Você está na página 1de 16

Estigma -

Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada

Análise crítica do livro de Erving Goffman

Luciana Naomi Hikawa

19/09/2008
“Não podemos escolher nossas circunstâncias externas, mas sempre podemos
escolher como reagiremos a elas.”
(Epíteto, filósofo grego)

1. Introdução

À consciência que o indivíduo tem de si mesmo e do lugar que ocupa


no mundo chamamos Identidade. A identidade pessoal constrói-se
através da vivência de experiências dentro de um grupo, quando o
indivíduo identifica-se com uma ou outra característica dos demais
elementos desse grupo. É na relação com o Outro que cada um
constrói o seu Eu.

Quando o Eu não consegue estabelecer parâmetros com o Outro


nasce o conceito de estigma, um sinal, visível ou não, que diferencia
o Outro da normalidade a que o Eu aspira.

O autor Erving Goffman reexamina os conceitos de estigma e


identidade social, o alinhamento grupal e a identidade pessoal, o Eu e
o Outro, partindo de uma visão interativa, isto é, a partir da reação
de estigmatizados e aqueles que ele classifica de normais quando em
convivência face-a-face, seja no cotidiano ou em interações fortuitas.

Quando interagimos com outros procuramos constantemente por


dicas ou pistas sobre o tipo de comportamento apropriado ao
contexto e sobre como interpretar o que os outros pretendem.
Também Goffman explora os detalhes da identidade individual e
social e das relações em grupo a um nível micro-sociológico
observando a interação social nas ações de todos os dias e
concentra-se na forma como cada um desempenha o seu papel e
gerencia a impressão que provoca nos outros nos diferentes
contextos.

Erving Goffman (1922-1982) foi um sociólogo canadense,mais tarde


estabelecido nos Estados Unidos, onde chegou à presidência da
Sociedade Americana de Sociologia, que estudou como o indivíduo
concebe a sua imagem. Entre seus objetos de estudo também
concentram-se as instituições em que o indivíduo era isolado da
sociedade, como manicômios e prisões, onde sua atividade era
normalizada.

Nesta obra Goffman analisa os sentimentos da pessoa estigmatizada


sobre si própria e na sua relação com os outros ditos “normais”. Ele
explora a variedade de estratégias que os estigmatizados empregam

2
para lidar com a rejeição alheia e a complexidade de tipos de
informação sobre si próprios que projetam nos outros.

“Vós pré-julgais o que ignorais.”


(Tertuliano in Apologia)

2. Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada

O autor inicia seu livro definindo o conceito de estigma, um termo


utilizado pela primeira vez pelos antigos gregos que sinalizavam com
cortes ou fogo no corpo que tal pessoa tratava-se de um escravo,
criminoso ou traidor. Com o passar do tempo, estigma passou a
designar uma nova categoria de pessoas cuja identidade social não
atende às exigências de percepção das pessoas normais.

Embora o termo tenha um caráter depreciativo, Goffman considera


que “um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a
normalidade de outrem portanto ele não é, em si mesmo, nem
honroso nem desonroso” (pág. 13), isto é, a percepção que o
indivíduo normal tem de outra pessoa depende da sua bagagem de
valores morais: o que ele considera normal em um indivíduo
semelhante a ele assume conotação diferente se for executado por
outro indivíduo estigmatizado. Ou, nas palavras do autor, “um
estigma é, então, na realidade, um tipo especial de relação entre
atributo e estereótipo” (pág. 13).

Os estigmas dividem-se entre os do tipo desacreditado e


desacreditável. O estigmatizado desacreditado é aquele cujo estigma
é evidente ou conhecido pelos presentes, enquanto o desacreditável
pode passar despercebido.

Entre os estigmas desacreditados Goffman elabora três tipos: as


deformidades físicas, as culpas de caráter individual (distúrbio
mental, prisão, alcoolismo, homossexualismo, desemprego,
tentativas de suicídio e comportamento político radical) e os estigmas
tribais de raça, nação e religião. É interessante notar que o autor
inclui-se entre os indivíduos normais embora descenda de judeus, o
que o incluiria nos estigmatizados desacreditados tribais: “Nós e os
que não se afastam negativamente das expectativas particulares em
questão serão por mim chamados de normais” (pág. 14). Tal fato
pode nos dar uma pista a respeito da opinião pessoal do autor sobre
a forma como o indivíduo estigmatizado deseja ser considerado.

