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ARACRUZ

C R E D O
40 anos de violações
e resistênc ia
no ES
1
Aracruz Credo – 40 anos de violações e resistência no ES
Rede Alerta contra o Deserto Verde e Rede Brasil sobre
Instituições Financeiras Multilaterais
Organizado por Helder Gomes e Winnie Overbeek,
Editado por Patrícia Bonilha.
Vitória, 1a edição, 2011

ISBN 978-85-88232-04-4

1. Deserto verde – Aracruz/Fibria


2. Plantações de eucalipto - impactos socioambientais,
culturais e econômicos
3. Financiamento público – prejuízo social
4. Modelo de desenvolvimento – celulose – Espírito Santo

Projeto Gráfico e Ilustração da capa: Guilherme Resende


guileresende@gmail.com
no ES

Helder Gomes e Winnie Overbeek


Organizadores

Patrícia Bonilha
Editora

1a Edição l Vitória, 2011

REDE ALERTA
CONTRA O DESERTO VERDE
4
SUMÁRIO

7 Apresentação • Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais


8 Introdução • Rede Alerta contra o Deserto Verde
13 Nota da editora

PARTE 1
17 Tupiniquim e Guarani: símbolos da resistência • Fábio Martins Villas
31 Entre a terra e o carvão: as comunidades quilombolas • Selma Dealdina
35 A degradação socioambiental no Sapê do Norte • Simone Batista Ferreira
54 Agronegócio e a vida das mulheres • Gilsa Helena Barcellos e Simone Batista Ferreira

PARTE 2
79 A re-significação da água pelo uso industrial • Marilda Teles Maracci
86 Papel para o Norte, hiper-consumo de água no Sul: uma hidro-genealogia
das fábricas da Aracruz • Daniela Meirelles e Marcelo Calazans
91 Desvios e represamento de rios: irregularidades e abusos • Marilda Teles Maracci
107 Promessas de emprego e destruição de trabalho • Alacir De’Nadai, Luiz Alberto Soares
e Winnie Overbeek

PARTE 3
135 A viabilização da Aracruz Celulose pelo Estado brasileiro • Helder Gomes
151 Fraudes e ilegalidades • Sebastião Ribeiro Filho

171 A construção simbólica da Aracruz Celulose e dos movimentos sociais pela mídia
• Luciana Silvestre Girelli

PARTE 4
188 Mudanças Climáticas: uma lucrativa oportunidade • Winnie Overbeek

190 Um fim para a cultura do consumo excessivo • Patrícia Bonilha

193 Ficção quilombola e mercado de carbono • Marcelo Calazans e Renata Valentim


Tamra Gilbertson

197 Sobre os autores

Em 2009, as plantações de monocultura ocuparam 6,3 milhões de hectares no Brasil: franca expansão da destruição da biodiversidade
Tamra Gilbertson

A implantação da fábrica da Aracruz Celulose


em Barra do Riacho causou severos impactos
socioculturais na comunidade
APRESENTAÇÃO
Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais

O Brasil tem investido cada vez mais tomada do seu território. A militância da Rede Alerta tam-
bém tem se dedicado, nestes últimos dez anos, ao estudo
recursos públicos em empresas do projeto de expansão contínua do eucalipto e celulose
transnacionais, tanto brasileiras nas suas diversas dimensões e impactos. O presente livro
é um esforço da Rede Alerta para sistematizar e disponi-
quanto estrangeiras. Como na bilizar esta acumulada experiência para o público.
Para a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multi-
época da ditadura militar, essas laterais, que há quinze anos monitora as políticas e inves-
corporações utilizam os subsídios do timentos dos grandes bancos internacionais e regionais -
e, mais recentemente do Banco Nacional de Desenvolvi-
Estado para implementar projetos mento Econômico e Social (BNDES) - no projeto de de-
desenvolvimentistas que interferem de senvolvimento no Brasil, esta publicação expõe o signifi-
cado desse projeto a partir da realidade dos territórios on-
modo severo e irreversível nas mais de atuam as empresas beneficiadas por volumosos finan-
diversas regiões do País. ciamentos, muitas vezes públicos.
Este livro apresenta uma série de artigos que explicitam
os graves impactos sociais, ambientais, culturais e econô-
micos causados por políticas governamentais inadequa-
das e aplicadas de forma autoritária. As instituições finan-

O
nde quer que essas transnacionais se instalem, a ceiras justificam os investimentos através do anacrônico e
mesma forma de atuação pode ser verificada. Ocor- falso discurso de estarem trazendo para as regiões onde
re a apropriação indevida de terras, o cercamento se implantam o ‘desenvolvimento, o progresso e a geração
e a expulsão de comunidades tradicionais e camponesas, de muitos empregos’. Os textos mostram que o que ocorre,
uma profunda degradação ambiental e a destruição do na realidade, é justamente o contrário: a qualidade de vida
modo de vida e da cultura locais. Este é o retrato da im- das populações locais piora, a violência aumenta e os em-
plantação da Aracruz Celulose, hoje em dia chamada Fi- pregos oferecidos têm caráter exploratório e, geralmente,
bria, que desde 1967 instalou-se no Espírito Santo para causam grandes danos à saúde dos trabalhadores. Portan-
promover o plantio da monocultura de eucalipto em larga to, é essencial conhecer com profundidade os impactos re-
escala e a produção de celulose para exportação. ais dessas políticas nefastas e, ao mesmo tempo, aprender
Vale ressaltar que a atuação da Aracruz não causou so- com as lutas de resistência das populações impactadas.
mente um grave conjunto de impactos negativos. O que se Este nos parece um dos caminhos para avançar na cons-
viu no Espírito Santo, por outro lado, foi um intenso pro- trução de projetos locais e regionais que se contraponham
cesso de resistência a partir das comunidades indígenas às políticas de desenvolvimento que continuam dominan-
Tupiniquim e Guarani, das comunidades quilombolas do do a agenda política das ações do Estado brasileiro.
Sapê do Norte e dos movimentos sociais do campo, resul- A Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilate-
tando no final da década de 1990 na criação da Rede Alerta rais contribuiu com enorme satisfação na realização do
contra o Deserto Verde, uma experiência inédita de articu- presente livro e gostaria de convidar outras redes par-
lação entre comunidades tradicionais, movimentos sociais ceiras e movimentos aliados a seguir este caminho, sis-
do campo, ONGs, pastorais sociais e também indivíduos tematizando e socializando as informações. Trata-se de
dispostos a apoiar as lutas das comunidades que vêm re- uma contribuição fundamental na luta por um Brasil
sistindo à monocultura de eucalipto e que lutam pela re- com justiça social e ambiental. 7
Introdução
e pesquisadores de outros estados brasileiros, um con-
junto de textos que entendemos ser de grande relevância
para a compreensão de uma parcela significativa de nos-
sa história recente.
As primeiras plantações de árvores para a produção de
Rede Alerta contra o Deserto Verde celulose no Brasil ocorreram no final da primeira metade
do século XX. A Klabin Irmãos e Cia. foi uma das pionei-
ras nas experiências de produção interna de pasta de celu-
lose associada à produção de papel. Esta empresa nasceu
A proposta deste livro é abordar os da conversão de uma gráfica da família em uma compa-
diversos impactos da implantação nhia importadora de papel e produtora de materiais para
escritório e, posteriormente, tornou-se uma grande produ-
e dos subsequentes investimentos tora nacional de celulose e papel. Segundo dados da As-
agroindustriais da empresa Aracruz sociação Brasileira de Celulose e Papel, já em 1950 a pro-
dução interna de celulose no Brasil chegava bem próximo
Celulose no estado do Espírito Santo. de 100 mil t/ano (Bracelpa, 2008). Foi no final daquela dé-
cada que o governo federal passou a planejar mais inten-
sivamente a ampliação da produção de celulose no Brasil,
dentro das perspectivas estratégicas do Plano de Metas, do
governo Juscelino Kubitscheck. A partir dessa intervenção

