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Universidade de Brasília / Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / Programa de Pós-


Graduação

ENSAIO SOBRE O PENSAMENTO URBANÍSTICO

MARIA ELAINE KOHLSDORF


Brasília, outubro de 1996

1. INTRODUÇÃO
As idéias que estão sob as práticas urbanísticas inquietam não apenas os
estudiosos e os agentes gestores das cidades, mas também seus habitantes. Criadores
e executores de planos, projetos e demais decisões que dirigem cotidianamente os
rumos dos processos urbanos raríssimas vezes explicitam o pensamento que os
fizeram optar por certas alternativas, e descartar outras. Quais foram seus conceitos de
cidade, de sua estrutura e de suas funções, de problemas urbanos, de eficácia, de
desenvolvimento, de qualidade de vida e, principalmente, do que seja felicidade para os
cidadãos que fazem, das cidades, fenômenos vitais, e não entidades abstratas? Tudo
indica, porém, que os principais interessados - os usuários - pouco reivindicam essas
explicações, induzidos pela intelligentzia urbanista ao hábito de acreditar em seus
discursos e, sobretudo, a se acostumarem aos lugares que ela lhes prepara. Como os

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habitantes de A Cidade e as Estrelas, de Arthur Clarcke (cf. Holanda, 1996), as pessoas


acabam por adaptar-se ao que os urbanistas lhes oferecem, assimilando deformações e
esquecendo que elas e os espaços em que vivem não foram desenhados juntos.
Entretanto, as idéias dos autores estão implícitas em planos, projetos e demais
decisões, assim como se expressam na configuração dos espaços urbanos
construídos. Isto permite colocar-se em evidência o pensamento dos responsáveis
pelas ações de planificação, com objetivos além dos voltados a operações intelectuais
diletantes. Por um lado, a revelação das visões de mundo dos planificadores é condição
de exercício do direito da dúvida, peça-chave de qualquer processo transparente de
tomada de decisões, onde as cartas devem ser sempre colocadas sobre a mesa. Por
outro lado, revela coerências e contradições, entre discursos técnicos ou intelectuais, e
as correspondentes medidas projetuais, estas formuladas supostamente ao encontro do
conteúdo discursivo. E, finalmente, se os referidos esclarecimentos vencerem os limites
dos círculos eruditos, poderão cumprir sua finalidade maior de suprir o conjunto da
sociedade de informações necessárias às exigências que, em contexto democrático,
lhes compete encaminhar aos agentes gestores. Em outras palavras, a revelação das
idéias subjacentes às decisões urbanísticas significa a legitimação do próprio processo
de planificação.
Este é o alcance evidente das obras que tomamos para base do presente ensaio. A
leitura realizada por Françoise Choay de textos, projetos e lugares permitiu que
organizasse com precisão as principais vertentes filosóficas incidentes na teoria e na
prática de organização territorial entre o sec. XIX e a década de sessenta, associando
os principais atributos de seus ideários às características de seus paradigmas
urbanísticos. A parte mais substantiva desse trabalho encontramos em seu livro
L’Urbanisme - utopies et réalités, publicado em Paris em 1965 (Ed. Du Seuil) e, no
Brasil, em 1980 (Ed. Perspectiva), cuja edição utilizamos para remissão bibliográfica. A
esclarecedora contribuição desta autora estende-se por duas outras obras, que não
comparecem aqui com a mesma ênfase da primeira, mas que nos foram igualmente
preciosas: The Modern City: planning in the 19 th century (New York: Ed. Braziller, 1969)
e La Règle et le Modèle (Paris: Ed. Du Seuil, 1980).
Dos anos sessenta são também outras duas referências fundamentais, por meio de
Leonardo Benevolo (Le Origini dell ‘ Urbanistica Moderna, que utilizamos em edição
argentina de 1967, Ed. Tekne) e de Leonard Reissman (The Urban Process: cities in
industrial societies, usada em edição espanhola de 1970, Ed. G.Gilli). A obra de Ervin
Gallantay, New Towns: antiquity to the present (Ed. Braziller, 1975) completa o conjunto
básico que permitiu a construção deste ensaio.
Outros autores, porém, influiram sobremaneira na formação do estudo que ora
trazemos sobre o pensamento urbanístico. Patrick Geddes e Lewis Munford são
patriarcas da abordagem crítica, contextualizada e histórica da cidade, das ações e das
idéias sobre ela, atitudes que reencontramos, no Brasil, nos professores Florestan
Fernandes, Paul Singer e Francisco de Oliveira. É decisivo o papel de Bill Hillier para a
arquitetura da cidade, em seu estabelecimento como disciplina cujo objeto é o espaço
socialmente utilizado. A seu lado nesse trajeto, estão vários professores da
Universidade de Brasília, especialmente Frederico de Holanda, Gunter Kohlsdorf e
Paulo Bicca.
Existe em todos eles, ao procurarem revelar as características do pensamento
subjacente às realizações teóricas e práticas da planificação urbana, a condição do
olhar histórico, que não se limita ao passado mas sabe que ele é indispensável para
que explique o presente. Com esta intenção, dividimos as considerações que se
seguem por períodos articulados a atitudes tomadas frente à questão urbana.

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2. A PRÁTICA URBANÍSTICA PRÉ REVOLUÇÃO INDUSTRIAL


A história do pensamento urbanístico antes da Revolução Industrial ressente-se de
sistematização, pois a literatura especializada pouco se dedica ao exame da intenção
subjacente aos planos e projetos urbanos nesse período. As obras mais divulgadas
tratam da cidade geralmente como produto e processo de produção, quando não se
limitam a descrevê-la superficialmente. Em Benevolo (1967) e Choay (1980)
encontramos referências a antigos teóricos do Urbanismo (Hipódamo, Thales de Mileto,
Vitruvio) e aos pensadores renascentistas (Palladio, Alberti, Filarete), todos
considerados realizadores de uma prática propositiva sobre a cidade a partir de
modelos ou padrões que às vezes se explicitam (por ex., Vitruvio) mas que não podem
ser tidos como frutos de reflexão sistematizada. Por isso, fala-se em prática urbanística
e nunca em teoria urbanística para qualificar o urbanismo anterior ao final do sec. XVIII,
denominado artes urbanas. Assim, são práticas urbanísticas a confecção das Leyes de
los Reynos de las Indias, das Ordenações Manuelinas, do lay-out chinês da dinastia
Chou, das regras indianas do Silpasastra, das ordonances e da arte romana do
Castrametatio.
Por outro lado, não há consenso quanto à definição de urbanismo nem quanto ao
papel do espaço na estruturação social. Neste caso, as posições dividem-se entre o
determinismo ambiental e o reflexismo sociológico, havendo poucos autores que
consideram o espaço como instância equânime às demais estruturas analíticas da
sociedade. Este último enfoque é recente (cf. Hillier, 1972, 1976, 1984; Holanda &
Kohlsdorf, 1995; Kohlsdorf, G. 1995; Holanda, 1996 e Kohlsdorf, M.E.,1996) e observa o
pensamento urbanístico por meio de sua expressão no espaço da cidade, ao mesmo
tempo que alarga o conceito de projeto e permite análise de qualquer assentamento
humano. Bacon (1965) e Gallantay (1977), porém, limitam-se a considerar cidades
planejadas strictu sensu, demonstrando que o urbanismo é uma prática milenar; este
último autor realiza uma taxonomia coerente e útil para um panorama do pensamento
urbanístico antes da Revolução Industrial.