Quando normais e estigmatizados não interagem entre si, a reação


da comunidade normal é discriminar o estigmatizado com base na
teoria de que se trata de um ser inferior, não completamente

3
humano, ao se encontrar com um. Assim, ao se deparar com o
indivíduo que apresenta o estigma, o indivíduo normal reage com
agressividade, chamando-lhe nomes como aleijado ou retardado. Se
o estigmatizado também responde com agressividade o indivíduo
normal sente-se justificado em suas ações.

Pelo ponto de vista do indivíduo estigmatizado esta interação também


justifica a opção de viver isolado ou em companhia de seus pares,
para proteger-se e manter sua auto-imagem. Porém, em alguns
casos, não é necessário interagir com um indivíduo normal para
reforçar “a revisão entre auto-exigência e ego, mas na verdade o
auto-ódio e a autodepreciação podem ocorrer quando somente ele e
um espelho estão frente a frente” (pág. 17).

A pessoa estigmatizada que não obtém o respeito da pessoa normal


pode não aceitar-se a si mesma, como se o normal lhe confirmasse
seus próprios defeitos. O estigmatizado passa a buscar a
normalização através dos meios disponíveis (cirurgia plástica,
psicoterapia, estudo, etc.) e nessa busca pode terminar vítima de
servidores que vendem fórmulas milagrosas. Um exemplo moderno
são as técnicas que oferecem produtos para emagrecimento rápido e
sem esforço, frente à estigmatização das pessoas obesas que são
consideradas de vontade fraca, preguiçosas ou doentes.

“O indivíduo estigmatizado pode, também, tentar corrigir a sua


condição de maneira indireta” (pág. 19) dedicando-se a atividades
consideradas excludentes às pessoas em sua condição, como as
viagens a pontos turísticos sul-americanos de difícil acesso visitados
por um grupo de portadores de deficiências físicas variadas, por
exemplo, que foi apresentado pelo programa Fantástico (TV Globo)
há alguns anos. Um segundo exemplo é o nadadora sul-africana
Natalie du Toit, uma atleta que nadou a maratona aquática na
Olimpíada de Pequim (2008) depois de perder a perna esquerda em
um acidente de moto em 2001.

Nenhuma das adversárias nessa prova que equivale a uma maratona


fará concessões por conta da deficiência física de Du Toit e ela
certamente será atingida por cotoveladas, empurrada, afundada,
segura, como qualquer concorrente na virada das bóias.
"Não vão facilitar para ela", diz Karoly von Toros, técnica da nadadora.
"Nem ela quer isso." (TERRA Notícias, publicado em 18 de agosto de
2008)

Outras reações possíveis do estigmatizado incluem o uso do estigma


como proteção ou desculpa para o insucesso em algumas áreas de
sua vida ou, em outro extremo, considerar seu sofrimento uma

4
“bênção secreta” (pág. 20), uma oportunidade de aprendizado
pessoal ou crescimento moral.

Entretanto, quando existe a possibilidade de haver o contato misto


entre indivíduos estigmatizados e normais, pode acontecer uma
esquematização de maneira a evitar tais contatos principalmente por
parte do estigmatizado. Tal auto-isolamento não é saudável e pode
torná-la uma pessoa “desconfiada, deprimida, hostil, ansiosa e
confusa” (pág. 22).

Esta situação não é desejável pois a interação entre estigmatizados e


normais fará com que ambos os lados enfrentem “diretamente as
causas e efeitos do estigma” (pág. 23). O indivíduo estigmatizado
passa a ter consciência de sua insegurança em relação à reação do
indivíduo normal, o que afetará a imagem que faz de si.

Em dúvida sobre a real avaliação que o outro faz a seu respeito, pode
sentir-se sub ou superestimado, mas não corretamente estimado,
principalmente se seu estigma é desacreditado, ou seja, é perceptível
ao se dirigir a atenção. Neste caso o estigmatizado pode considerar
que sua privacidade foi invadida e deseje se defender por
antecipação. Um exemplo de invasão são os comentários ou
perguntas feitas por estranhos sobre a condição do estigmatizado,
assim como o oferecimento de ajuda “por isso se infere que o
indivíduo estigmatizado pode se abordado à vontade por estranhos,
desde que eles sejam simpáticos à sua situação” (pág. 26).

Goffman deduz que, se o indivíduo estigmatizado considera tais


contatos angustiantes, o mesmo acontece com o indivíduo normal.
Este pode considerar que o indivíduo estigmatizado é agressivo ou,
ainda, retraído, mas que, em qualquer caso, ele, o indivíduo
estigmatizado, está pronto a interpretar qualquer coisa que o
indivíduo normal diga ou faça com significados diferentes do que
pretendia. Estabelece-se aí o círculo vicioso da desconfiança mútua.