D
esde os primeiros plantios de eucalipto na década governamental, outras tantas deram sequência à promo-
de 1960, diversos movimentos populares e pesqui- ção das plantações de árvores em regime de monocultura
sadores denunciam a Aracruz Celulose pela usur- e, de forma combinada, na trajetória da produção de celu-
pação de direitos econômicos, sociais e culturais das cama- lose no Brasil.
das populares capixabas e, também, pela devastação am- Até então, a produção de celulose no País era motivada
biental vinculada a cada um de seus empreendimentos. pelo abastecimento interno da indústria papeleira num
Este livro é fruto da riqueza de informações acumula- modelo associado e verticalizado da cadeia produtiva de
das a partir desses movimentos de contestação. Sobre- celulose e papel. A partir daquele período, além do volu-
tudo nos últimos dez anos, a organização desse material me da produção de celulose ter se multiplicado – em 1964
(artigos e teses acadêmicas) foi possível graças ao traba- ultrapassava 500 mil t/ano (Bracelpa, 2008) –, a composi-
lho desenvolvido pela Rede Alerta contra o Deserto Verde. ção de sua cadeia produtiva foi alterada e passou a se des-
Esta articulação reúne lideranças das comunidades im- vincular da produção interna de papel. Novas plantas in-
pactadas pela monocultura do eucalipto (indígenas e qui- dustriais passaram a se especializar na produção de pas-
lombolas), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem ta de celulose de mercado e a se voltar para o comércio
Terra (MST), o Movimento dos Pequenos Agricultores exterior, visando atender à demanda por insumos básicos
(MPA), bem como várias outras organizações com repre- da indústria mundial de papel em franco crescimento.
sentação no estado, como a Federação de Órgãos para As- A elevação abrupta da produção nacional de celulose
sistência Social e Educacional (Fase), a Comissão Pasto- pressupunha resolver um problema clássico desse ramo
ral da Terra (CPT), a Associação dos Geógrafos Brasilei- industrial: a oferta de matéria-prima. Por isso, os inves-
ros (AGB) e o Movimento Nacional de Direitos Humanos timentos públicos e privados, que passaram a ser articu-
(MNDH), incluindo ainda pesquisadores, religiosos, estu- lados naquele mesmo período, se destinavam também à
dantes e uma diversidade de ativistas que atuam no Espí- elevação da produtividade na produção de madeira, o que
rito Santo e no sul da Bahia. exigia o incremento de pesquisas tecnológicas e o inter-
A proposta da Rede Alerta sempre foi combater a ex- câmbio de informações com equipes de pesquisadores
pansão das plantações de eucaliptos da Aracruz e de ou- dos países tradicionalmente grandes produtores e consu-
tras empresas através do apoio às lutas locais de resis- midores de celulose e papel.
tência das comunidades e movimentos impactados, mui- A solução encontrada pelos pesquisadores e pelas
tos dos quais tiveram suas terras tomadas pela Aracruz, equipes de planejamento foi viabilizar economicamente
além de incentivar e promover o debate com a sociedade a produção interna de celulose de eucalipto. Observou-se
sobre o nefasto modelo de desenvolvimento que o projeto que, enquanto o tempo de produção das florestas nos pa-
da Aracruz representa para o estado e para sua gente. íses de terras frias variava entre 25 e 100 anos, no Brasil,
Desse modo, esta publicação apresenta um esforço de as árvores de eucalipto poderiam ser cortadas para a pro-
reflexão coletiva, disponibilizando, ao público em geral, dução de celulose, em média, com sete anos, desde que se
8 mas, em particular, para a militância popular, estudantes investisse no manejo das plantações em regime de mono-
cultura de espécies adequadas às condições tropicais. sob controle especificamente americano. Em particular,
A montagem dessa nova forma de organização da pro- reforçam uma segunda onda de industrialização dos países
dução de celulose no Brasil se adequava ao modelo que da periferia.”
se constituía internamente como padrão de desenvolvi- (Teixeira, 1993, p. 188)
mento. Ou seja, a magnitude dos novos investimentos exi-
gia, para a viabilidade de seu financiamento e também O movimento do capital mundial facilitava uma nova
para a transferência de tecnologia, a formação de joint investida dos militares, que impunham um novo comando
ventures com o capital estrangeiro e uma grande partici- na política econômica ditada da recém construída Brasí-
pação estatal, inclusive na composição acionária dos no- lia. A política macroeconômica explicitava uma vertente
vos negócios. expansionista, elevando os investimentos estatais em in-
Com esses novos movimentos empresariais e do gover- fraestrutura e na qualificação da força de trabalho exigi-
no federal, foi possível iniciar a reversão do padrão in- da pela expansão da produção e dos novos investimentos
terno da emergente indústria de celulose, que estava ba- privados. Estes eram motivados por incentivos fiscais e li-
seado na produção integrada celulose-papel, abrindo um nhas de financiamento subsidiado.
novo cenário para a substituição de importações a partir A partir da Reforma Tributária de 1966-67, também
de plantas industriais exclusivas em celulose. ocorreu a centralização da arrecadação tributária na es-
Após o Golpe de 1964 ocorreram significativos momen- fera federal.
tos de avanço no processo de expansão das plantações de
eucalipto no Brasil. A princípio, em plena ascensão do re- “A capacidade de articulação de interesses regionais de
gime militar, para além de toda a política ortodoxa de con- cada unidade federativa, junto ao poder central, marcava
trole monetário, procedimentos do governo federal esti- os resultados correspondentes na autorização para criação
mulavam uma nova perspectiva para o reflorestamento de instituições e instrumentos locais de fomento à produção
em geral e, posteriormente, para aquele voltado para a industrial, uma vez que seu funcionamento dependia de
celulose em particular. A criação do Sistema Nacional de recursos centralizados na esfera federal.”
Crédito Rural e do novo Código Florestal são exemplares (Gomes, 1998, p. 46)
da atuação do governo neste sentido. Tais medidas am-
pliavam o leque de oportunidades de investimentos in- Tratava-se, portanto, de um contexto externo e interno
ternos na produção programada de madeira para fins di- muito particular para as oportunidades de investimen-
ferenciados, como aqueles vinculados à produção de car- tos voltados direta e indiretamente para a indústrias de
vão vegetal e ao processamento de celulose. celulose de mercado no Brasil. As alterações legislativas
Entretanto, somente na segunda metade dos anos de e institucionais ocorriam no mesmo ritmo em que mo-
1960 foram gestadas, interna e externamente, as condi- vimentos nos mercados internacionais apontavam para
ções para um novo e longo ciclo de expansão do plantio uma pressão da demanda por papel e celulose mas, tam-
de eucalipto em território nacional. No processo de es- bém, para grandes dificuldades de expansão da produ-
gotamento do modelo de substituição de importações, al- ção de madeira nos países que tradicionalmente se des-
guns empresários perceberam a ótima oportunidade de tacaram como grandes produtores mundiais dessa ma-
acumulação, possível através do aumento da escala de téria prima estratégica. Tais perspectivas internacionais
produção interna visando alcançar os mercados interna- foram apontadas por uma pesquisa divulgada pela FAO
cionais de celulose, e estimulada pelos incentivos fiscais (instituição da Organização das Nações Unidas – ONU -
à silvicultura de eucalipto. voltada para a alimentação e a agricultura), que indicava
Naquele momento, as relações comerciais e de inves- as dificuldades encontradas pelos países tradicionalmen-
timento nos mercados internacionais, em geral, estavam te grandes produtores e consumidores de celulose e pa-
sendo significativamente modificadas. Após décadas de pel em ampliar a oferta de madeira nas regiões frias do
controle e regulação dos Estados Unidos, as economias planeta. Entre as principais dificuldades, destacavam-se
européia e a japonesa, plenamente reconstruídas e re- a indisponibilidade de terras nos países centrais, o longo
cuperadas dos abalos bélicos causados pela Segunda período de maturação das plantações, bem como as pres-
Guerra Mundial, passavam a contestar o poder da eco- sões dos movimentos sociais contra o aumento das emis-
nomia estadunidense. sões de poluentes e a ampliação das monoculturas em
seus respectivos países.
“A concorrência européia e japonesa, depois de haver A notícia de que os mercados internacionais de madei-
ganho a batalha comercial, enfrenta a do investimento direto ra estavam abrindo oportunidades de localização de no-
externo. Assim, o processo de expansão das filiais e de vas fábricas de celulose motivou a intermediação de in-
transnacionalização dos capitais procedentes destes países teresses no Brasil, especialmente a partir da intervenção
começa a recortar o espaço econômico mundial até então da, então estatal, Cia. Vale do Rio Doce, que procurava al- 9
ternativas de diversificação industrial. norte do Espírito Santo e no Maranhão. E é importante
O primeiro resultado objetivo dessa articulação de in- observar que, mais recentemente, expandiram-se as ocu-
teresses foi a promulgação da Lei nº 5.106, de 02 de se- pações de territórios na Amazônia, em especial no Pará e
tembro de 1966. A nova legislação implicava na criação de no Amapá.
amplos incentivos fiscais para o que chamavam de reflo- Além da produção de celulose, as plantações de árvores
restamento, numa nítida demonstração do poder de arti- exóticas em regime de monocultura destinam-se a vários
culação dos empresários que pressionavam os militares outros fins no Brasil.
por ampliação de benefícios do Estado brasileiro para a A expectativa é de que esse processo de diversificação
nova empreitada. no uso da madeira expanda-se ainda mais, elevando a de-
Além dos benefícios definidos pela Lei nº 5.106/66, ain- manda por essa fonte de fibras celulósicas. Em particular,
da existiam naquele momento as linhas de financiamen- atualmente, há uma pressão em relação aos novos usos
to vinculadas ao Instituto Brasileiro do Café (IBC)/Gerca, para o eucalipto no sentido de aumentar a oferta diferen-
do Ministério da Agricultura, voltadas para a diversifica- ciada com a evolução das pesquisas e com as primeiras
ção agrícola e industrial nos estados atingidos pelos pro- experiências de produção de árvores transgênicas e a hi-
gramas de erradicação de cafezais. drólise de celulose voltada para a fabricação de etanol.
Destacou-se também, dentre as ações do governo fede- Este é o contexto geral em que se produz esta publi-
ral, a criação do Instituto Brasileiro de Desenvolvimen- cação. Contudo, como anunciado no início desta introdu-
to Florestal (IBDF), em 1967, período em que também se ção, este livro se propõe a apresentar os impactos eco-
formava a primeira turma de engenheiros florestais, cur- nômicos, sociais, culturais e ambientais dos investimen-
so mantido por convênio entre o IBDF e a FAO. tos desse amplo mercado numa região específica do Bra-
Assim, o que na origem se apresentava como uma po- sil: o Espírito Santo. Nessa perspectiva, dividiu-se o livro
lítica nacional mais abrangente, voltada inclusive para a em quatro partes.
solução de problemas energéticos da indústria siderúrgi- À primeira parte, ficaram reservados os textos que tra-
ca brasileira, que demandava muito carvão, passou a se tam das comunidades tradicionais, as primeiras a sofrer
apresentar mais explicitamente como um planejamento os impactos do projeto da Aracruz Celulose e também as
de longo prazo, destinado à ampliação das plantações de que iniciaram as lutas de resistência, que continuam até
eucalipto, em larga escala, objetivando a produção de ce- os dias de hoje. Portanto, em seu princípio, o livro explici-
lulose de mercado para a exportação. ta os impactos da chegada do Grupo Aracruz, em 1967, ao
Todo o arranjo político e institucional construído a par- município de Aracruz, especialmente aqueles que envol-
tir do final dos anos de 1960 formou a base de susten- vem a expulsão das comunidades indígenas Tupiniquim
tação pela qual o Estado passou a fomentar a produção e Guarani de suas terras, a intensificação da derrubada
de celulose de mercado no Brasil. A produção interna se da Mata Atlântica e a sua substituição pela monocultu-
multiplicou e em 1972 já ultrapassava um milhão de t/ ra do eucalipto. Neste município, foi inaugurada, em 1978,
ano. Entretanto, a grande guinada da produção interna de a primeira das três fábricas de celulose implantadas pela
celulose ocorreu na virada para os anos de 1980, quan- Aracruz, sendo que ela se localiza exatamente no mesmo
do entrou em operação o primeiro projeto industrial da lugar onde viviam os moradores da Aldeia Tupiniquim de
Aracruz Celulose no estado do Espírito Santo, elevando Macacos. Também nesta época aconteceram as primeiras
a produção brasileira para mais de três milhões de t/ano manifestações da luta dos Tupiniquim e Guarani pela re-
e abrindo uma sequência de grandes investimentos nes- cuperação de suas terras. Este movimento alcançou gran-
se novo mercado. Em meados dos anos de 1990, novos in- de êxito em 2007, com a recuperação de mais de 18 mil
vestimentos dobraram novamente a produção de celulo- hectares do território tradicional.
se no Brasil. Em 2007, cerca de 12 milhões de t/ano (Bra- Ainda na primeira parte, o livro apresenta a expansão
celpa, 2008) foram produzidas no País. das plantações de eucalipto do Grupo Aracruz para o ex-
A partir da primeira grande fábrica instalada no muni- tremo norte do estado nos anos de 1970. Os municípios
cípio de Aracruz, no norte do Espírito Santo, os novos in- de São Mateus e Conceição da Barra foram os principais
vestimentos industriais e a expansão das plantações de receptores desses pesados investimentos na monocultu-
eucalipto (e também de pinus) alteraram a distribuição ra de árvores exóticas e, também, os que experimentam,
da produção setorial em todo o País. Atualmente, as plan- até hoje, os maiores embates do grande capital com as co-
tações de árvores exóticas em regime de monocultura munidades tradicionais, pois, tal investida significou tam-
ocupam grandes extensões de terras nas regiões Sul, Su- bém a invasão do território das comunidades quilombo-
deste e Centro-Oste, com exceção dos estados do Rio de las da região do Sapê do Norte. Num processo semelhan-
Janeiro e Tocantins, onde os projetos ainda estão em fase te ao que ocorreu nas terras indígenas, as comunidades
de estudos e implantação. Destacam-se as plantações de perderam suas terras e riquezas naturais e, só mais re-
10 eucalipto localizadas em Minas Gerais, no sul da Bahia, centemente, a partir de maiores garantias legais, os qui-
Distribuição das plantas agroindustriais de madeira e celulose no Brasil