A CLASSIFICAÇÃO DE GALLANTAY

Gallantay restringe-se à história das cidades-novas, definidas como “comunidades


planejadas conscientemente, criadas como resposta a objetivos claramente
colocados”(ibid. p.15); as características que ele estabelece para classificá-las
espandem, porém, o universo considerado:
- data de nascimento identificável (destinação do sítio ou inauguração).
- plano prévio à alteração do sítio físico.
- raramente emergem de um núcleo preexistente.
- baseadas em estimativas de crescimento.
- podem ser uma extensão de cidade (new town in town) ou cidades inteiras construídas
em regiões virgens, próximas ou distantes de cidades existentes.
- definidas por base econômica específica: no período pré industrial, como expansão
mercantilista; na revolução industrial, é o lugar da industrialização e, na época pós-
industrialização, têm função de descentralização.
As cidades novas originaram-se entre os séculos XIX e XIV a.C., simultaneamente
em várias regiões do planeta e classificam-se em quatro tipos, a partir de sua função
econômica. Estes tipos ocorrem ao longo da história urbana, mas os consideraremos
até o final do séc. XVIII, quando se passa à fase urbanística. Os tipos restringem-se aos
dois primeiros (novas-capitais e cidades-colônias), pois as cidades-industriais e as de

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descentralização são posteriores à data considerada. Na verdade, as cidades-


industriais possuem ancestrais construídos para explorar recursos naturais ou serem
pólos de desenvolvimento, como foram os acampamentos de obra do antigo Egito entre
o sec. XIX a.C. e XIII a.C. (Kahum e El Amarna, por ex.), as habitações populares de
Veneza no sec. XV e, no sec. XVIII, Chaux e o assentamento junto à fábrica-fortaleza
de Jekateringburg.

a. Novas-Capitais
As novas-capitais surgem a partir de um novo Estado ou necessidade de
transferência de governo por questões de defesa, reorientação de migrações ou outras
razões políticas; além disso, podem ser justificadas por prestígio, estratégia ou magia.
Sua configuração privilegia os edifícios públicos e os lugares cívico-cerimoniais, como
estruturas simbólicas que garantem a monumentalidade do conjunto por meio de vias
com geometria simples, relacionadas monumentalmente aos edifícios públicos, os quais
alinham-se evocando procissões ao longo de grandes artérias de capitais que, não raro,
são consideradas sagradas.
Gallantay afirma que nas novas-capitais há sempre pouca sensibilidade ao
atendimento de questões sociais, pois são lugares de consolidação do poder das
classes dominantes; tais cidades enfatizam segregação de grupos, muito embora
atraiam populações pobres pelas possibilidades de emprego terciário e de sub-emprego
e, as mais abastadas, pela chance de entrar para os grupos poderosos. O processo de
projeto, produção e gestão de seu espaço foi sempre centralizado, ainda que
configurado segundo duas alternativas de planta:
- a malha ortogonal, com forte hierarquização do sistema viário por meio de diferentes
dimensões das vias ou de muros; são exemplos capitais na Mesopotâmia, Oriente
Médio e China e as cidades helenísticas.
- a malha em mandala, ou seja, em círculo perfeito e com localização segregada de
atividades; são exemplos as cidades persas e islâmicas, de sentido religioso e, séculos
mais tarde, os planos urbanos da Europa barroca.
Pode-se identificar três vertentes de construção das novas-capitais, nascidas na
antigüidade mas cuja influência veio até nossos dias. A primeira é a ausência de planos
globais, como no antigo Egito; a segunda, na China, é o modelo rígido da dinastia Chou,
com segregação por meio de retângulos concêntricos murados e que influenciou
cidades japonesas e coreanas; e a terceira, na India, são as regras urbanísticas do
Silpasastra, nunca praticadas e substituídas por um modelo Chou flexibilizado.
As primeiras novas-capitais remontam ao séc. XV a.C. e pertencem às antigas
civilizações do Oriente Médio e Ásia; nos quinze séculos antes da Era Cristã houve
construções institucionalmente planejadas de capitais no Egito (Akhetaten),
Mesopotâmia, Pérsia, China, Índia, Mundo Islâmico e Macedônia (Alexandria).
Há escassos registros de novas-capitais nos primeiros tempos da Era Cristã.
Apenas entre os séculos VIII e XIV tem-se notícia da fundação de algumas cidades com
estes fins, no oriente (Japão, Corea e a transferência de Pequim, no sec. XIII). Em tais
casos, a correspondente configuração do espaço não se alterou em relação às
alternativas da antiguidade, que permaneceram por vários séculos nos projetos
urbanísticos.
As novas-capitais da Europa surgiram a partir do sec. XV, quando certas regiões
passavam do Renascimento para a Época Barroca e a profissão de arquiteto assumia
feições afastadas da construção e concentradas no projeto. Gallantay remete a este
período a primeira noção de planejamento urbano explicitamente estatal, quando o

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príncipe Vespaziano Gonzaga referiu-se aos planos urbanísticos como “uma arte
governamental”. Mas a maioria das novas-capitais desta época não saem dos projetos
(é o tempo áureo das cidades ideais, como a Sforzinda de Filarete) ou são cidades-
residência (como Charleville, Richilieu, Versalhes, Karlsruhe). A Europa assimilou a
planta circular nas cidades ideais e, nas outras, os quadriláteros organizados
simetricamente; em ambas, o zoneamento funcional é rígido e há grandes distâncias
entre os edifícios principais. As ordonances e as cidades-residência são
morfologicamente clássicas: simetrias, uniformidade, harmonia, cuidadosos efeitos
perspectivos de campo amplo e, sempre, jardins; nelas, o palácio é um foco geométrico
de convergência de três avenidas que se encontram em ângulos agudos e iguais.
Paralelamente, construiam-se no oriente novas-capitais, como Fafpur-Skri na India e
Isfahan na Pérsia.
Ao final do período considerado, o surto de criação de novas-capitais na Europa
estendeu-se aos Estados Unidos (Washington), impondo-se a maneira francesa de
compor o espaço urbano a partir dos princípios clássicos das cidades-residência
(modelos de São Petersburgo e Karlsruhe, ambas no sec. XVIII).

b. Cidades-Colônia
Este tipo de cidade-nova surge de políticas de colonização interna ou no
estrangeiro, objetivando explorar recursos naturais ou humanos, ou ainda conseguir
equilíbrio demográfico, desconcentrando e reconcentrando contingentes populacionais.
Gallantay classifica as cidades-colônia em quatro tipos:
- agro-militares, com objetivo de assegurar a posse de certo território; localizam-se em
geral em fronteiras.
- entrepostos, que visam manter as comunicações; são quase sempre portos.
- centros regionais, com função de entreposto, administração ou centro de serviço; são
cidades continentais.
- cidades mineiras e industriais, que respondem, por vezes, a estratégias de pólos de
desenvolvimento.
O princípio morfológico das cidades-colônia é a malha reticulada ortogonal,
originada dos padrões agrícolas de irrigação ou da ordem das fileiras militares (a arte
do Castrametatio romano). Este sistema geométrico é bastante flexível, pois compõe-se
de segmentos retos ortogonais com dimensões variáveis, e tanto assume a forma mais
redundante (o xadrez, com segmentos do mesmo tamanho), quanto admite várias
composições (segmentos com dimensões repetidas ou diferenciadas, como no sistema
hipodâmico).
A fundação deste tipo de cidades começou no Extremo Oriente, entre o sec. XI e II
a.C., quando houve uma intensa colonização da China. Inicialmente, seu projeto seguia
os princípios da dinastia Chou e, mais tarde, mudou para o sistema de Meng-Tse,
correspondente à idéia de hierarquia social de Confúcio. Então, à divisão da terra em
quadrados idênticos envolvidos por quadriláteros concêntricos e murados, e às vias
paralelas aos pontos cardeais do sistema Chou, acrescentou-se uma outra divisão
mínima da terra conforme a casta social e uma rigorosa prefixação de tetos
populacionais. Esta última característica será retomada pelos romanos.
Divulga-se, porém, que a cidade-colônia mais antiga é Zernaki-Tepe (Assíria, sec.
VII a.C.). Até o final da Antiguidade há vários exemplos delas na Europa, como as
colônias gregas no sul da Itália e Sicília (sec. VII e VI a.C.) e as colônias macedônicas
(sec. IV e III a.C., sendo Dura-Europos a mais conhecida).

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Os romanos fundaram colônias a partir do sec. I a.C. (como Timgad), mas