Um exemplo recente desta desconfiança mútua de intenções foi dado


pela reação da comunidade de motoristas de Zagreb, na Croácia,
onde a criação de vagas especiais para mulheres no estacionamento
de um shopping center provocou protestos tanto de homens quanto
de mulheres:

As vagas, decoradas com flores rosas e com mais espaço do que o


normal, têm por objetivo facilitar o trabalho das mulheres na hora de
estacionar. Contudo, a medida acabou desagradando o público feminino.
"Eles acham que nós somos incapazes ou algo assim?", reclama uma
cliente.
"É apenas sexismo retrógrado e sem sentido sugerir que as mulheres
não conseguem estacionar exatamente igual aos homens, se não
melhor". (TERRA Notícias, publicado em 2 de setembro de 2008)

5
Assim como Goffman sugere, neste caso a solução para a inquietação
provocada pela caracterização inadequada na interação entre o Eu e
o Outro foi fornecida pela pessoa estigmatizada porque tem mais
habilidade para lidar com tais situações já que também “tem mais
probabilidades do que nós de se defrontar com tais situações” (pág.
28).

Até este ponto o autor tratou do indivíduo, seja estigmatizado ou


normal, e suas reações um ao outro. Entretanto, existem outras
interações possíveis e é delas que ele trata aqui: os iguais, ou, como
o próprio termo implica, as pessoas que têm a mesma característica
negativa que as distinguem dos normais. O estigmatizado pode
buscar a companhia dos seus iguais para refugiar-se com conforto ou
para obter auxílio e instrução quanto ao modo de se relacionar com o
Outro.

Mesmo aí não existe um modelo certo de associação: existem aqueles


que se unem em clubes de saúde ou sociedades de auxílio mútuo e
existem aqueles com distúrbios mentais ou de fala, por exemplo, cuja
reunião parece impossível; redes de relacionamento social sem uma
organização aparente; instituições que prestam auxílio a
estigmatizados gerenciados pela comunidade ou por benemerência e,
por fim, as comunidades tribais, como bairros segmentados com alta
concentração de pessoas tribalmente estigmatizadas (o bairro da
Liberdade em SP/Capital ou Bronx em Nova Iorque, por exemplo).

Também existem as associações ou agentes que se propõem a


representar uma determinada classe de indivíduos com um estigma
específico, como os AA, as APAE, o CNBB, Movimento Negro
Unificado, e milhares de outros exemplos. Estas associações podem
ser dirigidas por “nativos”, isto é, pessoas iguais às que representam
como classe com “um pouco mais de oportunidade de se expressar,
são um pouco mais conhecidas ou mais relacionadas” (pág. 35), ou
então por alguém que conheça os problemas do estigmatizado (um
informado).

Estas associações representativas promovem palestras e debates,


fazem petições para o poder público em favor dos estigmatizados e
são responsáveis, em boa parte, pela nova ideologia do politicamente
correto ao “convencer o público a usar um rótulo social mais flexível à
categoria em questão” (pág. 33). O exemplo utilizado por Goffman foi
a conquista da Liga Novaiorquina para as Pessoas com Dificuldades
de Audição, que aboliu o termo “surdo” de todas as comunicações
oficiais.

6
Outra forma de representativa é obtida quando um estigmatizado
alcança posição de destaque financeira, política ou ocupacional. Um
exemplo é o ator Christopher Reeve, famoso pelo papel de Super-
Homem na série de filmes homônimos. Após sofrer uma queda de
cavalo ele perdeu todos os movimentos do pescoço para baixo e criou
a “Fundação Christopher Reeve para a Paralisia" e, entre outras
coisas, foi pioneiro nas polêmicas pesquisas com células-tronco.

O segundo conjunto de indivíduos de quem o estigmatizado pode


esperar apoio são os informados: “os que são normais mas cuja
situação especial levou a privar intimamente da vida secreta do
indivíduo estigmatizado” (pág. 37). Nesta situação encontram-se
aqueles que trabalham em lugares que cuidam direta ou
indiretamente de indivíduos estigmatizados (enfermeiras, terapeutas,
policiais, atendentes, garçons, empregadas); aqueles que têm um
relacionamento social com o indivíduo estigmatizado (a esposa ou o
marido, mãe, pai ou irmãos, filhos, amigos, familiares).