Fonte: Melo, 2008, p. 229

lombolas puderam intensificar a luta pela recuperação do rações no Brasil. Ou seja, a partir da invasão de cerca de
seu território. 130 mil hectares de terras anteriormente ocupadas pelas
Nas lutas pela recuperação de suas terras, das flores- comunidades tradicionais e pela Mata Atlântica, concen-
tas, dos rios e da biodiversidade, as mulheres dessas co- tradas em apenas três municípios capixabas, foi possível
munidades sempre tiveram destaque. Vale ressaltar que, iniciar a rede devastadora que representa seus empreen-
apesar de sofrerem os maiores impactos, as mulheres têm dimentos no País.
uma atuação cada vez mais crescente. Isso também se ex- A segunda parte apresenta os impactos específicos do
plicita nas ações das mulheres da Via Campesina na luta complexo agroindustrial da Aracruz Celulose sobre as
contra a expansão dessa monocultura no Espírito Santo e águas dos rios e córregos de importantes bacias hídricas
em todo o Brasil. Nessa primeira parte do livro procurou- no território capixaba. Os textos que abordam esta pre-
se demonstrar que, com a ocupação dos territórios indí- ocupação demonstram o severo significado da degrada-
genas e quilombolas, a Aracruz Celulose construiu a base ção e, até mesmo, do esgotamento de certos mananciais
para a apropriação dos grandes territórios de suas ope- para as comunidades tradicionais ribeirinhas e demais 11
famílias camponesas, as quais foram cerceadas do aces- ca a falta de compromisso do Estado em apurar as ilegali-
so a fontes de produção de alimentos devido ao consumo dades e irregularidades da Aracruz Celulose.
exorbitante de água pelas plantações de eucaliptos e pela Também é de suma importância para os interesses do
produção industrial de celulose em larga escala. grande capital que tudo isso fique invisível para a socieda-
Na sequência, são explicitadas as relações entre a pro- de e que apenas uma boa imagem empresarial seja divulga-
dução altamente mecanizada de eucalipto e celulose, as da. Isso se concretiza devido à identidade ideológica e, tam-
condições de trabalho e a oferta de emprego nas áreas de bém, aos interesses financeiros que aproximam as princi-
abrangência das atividades do Grupo Aracruz no Espíri- pais e mais influentes empresas de comunicação social da
to Santo. De início, estes impactos atingiram, em especial, Aracruz. Daí, a proposta de apresentar nessa terceira parte
as comunidades tradicionais. Mas, com o aumento da pro- do livro o poder que essa empresa exerce na grande mídia,
dução em terras de camponeses e com a introdução do em especial na Rede Gazeta de Comunicações, afiliada da
programa de Fomento Florestal, terceirizando a produ- Rede Globo, líder de audiência no Espírito Santo.
ção de madeira para camponeses e fazendeiros, esses im- Apesar de todas as tentativas de greenwashing, apesar
pactos começaram a se espalhar por várias áreas no esta- de se mostrar como farol da modernidade e do desenvol-
do, assim como por outras regiões do País. vimento capixaba, a Aracruz Celulose se tornou, para os
O processo de expansão da Aracruz resultou especial- movimentos camponeses capixabas, o maior símbolo do
mente da aquisição, em 2000, de 50% das ações da Veracel agronegócio no estado e, portanto, um alvo importante na
Celulose na Bahia e, depois, em 2003, da fábrica da Rio- luta pela reforma agrária e pela justiça social, ambiental
cell no Rio Grande do Sul. Em 2009, o Grupo Votorantim e econômica no campo.
comprou as ações do Banco Safra e do Grupo Lorentzen Na última parte, dois curtos textos pretendem alertar
e tornou-se o principal acionista e dono da Aracruz – a para a complexidade dos futuros desafios postos à socieda-
empresa estava praticamente falida por ter perdido cer- de civil em seu enfrentamento a uma gigante como a Ara-
ca de US$ 2,13 bilhões devido à especulação financeira cruz. O primeiro texto traz elementos sobre a atuação das
no mercado internacional de derivativos (títulos podres). empresas poluidoras no sentido de transformar o proble-
Com participação de 12,5%, o Banco Nacional de Desen- ma das mudanças climáticas em mais uma oportunida-
volvimento Econômico e Social (BNDES), generosamen- de de lucro. Em seguida, um apanhado de dados explicita
te financiou R$ 2,4 bilhões para a operação de fusão e tor- quem são os maiores interessados na manutenção do atual
nou-se o segundo maior acionista da Aracruz que, a par- sistema mundial de produção e consumo de papel, quão in-
tir da compra pela Votorantim, adotou o novo nome de justa é a distribuição desse produto e a urgente necessida-
Fibria. Portanto, de um mega-presente do BNDES, pago de de rompermos com a cultura do consumo excessivo.
com recursos públicos que deveriam beneficiar a clas- Esta publicação termina com uma projeção da história
se trabalhadora, atualmente, esta mega-empresa é a lí- que, mesmo sendo ficção, demonstra bem a realidade in-
der mundial no mercado de celulose, detém mais de um sana produzida pela lógica que perpassa o projeto da em-
milhão de hectares de terras em seis estados brasileiros presa Aracruz Celulose no Espírito Santo. O maior grupo
(Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, econômico no seu setor em todo o mundo – com grande
Mato Grosso do Sul e São Paulo) e se constitui em uma capacidade de acumulação e influência política, que pas-
das maiores corporações do agronegócio e uma das gran- sou e passa por várias transmutações patrimoniais, envol-
des beneficiadas pelos subsídios do governo brasileiro. vendo um profundo processo de centralização de capitais,
A terceira parte desta publicação trata das relações e que conta com o apoio fundamental do Estado – e sua
entre a empresa Aracruz Celulose e as diversas instân- incessante luta contra as camadas mais desprotegidas do
cias do poder na sociedade brasileira. O estudo da rápi- povo brasileiro. Soa surreal, mas, infelizmente, não é.
da expansão desse conglomerado revela o quão impor-
tante foi a participação do Estado brasileiro na garantia Referências Bibliográficas
de que esse crescimento pudesse ocorrer com o máximo
Bracelpa. Celulose: evolução histórica da produção, 2008. Disponível em http://www.bracelpa.
de lucratividade possível, inclusive financiando e subsi- org.br/bra/estatisticas/pdf/anual/celulose_00.pdf
diando a Aracruz, principalmente através do BNDES. É
certo que essa relação de poder implica em uma rede de Gomes, Helder. Potencial e limites às políticas regionais de desenvolvimento no estado do
reciprocidades envolvendo uma gama de agentes públi- Espírito Santo: o apego às formas tradicionais de intermediação de interesses. Vitória (ES):
UFES (Dissertação – Mestrado), 1998.
cos e privados com interesses diretos em jogo.
Uma das bases dessa relação de poder tem sido o finan- Melo, Rafael Rodolfo de, et. al. Evolução do setor florestal brasileiro. In: 4º Simpósio
ciamento de campanhas eleitorais de candidatos aos po- Latino-Americano sobre Manejo Florestal (Anais). Santa Maria (RS): UFSM/CCR, 26-28/
nov./2008.
deres executivo e legislativo - desde a presidência da Re-
pública, passando por governadores, deputados federais Teixeira, Aloísio. O movimento da industrialização nas economias capitalistas centrais no
12 e estaduais, até prefeitos e vereadores. Essa prática expli- pós-guerra. Rio de Janeiro (RJ): UFRJ/IEI, 1993.
NOTA DA EDITORA

A
lguns aspectos precisam ser esclarecidos a res- na qual estarão inseridas e que, seguramente, será impac-
peito da publicação de Aracruz Credo. O primeiro tada pelas ações e ilegalidades que esta empresa cometeu
deles é o fato de que, apesar de em 2009 - a partir e ainda comete. Manter vivo este histórico, não permitin-
da compra da Aracruz Celulose pelo Grupo Votorantim do que uma mudança de nome o apague da memória, é
- esta empresa ter adotado o nome de Fibria, os textos uma forma de tentar evitar que a história se repita.
e o título deste livro continuam a se referir à empresa Também é importante ressaltar que, ao publicarem
como Aracruz. este livro, tanto a Rede Alerta quanto a Rede Brasil têm
Esta opção deve-se ao fato de que, primeiro, por mais como proposta dar voz às pessoas e comunidades que
que invista recursos substanciais para ser vista como nunca foram consultadas sobre as extensas plantações
uma empresa diferente e utilize um discurso politica- de eucalipto, sobre as drásticas mudanças nos seus mo-
mente mais sofisticado no trato com as comunidades dos de vida e nem sobre os impactos no meio em que
locais, tentando construir a imagem de uma empresa viviam. Mesmo sob as mais adversas condições, essas
social e ambientalmente responsável, a sua atuação e a pessoas ainda hoje lutam para ter seus direitos funda-
lógica de sua prática não mudaram em absolutamente mentais respeitados. Portanto, vários artigos de Aracruz
nada. Ao contrário, a “Fibria”, com mais de um milhão de Credo privilegiam justamente os depoimentos de indí-
hectares plantados com eucalipto no País, tem atuado de genas, quilombolas, mulheres e trabalhadores. Perso-
modo ainda mais agressivo no que concerne à concen- nagens de uma vida impactada por inúmeras violações,
tração de terras. seus testemunhos nos aproximam de um modo bastante
Por outro lado, nenhum esboço de mudança tem sido singular dos desafios que a implantação da Aracruz im-
feito no sentido de devolver as terras quilombolas, devi- pôs diretamente às suas vidas.
damente identificadas e reconhecidas pelo Instituto Na- Por último, vale reforçar que este livro reúne textos es-
cional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e que critos em diferentes momentos dos últimos dez anos em
foram indevidamente apropriadas destas comunidades, que a Rede Alerta atua contra o deserto verde na região
ou para a recuperação dos milhares de hectares de Mata do Espírito Santo. Nesse sentido, apesar de os artigos te-
Atlântica que foram destruídos no Espírito Santo. Tam- rem sido, em linhas gerais, atualizados, alguns dados mais
bém não se verifica qualquer disposição de produzir específicos podem estar defasados, ainda mais conside-
celulose de uma forma radicalmente diferente: em pe- rando a lógica que move mega-empresas como a Aracruz,
quena escala, a partir de fontes de fibra diversificadas em que a busca pelo “crescimento” e pelo aumento da
(evitando, desse modo, as grandes monoculturas), sem a produção e lucratividade são movidas por um ritmo bas-
massiva utilização de agrotóxicos, sem usurpar as águas tante acelerado e insano.
dos rios e córregos da região, sem impactar a agricultura Oxalá Aracruz Credo – 40 anos de violações e resistên-
familiar e camponesa e sem explorar os trabalhadores, cia no ES possa ser um instrumento para a compreensão
por exemplo. da atuação das mega-empresas e do funcionamento do
Outro motivo é a constatação de que a história desses sistema capitalista em que elas estão inseridas; e, por ou-
40 anos de severos e irreversíveis impactos que a Ara- tro lado, da necessidade de, tendo em vista essa comple-
cruz construiu no Espírito Santo não pode cair no es- xa realidade, nos organizarmos para a construção de um
quecimento. Trata-se de um passado e de um presente campo contra hegemônico e, finalmente, uma sociedade
manchados pelo profundo desrespeito à vida, que devem justa e solidária.
necessariamente ser informados às futuras gerações para
que elas compreendam o processo histórico e a realidade Boa leitura! 13
14
PARTE 1
• A questão indígena • A questão quilombola
• Impactos socioambientais no Sapê do Norte
• Impactos sobre as mulheres

15
Uma revelação, recebida através de um sonho,
pela líder religiosa Guarani, Tatantim Vareté, foi
16 determinante para encorajar a luta indígena
1
um Tekoa, que garanta as condições ideais (mata, água,
caça, pesca, etc.) para a manifestação do “modo de ser
Guarani” (Teko).
Estas condições foram, em grande medida, encontra-
das pelos Guarani no território Tupiniquim, no Espírito
Santo, e foram por eles acolhidos como parentes.
Nos 40 anos de disputa com a Aracruz Celulose, os
Tupiniquim e Guarani enfrentaram vários desafios: a bu-
rocracia estatal, várias operações policiais, decretos e de-
cisões judiciais contra eles, criminalização de lideranças,
imposição de acordos ilegais, projetos econômicos inte-