intensificaram este processo durante a República, primeiro na Itália e Península Ibérica
e, depois, na Austria, Inglaterra, Alemanha e África. A origem de seu sistema
urbanístico é o castrum, acampamento militar que legou também a prática do ritual de
fundação da cidade. O sistema morfológico romano caracteriza-se pelo traçado
reticulado ortogonal e regular, hierarquizado pelo cruzamento dos eixos Cardo (sentido
norte-sul) e Decumanus (leste-oeste), este acessando a Porta Praetoria; certos
equipamentos sociais são sempre privilegiados na estrutura urbana, como os
aquedutos, banhos, forum, teatro e o estádio. As cidades-colônia romanas tiveram
previsão de tetos demográficos, mas cresceram, nesse período, por meio de subúrbios
contínuos.
O restante da Europa colonizou-se apenas a partir do sec. IX, ao redor de mosteiros
que eram verdadeiras unidades produtivas (como Saint Gaal) e organizando-se em
malhas ortogonais flexibilizadas. Dois séculos mais tarde, invasões como a dos mouros
incentivaram a colonização interna da Europa a ponto de dobrar seu número de cidades
em cem anos, com vilas agro-militares, colônias de cruzadas e colônias a partir da
expansão do poder feudal ou da Igreja. Algumas são bastides, unidades produtoras
para exportação, como o vinho do sul da França; outras são empórios ou fortalezas.
Essas cidades obedeceram aos mesmos princípios urbanísticos: a malha reticulada e
regular deforma-se para se adaptar ao relevo e no centro há uma expressiva praça,
onde se localiza a igreja ou o mercado. Registram-se, porém, algumas plantas de
padrão estrelado.
As pestes e epidemias medievais fizeram com que a colonização diminuísse na
Europa até o sec. XVI, quando se fundam novamente cidades-colônia, então
fortificadas, e surge a profissão de planejador de fortificações, sinônimo de planejador
de cidades. É desta época o início da colonização da Sibéria, mas o foco desloca-se
para a recém descoberta América.
A literatura consultada não menciona as cidades portuguesas de além mar, talvez
diante do exemplar planejamento imposto pela Espanha na ocupação de suas colônias.
As Leyes de los Reynos de las Indias, editadas por Felipe II, garantiram àquele país por
três séculos o território latino-americano e a destruição das culturas pré-colombianas.
As rígidas diretrizes urbanísticas partem do catrametatio romano no que se refere a
ritual de fundação antes do início da construção, malha em retícula ortogonal e
estabelecimento de bases populacionais (no caso, mínimo de 300 hab.), mas
estabelece leis para escolha do sítio (plano, junto à foz de rios etc.) e detalhes
urbanísticos. Dentre os últimos, destaca-se a praça central, cercada de 8 quadras
parceladas em 4 lotes, de cujo total reservam-se 2 para edifícios públicos; a Plaza
Mayor, central ou junto ao porto, é o core da colônia latino americana e imensa,
diminuindo a percepção dos edifícios. Para as cidades-colônia destinadas a serem
capitais (caso de Lima e Buenos Aires, por exemplo) previam-se traçados mais
generosos e imponentes, mas sempre mantendo-se uma cidade de base celular que, ao
contrário das “unidades” do urbanismo territorialista, é aberta, graças à malha reticulada
que possibilita diversas ligações entre instâncias locais e globais, mas cujo crescimento
é regulado por áreas de expansão urbana contidas por cinturões verdes e, estes, por
fazendas.
O sec. XVII chegou à Europa com novo impulso colonizador, fundando-se cidades
ali (Mannheim, Gotemburgo e colônias na Irlanda) e em outros continentes (como
Djacarta, Nova York, Recife, Capetown e Curaçao, pela Holanda). A Suécia realizou um
programa de colonização do Báltico à Finlândia e criaram-se vários refúgios para
protestantes (Freundenstadt, Hanau). As malhas das cidades-colônia barrocas são
radiais e limitadas por muralhas estreladas.

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É neste século que se inicia a colonização da América do Norte, na Nova Inglaterra,


destacando-se o plano de Filadelfia. As plantas das cidades-colônia americanas são
retículas ortogonais regulares, às vezes rompidas por diagonais, com amplo espaço
central (the common) e com baixa estimativa demográfica (de 250 a 300 habitantes).
Mas, no século seguinte, a intensificação da colonização gerou o Land Ordinance of the
Continental Congress para ocupar os territórios do noroeste segundo similaridades com
as regras romanas.

3. A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E O NASCIMENTO DAS VERTENTES DO


PENSAMENTO URBANÍSTICO

A maioria dos autores reconhece a Revolução Industrial como marco de origem do


pensamento urbanístico, isto é, de uma abordagem reflexiva e crítica da cidade com
vistas a preparar transformações por meio de projetos (Choay, 1969, 1980; Benevolo,
1967; Reissmann, 1970; Kohlsdorf, 1985; Del Rio, 1990). Trazendo intensa urbanização
da Europa a partir do final do sec. XVIII, a industrialização estimulou não apenas a
reflexão sobre a questão urbana, mas o surgimento da nova profissão de urbanista,
correspondente à também nova ordem social. Esse profissional surgiu em função de
problemas definidos pela sociedade industrial emergente e necessitada de cidades
preparadas para garantir um modo de produção apoiado na indústria e, esta, no meio
urbano.
Entretanto, a leitura da cidade sob o impacto da industrialização foi, quase sempre,
mascarada por posturas idealistas (“o paradigma do equilíbrio”, cf. Farret, 1985); à
exceção de Marx e Engels, a lógica da nova ordem social não foi entendida, mas
interpretada como uma desordem por três das quatro vertentes do pensamento
urbanístico, as quais permanecem na teoria e na prática sobre a cidade até nossos
dias. Por isso, o avanço científico não correspondeu aos recursos investidos nem à
considerável produção urbanística dos dois últimos séculos, mas a aparente desordem
foi um desafio à proposição de “novas ordens”, isto é, ao controle pelo projeto.
Os paradigmas subjacentes às duas correntes filosóficas que dominam a discussão
da cidade a partir da Revolução Industrial opõem, além de olhares, atitudes e
procedimentos. O progressismo contempla o futuro com otimismo mas é descritivo,
mesmo sob pretensão científica e aval acadêmico, abrindo caminho aos métodos
quantitativos. O culturalismo nostálgico do passado é, no entanto, polêmico, crítico,
normativo e político. Nas demais alternativas ou existe uma simbiose dessas tendências
(no naturalismo ou anti-urbanismo) ou uma via de explicação da questão urbana a partir
de outros procedimentos (em Marx e Engels).

a. Progressismo

Para esta vertente, a Revolução Industrial foi o prenúncio de um novo tempo


socialmente positivo. Em sua visão idealista, situações conflituosas como a realidade
urbana européia do sec. XIX eram desequilíbrios doentios que poderiam ser
regenerados pela indústria, pela técnica e pela ciência, considerados “remédios” para
cidades “doentes”. Isto implicava, porém, recusar o passado, fonte dos problemas
urbanos, e assumir a modernidade como sinônimo de desenvolvimento. As
características do progressismo podem ser sintetizadas da seguinte maneira (cf. Choay
e Kohlsdorf , op. cit):
- sua concepção do ser humano é de um indivíduo-tipo, capaz de tipificar também as
necessidades sociais, os lugares da cidade e a estrutura urbana;

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- a ciência e a técnica são racionalismos que resolvem os problemas da relação entre o


ser humano e a natureza, a qual é passível de solução por meio da eficácia e da
modernidade;
- a era industrial é um corte na História e a cidade e seu espaço são conceitos
universais e atemporais.
O progressismo caracteriza a cidade a partir das noções de eficácia, produtividade e
ordem; ela é o lugar da produção e da reprodução da força de trabalho e, por isso, as
demais funções separam-se do cotidiano (como é o caso da cultura e do lazer, que se
cerimonializam). Seu modelo de cidade destaca os atributos a seguir:

1º.) Em função de seu papel utilitário e para que seja rentável, a cidade deve ser
classificada, originando categorizações as quais se refletem em um espaço taylorizado:
- com separação rígida de atividades limitadas e tipificadas, onde cada função tem
papel específico;
- formado por unidades morfológicas segregadas e especializadas que são células
auto-suficientes;
- onde há interiorização da maior quantidade de atividades urbanas;
- onde a transição entre instâncias públicas e privadas é o mais indireta possível.
- onde a circulação é fundamental e separada do conjunto construído, por ter apenas
função econômica de circulação de bens e, jamais, de interação social e cultural.
2º.) Em função da busca de salubridade, a cidade deve ser arejada, o que origina um
espaço descontínuo:
- pela predominância de espaços abertos sobre os fechados;
- pelas numerosas barreiras físicas, espaços cegos e eixos pouco integrados que
restringem as possibilidades de aglomeração nas áreas livres públicas;
- pela abundância de áreas verdes, recriando-se uma natureza controlada, porque
excessivamente ordenada;
- pela negação da urbanidade por aproximação à configuração dispersa do espaço
rural.
3º.) Em função do controle social que embasa a lógica progressista, a cidade deve ser
também controlável, assim como seu espaço:
- por meio da rigidez de organização morfológica, onde se nega o tempo, o
movimento e a metamorfose inerentes a qualquer espaço socialmente utilizado;
- por meio de barreiras físicas na estrutura urbana, que garantam segregações;
- por meio de células ou unidades monofuncionais que permitam territórios bem
delimitados;
- por meio da rigidez de um quadro predeterminado, como é entendido o projeto
urbanístico, imposto por um sistema constrangedor e repressivo, ainda que se
apresente como autoritarismo ora sob discurso democrático, ora como socialismo de
Estado, ora ainda como um sistema de valores comunitários ascéticos.
4º.) Em função de um modelo estético tão importante quanto o conceito de utilidade, a
cidade deve ser ordenada e formal mas um espetáculo cotidiano, expresso em seu
espaço:
- organizado segundo a geometria racionalista e com exclusividade da lógica
cartesiana, por meio de parcimônia de elementos e relações compositivas e sob
austeridade que elimina ornamentos;
- organizado por predominância do fundo sobre a figura, com a conseqüente
separação entre volumes, grandes distâncias e longas perspectivas;
- organizado por oposição ao pitoresco, por um classicismo de geometria elementar.
5º.) Em função de que a produção do espaço abraça a indústria, a técnica e a ciência,
a cidade deve ter a perfeição das máquinas e, para tal, seu espaço:

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- ter construção serieficada, para o que concorrem a tipificação de atividades e sua


segregação em zonas;
- expressar a importância da habitação como necessária à reprodução da força de
trabalho, sendo a mesma massificada e celular, tanto em soluções individuais quanto
em coletivas.
Este quadro sucinto mostra que, ao negar agressivamente o passado, o
progressismo nega também o tempo e, com ele o movimento e a mudança. Esta
vertente é, portanto, contraditória, pois se propunha ser mudança mas ofereceu um
quadro de vida rígido, o qual se expressa em modelos de espaço rigorosos,
padronizados e funcionalmente eficientes. O urbanista é considerado “médico” ,
“padre”ou “pai”, pois detém a verdade e é conhecedor do homem-tipo e de suas
necessidades-tipo, sendo por isso capaz de organizar a cidade como um ambiente de
equilíbrio, paz e felicidade para que seus habitantes produzam mais e melhor.
“Nada é mais contraditório... Cada coisa ocupa o seu lugar, bem alinhada em ordem
e hierarquia.”.
(Le Corbusier, apud. Choay, 1980)

b. Culturalismo

O culturalismo observou a Revolução Industrial com pessimismo, acreditando que a


industrialização desintegrou a unidade orgânica que as cidades tiveram durante sua
história. Por isso, seu idealismo manifestou-se não aceitando o presente desequilibrado
e procurando voltar ao passado, considerado uma situação positiva para a realização
da vida social na cidade. A essa nostalgia corresponde uma estratégia de reconquista
das qualidades urbanas do passado por meio da imitação das formas dos antigos
espaços, em especial das regras de configuração medievais. As características do
culturalismo podem ser sintetizadas da seguinte maneira (cf. Choay e Kohlsdof , op. cit):
- sua concepção do ser humano é de um indivíduo único mas também grupal; portanto,
o ponto de partida não é o indivíduo mas o grupo e o conjunto da cidade, onde cada
elemento é insubstituível porque não é típico;
- a vontade de recriar um passado morto impulsionou a crítica aos demais pensamentos
urbanísticos e o desenvolvimento dos estudos de História, Arqueologia e Arte para a
formulação de seu modelo de cidade;
- sua visão é inicialmente crítica e politizada, mas torna-se, com o tempo,
exclusivamente estética.
O culturalismo caracteriza a cidade a partir da noção de cultura, onde a arte é o
principal elemento de integração social. A bela totalidade perdida do Romantismo, o
organiscismo do passado e a reificação do tempo compõem um pensamento de
oposição à cidade industrial porque ela estaria a ponto de se degenerar. Seu modelo de
cidade destaca os atributos a seguir:

1º.) Em função de seu papel cultural, a cidade deve satisfazer necessidades espirituais
como interação social, beleza e felicidade, e seu espaço:
- possibilitar que as funções de lazer e cultura se integrem no cotidiano dos
indivíduos pela fácil acessibilidade dos lugares destinados às mesmas;
- aproximar as atividades urbanas, evitando-se o zoneamento monofuncional de uso
do solo;
- configurar-se por unidades morfológicas tradicionais e articuladas, como ruas e
praças;
- estruturar-se por circulação integrada ao conjunto construído, pois a rua é elemento
fundamental de interação social e cultural.

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2º.) Em função da busca de um clima caracteristicamente urbano, a cidade deve ser


estimulante, confortável e favorável à intensificação e à multiplicação das relações
interpessoais, o que origina um espaço contínuo:
- pela predominância de espaços fechados sobre os abertos;
- pelas características fechadas e íntimas das áreas livres públicas, tratadas como
espaços internos edilícios (salas, recintos, vestíbulos, corredores);
- pela ausência de áreas verdes no centro da cidade, mas presentes e bem cuidadas
nos quarteirões residenciais;
- pelo respeito às características de relevo, cujos contornos devem ser seguidos, bem
como aos ventos dominantes, ainda que respeitando o conforto dos usuários.
3º.) Em função do coletivismo e democracia que embasa a lógica progressista, a cidade
deve ser um processo dinâmico, assim como seu espaço:
- por meio da flexibilidade de organização morfológica, onde as formas sugerem
movimento e organicidade, que devem corresponder às características comunitárias
dos espaços socialmente utilizados;
- por meio da relevância das áreas livres públicas, especialmente de ruas e praças,
que são simultaneamente lugares de circulação e permanência;
- por meio de um espaço concentrado, recortado na continuidade de um fundo
edificado;
- por uma geração do projeto urbanístico a partir de análises morfológicas de cidades
medievais, onde se busca entender o relacionamento dos elementos formadores das
totalidades.
4º.) Em função da relevância da estética, a cidade deve ser bela no cotidiano de seus
cidadãos, expressando-se em um espaço:
- organizado por diversidade e originalidade, por meio de relações variadas entre
elementos e relações compositivas e inspirado na configuração da cidade medieval;
- organizado por predominância de figura sobre o fundo, com a conseqüente
aproximação entre volumes, as pequenas distâncias e as perspectivas curtas;
- organizado por oposição ao clássico, pelo pitoresco da geometria orgânica.
5º.) Em função da opção pela produção artesanal do espaço, não é o rendimento da
cidade que conta, mas o desenvolvimento harmônico dos indivíduos e, para tal, seu
espaço deve:
- ter construção particularizada, sem protótipos nem padronizações, para que cada
edifício expresse sua individualidade;
- destacar os edifícios comunitários e culturais, que assumem papel de temas-
destaque complexos e suntuosos; as habitações são temas-base simples porém
identificadas com as características de seus ocupantes;
- ser estimulante, caloroso e original, pois cada cidade ocupa o espaço de maneira
particular e diferenciada.
Nesta vertente, o urbanista faz a arte de construir cidades mas, oferecendo modelos
fechados, não permite a temporalidade criadora e desconsidera a imprevisibilidade das
sociedades. A ênfase nos estudos históricos não consegue resgatar a originalidade do
tempo presente e, porisso, o método culturalista não é científico, mas fuga de uma
atualidade não aceita. Criado sob o testemunho da história, o culturalismo fecha-se à
historicidade. Por outro lado, opõe a seu discurso democrático a repressão para mudar
as regras da sociedade industrial e é maltusiano no controle demográfico.
“Somente estudando as obras de nossos predecessores poderemos reformar a
organização banal de nossas grandes cidades.” (Camillo Sitte, apud. Choay, 1980).

c. Anti-urbanismo e Naturalismo

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Pertencendo à mesma corrente de pensamento urbanístico, o anti-urbanismo e o


naturalismo foram menos divulgados do que as vertentes anteriores mas guardaram
com elas a semelhança de interpretação ideológica da realidade, ao invés de ir
cientificamente a seu encontro. Negaram a cidade industrial do século XIX como
responsável pelo afastamento do indivíduo da natureza, em um tipo de nostalgia que
não conduziu propriamente a um modelo urbano alternativo, mas à proposta de
restabelecer uma relação direta e fundamental com a terra, promovendo o reencontro
do homem com o meio natural. A espacialização dessas idéias cristalizou-se somente
no sec. XX, na proposta de Frank Lloyd Wright para Broadacre-City.
Ao contrário dos progressistas e culturalistas, em sua maioria intelectuais socialistas
e muitas vezes militantes, os anti-urbanistas eram despolitizados e geralmente adeptos
de uma concepção metafísica da natureza. Isso não impediu que formulassem um
discurso ético, centrado em uma concepção individualista de democracia como única
via de reconquista da relação harmônica dos seres humanos com a natureza. Tal
postura conduziu à recusa do controle e da repressão, refletindo-se na ambigüidade de
seus paradigmas morfológicos.
Assim, o espaço naturalista é uma simbiose entre as características urbanas
progressistas e culturalistas. As atividades organizam-se de maneira dispersa, isoladas
por distâncias de escala rural e são dimensionadas como unidades reduzidas; as
habitações são sempre individuais e providas de uma área privada cultivável, evocando
uma organização celular e segregada. Na verdade, trata-se de um espaço anti-urbano,
onde prevalecem as características naturais do sítio, às quais se submete a arquitetura.
O anti-urbanismo representa uma contribuição importante dos Estados Unidos à
discussão da cidade e do urbanismo, deslocando seu eixo da Europa para a América.
As idéias defendidas por Thomas Jefferson, Emerson, Thoreau, Henry Adam e Louis
Sullivan prepararam a obra de Frank Lloyd Wright no século XX, formulando um modelo
demasiadamente utópico para ser concretizado, mas suficientemente forte para marcar
o pensamento de todo um grupo de sociólogos e planejadores americanos.