Goffman acredita que estes informados adquirem “um certo grau de


estigma” (pág. 39) e o transmitem, em menor grau, a outros
indivíduos com quem se relacionam, espalhando o estigma original
em ondas e que este é motivo, portanto, para que as relações com os
indivíduos estigmatizados sejam evitadas. Esta situação foi
enfrentada pela personagem interpretada por Tom Cruise no filme
Rain Man (idem, 1988), um indivíduo normal que recebe a
incumbência de cuidar do irmão autista, interpretado por Dustin
Hoffman.

Goffman ainda refere-se à resposta violenta dos informados


(“estigmafilia”) contra a repulsa do indivíduo normal
(“estigmatofobia”) como uma reação ao culto do estigmatizado, que é
uma posição desconfortável tanto para um quanto para outro. No
Brasil temos, por exemplo, as reações de diferentes grupos étnicos
para o estabelecimento de cotas de acesso para negros nas
universidades. O chamado indivíduo normal neste caso é o não-
negro, que protesta contra o que ele considera uma proteção ao
negro e usurpação de seus direitos de igualdade, enquanto o
informado reage em defesa do estigmatizado.

Mesmo assim, a convivência entre estigmatizados e informados


percorre um longo caminho de aceitação, já que o informado sofre as
mesmas privações, mas não usufrui das condições especiais (“auto-
exaltação”) do estigmatizado.

A carreira moral do indivíduo estigmatizado segue duas fases de


socialização, a saber: “aquela na qual a pessoa aprende e incorpora o

7
ponto de vista dos normais, adquirindo, portanto as crenças da
sociedade mais ampla” (pág. 41), isto é, sem ter a consciência ainda
de ser um estigmatizado perante o Outro, absorve os conceitos
deste; na segunda fase “aprende que possui um estigma particular e,
dessa vez detalhadamente, as conseqüências de possuí-lo” (pág. 41).
Neste ponto percebe como o Outro enxerga o Eu.

Durante a primeira fase a família ou a comunidade forma um círculo


de proteção mas, à medida em que o indivíduo passa a transitar em
anéis mais externos, chegará o momento de enfrentar a segunda
fase; pode se no momento de freqüentar a escola, por exemplo. Caso
o seu estigma requeira, este momento pode ser adiado se a criança
for encaminhada para uma instituição especializada.

Esta segunda fase também pode acontecer tardiamente, nos casos


em que o indivíduo normal sofre uma intervenção que o transforma
num indivíduo estigmatizado: acidentes, problemas de saúde, prisão,
etc., ou ainda quando alguma mudança provoca a alteração de seu
status tribal (troca de religião, etc.).

O indivíduo que é estigmatizado tardiamente tem muito mais


dificuldade para remoldar seu ego, estabelecer novas relações e
restabelecer as antigas: “quando o indivíduo compreende pela
primeira vez quem são aqueles que de agora em diante ele deve
aceitar como seus iguais, ele sentirá, pelo menos, uma certa
ambivalência porque estes não só serão pessoas nitidamente
estigmatizadas e, portanto, diferentes da pessoa normal que ele
acredita ser, mas também poderão ter outros atributos que, segundo
a sua opinião, dificilmente podem ser associados a seu caso” (pág.
46).

Os filmes Filadélfia (Philadelphia, 1993), em que a personagem de


Tom Hanks enfrenta os efeitos da contaminação pelo vírus HIV, e O
Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005), em
que o vaqueiro interpretado pelo ator Heath Ledger é surpreendido
por uma relação homossexual inesperada, exemplificam bem as
dificuldades enfrentadas pelos indivíduos estigmatizados tardiamente
em suas lutas em busca de uma nova auto-imagem e a reação do
Outro ao seu novo Eu.

Neste capítulo o autor dedica-se ao segundo tipo de indivíduo


estigmatizado, o desacreditável, aquele que “não se tem dela um
conhecimento prévio (ou, pelo menos, ela não sabe que os o outros a
conhecem)”. Se este indivíduo estigmatizado opta por manter sua
condição desconhecida ele pode passar por momentos de tensão,
incerteza e ambigüidade pois tem que oferecer ao Outro as respostas

8
condizentes com a normalidade exigida; ele teme o preconceito e
deseja a aceitação.

Todo sinal transmitido por uma pessoa através de sua expressão


corporal é decodificada pelo Outro; esse sinal informa quais as
características, intenções, estados de espírito e sentimentos do
indivíduo que o emitiu. Esta informação é chamada “social” pelo autor
e, quando são acessíveis e freqüentes, podem ser chamados
“símbolos de status”, como distintivos de clube ou uma aliança de
casamento.

Os símbolos de status contrapõem-se aos símbolos de estigma


porque, ao passo em que aqueles simbolizam prestígio, estes
desvalorizam o indivíduo. As algemas dos prisioneiros são um
exemplo de símbolo de estigma.

