares
do Exército salvadorenho. Ignacio Ellacuría,
reitor da Universidade Centro Americana
José Simeón Cañas (UCA); Ignacio Martín-
Baró, vice-reitor; Segundo Montes, diretor do
Instituto de Direitos Humanos da UCA; Juan
Ramón Moreno, diretor da biblioteca de teo-
logia; Amando López, professor de teologia;
Joaquín López y López, fundador da univer-
sidade; a funcionária Elba Ramos e sua filha
Celina morreram fuzilados.

IHU inaugura Sala Ignacio Ellacuría e companheiros


Para celebrar a memória dos mártires de El Salvador, o Instituto Humanitas
Unisinos – IHU exibe nesta quinta-feira, 10 de dezembro, às 17h, o debate
“Memory and it Strength: The martyrs of El Salvador” (A memória e sua
força: Os mártires de El Salvador), que ocorreu no Boston College, nos EUA,
em 30 de novembro. Mediado pelo jesuíta e reitor emérito do Boston Col-
lege, J. Donald Monan, o debate entre Noam Chomsky e o jesuíta e teólogo Jon
Sobrino irá discutir a importância de manter vivos os ensinamentos e o mar-
tírio dessas pessoas. A exibição no IHU ocorre em 10 de dezembro, dia In- Apoio:
ternacional dos Direitos Humanos, em um evento que marca a inauguração
da Sala Ignacio Ellacuría e companheiros, no IHU. Anteriormente, a sala era
chamada de 1G119. Nela acontecem os principais eventos do IHU.

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