d. A crítica marxista

O pensamento de Marx e Engels é considerado por Choay (1980) como a única


vertente urbanística de caráter científico. Sua crítica a padrões foi coerente a ponto de
não apresentar nenhum modelo de organização efetivamente territorial; substituem,
portanto, a noção de modelo pela de ação transformadora. Isto porque, sendo a cidade
“o lugar da História” (cf. Engels, apud. Choay, op.cit.), seu espaço seria decorrência de
um nicho maior do que ela própria e só poderia transformar-se mediante alterações
ocorridas em instâncias mais amplas. Em outras palavras, o espaço era, para eles, uma
projeção social e suas características não poderiam ser tomadas como essenciais; logo,
seria inútil planejar futuras organizações morfológicas da cidade sem previsão de
alterações das relações de dominação das classes sociais.
Por tais motivos, Choay (ibid.) qualifica essa vertente como pragmática e
indeterminista, mas as soluções propostas são extremamente precisas a nível sócio-
econômico. Na verdade, a ausência de modelos urbanísticos deve ser entendida a partir
do enfoque disciplinar realizado: o marxismo do sec. XIX observou a cidade como
objeto social, econômico e político centrado, portanto, no fato social das relações de
produção, onde o espaço físico não passa de um epifenômeno.
A partir de uma sólida base sociológica, econômica e histórica, esses autores
colocaram a cidade industrial inserida em seu contexto temporal e estrutural,
demonstrando que suas contradições dele provinham. Marx e Engels consideravam a
realidade um processo nem equilibrado nem harmônico, mas um campo de conflitos

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entre interesses de grupos sociais; por isso, essa vertente entendeu que a cidade
industrial não era uma desordem, mas uma nova ordem correspondente a um novo
tempo na história da humanidade. Desta forma, estabeleceu-se um outro paradigma no
pensamento urbanístico - o paradigma do conflito - que se opôs ao paradigma do
equilíbrio subjacente ao progressismo, culturalismo e anti-urbanismo.
A crítica marxista frutificou, por um lado, configurando a face moderna das Ciências
Sociais, para as quais estabeleceu métodos de abordagem, auxiliou na demarcação
dos respectivos objetos e concedeu lugar de destaque na Academia. Por outro lado,
embasou a prática urbanística na União Soviética logo após a Revolução de 1917 e,
nos demais países do Leste Socialista Europeu, logo após a segunda guerra mundial;
os princípios morfológicos adotados possuem, nestes casos, forte influência
progressista, por vezes flexibilizada pela intenção de reaproximar a cidade do meio
rural.

4. DUAS ÉPOCAS EM DUAS VERTENTES: UTOPISTAS E URBANISTAS

As vertentes do pensamento urbanístico assumiram feições correspondentes às


diferentes atitudes frente à questão urbana, consideradas por Reissmann (1970)
geradoras de dois produtos distintos: as reflexões teóricas e os planos ou projetos.
Nesses produtos expressam-se progressismo, culturalismo, anti-urbanismo e a crítica
marxista, ainda que guardando gradações quanto à intensidade de sua adesão às
referidas idéias.

a. Utopistas ou pré-urbanistas
Choay (1980) classifica os utopistas como pré urbanistas porque desenvolveram os
pensamentos que iriam embasar a prática urbanista, não realizaram projetos
construídos e nos legaram produtos discursivos. Não se pode considerá-los “teóricos”
em função da carência de atributos como confirmação de hipóteses ou sistema
descritivo lógico em sua obra, mas denominá-los “utópicos” encampa as controvérsias
deste conceito, entre o caráter passivo de projeção de desejos estabelecido por Marx, e
a concepção ativa de Mannheim, onde a utopia opõe-se ao status quo social com idéias
transformadoras dele. A origem do termo situa-se em Aristóteles, que fala de Eutopia
(lugar agradável) e Thomas More, que sintetiza “lugar agradável” com “sem lugar” em
Otopia (cf. Choay, 1980 e Chauí, 1984).
Os utopistas marcaram uma importante passagem no pensamento da era pré-
industrial ao da era industrial; ainda que não tenham realizado investigação com testes,
assumiram uma atitude de relexão sistematizada. A eles importavam conceituações e
não, diretamente, as soluções.
A abordagem do espaço urbano deu-se, nessa fase, multidisciplinarmente, reunindo
médicos, sanitaristas, filósofos, escritores, arquitetos e, inclusive, empresários (como
Owen), que conceberam global e politicamente a cidade, onde o espaço seria mera
conseqüência do processo social, sem interação explícita com suas demais instâncias.
Por isso, as utopias urbanísticas de então pressupunham transformações sociais
prévias e preparavam o espaço para uma sociedade virtual, quase sempre gerada por
mudanças radicais. Tal atitude é considerada por Choay (1980) aderente ao imaginário
e afastada da realidade concreta, mas é coerente à ausência de pesquisa; os utopistas
realizaram conhecimento de adesão a idéias e, não, conhecimento científico (Demo,
1987; Kohlsdorf, 1996). Suas abordagens podem ser classificadas em quatro grupos,

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com diferentes contribuições a mudanças de atitude, que se tornarão possíveis apenas


recentemente:
1º.) Descritiva: há ordenamento dos fatos observados de maneira quantitativa,
evocando a sociologia clássica (Adna Ferrin Weber).
2º.) Polêmica: a observação dos fatos é crítica e normativa, mas considera os
problemas urbanos como “patologias”, especialmente nas grandes cidades;
malthusianismo (Fourrier, Considérant, Ruskin, Morris).
3º.) Humanista: há denúncia da miséria física e moral do habitat proletário, originando
as comissões inglesas para normas e códigos de posturas (Owen, Richardson).
4º.) Pensadores políticos: há informações amplas e precisas e vinculação das
condições do proletariado ao modelo político e sócio-econômico adotado, gerando tanto
o método sociólogico (Engels, Marx) quanto desvios idealistas (Arnold, Fourier, Carlyle).

b. Urbanistas
Embora seja corrente o uso desta expressão para designar o profissional do projeto
ou planejamento de cidades, para Choay (1969, 1980) seu sentido restringe-se a certas
atitudes em relação à questão urbana, que podem, ainda hoje, serem encontradas em
diversos casos:
1ª.) Ao contrário do enfoque multidisciplinar dos utopistas, o urbanismo é unidisciplinar,
especializado e limitado ao espaço físico da cidade, reunindo de início apenas
arquitetos e, mais tarde, também engenheiros.
2ª.) Os urbanistas têm pretensões explicitamente científicas, no sentido de uma ciência
positivista (descritiva, classificatória e quantitativa).
3ª.) O urbanismo é despolitizado, contrapondo-se ao engajamento dos utopistas, mas é
difícil ignorar opção ideológica em Le Corbusier, o papel de Gropius na Bauhaus e a
militância socialista de Morris e Howard.
4ª.) Os urbanistas são práticos, pois sempre executam planos e projetos que,
freqüentemente, são construídos, sejam frações urbanas, bairros ou cidades-novas.
A ausência de pesquisa permanece no pensamento e na prática dos urbanistas,
substituída pela ideologia das três vertentes mencionadas, ainda que os modelos
urbanos sejam, por vezes, ambíguos, como é o caso das new towns inglesas. A
expressão dessas vertentes no urbanismo é, porém, bastante marcada por dois pólos
que ambientam as discussões neste último século: o determinismo ambiental e o
“reflexismo” sociológico. As vertentes não são mais manifestos, mas testes dos
respectivos ideários, os quais se radicalizam.
O progressismo está na base da origem francesa do urbanismo; tornou-se a
corrente dominante na Europa, polemizou com os culturalistas ingleses, austríacos e
alemães e difundiu-se nas Américas e no norte da África. Afirmou-se a partir da
Primeira Guerra Mundial por meio do movimento racionalista na arquitetura que,
influenciado pelo cubismo, posicionou-se contra o Art Nouveau e a decoração e a favor
das formas puras, da otimização tecnológica e da industrialização. Este foi o momento
da primeira geração de arquitetos racionalistas, como Tony Garnier e Bénoit-Lévy. A
segunda geração racionalista internacionalizou-se e fundamentou os Congrèsses
Internationaux d’Architecture Moderne (CIAM), cujo mais conhecido criou a Carta de
Atenas, em 1933; marcou o urbanismo progressista, com Le Corbusier e Walter
Gropius, pela união ente a arquitetura e o urbanismo e pelo international style, ao
mesmo tempo que os construtivistas russos e Oud, Rietvelt e Van Eesteren, nos Países
Baixos, realizavam a transição para o planejamento urbano. A terceira geração
racionalista surgiu na segunda metade do século XX, na “tecnotopia” e no “futurismo”,