Uma terceira categoria de símbolos inclui os desidentificadores,


signos portados com a intenção de iludir o Outro com uma
informação social inexata. Um exemplo de desidentificador é o uso de
óculos sem grau, apenas para aparentar cultura e saber.

“Os signos que transmitem a informação social variam em função de


serem, ou não, congênitos (de nascença) e, se não o são, em função
de, uma vez empregados, tornarem-se, ou não, uma parte
permanente” (pág. 55), ou seja, se o indivíduo nasce com um sinal
estigmatizante ou se é marcado depois e se esta marca será
permanente ou não. Caso seja permanente e infligido de forma
involuntária, este é um estigma no sentido semântico clássico original
grego: o indivíduo marcado por um crime.

É de se notar que mesmo um indivíduo pode ser considerado símbolo,


de status ou de estigma, quando é visto com o indivíduo cuja
informação social procuramos: trata-se da aplicação prática do
ditado “diga-me com quem andas e te direi quem és”.

Como informação social o significado dos símbolos pode variar de


acordo com a perspectiva, o momento e até a fisiologia do indivíduo,
podendo ser positivo ou negativo conforme o ponto de vista adotado.

O estigma dos desacreditáveis não é visível e, como foi dito no início


do capítulo, pode ser encoberto, ocultado pelo estigmatizado – é o
caso, por exemplo, da recente movimentação política brasileira pela
abolição do uso de algemas para alguns criminosos de colarinho
branco. Tal encobrimento provoca uma percepção distorcida do
indivíduo estigmatizado pelo Outro.

9
Portanto, o autor tenta distinguir as noções de visibilidade,
perceptibilidade e evidenciabilidade do estigma: a visibilidade do
estigmatizado que o encobre não deve ser confundida com a
“possibilidade de ser conhecido” por outras pessoas que saibam da
sua condição de estigmatizado nem com a presença de um símbolo
de estigma não afixado ao indivíduo (cadeira de rodas, bengala, etc.),
assim como deve ser desassociada do “foco de percepção” (estigmas
focalizados em razões sociais, como a feiúra, por exemplo). Antes de
prosseguir, no entanto, é necessário “especificar a capacidade
decodificadora da audiência” (pág. 61)

Para prosseguir no estudo do indivíduo desacreditável que oculta sua


condição o autor passa a analisar a interação social entre os
indivíduos; para que o encobrimento seja bem sucedido é necessário
que os indivíduos não se conhecessem anteriormente mas, a partir do
momento em que este contato se mantém por mais tempo, o
indivíduo estigmatizado desenvolve estratégias para aprofundar a
intimidade de forma a apagar preconceitos que poderiam advir, de
forma que seu defeito não chegue a ser um fator crucial.

O conhecimento que o indivíduo normal obtém do indivíduo


estigmatizado desacreditável, obtido nestas condições, regula então
com as expectativas em relação à identidade social deste. No ponto
seguinte, Goffman ocupa-se do Encobrimento do estigma (fator
crucial na análise destes casos, no seu entender) e dos diversos tipos
de “ameaças” à identidade social virtual que o “desmascarar” do
encobrimento pode desencadear. Avança depois para a análise das
diversas Técnicas de Controle de Informação usadas pelos indivíduos
que pretendem ocultar um “defeito” secreto.

O último ponto do capítulo trata da questão do acobertamento,


descartando os casos de estigmatizados cujo estigma só é conhecido
por ele mesmo e muito bem oculto, assim como o estigma conhecido
por todos, considerando ambos os extremos desinteressantes e
objetos apenas como recurso de controle.

Goffman não concorda com a suposição de que o fenômeno do


Encobrimento leve o indivíduo a viver num alto nível de tensão e
ansiedade por ter de manter uma imagem falsa que poderá colapsar
a qualquer momento e conclui que a manipulação do estigma afeta
tanto o indivíduo estigmatizado como também familiares e amigos
que o ajudem no processo de encobrimento perante outros.

A principal conclusão de Goffman, no entanto, desemboca na


sugestão de tratar o estudo dos casos de comportamento desviante
dos indivíduos estigmatizados como um campo específico da

10
sociologia, categorizando os indivíduos pelo que têm de comum (o
estigma).

No terceiro capítulo, Goffman estabelece a diferença entre a


identidade social, a identidade pessoal e a identidade do Eu, que ele
define como “o sentido subjetivo da sua própria situação e [...]
caráter que um indivíduo vem a obter como resultado de suas várias
experiências sociais” (pág. 166).