Tupiniquim e Guarani: gracionistas ao mercado, uma campanha difamatória pa-


trocinada pela empresa, pressões e chantagens de re-

símbolos da resistência
presentantes dos governos federal, estadual e municipal,
abaixo-assinados e passeatas da população local mani-
pulada pela empresa e o boicote de uma mídia compro-
Fábio Martins Villas
metida com os interesses do agronegócio e, em particular,
com a Aracruz Celulose. Porém, nada disso foi suficien-
te para arrefecer a luta e a resistência dos Tupiniquim e
A intenção deste artigo é descrever e comentar o pro- Guarani, embora tenha contribuído para retardar o pro-
cesso de resistência e luta dos Tupiniquim e Guarani, lo- cesso de reconquista do território, prolongando e agra-
calizados no município de Aracruz, estado do Espírito vando os impactos da monocultura do eucalipto sobre a
Santo (ES), pela reconquista de suas terras, desde 1967. terra e o meio ambiente e sobre as condições de sobrevi-
Os Tupiniquim, originários do Espírito Santo, perde- vência das famílias indígenas.
ram progressivamente parcelas significativas do seu ter- Para superar esses desafios e conseguir recuperar uma
ritório original desde o início da colonização portuguesa parte significativa de suas terras, os índios realizaram vá-
em 1500. Mas foi a partir da década de 1960, com a im- rias ações, como ocupações de terra (1979 e 2000), auto-de-
plantação da Aracruz Celulose, que este povo sofreu um marcações (1980, 1998 e 2005), ocupações das fábricas da
golpe tão forte e certeiro que quase comprometeu sua empresa (2005) e do Portocel, por onde é exportada a ce-
continuidade histórica como povo indígena. lulose produzida pela Aracruz, (2006), derrubada e quei-
A empresa invadiu o que ainda restava de terra in- ma de eucaliptos (2006) e reconstrução de aldeias (2005,
dígena e deu início a extensas plantações de eucalip- 2006 e 2007).
to. Posteriormente, três unidades de produção de celu- Uma das características marcantes desta luta foi a ca-
lose foram implantadas. Após a retirada dos indígenas, a pacidade dos índios em agregar aliados e parceiros do
maioria das aldeias foi destruída, a mata nativa - que co- Espírito Santo, do Brasil e do exterior - condição funda-
bria uma grande área - foi derrubada e rios e córregos mental para o enfrentamento de uma empresa do por-
foram sugados pela monocultura do eucalipto, compro- te da Aracruz Celulose. O apoio e a solidariedade da igre-
metendo as condições de sobrevivência física e cultural. ja católica, através das Comunidades Eclesiais de Base
Os córregos que não secaram foram reduzidos ao nível (CEBs) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no
mais baixo e/ou envenenados pelos agrotóxicos utiliza- período de 1979 a 1981; do Fórum Campo e Cidade2, da
dos pela empresa. igreja católica e do Partido dos Trabalhadores (PT), no
Na década de 1960, pouco antes do início da atuação da período de 1993 a 1998; e da Rede Alerta contra o Deserto
Aracruz na região, um grupo de Guarani Nhãdéwa1 che- Verde, no último período de luta entre 2005 e 2007, foi
gou ao Espírito Santo, vindo do sul do Brasil, numa ca- fundamental para fortalecer a capacidade de resistência
minhada que teve início nos anos de 1940. O movimento e luta dos indígenas contra a Aracruz. Ao mesmo tempo,
migratório é uma característica da cultura Guarani, re- as campanhas contra a empresa e o governo deram uma
monta ao período pré-colombiano e realiza-se no que os ampla repercussão à luta indígena, despertando e atrain-
Guarani consideram como o grande território Guarani, do a solidariedade nacional e internacional em favor dos
o Tekoa Guassu. A motivação para o Oguata (caminhar) Tupiniquim e Guarani.
é religiosa mas, muitas vezes, é provocada ou impulsio- O desfecho da disputa veio com a edição das Portarias
nada por disputas de terras com não-índios. Por isso, os de Delimitação (números 1.463 e 1.464), em 27 de agosto
Guarani caminham em busca da “terra sem males” (Yvy de 2007, do Ministério da Justiça (MJ), declarando as ter-
Marãñe Y), a qual possui uma dimensão mística, alcan- ras (18.027 hectares)3 como “tradicionalmente ocupadas
çada após a morte, e outra terrena, o lugar, uma aldeia, pelos povos Tupiniquim e Guarani” e determinando a sua 17
A repercussão da luta indígena e da reconquista de suas
terras circulou pelo País e pelo mundo e rendeu aos ín-
dios e seus aliados manifestações de apoio e solidariedade
e homenagens como o prêmio do Movimento Nacional de
Direitos Humanos e o prêmio “Luta pela Terra”, do MST, am-
bos em 2008.