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os quais são versões tecnológicas avançadas do progressismo a partir do precursor


Hénard, seguido por Maymont, Fitzgibbon, Xenakis, Min-Pei etc.
O urbanismo culturalista restringiu-se à Inglaterra, mas a influência de Camillo Sitte
é sensível no modelo urbanístico de Alemanha e Austria, divulgado por Karl Henrici,
Theodor Fisher e O. Lasne, e convertido no alvo preferido dos progressistas. Suas
realizações limitam-se às primeiras cidades novas inglesas, principalmente com
Howard, Parker, Unwin e Louis de Soisson; alguns bairros no pós-guerra, cidades
turísticas no Mediterrâneo e a influência sobre Henry Wright e Clarence Stein, nos
Estados Unidos.
Os urbanistas expuseram suas idéias à crítica construindo cidades inteiras,
reformas urbanas, novos bairros e conjuntos habitacionais demandados por guerras,
revoluções, cataclismas e a intensa urbanização do século XX. Ocupam todas as
classes de Gallantay (1977) e a grande maioria provém do urbanismo progressista.

b.1 Novas-capitais

São inúmeras as capitais construídas a partir da metade do sec. XIX segundo as


atitudes do urbanismo progressista. A India construiu quatro capitais: Madalay seguiu
ainda o modelo chinês da dinastia Chou, depois vieram Burma, Nova Deli e a conhecida
Chandigarh de Le Corbusier. Brasília insere-se plenamente nessa categoria, na medida
em que a integração multidisciplinar foi muito precária e que seus traços urbanísticos
são nitidamente progressistas.

b.2 Cidades-colônia

A colonização por meio de cidades-novas foi intensa a partir do sec. XIX. Os


franceses criaram 600 cidades-colônia na Argélia e na Tunísia em menos de cem anos,
com inspiração progressista nos planos derivados do castrum romano. Colônias
britânicas como Adelaide, Port Said e Kartum foram projetadas com mais flexibilidade,
pois à retícula ortogonal característica das cidades-colônia foram adicionados jardins
públicos e subúrbios de tradição culturalista. No fascismo, o centro da Itália colonizou-
se com cinco cidades e foram fundadas outras na Líbia, todas sob os princípios
racionalistas incorporados com grandiloqüência cerimonial.
A União Soviética teve um primeiro período de colonização urbanística na Sibéria
(fins do sec. XIX) e um segundo a partir de 1929, integrando um programa de
redistribuição populacional do plano agro-industrial. Assim como a experiência
holandesa, tratam-se de atitudes de transição para o planejamento urbano e regional,
onde se adotam princípios progressistas de organização do espaço.

b.3 Cidades-industriais

As primeiras cidades-industriais foram as vilas operárias construídas, no sec XIX,


junto às fábricas a partir do pensamento progressista de Owen, Fourier e Godin e da
prática de Owen em New Lanark. Suas idéias ficaram nas vilas operárias americanas,
como as cidades-moinho da Nova Inglaterra e as exemplares Lowell, Pullman e Gary,
mas a tradição das malhas reticuladas ortogonais flexibilizou-se a ponto de torná-las
híbridos entre culturalismo e progressismo.
Ao iniciar-se o sec. XX, a Cité Industrielle de Tony Garnier anunciou os CIAMs, a
Carta de Atenas e a cidade funcionalista, delineando um modelo urbanístico
progressista para as cidades soviéticas e algumas cidades-industriais alemãs. A maioria
destas últimas, porém, tinham também atributos culturalistas, como por exemplo os

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jardins públicos inseridos na malha de castrum romano, contribuição do período nazista


resgatando o romantismo folclórico germânico; é o caso de Salzgitter.

b.4 Cidades de descentralização

Este tipo de cidade surge em contraposição ao gigantismo metropolitano, avaliado


negativamente pela ótica maltusiana das vertentes idealistas; divide-se basicamente em
quatro propostas para superar a deseconomia gerada pela cidade grande:
desenvolvimento urbano em regiões alternativas, cidades-satélites (com certa
dependência e próximas à metrópole), new towns (independentes mas formando redes)
e cidades-gêmeas ou paralelas (cf. Gallantay, ibid.).
A descentralização inicia-se, no sec. XIX, pela suburbanização de Paris (Le Vesinet,
1856) e de cidades americanas (Riverside, Illinois), segundo configurações de
tendência culturalista, como ruas curvilíneas, jardins privados e volumes diversificados.
A contraposição progressista foi a Ciudad Lineal de Soria y Mata, às bordas de Madrid.
Tais experiências vão formando um modelo de suburbanização e satelitização ao longo
dos corredores de transporte de massa que será retomado pela Ideologia do Planning.
As new towns possuem diferentes versões. As primeiras garden cities foram
culturalistas (Letchworth, Welwin), mas o projeto da Ville Radieuse de Le Corbusier
influenciou as demais com traços progressistas de altas densidades, verticalismo,
separação entre veículos e pedestres, setorização de atividades, edifícios isolados
entre si e a substituição da rua pela via. Nos Estados Unidos, tornaram-se as greenbelt-
towns, cidades pequenas (7 000 hab) inspiradas no modelo de Radburn (Stein & Wright,
1928), a primeira cidade-jardim americana, cujas características culturalistas foram
flexibilizadas.

5. A IDEOLOGIA DO PLANNING
O pré-urbanismo e o urbanismo contribuíram ao estabelecimento do pensamento
urbanístico por iniciarem uma sistematização de conceitos, exercitarem uma prática
refletida e incentivarem a discussão sobre o espaço. Mas o caráter idealista de suas
principais vertentes comprometeu a fixação de conceitos e a pesquisa não se
desenvolveu, permanecendo as representações ideologizadas da realidade na base de
suas afirmações.
As atitudes do urbanismo foram criticadas a partir de sua própria prática, desde as
primeiras décadas deste século; são considerados precursores do planejamento urbano
Patrick Geddes e os planos desenvolvidos na União Soviética logo após a revolução
comunista de 1917. Ao final da década de 1930, os trabalhos de Lewis Munford
introduziram as principais posturas do planejamento urbano, em contraposição ao
urbanismo:
- contato direto com a realidade, mesmo nos estudos teóricos, os quais devem objetivar
abastecer a prática;
- conceito de tempo e história como criações permanentes e contínuas;
- necessidade de controle dos processos urbanos, que são o ponto crítico das relações
humanas atualmente.
O epicentro do planejamento urbano localizou-se nos países anglo-saxônicos, onde
os modelos progressistas se haviam materializado mais intensamente; pode-se
caracterizá-lo pelos seguintes paradigmas:

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1º.) Definição do contexto urbano a partir de uma realidade histórica: contra a ruptura
temporal do progressismo e o historicismo nostálgico do culturalismo, propôs-se
considerar a cidade como uma etapa do processo histórico ligada à era pré-industrial e
ao futuro. Ela seria definida pelo momento presente, o qual é irreversível e produto de
transformações do passado. Conseqüentemente, negou-se a tipificação dos atributos
humanos e urbanos e conceituou-se modelo como uma representação conscientemente
simplificada da realidade.
2º.) Visão processual da questão urbana: a idéia de continuidade histórica conduziu a
uma visão da cidade como processo e não mais como fenômeno rígido. Isto permitiu a
crítica à idolatria do progresso e a reavaliação da cidade pré-industrial, revelando sua
melhor adaptação cultural do que as metrópoles industriais.
3º.) Reintegração da questão urbana no seu contexto global: contra a especialização do
Urbanismo, propôs-se considerar o papel da cidade na nova organização social imposta
pela Revolução Industrial.
4º.) Definição do contexto urbano a partir de seus diversos aspectos: ao invés de
domínio exclusivo de arquitetos e engenheiros, propôs-se que a cidade fosse objeto
multidisciplinar.