Enquanto a identidade do Eu refere-se à visão que o indivíduo tem de


si mesmo baseado em sua própria experiência de vida, as identidades
social e pessoal baseiam-se na visão do Outro sobre o Eu. Cada
identidade fornece um ângulo diferente para o estudo da
estigmatização: a social demonstra a existência do estigma, a pessoal
“permite considerar o papel do controle na manipulação do estigma”
(pág. 117) e a do Eu mostra como o indivíduo lida com o estigma.

O indivíduo estigmatizado recebe da sociedade os modelos


considerados adequados para si e os usa, mas pode sentir que não se
identifica com esses modelos. Quando isto acontece ele pode sentir
uma ambivalência, dividido, tratando seus pares de acordo com o
grau de visibilidade de seus estigmas da mesma forma que o
indivíduo normal trata o estigmatizado em relação a um par normal.

Tal ambivalência interfere na escolha de suas alianças sociais


(cônjuge, amigos, etc.): se ele opta por cercar-se de indivíduos
normais significa que tenta construir sua auto-imagem como um
indivíduo normal, mas ao mesmo tempo não pode escapar de sua
condição de estimatizado que o envergonha. Esta ambivalência
explica, então, o auto-humor depreciativo exercido por estes
estigmatizados.

Alguns profissionais trabalham com modelos de revelação e


ocultamento do estigma com o estigmatizado na tentativa de tornar
sua posição clara: ele é não-diferente do Outro ou é marginalizado?
Entre esses modelos existem alguns exemplos: pedir ao paciente
mental que esconda seu estigma, “fórmulas para se sair de situaçõs
delicadas, o apoio que deveria dar a seus iguais, o tipo de
confraternização que deveria ser mantido com os normais” (pág.
120) e outros.

Ao mesmo tempo, o estigmatizado é instruído com um código de


conduta socialmente aceito: não ocultar completamente seu estigma,
não aceitar completamente como sua a informação negativa do seu
estigma emitida pelo Outro, não sujeitar-se ao ridículo frente aos
normais fazendo graça de seu estigma, e, no extremo oposto, evitar
a “normificação” ou imitação da normalidade.

11
Esse código de conduta social oferece ao estigmatizado instruções
para o relacionamento com o Outro e também consigo mesmo com
autenticidade, e não iludir-se sobre sua auto-imagem. Goffman
defende a aplicação e o seguimento do código argumentando que,
devido à sua condição especial de espectador da cena humana, o
estigmatizado atinge uma consciência maior do que se passa em
relação ao indivíduo normal, que são menos sensíveis às questões
mais profundas.

O segundo argumento de Goffman na defesa do código de conduta é


que ele o força a encarar a “parte de sua vida que ele mais se
envergonha e que considera mais privada, sua feridas mais
profundamente escondidas são tocadas e examinadas clinicamente”
(pág. 123), ou seja, estes conselhos o fazem assumir que carrega um
estigma, aceitar sua condição e ensina como reagir frente ao Outro e
a si mesmo reconhecendo esta condição.

Além dos dois ganhos pessoais acima, o indivíduo estigmatizado que


acolhe o código beneficia ainda os grupos sociais nos quais está
inserido, começando pelo grupo de seus pares, pessoas que
compartilham do mesmo sofrimento, já que um dos resultados da
aplicação dos conselhos é o questionamento que o estigmatizado faz
contra a desaprovação da sociedade normal.

Quando o estigmatizado toma consciência global da situação


(argumentos nº 1 e 2 de Goffman) e passa a defender seu grupo de
pares (argumento nº 3) ele torna-se um militante da causa e tem
pelo menos dois caminhos distintos a escolher: (1) tentar eliminar a
desaprovação contra o estigma ou estigmatizado, promovendo a
assimilação deste pela sociedade, ou (2) promover a separação do
estigmatizado da sociedade, replicando em seus argumentos e
sentimentos os mesmos preconceitos sociais de que é alvo.

Como sociólogo, Goffman trabalha o indivíduo como um ser humano


completo que faz parte de uma complexa rede de grupos sociais
interagentes, independente de sua condição: “Já que seu mal não é
nada em si mesmo, ele não deveria envergonhar-se dele ou de outros
que o têm; nem se comprometer ao tentar ocultá-lo” (pág. 126).
Confirma, assim, a hipótese exposta na introdução sobre como
deseja ser tratado.