De 1500 a 1967: período de resistência


e de perdas sucessivas
Calcula-se que no Brasil, antes da chegada dos coloni-
zadores portugueses, existiam cerca de mil povos indíge-
nas. Hoje, restam apenas cerca de 240. No entanto, povos
indígenas tidos como extintos durante o processo de colo-
nização estão ‘ressurgindo’ em várias partes do País, no-
tadamente nas regiões leste e nordeste, e exigindo o re-
conhecimento oficial de sua indianidade e, consequente-
A luta indígena foi repercutida no Brasil e pelo mundo mente, de seus direitos (em particular, o da demarcação de
suas terras).
demarcação. Dito de outra maneira, a decisão do governo A simples sobrevivência dos Tupiniquim ao processo de
brasileiro, embora com um atraso de quarenta anos, re- extermínio desencadeado a partir de 1500 pode ser con-
conheceu que as terras em disputa sempre pertenceram siderada uma vitória desse povo. Porém, esta vitória foi
aos índios e que a Aracruz Celulose as ocupou ilegalmen- acompanhada por sucessivas perdas: do território indí-
te durante esse longo período. gena e de seus recursos naturais; da população indígena,
Posteriormente, em 03 de dezembro de 2007, foi assi- dizimada pelas doenças, pelas guerras e pela escraviza-
nado em Brasília, um Termo de Ajustamento de Conduta ção; de elementos culturais e religiosos, inclusive do idio-
(TAC) entre os índios e a Aracruz Celulose, tendo como ma Tupi, em função dos programas de integração (através
intervenientes a Fundação Nacional do Índio (Funai) e dos aldeamentos e da catequese religiosa) e da repressão; e
o Ministério Público Federal (MPF). Isto se fez necessá- de impactos profundos na identidade indígena. Neste par-
rio para possibilitar a continuidade do processo de regu- ticular, os Tupiniquim, um povo indígena autóctone, pos-
larização administrativa das terras. Sem o TAC, haveria a suidor de uma cultura construída e reconstruída milenar-
possibilidade (ameaça) da Aracruz contestar e suspender mente, foi taxado durante o período da colonização de sel-
judicialmente os efeitos das portarias do MJ por tempo vagem e bugre. Posteriormente, foram denominados cabo-
indeterminado, podendo inclusive colocar em risco a re- clos, remanescentes indígenas e, mais recentemente (1976),
tomada das terras pelos Tupiniquim e Guarani. considerados pelo governo militar como índios aculturados
A demarcação física das terras foi concluída no mês e aptos a serem emancipados. Ao longo de todo esse pro-
de março de 2008 e a homologação pelo presidente da cesso foram, como os demais povos indígenas, sistemati-
República, prevista para 2009, somente foi assinada em camente pressionados a se integrar ao sistema econômi-
novembro de 2010. co dominante, que tinha como objetivo a incorporação da
Entre abril e dezembro de 2009 foi realizado um estudo mão-de-obra indígena, de suas terras e dos recursos na-
etno-ambiental com o objetivo de identificar as melhores turais ao mercado. As consequências foram, e continuam
alternativas de uso da terra, visando projetos e progra- sendo, a expropriação dos seus bens materiais e imateriais
mas que promovam a auto-sustentação das comunidades e o seu empobrecimento.
indígenas e a recuperação ambiental do território con- Os povos pertencentes ao tronco linguístico Tupi-
quistado. Este estudo também realizou, com a participa- Guarani sempre ocuparam, em sua grande maioria, o li-
ção das comunidades indígenas, um plano de ocupação e toral brasileiro. Não foi uma ocupação gratuita e espon-
uso do território indígena pelos Tupiniquim e Guarani. tânea. Ao contrário, foi uma conquista sobre outros po-
É importante assinalar que essa vitória contra a Aracruz vos, ou seja, um território conquistado e construído ao
Celulose significa, em grande medida, uma vitória contra longo de séculos de ocupação.
o agronegócio e o modelo de desenvolvimento que essa Em 1500, o território Tupiniquim compreendia uma
mega-empresa representa e tem sido adotado no Brasil – área situada entre o sul da Bahia e o Espírito Santo. Sua
e, em particular, no Espírito Santo - pelas elites, com total população foi estimada por John Hemming4 em mais de
apoio do governo. A resistência indígena sempre esteve 55 mil habitantes. Em 1610, após sucessivos conflitos com
inserida na luta contra o agronegócio e por uma mudança os portugueses, este território foi drasticamente reduzi-
18 estrutural no modelo de produção e consumo. do a uma sesmaria de terra no Espírito Santo, corres-
pondente a seis léguas em quadro [a légua de sesmaria recusaram a vender suas posses, a empresa utilizou ou-
tem 6.600 metros]. Em 1760, foram demarcadas apenas tra tática. Em seu quadro de funcionários havia mili-
as terras habitadas dessa sesmaria, tendo como exten- tares reformados, como o major Orlando, responsáveis
são 61 km de costa e 39 km de fundo (237.900 ha), o que pela segurança da empresa. A eles competia “convencer”
significou, novamente, redução das terras indígenas. os índios que resistiam. Ameaças e intimidações foram
Sem a proteção dos jesuítas, expulsos do Brasil em constantes, sempre conduzidas, ainda segundo os índios,
1760, e do governo português, as terras foram rapidamen- por “um militar fardado e cheio de medalhas”. Aqueles
te ocupadas por fazendas, povoados e vilas. Pressionados, que, mesmo assim, continuaram a resistir foram expul-
no início do século XX, os Tupiniquim se refugiaram no sos da terra e suas casas e aldeias destruídas pelos tra-
norte do território demarcado, uma região despovoada e tores da empresa.
coberta por densa mata nativa, com cerca de 150 mil ha5. Ao mesmo tempo, tratores de esteira unidos por “cor-
Na década de 1940 ocorreram mudanças mais intensas rentões” derrubaram a mata nativa que, na sequência, era
na região habitada pelos índios. Cerca de 10 mil ha foram queimada. Segundo os índios e moradores da região, as
ocupados pela Companhia Ferro e Aço (Cofavi) com au- fogueiras ardiam durante semanas. Junto à madeira, mor-
torização do Estado, com o objetivo de explorar a floresta riam carbonizados animais de vários portes e espécimes.
para a produção de carvão vegetal. Em pouco tempo, 37 aldeias Tupiniquim foram destruí-
Até a década de 1960 ocorreram novas reduções. Antes das. Restaram apenas Caieiras Velhas e Pau Brasil, ambas
da chegada da Aracruz Celulose, os índios ocupavam 55 com apenas 25 ha cada. A aldeia de Comboios foi preser-
mil ha6 e habitavam preferencialmente a região que cir- vada da destruição e do plantio de eucalipto por ser uma
cunda o atual município de Aracruz, onde, na época, as área de restinga. Mesmo assim, foi invadida por possei-
matas e florestas naturais permitia que vivessem da pes- ros, muitos deles oriundos de outras regiões, atraídos pela
ca e da coleta de mariscos, da caça, da coleta de frutos e instalação da Aracruz Celulose. Cerca de 50%9 da popula-
da agricultura de subsistência, caracterizada pela itine- ção indígena Tupiniquim migrou para a periferia das cida-
rância e a dispersão espacial das áreas de cultivo. des vizinhas, inclusive para a capital Vitória. A outra me-
Portanto, de um extenso território em 1500, restava aos tade se refugiou nas aldeias sobreviventes. Com a expro-
Tupiniquim (e aos Guarani) apenas 55 mil hectares no final priação das terras, parte dessa população passou a sobre-
da década de 1960. Mesmo assim, esse território abrigava e viver do trabalho temporário no plantio do eucalipto e na
proporcionava as condições de sobrevivência a uma popu- construção da primeira fábrica, inaugurada em 1978. As al-
lação de dois mil índios7, distribuída em quarenta aldeias, deias serviam apenas como dormitórios para essa mão de
em sua maioria construídas no interior das florestas nati- obra. Uma outra parte dos índios foi buscar o sustento das
vas, onde desenvolveram “sistemas adaptativos e um mode- famílias nos manguezais dos rios Piraquê-Açu e Piraquê-
lo de sustentação que permitia, ao mesmo tempo, compati- Mirim, onde passaram a realizar a pesca e a extração de
bilizar as necessidades do grupo, a manutenção dos recur- diversos tipos de mariscos de forma intensiva, com sérias
sos e a preservação da natureza”.8 implicações para esse importante recurso natural.
A perda das matas nativas e a redução significativa das
A invasão das terras pela Aracruz Celulose terras representaram uma desestruturação do modo de
A expropriação das terras indígenas pela Aracruz vida desse povo, ao inviabilizar suas principais fontes de
Celulose, a partir de 1967, foi rápida e devastadora. subsistência. As práticas da agricultura, da caça e da co-
Primeiro, ela adquiriu os 10 mil ha da Cofavi, que haviam leta foram drasticamente comprometidas. Córregos e ria-
sido entregues pelo governo na década de 1940. Em se- chos desapareceram ou diminuíram seus níveis. Além
guida, uma parte das terras dos Tupiniquim foi adquirida disso, “a extinção das aldeias forçou a um novo reorde-
através de prepostos, como o do ex-prefeito de Aracruz, namento geográfico, provocando crise de sociabilidade e
Primo Bitti (já falecido) e outros, que “compravam” a pos- dissolução dos laços de reciprocidade.”10
se dos índios, ou seja, a casa de estuque e palha e as ben- Enfim, a desestruturação das formas sociais, culturais e
feitorias (roças) por preços irrisórios, muitas vezes em econômicas quase levou os Tupiniquim ao extermínio. Os
troca de lotes na cidade de Aracruz. Para convencê-los Guarani também sofreram os impactos, embora não tives-
diziam, segundo os índios mais idosos, que a região se- sem se subempregado na Aracruz Celulose, e passaram a
ria ocupada por uma empresa poderosa para o plantio viver exclusivamente da venda do artesanato. Em 1972,
de eucalipto e que eles ficariam ilhados e suas terras se em resposta às denúncias dos índios, a Funai transferiu os
tornariam improdutivas. Após a negociação, mediam as Guarani e alguns Tupiniquim para a Fazenda Guarani em
terras, às vezes aldeias inteiras, registravam nos cartórios Minas Gerais, onde mantinha um Reformatório Agrícola
em seus nomes ou de terceiros e as vendiam de imediato para índios de várias partes do País que cometiam deli-
à Aracruz Celulose. tos em suas áreas de origem, muitas vezes decorrentes da
Por fim, na parte restante das terras, daqueles que se luta contra invasores de suas terras. 19
A resistência das aldeias Caieiras Velhas, Pau Brasil renome nacional. Além do projeto de emancipação, foi
e Comboios, garantindo abrigo para as famílias das al- denunciada a situação em que viviam os Tupiniquim e
deias destruídas pela Aracruz e dos índios que retorna- Guarani e exigida a devolução de suas terras ocupadas
ram da Fazenda Guarani em 1976, foi determinante para pela Aracruz Celulose. Um representante do Ministério
impedir a extinção dos Tupiniquim e possibilitar a reto- do Interior estava presente no evento e diante das pres-
mada do processo de recuperação das terras a partir de sões anunciou a demarcação das terras que haviam res-
1979. Apesar de reduzidos e das dificuldades em propor- tado aos índios, ou seja, 25 ha em Caieiras Velhas e 25 ha
cionar condições mínimas de subsistência, esses espaços em Pau Brasil. A proposta, rechaçada pelos presentes no
preservaram o vínculo dos índios com a terra, fundamen- seminário, confirmou o posicionamento do governo em
tal para a manutenção da identidade étnica, da comuni- favor da empresa e o descaso para com a situação dramá-
dade enquanto suporte da coesão sociocultural, das fes- tica vivida pelos Tupiniquim e Guarani.
tas religiosas e da esperança na construção das possibili- A repercussão desse anúncio nas aldeias provocou in-
dades de futuro. dignação e revolta. Com a convicção de que não viriam
soluções de Brasília, os índios iniciaram os preparativos
As lutas pela reconquista do território indígena de ações de retomada da terra, mesmo sabendo das pos-
As denúncias na imprensa da transferência dos Guarani síveis reações contrárias, inclusive da violência policial.
para Minas Gerais, em 1972, tiveram repercussão nacio- No período compreendido entre 1979 e 2007, ano em
nal e revelaram ao País a existência dos Tupiniquim no que acontece a demarcação das terras reivindicadas pe-
estado do Espírito Santo. los índios (18.027 ha), ocorreram três períodos de maior
Em 1975, durante a reunião da Sociedade Brasileira enfrentamento com a Aracruz Celulose e o governo fede-
para o Progresso da Ciência (SBPC), antropólogos pre- ral: de 1979 a 1981; de 1993 a 1998; e de 2005 a 2007, que
sentes divulgaram denúncias do indigenista da Funai, serão descritos a seguir.
João Geraldo Itatuitim Ruas, sobre a situação vivida por
eles. No mesmo ano, o presidente do órgão indigenista, 1979 a 198111
general Ismarth de Araújo, visitou a aldeia de Caieiras Em 1978, a população Tupiniquim aldeada em Caieiras
Velhas. Porém, nenhuma providência foi tomada em fa- Velhas, Pau Brasil e Comboios somava apenas 611 índios.
vor dos Tupiniquim e Guarani. Os Guarani, cerca de 70 pessoas, moravam em Caieiras
Para o governo militar e principal acionista da empre- Velhas em apenas três casas, uma delas alugada.
sa (o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e No mês de outubro desse ano chegou ao Espírito
Social - BNDES - detinha 51% das ações), o projeto Aracruz Santo uma família Guarani Kayová, composta de sete
Celulose já estava consolidado. Em outubro de 1978, a em- pessoas, vinda do Mato Grosso do Sul em busca da “terra
presa inaugurou a sua primeira fábrica, com a presença do sem males”. Já haviam percorrido vários estados (Mato
general-presidente Ernesto Geisel. Grosso, Pará, Minas Gerais e sul da Bahia) quando
Neste período havia uma grande mobilização da so- souberam da existência dos Guarani no Espírito Santo
ciedade brasileira, com repercussão internacional, con- e decidiram se juntar a eles. A vinda desta família vai
tra um projeto do governo federal que tramitava no desencadear a luta dos Tupiniquim e Guarani pela ter-
Congresso Nacional e que permitiria que índios e até ra. Inicialmente, foram morar em Caieiras Velhas, mas
comunidades inteiras fossem emancipados, ou seja, no mês seguinte decidiram ocupar uma área, com mata
deixassem de ser tutelados pelo Estado, perdendo as- nativa, localizada na margem esquerda do Rio Piraquê-
sim a proteção do governo, principalmente no tocante à Açu e próxima à sua foz. Esta área estava sob o domí-
demarcação das terras. Segundo declarações de Rangel nio da Aracruz Celulose e da Cia. Vale do Rio Doce e
Reis, ministro do Interior, ao qual a Funai estava vin- media cerca de 300 ha. Os índios de Caieiras Velhas,
culada, a aprovação do projeto permitiria a integração sobretudo os Guarani, usavam esta mata às escondi-
de toda a população indígena do País (na época 220 mil das para a caça e a extração de material para a confec-
índios) à sociedade nacional num prazo de 30 anos. O ção de artesanato e remédios. Os Guarani Kayová fo-
caráter etnocida do mesmo era evidente. O extermí- ram mais além: construíram uma casa e começaram a
nio dos povos indígenas não se daria mais pelas armas preparar suas roças. Em janeiro de 1979, uma família
e doenças, como no passado, mas pelo bico da caneta. Guarani Nhãdéwa se juntou a eles.
Não é de se estranhar que os Tupiniquim fossem con- Ainda nesse mês foram descobertos pelos seguran-
siderados pelos militares como os mais aptos no País a ças da Aracruz e pressionados a retornar para Caieiras
serem emancipados. Velhas. Os índios resistiram. A empresa, evitando o con-
Neste contexto, foi realizado em 1978, na Universidade fronto, construiu duas casas de madeira em Caieiras
Federal do Espírito Santo (UFES), um seminário sobre Velhas, plantou feijão em volta das casas e aumentou a
20 a questão indígena com a presença de antropólogos de pressão. Nos meses seguintes a situação foi se tornando
insustentável. Numa das idas dos seguranças ao local, o Não havendo nenhuma resposta do governo e temendo
coronel Ovídio (chefe de segurança da empresa) endure- a anulação da portaria, os índios decidem realizar a auto-
ceu o discurso e ameaçou expulsá-los. Uma das mulheres demarcação das terras. Embora não tivesse efeito legal, a
Guarani ameaçou agredí-lo com uma lança e ele fugiu. ação pretendia consolidar os limites definidos pela porta-
Os Guarani percebem que as duas famílias não conse- ria e a tomada de posse da terra.
guirão resistir sozinhas por mais tempo, mas ainda não Assim, ainda em maio, os Tupiniquim e Guarani iniciam
se sentem preparados para uma ocupação da terra. Neste os trabalhos de demarcação da área de Caieiras Velhas.
momento acontece outro fato determinante no desenca- A presença de um enorme contingente da Polícia Militar
dear da luta indígena. Tatantim Vareté, líder religiosa dos não intimida os índios. Homens, mulheres e até crianças
Guarani, recebe uma “revelação” de Deus (Nãnde ru), atra- participam dos trabalhos, abrindo picada entre os euca-
vés de um sonho, apontando aquela terra ainda preser- liptais e fincando marcos de identificação da terra indí-
vada do plantio de eucalipto como o lugar onde o milho gena, a partir das coordenadas geográficas definidas pela
Guarani (avati) deveria ser plantado. Os Guarani, então, Portaria da Funai.
decidem ocupar a terra, onde depois constroem a aldeia No mês seguinte, realizam a demarcação da área de
Boa Esperança ou Tekoa Porã.12 Pau Brasil e antes de se deslocarem para Comboios são
Assim, no dia 08 de maio de 1979, os Guarani e um gru- chamados pela Funai para reuniões de negociação com
po de quinze índios Tupiniquim fazem a primeira ocupa- a Aracruz. Diante da intransigência da empresa, quan-
ção de terra. A ação teve repercussão nacional. No iní- to ao reconhecimento dos direitos indígenas à terra, os
cio, a Aracruz pensou tratar-se de uma provocação dos Guarani se afastam da negociação. Os Tupiniquim de
seus opositores, devido ao fato de, naqueles dias, estar Caieiras Velhas permanecem negociando (Pau Brasil e
recebendo a visita de cem empresários de vários países Comboios não participam desde o início). Em abril de
que queriam conhecer melhor a empresa considerada, na 1981 assinam um acordo com a empresa, no qual concor-
época, um modelo de eficiência empresarial. dam com a redução de 2.000 ha de terra em troca de re-
Depois de um mês, a Aracruz decidiu abrir mão dos 300 cursos financeiros administrados pela Funai e aplicados
ha na esperança de pôr fim ao conflito. No entanto, os ín- na compra de máquinas e equipamentos e em projetos
dios, com a adesão das três aldeias Tupiniquim, manti- econômicos comunitários.
veram a disposição de lutar pela devolução do restante Após a assinatura do acordo, o presidente da Funai, co-
das terras. Em julho de 1979, uma equipe da Funai, sem ronel Nobre da Veiga, esteve em Caieiras Velhas. Em seu
realizar um estudo aprofundado para identificar as ter- discurso para os índios, divulgado pela imprensa, afirmou
ras indígenas no Espírito Santo, propôs a demarcação de que: “os Tupiniquim não são os habitantes originais da re-
três áreas descontínuas, a saber: Caieiras Velhas (2.700 gião e por isso não podem reivindicar a posse da terra”;
ha), Pau Brasil (1.500 ha) e Comboios (2.300 ha), totali- e ainda: “os índios não sofreram qualquer prejuízo, pois
zando 6.500 ha. quem cedeu as terras que eles não têm o direito de ocu-
Após a publicação da Portaria da Funai no Diário Oficial par foi a Aracruz”; e “quem voltar a fazer agitação junto
da União (DOU) em 17 de dezembro de 1979, segue-se com o pessoal do Cimi vou colocar na cadeia”13. Disse ain-
um longo período de espera pela demarcação das terras da que “além de doar terras, ela resolveu dar um auxílio
e a cada dia crescia a certeza de um recuo do governo. Ao aos índios para melhorar seu padrão de vida e mostrar
mesmo tempo, os meios de comunicação capixaba ten- sua liberalidade” 14.
tam desviar a atenção da população produzindo longas e Apesar da redução da terra e do estremecimento das re-
frequentes matérias sobre os conflitos dos índios com os lações dos Guarani com os Tupiniquim de Caieiras Velhas,
posseiros que tinham casas em Caieiras Velhas (cerca de o saldo desta primeira luta foi positivo. Conseguiram con-
55 famílias). As referências sobre a Aracruz Celulose de- quistar 4.492 ha, assim distribuídos: Caieiras Velhas (1.519
saparecem do noticiário local, apesar dos jornais de cir- ha), Pau Brasil (427 ha) e Comboios (2.546 ha).
culação nacional manterem o foco na disputa da terra en- É preciso ainda salientar a coragem dos índios para
tre os índios e a empresa. enfrentar uma empresa do porte da Aracruz Celulose,
No mês de maio de 1980, o deputado Aldo Arantes, do apoiada pelo governo federal, em plena ditadura militar e
Partido Comunista do Brasil (PCdoB) pelo estado de Goiás, destacar a participação e a contribuição dos Guarani que,
divulgou na imprensa um documento com o carimbo de com sua sabedoria e seu modo particular de compreen-
“confidencial”, produzido pela Aracruz Celulose e a Vale, no der o significado da terra para os povos indígenas, trouxe
qual estabelecem como estratégia conjunta para impedir a uma maior radicalidade para a luta, colocando em xeque
demarcação dos 6.500 ha, gestões junto ao governo fede- o pensamento capitalista-mercantilista.
ral, utilizando inclusive a influência do ministro da Fazenda Por fim, deve-se registrar o papel desempenhado
naquele ano, Ernane Galveas, membro do Conselho de pela Arquidiocese de Vitória nessa disputa. O posicio-
Administração da Aracruz desde 1966. namento claro e contundente dos bispos15 em favor dos 21
índios, as intervenções da Comissão de Justiça e Paz, No final de 1997, os Tupiniquim e Guarani realiza-
principalmente nos momentos de conflito, as ações de ram uma Assembléia Geral para definir os rumos da
apoio e solidariedade das Comunidades Eclesiais de luta. Diante de autoridades, como o vice-governador do
Base (CEBs), com manifestações públicas e com cam- Espírito Santo, do procurador geral da República no es-
panhas de arrecadação de alimentos, e o apoio incon- tado, de parlamentares e de representantes da Funai,
dicional da equipe do Cimi, fizeram desta instituição estabeleceram um prazo para o governo demarcar as
a principal aliada dos Tupiniquim e Guarani naque- terras e prometeram realizá-la caso o mesmo não fos-
le período. se cumprido.
Em janeiro de 1998, pouco antes do prazo se encerrar,
1993-199816 o presidente da Funai, Sulivan Silvestre, foi ao Espírito
A recuperação dos 4.492 ha de terras indígenas possibi- Santo e negociou com os índios um novo prazo e a reali-
litou, dentre outras coisas, a retomada das roças familia- zação de mais um estudo complementar. O objetivo, como
res, o retorno de dezenas de famílias desaldeadas e a re- ficou demonstrado tempos depois, era retardar o proces-
construção da aldeia Tupiniquim Irajá. so de demarcação até que fosse encontrada uma solução
Entretanto, as condições de sobrevivência continuavam que beneficiasse a Aracruz Celulose.
ainda bastante comprometidas. A população indígena ha- Assim, embora os estudos complementares confirmas-
via aumentado rapidamente. Dados da Funai17 aponta- sem as conclusões do estudo do GT da Funai quanto aos
vam uma população de 1.308 índios em 1993. Além disso, direitos dos Tupiniquim e Guarani aos 13.579 ha, o gover-
grande parte das terras não eram adequadas para a agri- no brasileiro novamente submeteu-se aos interesses da
cultura e/ou exigiam altos investimentos. Cerca de 95% da Aracruz Celulose. No mês de março de 1998, o ministro da
Terra Indígena (TI) Comboios é constituída por areia, o Justiça assinou as portarias 193, 194 e 195, determinando
manguezal do Rio Piraquê-Açu representa parcelas sig- a demarcação de apenas 2.571 ha.
nificativas da TI Caieiras Velhas e cerca de 1.700 ha foram Revoltados, os índios promoveram a auto-demarca-
devolvidos aos índios com os tocos de eucalipto. ção dos 13.579 ha e quando estavam próximos da con-
Em 1993, a Comissão de Caciques e Lideranças clusão dos trabalhos, o governo federal determinou a in-
Tupiniquim e Guarani, criada em 1991 com o objetivo de tervenção da Polícia Federal. As aldeias foram ocupadas
encaminhar questões de interesse coletivo, como a re- por policiais federais fortemente armados. Integrantes do
cuperação das terras e a assistência nas áreas de saúde, Fórum Campo e Cidade, que prestavam apoio aos traba-
educação e agricultura, reivindicou da Funai a realização lhos de demarcação foram expulsos das aldeias. Alguns
de estudos de identificação das terras indígenas no mu- deles foram presos e processados.
nicípio de Aracruz. Para solucionar o conflito, os caciques foram levados
Estudos realizados entre os anos de 1994 e 1996 con- para Brasília e sob pressão assinaram com a Aracruz
firmaram 18.071 ha como sendo terras tradicionalmente Celulose um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC),
ocupadas pelos índios e propuseram a sua imediata de- com a interveniência da Funai e da 6ª Câmara do
marcação como condição indispensável para garantir a Ministério Público Federal (MPF). Este TAC, flagrante-
sobrevivência física e cultural dos Tupiniquim e Guarani. mente inconstitucional, estabeleceu a concordância dos
Isto significava a ampliação das terras em mais 13.579 ha índios quanto aos limites da terra definidos pelas porta-
e a unificação das áreas de Caieiras Velhas e Pau Brasil. rias do Ministério da Justiça e, em troca, a obrigação da
A partir de 1996, quando já estava em andamento os empresa de repassar aos índios US$ 12 milhões em par-
procedimentos administrativos de demarcação das terras celas semestrais durante 20 anos.
indígenas, a Aracruz Celulose passou a contribuir com o O desfecho dessa segunda luta dos Tupiniquim e
Nisi-ES18, principalmente com o sub-núcleo de agricultu- Guarani pela recuperação de suas terras foi considera-
ra, financiando projetos agrícolas. A intenção da empre- do pela maioria dos índios e por seus apoiadores como
sa era seduzir as comunidades indígenas com o objetivo uma derrota. Apesar das fortes pressões do governo fe-
de fazê-las desistir da luta pela terra e, ao mesmo tempo, deral sobre as lideranças indígenas nas reuniões de ne-
demonstrar na prática a tese de que os índios poderiam gociação em Brasília e da presença ostensiva da Polícia
conseguir a auto-sustentação econômica nas terras que já Federal nas aldeias, a correlação de forças entre os ín-
possuíam, bastando apenas injetar recursos nas aldeias. dios e a Aracruz, naquele momento, permitia manter a
Não obtendo êxito com esta estratégia e tendo suas luta pela demarcação dos 13.579 ha, ou, pelo menos, pela
contestações ao relatório do Grupo de Trabalho (GT) da ampliação das terras além do que havia sido determinado
Funai rejeitadas pelo órgão indigenista oficial, a empresa pelo Ministério da Justiça.
intensificou suas pressões sobre o ministro da Justiça, Íris Ao contrário da primeira luta, esta havia sido prepa-
Rezende. Em resposta, o ministro exigiu da Funai a com- rada e organizada pelos caciques, lideranças e comuni-
22 plementação dos estudos. dades indígenas desde o final dos anos de 1980; a popu-
Os indígenas souberam se articular, acumular forças e manter a autonomia: defesa dos direitos fundamentais e reconquista da terra