A abordagem da cidade passou a se caracterizar pelo planning, entendido como


conhecimento racional que objetiva a tomada de decisões para conduzir os processos
urbanos em direção a certas metas previamente estabelecidas. Em que pesem os
avanços desse enfoque, existe clara influência de posturas racionalistas, principalmente
por meio da teoria de sistemas, transformada de instrumento analítico em teoria
explicativa. A noção sistêmica introduziu a meta do equilíbrio e da estabilidade,
necessárias à reprodução do status quo; malgrado um discurso apoiado na
problematização de situações presentes, esta é considerada uma ruptura da harmonia,
o que demonstra a permanência da idéia de desordem e controle subjacente às
vertentes idealistas dos utopistas e do Urbanismo. Este fato torna o planejamento
urbano uma nova versão progressista: a ideologia do planning, consagrada após a
Segunda Guerra Mundial, é a ferramenta de reorganização do capitalismo internacional,
cujo equilíbrio deve controlar.
O planejamento urbano permitiu, porém, significativos avanços do conhecimento
sobre a cidade em diversas áreas acadêmicas, notadamente nas ciências humanas.
Por outro lado, deu-se uma clara retração da Arquitetura, cuja contribuição milenar de
prática projetual ressentiu-se da ausência de tradição de pesquisa.
Contemporaneamente a Geddes, registrou-se o nascimento da Sociologia Urbana, que
passou por diversas correntes interpretativas até os dias atuais (Ecologia Urbana de
Park, Escola de Chicago de Burgess, Mc Kenzie e Wirth, Néo-ecologia de Hawley,
Comportamentalismo de Duncan & Schnore, Empiristas-quantitativos, Teóricos da
cidade, como Durkheim, Max Weber e Simmel-Davies). A abordagem econômica da
cidade remonta a Adam Smith e Ricardo, mas consolidou-se a partir da Escola de
Chicago por meio de diversas correntes nos vários grupos das teorias
macroeconômicas regionais (neoclássicas, keynesianas e teoria de Vernon), nas teorias
microeconômicas de localização (Walras & Pareto, Alfred Weber, Alonso, Lösch &
Chistaller, Perroux) e, mais recentemente, em resgates da teoria marxista (Lipietz,
Grenelle, Juillard, Lojkine). Na Geografia, a definição da questão urbana evoluiu de
observações estritamente físicas e descritivas (Mombeig), passou pela teoria do lugar
central (Tricart, Rochefort), pelos métodos quantitativos (Cole, Gauthier, Brian Berry),
pelo formalismo (Boudeville, Rodwin, Friedman) e chegou à transdisciplinaridade de
Milton Santos. Semelhantemente, entraram em cena a Antropologia e a História, e
disciplinas localizadas nas demais Ciências do Homem (como a Lingüística), da Vida

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(sobretudo Ecologia), da Terra (Geologia, Hidrologia) e Exatas, como a Física, a


Informática e a Matemática (cf. Reissmann, 1970; Kohlsdorf, 1979 e Choay, 1980).
Entretanto, a institucionalização da atividade de planejamento logo lançou mão do
conhecimento acadêmico para exercício do poder constituído, conduzindo ao abandono
do campo efetivamente especulativo para enfatizar estudos diretamente aplicáveis ao
controle político dos processos sociais. Tais características retornaram às
universidades, que começaram s abandonar sua condição de produtoras de
conhecimento para se tornarem centros instrumentais.
A reorganização funcional das equipes encarregadas das ações de planejamento
urbano deu uma nova face à produção urbanística, que passou a condicionar-se a uma
série de análises multidisciplinares. Tradições acadêmicas distintas ainda não
superadas fizeram, porém, do planejamento urbano um processo heterogêneo, que
abriga em suas fases analíticas ciências de tradição descritiva (Geologia, Pedologia,
Ecologia etc.) e explicativa (como Sociologia, Economia e Geografia), ambas
assessoradas por istrumental quantitativo geralmente mais avançado que as teorias
explicativas; resume suas etapas propositivas à presença da Arquitetura e encontra-se
com as Ciências Sociais Aplicadas (Direito, Administração) para formular as estruturas
normativas e gerenciais necessárias a sua implementação. Porém, as características
espaciais da cidade multidisciplinarmente planejada pouco diferem daquelas praticadas
no Urbanismo; trabalha-se com modelos e repetem-se os padrões progressistas,
vertente que se revela adeqüada à base de sistemas institucionais concentrados no
Estado, seja na versão fiel prescrita pela Carta de Atenas, seja flexibilizada por
influências culturalistas na Inglaterra, Alemanha e Austria.
A prática de planejamento urbano concentrou-se mais na reorganização e
ampliação das estruturas existentes do que na criação de novas cidades; na
classificação de Gallantay (ibid.), as novas-capitais e as cidades-colônia são minoria em
relação às cidades-industriais e às cidades de desconcentração.

a.1 Novas-capitais

A segunda metade do século XX não assistiu a uma produção significativa de


novas-capitais em termos quantitativos, mas a construção de Brasília e Islamabad,
projetada pelo escritório grego Doxiadis com forte hierarquização funcional, instigaram
discussões sobre as relações de custo-benefício sociais envolvidas. Foram ambas
mencionadas como produtos urbanísticos, mas a nova-capital indiana foi fruto de
planejamento regional.

a.2 Cidades-colônias

O nascimento do Estado de Israel motivou o planejamento de cerca de trinta


cidades-colônias em doze anos, a partir de um programa integrado de colonização e
desenvolvimento da nação. As primeiras destas cidades possuem traços culturalistas e
foram inspiradas no ideário de Howard para as New Towns, mas a médio prazo
passaram a assumir os princípios racionalistas.

a.3 Cidades-industriais

O pioneirismo da União Soviética em planejamento urbano escolheu esse tipo de


cidade-nova para expressar-se. A partir de 1928, começaram a ser preparadas e
implementadas ações contínuas de planejamento da ocupação territorial, integrando

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programas para os aspectos sociais, econômicos, institucionais e físico-espaciais;


essas ações vêm acompanhadas da criação de 630 cidades-industriais em 31 anos.
A partir do final da Segunda Guerra Mundial, o esvaziamento demográfico e os
problemas econômicos enfrentados pelo Leste Europeu levaram Polônia, Hungria,
Tchecoeslováquia e Alemanha Oriental a criarem as “cidades-socialistas”, tipo que,
entretanto, não passou de cidades-dormitório de centros industriais maiores.
Há ainda alguns exemplos isolados de criação de cidades-industriais em outros
países, a partir de programas internacionais de ajuda financeira empreendidos pelos
Estados Unidos, Alemanha e União Soviética. É o caso da India, do Iran (Ariashar) e da
Venezuela (Ciudad Guayana, com assessoria do MIT-Harvard).
As cidades-industriais do século atual possuem sempre configuração racionalista.

a.4 Cidades de desconcentração

É neste tipo de cidade-nova que se expressa melhor a Ideologia do Planning. A


extrema concentração urbana, solicitada pela industrialização, nos países europeus e
nos Estados Unidos, tornou-se problemática, uma vez consolidada a nova maneira de
produzir, pois a passagem para economias de monopólio denunciou prejuízos ao
sistema causados pela superaglomeração. A Inglaterra, leito deste processo, é também
o berço das atitudes planejadas de desconcentração, com o programa das New Towns,
um dos exemplos mais claros de planejamento territorial integrado. Originado na
Garden City Association fundada por Howard no final do século passado, este programa
consolidou-se apenas na década de quarenta como sistema de redirecionamento da
ocupação por meio da ciação e acompanhamento de cidades-novas autosuficientes e
contidas, organizadas em rede equilibrada pelo transporte de massa. Estes propósitos
mudaram ao longo de três décadas e diversas gerações de new towns (cf. Gallantay,
ibid.):
- até 1950, construíram-se 14 new towns, a partir da cidade-jardim de Howard
(Stevenage, Harlow); a principal crítica é quanto ao alto custo da infraestrutura e à
padronização empobrecedora do modelo culturalista.
- entre 1950 e 1960, o modelo procurou urbanidade por maior acessibilidade ao centro
urbano, o qual passou a dominar a estrutura das cidades; pelo aumento densitário e
pela integração entre habitação e local de trabalho. Entretanto, essas metas foram
contrariadas pela separação entre veículos e pedestres e a interiorização das atividades
centrais em megaestruturas arquitetônicas (Runcorn, Hook, Cumbernauld).
- a partir de 1960, as new towns incorporaram o modelo progressista, e suas estruturas
passaram a ser geradas pelo uso intensivo do transporte individual, dispersando-se seu
centro em vários pontos focais (Milton Keynes).
A desconcentração na Escandinávia retomou em 1949 o pioneirismo sueco que, no
sec. XVII, havia criado uma Comissão de Planejamento. A nova experiência programou
cidades-satélites junto a Estocolmo e à linha rápida de transporte de massa, optando
por moderação na auto-suficiência daquelas em relação à capital e, mais uma vez, pelo
modelo progressista de estrutura celular, baseado em unidades de vizinhança. Com
menor intensidade no programa e no modelo morfológico, a Finlândia também criou
cidades-satélites junto a Helsinke (por ex., Tapíola).
Na década de sessenta, o Japão construiu cidades de desconcentração (Senri,
Senboki) a partir do plano regional para a Grande Tóquio, associando os modelos
programáticos das new towns e das cidades-satélites escandinavas.
A experiência soviética neste tipo de cidades-novas expressou-se como uma fase
do Plano Descentralizador de Moscou (1935) que, em 1960, atingira a saturação de 5
milhões de habitantes. Mesmo mantendo os traços progressistas na organização