No restante do capítulo ele se dedica a esmiuçar as fórmulas


apresentadas por profissionais que auxiliem o estigmatizado no
sentido de aceitar-se, trabalhar sua auto-imagem, manipular sua
identidade de acordo como código de conduta e também a apreender
as intenções intrínsecas do Outro, como auxiliá-lo a reagir frente ao

12
estigmatizado, mesmo reconhecendo o enorme fardo imposto: “A
ironia dessas recomendações não é o fato de se pedir ao
estigmatizado que ele seja, pacientemente, frente aos outros, o que
não lhe deixam ser, mas que essa expropriação (ato de privar o
proprietário daquilo que lhe pertence) de sua resposta possa ser a
sua melhor recompensa” (pág. 133). Goffman finaliza o capítulo
criticando a falta de voz concedida ao estigmatizado para que este
possa opinar a respeito das fórmulas apresentadas, fórmulas estas
que foram consideradas aceitáveis pela sociedade normal e às quais,
portanto, ele deve se submeter.

O autor elaborou, no quarto capítulo, um quadro das referências


utilizadas no livro com a definição do seu conceito dentro de cada
contexto, iniciando com os conceitos de desvios e normas, e expõe
seus argumentos para explicar porque adotou determinado grupo de
controle e não outros; assim, optou pela análise de diferenças sutis e
não de estigmas ou grupos sociais com particularidades extremas que
exaurem o interesse em si só, não servindo como modelo universal:
“A questão das normas sociais é, certamente, central, mas devemos
nos preocupar menos com os desvios pouco habituais que se afastam
do comum do que com os desvios habituais que se afastam do
comum” (pág. 138).

Outra dificuldade enfrentada pelo autor é que, enquanto algumas


normas que se referem à identidade ou ao ser (como a visão e a
alfabetização) devem estar disponíveis para a maioria da sociedade,
outras (com a beleza física) “tomam a forma de ideais e constituem
modelos perante os quais todo mundo fracassa em algum período de
sua vida” (pág. 139), isto é, são impermanentes.

Além disso, o indivíduo deve lidar com muitas normas pequenas e


importantes ao mesmo tempo, mantendo-as com sucesso ou
fracassando em algum ponto da vida, o que torna tarefa inútil
contabilizar e classificar tipos de estigma, de situação, etc. “Pode-se
dizer que as normas de identidade engendram (dão forma) tanto
desvios como conformidade”, conforme Goffman abordou no primeiro
capítulo ao explicar que o que é considerado estigma num
determinado contexto é normal em outro, e vice-versa.

Três soluções são apresentadas: uma norma é definida por si mesma


e sustentada por uma categoria de pessoas; o indivíduo que não se
adequa à norma é excluído da sociedade, agrupando com outros em
sua situação; a terceira solução mescla as duas anteriores porém
coloca o indivíduo não-condizente sob o acobertamento – ele
manipula sua identidade para assemelhar-se ao Outro e os outros
fingem ignorar seu estigma, desde que ele não o revele e não exija
aceitação do seu desvio.

13
O autor sugere que se considere “os desvios” a partir de um conjunto
de normas construídas e aceitas socialmente. O desvio representa o
não cumprimento de tais normas. Para Goffman a pessoa desviante
deveria ser denominada de “desviante normal”, pois é inerente à
todas as sociedades possuírem suas normas, que nunca são
totalmente cumpridas.

Trazendo alguns exemplos reais, o autor demonstra as várias formas


de reação do indivíduo estigmatizado à confrontação com o normal:
acobertamento ou encobrimento, deboche, ironia, agressividade,
frieza, docilidade, e conclui que, na sociedade americana, esta
interação face-a-face resulta em problema, assim como “as
discrepâncias entre as identidades virtual e real sempre ocorrerão e
sempre criarão a necessidade de manipulação da tensão [...] e
controle de informação [...]” (pág. 159).

No capítulo final, Goffman define e elabora suas idéias a respeito do


rótulo “comportamento desviante”: o indivíduo que não adere ao
conjunto de normas de um grupo é chamado “destoante” e seu
comportamento, um “desvio”. Isso não significa que todo indivíduo
destoante é igual a outro indivíduo destoante: eles se comportam
diferente dos normais e também uns dos outros. Um tipo de
comportamento desviante aceito é o do indivíduo que, por algum
motivo, ocupa uma posição muito alta no grupo. Outro desvio aceito
é do indivíduo fisicamente doente; de nenhum dos dois se exige o
total cumprimento às normas do grupo.

Em alguns grupos permite-se ainda a presença de indivíduos


destoantes que, inadvertidamente, propiciam o sentimento de
unidade do grupo contra ele; por exemplo, quando toda a
comunidade ri do bêbado da aldeia: ele não faz parte da comunidade,
mas esta lhe permite participar dela para unirem-se contra ele.