lação indígena era bem superior (290 famílias); a par- 1996 com recursos da Aracruz. Ao mesmo tempo, a empresa
ticipação das comunidades19 nesta segunda auto-de- devolveu os 2.571 ha com as plantações de eucalipto. Após
marcação foi bem mais efetiva e havia uma organiza- os primeiros cortes e venda para a própria empresa, os
ção conduzindo o processo de luta e negociação; o grupo Tupiniquim e Guarani se tornaram os maiores fornecedores
de apoiadores reunia representantes de importantes or- particulares de eucalipto da empresa”.20
ganizações democrático-populares do estado do Espírito
Santo; e havia uma grande repercussão nacional e in- Pouco tempo depois, o Nisi-ES foi extinto e a Aracruz
ternacional. Além disso, vivia-se no País um período de Celulose se tornou a principal parceira dos índios.
mais liberdade e democracia.
Num primeiro momento, o TAC foi rechaçado pelas co- 2005-200721
munidades indígenas. Porém, foram “convencidas” com o A assinatura dos TACs trouxe profundas alterações na
argumento falacioso de que sem ele corriam o risco de per- organização social e econômica das comunidades indíge-
der os 2.571 ha e as compensações financeiras. Estas, talvez, nas. Duas associações, a Associação Indígena Tupiniquim
foram as que mais pesaram nas argumentações de algu- de Comboios (AITC) e a Associação Indígena Tupiniquim
mas lideranças indígenas favoráveis ao TAC. O Ministério e Guarani (AITG), foram criadas ‘de fora para dentro’ e
Público Federal, que havia participado da sua elaboração, ‘de cima para baixo’ como condição para receber os re-
retirou seu apoio, considerando-o inconstitucional. cursos da Aracruz Celulose. Em função disso, a Comissão
O resultado foi desastroso. Além da redução drástica da de Caciques foi, aos poucos, deixando de ser a principal
terra, o acordo permitiu à Aracruz: organização dos Tupiniquim e Guarani.
A adoção de um modelo convencional de agricultura
“estabelecer mecanismos de controle sobre os índios e voltado para a produção para o mercado (café, coco, ma-
conduzí-los a uma incorporação progressiva da lógica do racujá), com o uso intensivo de insumos (adubos, pestici-
capital. Pelo TAC, os recursos financeiros eram controlados das, sementes híbridas, mecanização e irrigação), em de-
pela empresa e repassados aos índios mediante a trimento da produção de alimentos, e a decisão de cele-
apresentação de projetos econômicos aprovados pela brar contratos de fomento com a Aracruz, a partir do ano
Funai. Para prestar assistência às comunidades indígenas, 2000, sobre 1.800 ha, aceleraram o processo de depen-
a Aracruz assinou convênio com o Instituto Capixaba de dência e subordinação dos Tupiniquim e Guarani aos in-
Pesquisa e Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), o teresses da empresa. As possibilidades de uma retomada
qual deu continuidade ao modelo convencional de agricultura da luta pela terra ficaram cada vez mais distantes.
voltado para o mercado externo, introduzido nas aldeias em “Este processo não foi linear, ao contrário, foi marcado 23
por muitas disputas internas e gerou muita insatisfação de suas terras e, em seguida, reconstruíram duas aldeias
nas comunidades indígenas. Após sete anos, os índios destruídas pela empresa na década de 1960: Olho D´Água,
se convenceram de que os “benefícios” trazidos pelo TAC próxima à aldeia de Pau Brasil, e Córrego do Ouro, próxi-
jamais os levariam a uma autonomia econômica. Nas ma de Comboios. No mês de outubro, ocuparam as fábri-
palavras das lideranças indígenas, os projetos agrícolas e cas da Aracruz por 32 horas e só deixaram o local após a
o fomento florestal são um ‘cala-boca’ dos índios na disputa vinda do presidente da Funai, Mércio Gomes, ao estado.
pelas terras, uma vez que a retomada da luta significava o Sob forte pressão das comunidades indígenas, a Funai
rompimento automático do TAC”.22 acata, em parte, a recomendação da PGR-ES e cria outro
GT para proceder a atualização dos dados do GT anterior
Assim, por iniciativa da Comissão de Caciques, foi re- e assim reiniciar todos os procedimentos administrativos
alizada uma Assembléia Geral na aldeia de Comboios de demarcação previstos pelo Decreto Federal nº 1.775/96,
no dia 19 de fevereiro de 2005, com o tema “Nossa Terra, inclusive aqueles já realizados, dando à Aracruz o direito à
Nossa Liberdade”. Cerca de 350 índios de todas as aldeias nova contestação.
decidiram pelo rompimento do TAC e pela retomada dos No dia 20 de janeiro de 2006, os índios foram surpre-
11.009 ha ainda em poder da Aracruz. Na nota pública di- endidos por uma operação da Polícia Federal (PF), pre-
vulgada no dia 28 de fevereiro, a Comissão de Caciques parada e executada de forma sigilosa para cumprir um
afirmou que “o TAC com a Aracruz não conseguiu resol- mandado de reintegração de posse em favor da Aracruz
ver nossos problemas, ao contrário, tem nos causado ain- Celulose, expedido por um juiz federal de Linhares (ES).
da mais dificuldades, gerando dependência econômi- Na ação, a PF retirou os índios de forma truculenta e des-
ca, divisão entre as aldeias e enfraquecimento de nossa truiu as aldeias Olho D´Água e Córrego do Ouro (casas e
cultura. A morte da nossa cultura é a morte simbólica do plantios) com o auxílio de tratores e máquinas da empre-
nosso povo”. sa e de um ônibus da empresa Plantar, que presta servi-
A primeira providência dos índios foi solicitar à ços à Aracruz. Além disso, feriu treze índios com balas de
Procuradoria Geral da República no ES (PGR-ES) medi- borracha disparadas à queima-roupa e efetuou a prisão
das legais para exigir do governo federal a anulação das de duas lideranças em local de propriedade da empresa,
portarias do Ministério da Justiça e a demarcação integral que também serviu como base da operação para realizar
das suas terras (18.071 ha). a ordem judicial.
Após a instauração de Inquérito Civil Público, que con- Estas e outras irregularidades motivaram a PGR-ES a
cluiu pela existência de irregularidades nos procedimen- propor na Justiça Federal uma Ação Civil Pública com
tos de demarcação e homologação das terras indígenas em Pedido de Indenização por Danos Morais Coletivos con-
1998, a PGR-ES expediu para o presidente da República tra a União e em favor dos índios Tupiniquim e Guarani.
e o ministro da Justiça a Recomendação nº 003/2005, Este episódio lamentável e inesperado possibilitou, no
para que fossem declaradas a nulidade das Portarias entanto, que dez dias depois alguns caciques e lideran-
do MJ nº 193, 194 e 195 e os correspondentes Decretos ças tivessem um breve encontro com o presidente Lula,
Homologatórios de 11 de dezembro de 1998, e para que no aeroporto de Vitória. Lula recebeu detalhes da ação da
editassem novos atos de reconhecimento das terras indí- Polícia Federal em conjunto com a Aracruz, prometeu que
genas no estado, conforme as conclusões do GT da Funai as terras seriam demarcadas e que enviaria o ministro da
que havia identificado 18.071 ha como terras tradicional- Justiça e o presidente da Funai ao estado para se reunir
mente ocupadas pelos Tupiniquim e Guarani. com a Comissão de Caciques.
Entretanto, sabia-se que esta medida seria insuficien- Assim, no dia 20 de fevereiro de 2006, em audiência
te para o governo federal reabrir o processo de demar- na Assembléia Legislativa do Espírito Santo, o minis-
cação das terras, dado o papel desempenhado pelo agro- tro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, informou aos ín-
negócio no modelo de desenvolvimento do País e os dios e a várias autoridades presentes, que a ação ocor-
compromissos assumidos pelo presidente Lula, desde reu em ‘segredo de justiça’ e que houve pressão sobre a
2003, com a expansão das plantações de eucalipto e da PF para que montasse a operação, autorizada pela jus-
Aracruz Celulose. Além disso, as esperanças de mudan- tiça desde dezembro de 2005. Ele garantiu rigor na apu-
ças na política indigenista, suscitadas pela vitória do PT ração do caso. Em relação às terras, o ministro prometeu
nas eleições presidenciais do País em 2002, foram des- concluir todos os procedimentos administrativos de de-
feitas ainda no primeiro mandato do governo Lula devi- marcação até o final do ano e defendeu uma nova con-
do às pressões de sua heterogênea base de sustentação testação da Aracruz para evitar ações futuras na justiça
política e parlamentar. contra a demarcação.
Como forma de pressão, os Tupiniquim e Guarani deci- Entretanto, a burocracia do Estado, aliada aos interes-
diram realizar várias ações de impacto. No mês de maio, ses da Aracruz, descumpriu todos os prazos estabelecidos
24 mais de 500 índios realizaram a terceira auto-demarcação pelo ministro. Novas ações de impacto foram necessárias.
Em setembro de 2006, os índios derrubaram e queimaram silêncio e foram vaiados pelos índios que vieram das al-
cerca de 100 ha de eucalipto plantados na terra reivindi- deias em socorro dos parentes. Ainda dentro do porto, os
cada, com os objetivos de acelerar os procedimentos de índios se reuniram em Assembléia e decidiram pôr fim ao
demarcação e manifestar publicamente que estavam lu- movimento, que durou cerca de 30 horas. Dias depois via-
tando pelas terras sem os eucaliptos que sempre trouxe- jaram para Brasília para exigir o cumprimento das pro-
ram prejuízos para as comunidades. messas do ministro da Justiça, cujo prazo dado por ele já
Em resposta a essa ação, a Aracruz Celulose desen- estava se encerrando.
cadeou uma campanha difamatória e racista contra os Em Brasília, foram recebidos pelos consultores jurídi-
Tupiniquim e Guarani, divulgando calúnias e mentiras cos do MJ e ouviram respostas evasivas. Retornaram às
na imprensa e no seu sítio eletrônico; instalando outdoors aldeias com o pressentimento de que as terras não seriam
em vários pontos da cidade de Aracruz, com dizeres do demarcadas. O desânimo tomou conta das lideranças e
tipo “A Aracruz trouxe o progresso, a Funai os índios”; e das comunidades indígenas, sobretudo quando foram, em
em palestras nas escolas do município e nas empresas e meados de janeiro de 2007, mais uma vez para Brasília, e
entidades de classe que atuam na região. A campanha sequer foram recebidos no Ministério da Justiça.
questionava não só os direitos indígenas à terra, mas so- No início do mês de fevereiro de 2007, o ministro da
bretudo a indianidade dos Tupiniquim, reforçando os Justiça, Márcio Thomas Bastos, pouco antes de deixar o
preconceitos já existentes na sociedade capixaba con- cargo, restituiu os processos administrativos de demar-
tra os índios e provocando constrangimentos, principal- cação das terras dos Tupiniquim e Guarani à Funai. O
mente nos estudantes indígenas das escolas do muni- despacho do ministro, sem número, data de assinatura
cípio. Também organizou uma manifestação em Vitória e sem publicação no Diário Oficial da União (DOU), de-
com cerca de duas mil pessoas, principalmente traba- terminou à Funai “envidar esforços no sentido de apro-
lhadores diretos e indiretos da empresa, e colheu 75 mil fundar estudos com vistas a elaborar proposta adequa-
assinaturas num abaixo-assinado entregue ao governo da, que componha os interesses das partes”.
do Espírito Santo. Ora, o ministro estava de posse de todos os elementos
Ao mesmo tempo, a ONG Espírito Em Ação, da qual comprobatórios do direito dos índios sobre as terras em
fazem parte a Aracruz Celulose, a Vale, a Companhia disputa e das recomendações da presidência da Funai e
Siderúrgica do Tubarão (CST) – que foi comprada pela da consultoria jurídica do próprio ministério para o pros-
Arcelor Mittal –, a Rede Gazeta de Comunicação, a TV seguimento dos procedimentos, quer dizer, da edição das
Capixaba e outras empresas, que têm como missão ‘mo- Portarias de Delimitação. Mas decidiu retornar os proces-
bilizar a classe empresarial’ em defesa de seus interesses sos à Funai, com um agravante: buscar novamente um
no estado, reforçou a campanha difamatória da Aracruz acordo dos índios com a Aracruz Celulose.
contra os Tupiniquim e Guarani. Na sequência, uma juíza federal de Linhares, decidiu
O resultado foi tão devastador que a PGR-ES moveu assumir esta tarefa e intimou os índios para uma audi-
uma ação na Justiça Federal contra a empresa. Uma deci- ência, com o objetivo de apresentar uma proposta de
são liminar impediu a continuidade da campanha. acordo feita pela Aracruz. A intenção da juíza era ten-
Revoltados e feridos na sua auto-estima, os índios deci- tar uma conciliação entre as partes numa ação possessó-
diram radicalizar. No mês de dezembro, cerca de 200 ín- ria, impetrada pela empresa, que tramitava naquele ju-
dios ocuparam o Portocel. No dia seguinte, cerca de 1.500 ízo. Resumidamente, a Aracruz propunha que os índios
trabalhadores da Aracruz e de empresas terceirizadas, abrissem mão da identidade indígena e da presença his-
principalmente da Plantar, mobilizados pelo Sindicato tórica na região, como condição para receber a doação
dos Trabalhadores nas Indústrias de Celulose (Sinticel) e de uma área, cujo tamanho seria definido pela empresa.
pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Minerais Além disso, esta área e as áreas já demarcadas passariam
(Sintiema), e liberados do trabalho pelas empresas, diri- a ser consideradas “reservas indígenas” para evitar qual-
giram-se ao porto para expulsar os índios. Foi um dia de quer ampliação das mesmas no futuro, a não ser median-
muita tensão e expectativa. Em vários momentos temia-se te desapropriação.
por um massacre. Cercados no depósito de celulose, os ín- Na segunda audiência de conciliação, realizada no dia 23
dios resistiram e ameaçaram atear fogo, caso os trabalha- de maio, os índios solicitaram à juíza, por ofício, o encerra-
dores se aproximassem. O contingente policial era insufi- mento das audiências, alegando a impossibilidade de qual-
ciente para conter a multidão se o ataque se concretizasse. quer acordo com a Aracruz e pela disposição de aguardar
Uma tropa de choque da Polícia Militar de Vitória foi acio- as conclusões dos procedimentos administrativos. Em se-
nada, mas ficou estacionada a 30 km de distância. guida, encaminharam cópia do ofício ao novo ministro da
Alguns índios e apoiadores foram agredidos, inclusive Justiça, Tarso Genro, solicitando a continuidade dos pro-
o deputado estadual do PT e cadeirante Cláudio Vereza. cessos e a emissão das portarias de delimitação.
No final do dia, os trabalhadores se retiraram do porto em No dia 05 de julho, o presidente da Funai, Márcio Meira, 25
nhas nacionais e internacionais contra a empresa e o go-
verno federal e de outras ações de impacto, conseguiram
acelerar os procedimentos administrativos de demarca-
ção que culminaram na assinatura das portarias pelo mi-
nistro da Justiça. Após quase três meses de intensos de-
bates sobre as possíveis perdas e ganhos em cenários
distintos (com ou sem TAC), as comunidades indígenas
Tupiniquim e Guarani decidiram pela garantia da demar-
cação dos 18.027 ha, principal objetivo da luta.