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morfológica, o programa de desconcentração soviético diferiu do britânico e do


escandinavo, pois criava uma só unidade administrativa para a cidade e sua área
metropolitana e propunha três tipos de assentamentos periféricos, segundo o tipo e a
intensidade da oferta de empregos (de subúrbios-dormitórios a cidades auto-
suficientes).
Também na década de sessenta passou-se a planejar a desconcentração de Paris,
talvez um dos casos de maior centralização do século atual. A estratégia das ville-
nouvelles francesas propôs uma série de etapas, desde os conjuntos habitacionais nos
subúrbios, passando por Zonas para Urbanização Prioritária (ZUP, como Creteuil e
Toulouse-le-Mirail) e Plano de Organização Geral da Região Parisiense (as “metrópoles
de equilíbrio”, com a satelitização de Rouen, Lille, Lyon e Marseille) e diversos planos
de cidades-satélites com funções específicas (Evry, Marne-la-Valée, Cergy-Pontoise).
Os Estados Unidos apresentaram poucas e tardias cidades-novas, talvez por seu
território ser ocupado equilibradamente. A partir da década de cinqüenta, as grandes
cidades desconcentraram-se por meio de um planejamento pragmático de subúrbios
realizado pela iniciativa privada, em estruturas de baixas densidades, grandes
distâncias vencidas por transporte individual e atomização de pontos focais
interiorizados. A oferta de empregos nessas cidades concentra-se no setor terciário e
elas são funcionalmente especializadas em centros de pesquisa, lazer, consumo
eficiente, turismo etc.

6. TENDÊNCIAS
A Ideologia do Planning pode ser considerada principalmente prática e estratégia
políticas, comprometedora dos objetivos do pensamento urbanístico acadêmico. Mas
sua crítica partiu da própria Academia, que passou a instrumentar os incipientes
movimentos sociais urbanos e organizações de grupos da sociedade civil após o
término da Segunda Guerra Mundial. Por localizar-se em época muito recente, não
existem sistematizações consagradas e as colocações que se seguem são, mais do
que as anteriores, hipotéticas.
Da literatura consultada podemos extrair duas tendências significativas até o
momento: a Crítica Humanista (Choay, 1980; Kohlsdorf, 1979, 1985; Correa, s/d) e o
Desenho Urbano (Del Rio, 1990; Kohlsdorf, ibid.), ambas configurando um paradigma
psico-comportamental para o pensamento urbanístico (cf. Farret, 1985.).
As contradições do Urbanismo e da Ideologia do Planning foram inicialmente
levantadas por disciplinas menos engajadas nos mesmos, como é o caso da Psicologia,
da Filosofia, da Lingüística e de certas correntes da Sociologia, da Economia, da
Antropologia e da Geografia. Na raiz dessas contestações encontram-se os trabalhos
de Patrick Geddes e Lewis Munford, de impressionante contemporaneidade, e as
inúmeras experiências progressistas, notadamente os conjuntos habitacionais ingleses,
as prisões e os hospícios, considerados fábricas de neuroses e perversões. Críticas e
estudos evoluiram de uma postura fortemente determinista e comportamentalista, nos
anos cinqüenta e sessenta, para outras mais relativistas, como o probabilismo, o
estruturalismo e variedades marxistas, pragmáticas e fenomenológicas.
Numerosos ensaios a partir dos anos cinqüenta colocaram o problema dos agentes
de programação e gestão urbanas e dos correspondentes projetos físico-espaciais,
encaminhando uma abordagem da cidade por meio das relações entre ela e seus
usuários, observando seja o comportamento social gerado nesta relação, sejam as
dimensões psico-sociais da mesma.

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A crítica psico-comportamental considerou os métodos do Urbanismo e do


Planejamento Urbano empiristas, instrumentais e idealistas, apoiados no tecnocratismo
que se incorporou ao positivismo na era industrial. Tal adesão fez com que ambos
construissem seu objeto em bases falsas, separado do sujeito e qualificado por uma
harmonia ora sistêmica, ora orgânica que desconsidera a natureza conflituosa das
sociedades de classes. Não admira que nenhuma das três vertentes de modelagem
urbanística conseguisse compreender a questão urbana e realizar uma prática
cientificamente embasada. Para esta crítica, a disciplinaridade no Urbanismo e no
Planejamento Urbano implicou perdas da identidade daquelas centradas no espaço
físico e desvios teóricos nas Ciências Sociais, por sua instrumentalização.
Em contrapartida, esse paradigma propõe uma aproximação entre sujeito e objeto
da questão urbana a ponto de deslocar o centro de atenção para a relação entre
ambos. A abordagem urbanística relacional solicita a maior quantidade possível de
disciplinas, as quais passam a procurar diversas dinâmicas (multidisciplinar,
interdisciplinar, transdisciplinar etc.). Esta atitude veio acompanhada de certas
contribuições metodológicas aos impasses criticados: antropólogos, ecólogos e
psicólogos trouxeram a observação in vivo dos fenômenos, sem desprezo de suas
componentes empíricas, sensoriais e emocionais; historiadores, filósofos e sociólogos
recolocaram a cidade como unidade espaço-temporal e processual; a reunião de
psicólogos, geógrafos, antropólogos, arquitetos e educadores mostrou componentes
cognitivas, afetivas e estéticas necessárias às ações sobre a cidade.
Neste paradigma, o Desenho Urbano compromete-se com a procura de uma nova
atitude de abordagem do espaço da cidade, que não incida nos equívocos das
vertentes e da prática do Urbanismo, as quais permaneceram sob o Planejamento
Urbano no que se refere a seus aspectos físico-espaciais. Foi motivada pelos impasses
da produção urbanística, que mostraram o despreparo das áreas com responsabilidade
de projeto à escala urbana em relação às demais envolvidas nos processos de
planificação. Esta nova atitude assume tanto a disciplinaridade do espaço urbano
quanto sua inserção interdisciplinar, isto é, seu abastecimento por outras disciplinas,
além de interagir no encontro com as demais áreas de conhecimento e prática sobre a
cidade, multidisciplinarmente (cf. Del Rio, 1990; Kohlsdorf, 1996). Isto significa procurar
procedimentos adeqüados ao espaço da cidade como objeto disciplinar específico,
teórico e de prática projetual.
A expressão Desenho Urbano deriva do inglês “Urban Design” que, na verdade,
corresponde preferentemente a projeto urbanístico na língua portuguesa. Costuma-se
datar sua origem no final dos anos quarenta, junto com a crítica humanista, ou na
década de sessenta, conforme Del Rio (ibid.), que aponta cinco razões para considerar
este marco:
1ª.) as ondas de protesto social que ocorrem nessa época contra as intervenções do
planning centralizado nas cidades, seja em termos de renovações de áreas urbanas ou
de criação de conjuntos habitacionais;
2ª.) o despertar das sociedades européia e norte-americana para outros valores que os
progressistas, como a tradição, a produção vernácula, a consciência do patrimônio
histórico, as culturas alternativas e a crítica à sociedade de consumo;
3ª.) a ampliação da democracia na gestão urbana, por meio do planejamento
participativo e advocatício;
4ª.) a crítica ao Movimento de Arquitetura Moderna, realizado tanto pelos usuários
quanto pelos arquitetos, técnicos e cientistas sociais;
5ª.) as dificuldades econômicas e políticas do planejamento urbano em implementar
suas propostas.

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Entretanto, em certos países europeus a tradição de projeto urbanístico


permaneceu durante a era do planning ; nestes, geralmente os princípios progressistas
foram relativizados por alguma influência culturalista. Foi o caso da Inglaterra, onde o
pensamento de Willian Morris e John Ruskin, assim como a experiência de Howard e
Unwin foram suficientemente fortes para fazerem-se sentir no programa das New
Towns. Assim também aconteceu na Alemanha e na Austria, apesar do ostracismo da
obra de Camillo Sitte pelos racionalistas durante várias décadas. Estes dois exemplos
ilustram situações de planejamento urbano e regional que não descartaram atitudes de
projeto do espaço da cidade.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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