Os comportamentos desviantes se caracterizam por produzir marcas


negativas na identidade social daquele que os apresenta, de modo a
influenciar decisivamente as concepções e as ações dos demais em
relação a estes, e vice-versa. Assim, o estigmatizado, o desviante é o
suspeito principal ao qual será atribuída a culpa por esta ou aquela
situação desfavorável, por este ou aquele delito.

Goffman identifica, então quatro categorias de desviantes: o


desviante intragrupal, que se desvia de um grupo concreto e não só
de normas; o desviante social, que se reúne numa subcomunidade,
então chamada de comunidade desviante; membros de grupos
minoritários étnicos e raciais; membros da classe baixa. Estes
desviantes podem se ver “funcionando como indivíduos

14
estigmatizados, inseguros sobre a recepção que os espera na
interação face-a-face” (pág. 157).

No estudo dos comportamentos desviantes e dos processos de


estigmatização que a eles se relacionam, o desviante social é
transformado pelas sanções e restrições impostas ao comportamento
condenado pelo sistema de valores, em uma pessoa acusada de atos
criminosos, de incapacidade de gerenciamento da própria vida, em
ameaça potencial a todos que vivem em conformidade com o modelo
“apropriado” de viver, etc.

3. Conclusão

O ensaio “Estigma – Notas sobre a Manipulação da Identidade


Deteriorada” ainda é uma leitura atual mesmo após terem se passado
45 anos de sua publicação, um período em que as mudanças na
sociedade americana ocorreram de forma veloz e apontando, às
vezes, para direções opostas das da época do autor. A própria
globalização e a invenção da Internet contribuíram para a revisão de
comportamentos e normas sociais tradicionalmente aceitas.

Mesmo assim, o fato de Erving Goffman trabalhar sua pesquisa em


termos sociológicos, ou seja, estudando o indivíduo dentro da rede de
relacionamentos sociais, é importante para posicionar a
estigmatização dentro das perspectivas de cada nicho. O autor
relativiza, assim, o estigma, que passa a ter maior ou menor
importância conforme o contexto em que está inserido.

Goffman também profetizou uma situação moderna em seu livro,


quando mencionou quem mesmo aqueles que não participassem de
sindicatos ou associações veriam-se representados, se não por
publicações e entidades, mas pelas artes: conforme citei, são
diversas as obras cinematográficas e programas de TV dedicados a
dar voz ao indivíduo estigmatizado.

Isto é importante para proporcionar-lhe uma auto-imagem clara, sem


a necessidade de recorrer ao acobertamento ou encobrimento, nem a
manipular sua identidade de forma a ser aceito pelo Outro, além de
ajudar a promover o relacionamento saudável entre os grupos
sociais.

Uma palavra que não foi mencionada no livro foi preconceito; usou-se
desaprovação, desvio, não-aceitação, entretanto é disto que o autor
trata: discriminação, indiferença e justiça social.

15
“É comum afirmarmos que o preconceito é errado e nós o condenamos
com prontidão sempre que o vemos claramente. Mas a forma mais
perigosa de preconceito, o tipo que escapa sem que o percebamos, é
igualmente destrutivo, se não for mais ainda, pois a indiferença não se
anuncia nas feias palavras ou ações de pessoas facilmente
identificáveis; em vez disto, ela furtivamente corrói os elos que nos
mantém unidos enquanto se esconde em plena vista sob o melhor
manto possível – a nossa própria ignorância.” (PATTERSON, 2004: 126)

A leitura deste livro descobre e ilumina.

Referências Bibliográficas

GOFFMAN, Erving. Estigma – Notas sobre a Manipulação da


Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro/RJ: Guanabara, 1988.

TERRA, Notícias. Sul-africana amputada estará na maratona


aquática. Disponível em
<http://esportes.terra.com.br/pequim2008/interna/0,,OI3106937-
EI10378,00.html> Acesso em 18 ago. 2008.

TERRA, Notícias. Croácia: vaga especial em shopping enfurece


mulheres. Disponível em
<http://noticias.terra.com.br/popular/interna/0,,OI3152698-
EI1141,00.html> Acesso em: 2 set. 2008.

PATTERSON, S. W.; IRWIN, W.; BAGGET, D. et al. Harry Potter e a


Filosofia in O Lamento de Monstro: F.A.L.E. como uma Parábola da
Discriminação, Indiferença e Justiça Social. São Paulo/SP. Madras:
2004. p. 126.

16

Você também pode gostar