Terra
Ao contrário dos acordos anteriores (1981 e 1998), as
terras foram reconhecidas e serão demarcadas em sua to-
Os índios ousaram lutar pelas suas terras, mesmo durante a ditadura talidade (18.027 ha). No TAC, foram estabelecidos os pra-
zos para a demarcação física (concluída no mês de mar-
devolveu os processos ao Ministério da Justiça. ço de 2008) e o compromisso da Funai de encaminhar o
Todos esses contratempos contribuíram para aumentar processo para a homologação do presidente da República
o desânimo das comunidades indígenas e acirrar as dis- (assinada em novembro de 2010).
putas internas, sobretudo entre os que queriam manter a
luta pela terra, preservando os eucaliptos para facilitar a Segurança jurídica
demarcação, e aqueles que defendiam a ocupação da ter- Segundo o TAC, as partes reconhecem e aceitam como
ra visando apenas a extração da madeira, contratando in- definitivos os limites das terras indígenas Tupiniquim e
clusive não-índios. O resultado foi a invasão progressiva Comboios conforme constam nas Portarias Declaratórias,
dos 11.009 ha por não-índios. Quando a situação parecia com superfície total de 18.027 ha. Isso significa que esses
incontrolável, as comunidades se mobilizaram e sob a co- limites não poderão ser alterados futuramente. Ou seja,
ordenação da Comissão de Caciques e da AITG expulsa- se por um lado impede a ampliação das terras, por outro
ram os não-índios e retiraram a madeira já cortada para garante segurança jurídica aos Tupiniquim e Guarani.
beneficiar as famílias. Ao mesmo tempo, reconstruíram as Porém, o artigo 231, parágrafo 4º da Constituição
aldeias Olho D´Água e Areal e intensificaram novamente Federal estabelece que o direito dos índios sobre suas
as pressões sobre o ministro da Justiça. terras é imprescritível, mesmo não estando ainda demar-
Em 28 de agosto de 2007,Tarso Genro assinou as Portarias cadas. Assim sendo, não há impedimento legal para que
de Delimitação nº 1.463 e 1.464 das Terras Indígenas terras adjacentes venham a ser identificadas e demarca-
Tupiniquim e Comboios, respectivamente. das como terras indígenas, bastando apenas que sejam
Em dezembro de 2007, após três meses de negociação objeto de estudo por parte da Funai.
com a Aracruz Celulose, assinaram o TAC, com interveni- A segurança jurídica pretendida pela empresa desde o iní-
ência do Ministério Publico Federal e da Funai. cio das negociações foi contemplada no 1º “Considerando”
Aqui, cabe fazer uma necessária análise sobre os efei- do TAC, ao afirmar que a Funai realizou estudos “de toda a
tos do TAC23. Como em todo processo de negociação, região” e identificou apenas os 18.027 ha como terra indí-
houve perdas e ganhos para ambas as partes. Como foi gena. Porém, esta afirmação não é verdadeira, uma vez que
dito anteriormente, os Tupiniquim e Guarani decidiram apenas os 18.027 ha foram objeto de estudo.
pela assinatura do TAC para possibilitar a continuida- Por fim, é bom lembrar que a própria empresa ain-
de do processo de regularização administrava das ter- da não está sujeita a limites em relação à terra que pode
ras, em virtude das ameaças da Aracruz de contestar ocupar no País. Essa medida seria muito mais pertinente
e suspender judicialmente os efeitos das Portarias de do que esta imposição sobre os índios já que, entre 1995 e
Delimitação do Ministério da Justiça por tempo indeter- 2003, a Aracruz duplicou sua área total no Brasil, de cer-
minado, podendo inclusive colocar em risco a retomada ca de 200 mil para mais de 400 mil hectares de terras.
das terras pelos índios. Atualmente, com o nome Fibria, essa empresa ocupa mais
É importante salientar que a prioridade dos Tupiniquim de 1 milhão de hectares de terras no País.
e Guarani sempre foi, ao longo dos últimos 40 anos, re-
cuperar suas terras ocupadas pela Aracruz Celulose. Ocupação de boa fé
Através da luta das lideranças e das comunidades e de Segundo o parágrafo 6º do art. 231 da Constituição
seus apoiadores da Rede Alerta na realização da auto-de- Federal, só é permitido indenizar “benfeitorias deri-
marcação de suas terras, na reconstrução de aldeias, na vadas da ocupação de boa fé”. No caso em questão, a
26 ocupação da fábrica da empresa e do Portocel, de campa- empresa concordou em abrir mão da indenização em
troca da retirada dos eucaliptos, no que os índios sem- nas. O termo de referência desse estudo seria elaborado
pre estiveram de acordo, pois além de permitir cele- pela Funai e submetido aos índios e os mesmos poderiam
ridade no processo de demarcação das terras, possi- participar e indicar “assistentes técnicos” para compor
bilitaria condições para a busca de outras alternati- o grupo que faria o referido estudo. A Aracruz Celulose
vas econômicas. aportaria R$ 380 mil para a contratação da empresa espe-
O reconhecimento de que as benfeitorias foram deri- cializada ou grupo de técnicos e R$ 3 milhões para a exe-
vadas de boa-fé permite que os eucaliptos sejam retira- cução dos projetos e programas, sem interferir nos mes-
dos pela empresa, mas não significa eximir a empresa mos, devendo o governo federal aportar os recursos ne-
pelos danos provocados nas terras indígenas (a destrui- cessários que excederem este valor, garantindo-os nos or-
ção das aldeias, da mata nativa, dos córregos e rios, etc.) çamentos do período 2009 a 2012.
durante o período em que esteve ocupando ilegalmente Na realidade, os índios elaboraram, com ajuda de sua
as mesmas. Os índios continuam com o pleno direito de assessoria e da Associação Nacional de Ação Indigenista
reivindicar judicialmente a reparação destes danos, in- (Anai), o termo de referência, posteriormente aprovado
dependentemente se ocorreram de boa ou má-fé. Aliás, pela Funai. Também foram eles, com ajuda da assessoria,
quem acredita que essa ocupação foi de boa-fé? que indicaram a Anai para realizar o estudo, que come-
A empresa retirou os eucaliptos. çou no mês de abril de 2009 e foi encerrado em dezem-
bro do mesmo ano.
Processos judiciais e inquéritos policiais Dos R$ 3 milhões a serem aportados pela Aracruz
As partes concordaram com a desistência de alguns
processos judiciais e inquéritos policiais. Não houve con-
senso sobre outros, como no caso do processo contra A identidade indígena foi extremamente desrespeitada pela Aracruz
membros da Rede Alerta contra o Deserto Verde. A em-
presa apresentou o caso como inegociável, argumentan-
do que os processados são “inimigos da empresa” e a atu-
ação dos mesmos extrapola a questão indígena.
Naquele momento, continuavam em andamento, con-
tra os índios:
• uma ação da Visel contra três Tupiniquim;
• uma ação penal contra 17 índios por furto de madei-
ra (a Aracruz apenas retirou seu advogado, assistente de
acusação do processo).
Continuavam também em andamento, contra a Aracruz:
• ação penal (em fase de inquérito) do MPF-ES contra a
Aracruz Celulose e outras empresas (terceirizadas) por cri-
me de difamação e racismo;
• ação ordinária da Funai contra a empresa por uso
indevido e difamatório da imagem de Vilson (Jaguaraté)
Tupiniquim. Houve uma decisão judicial determinando
o pagamento de indenização.
É importante também frisar as seguintes medidas esta-
belecidas no TAC para as comunidades indígenas inicia-
rem a re-ocupação e recuperação das terras conquistadas:

Projeto Social Emergencial


A partir de dezembro de 2007, as comunidades indíge-
nas receberam R$ 3 milhões da Funai para atender suas
demandas emergenciais.

Estudo etno-ambiental
De acordo com o TAC, a Funai selecionaria a empresa
especializada ou um grupo de técnicos para realizar estu-
do etno-ambiental com o objetivo de promover, através de
projetos e programas, a recuperação ambiental das terras
e a sustentabilidade econômica das comunidades indíge- 27
ção dos Tupiniquim e Guarani na Rede Alerta permitiu a
inclusão da luta indígena no conjunto das lutas contra a
Aracruz Celulose, como a dos quilombolas pela recupe-
ração das suas terras, dos sem-terra na realização da re-
forma agrária, dos camponeses na defesa da agricultura
camponesa e no combate à monocultura do eucalipto e
ao modelo de desenvolvimento que ela representa.
Por sua vez, esses espaços de luta conjunta com gru-
pos que têm em comum a experiência da expropriação,
exploração, discriminação e exclusão têm proporcionado
aos índios momentos privilegiados de formação político-
ideológica. Do mesmo modo, a participação dos caciques
e lideranças nas organizações e movimentos indígenas,
em nível regional e nacional25, e nos espaços públicos e
A crítica ao modelo de desenvolvimento sempre esteve presente na luta privados, onde são debatidas e decididas questões rela-
cionadas aos seus direitos, tem contribuído para elevar o
Celulose para a execução dos projetos e programas defi- grau de consciência e de conhecimento de seus direitos
nidos pelo estudo, R$ 1,2 milhão foi destinado para os pro- constitucionais. Ao mesmo tempo, a clareza das deman-
jetos emergenciais. A Funai se comprometeu a repôr esse das, a capacidade de formular propostas viáveis de supe-
valor para garantir a finalidade dos R$ 3 milhões. ração dos problemas e a definição dos aliados e das estra-
tégias de ação demonstram o crescente protagonismo dos
Conclusão índios na construção da autonomia.
Como foi dito anteriormente, a implantação da Aracruz Com a terra recuperada, mas em condições ambien-
Celulose no Espírito Santo na década de 1960 resultou tais adversas e com um tamanho menor do que possuí-
num conjunto de alterações na vida dos Tupiniquim e am no final da década de 1960, os índios encontram-se
Guarani: a expropriação das terras, a destruição de qua- diante de um novo e complexo desafio: o que e como fa-
se todas as aldeias, o desmatamento e a desestrutura- zer para que o território indígena garanta as condições
ção social, cultural e econômica. A resistência das aldeias necessárias para a sobrevivência física e cultural dos
Caieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios foi determinan- Tupiniquim e Guarani de forma autônoma?
te para impedir a dispersão e, provavelmente, a extin- Nesse sentido, o estudo etno-ambiental, realizado
ção dos Tupiniquim e um ‘caminhar’ forçado dos Guarani com a ajuda de profissionais especializados e compro-
para outras regiões. Foi, inclusive, a partir desses espa- metidos com a causa indígena, resultou na elaboração
ços reduzidos, que os índios puderam reagrupar suas for- de um plano no qual foram identificadas as melhores
ças para retomar o processo de reconquista do território, alternativas de uso das terras, visando projetos e pro-
o qual foi concluído 40 anos depois. gramas que possam promover a auto-sustentação das
Nesse longo e penoso período de disputa permanen- comunidades indígenas e a recuperação ambiental das
te com a Aracruz Celulose, é inquestionável o acúmu- mesmas. Ao mesmo tempo, esse plano também apontou
lo de conhecimento e de forças por parte dos índios. formas de ocupação do território conquistado que con-
Processos formativos e organizativos, desencadeados a templam as necessidades da população atual e das pró-
partir da luta pela terra, potencializaram a resistência e ximas gerações.
qualificaram suas ações. Formas organizativas, como a No entanto, é preciso considerar também que os ín-
Comissão de Caciques, as associações indígenas (AITG dios estão localizados numa região em acelerado pro-
e AITC)24 e, mais recentemente, os grupos de mulheres, cesso de crescimento demográfico e de industrialização
surgiram da necessidade de ações mais organizadas e e onde predomina o agronegócio. Para os próximos anos
articuladas das comunidades indígenas na defesa dos estão previstos vultosos investimentos da Petrobrás na
seus direitos, particularmente na luta pela recuperação prospecção de petróleo em águas profundas do litoral
de suas terras. dos municípios de Aracruz e Linhares e a ampliação do
Ao mesmo tempo, o enfrentamento do agronegó- Portocel, que, por sua vez, atrairão outros investimen-
cio, apoiado e financiado pelo Estado, exigiu que os ín- tos e empreendimentos, além dos já existentes. Nesse
dios estabelecessem alianças estratégicas com entida- contexto, as imposições do modelo de desenvolvimen-
des civis e religiosas (1979 a 1981), com entidades e mo- to vigente no País podem comprometer a busca de al-
vimentos sociais reunidos no Fórum Campo e Cidade ternativas que garantam a autonomia dos Tupiniquim e
(1993 a 1998) e com a Rede Alerta contra o Deserto Verde Guarani e conduzí-los a uma crescente inserção ao mo-
28 (2000 a 2007). Neste último período da luta, a participa- delo hegemônico.
Além disso, a manutenção da monocultura do euca-
lipto durante quarenta anos nas terras indígenas, além
dos impactos sobre a terra e o meio ambiente, condu-
ziu as comunidades indígenas a uma certa dependên-
cia econômica da Aracruz Celulose e do eucalipto. Entre
os anos de 1998 e 2005, o fomento florestal foi a prin-
cipal atividade econômica dos índios e o eucalipto ain-
da é, para muitos, uma das alternativas de uso das ter-
ras conquistadas.
As palavras de uma liderança Tupiniquim de Caieiras
Velhas, a aldeia que tem a maior população indígena, ex-
pressam bem esta realidade: “Estou com 40 anos e desde
pequeno, quando abro a porta de minha casa, só vejo euca-
lipto em volta. Sou contra o eucalipto, porque sei dos pre-
juízos que ele trouxe para nossas comunidades, mas não
conheço outra atividade que dê mais trabalho e renda”.
O debate sobre a escolha do caminho a ser percorri-
do – autonomia versus dependência - já está presente há
muito tempo nas comunidades e nas suas organizações.
As discussões têm também apontado para, em lugar da
monocultura, a diversificação da produção para gerar
trabalho e renda para as famílias, a produção de alimen-
tos saudáveis para o consumo interno e, se possível, para
comercializar com as comunidades vizinhas, o reflores-
tamento para criar condições para o retorno da mata na-
tiva, da caça e da pesca, a recuperação dos rios e córre-
gos que cortam o território indígena e a reconstrução das
aldeias, destruídas pela Aracruz Celulose, para facilitar
a ocupação das terras e desafogar as aldeias mais po-
pulosas. Já foram reconstruídas Olho D´Água (Guarani),
Areal e Córrego do Ouro (Tupiniquim).
Ao mesmo tempo, estão em curso nas aldeias ativida-
des econômicas geradoras de trabalho e renda: plantios
de mandioca (familiar), de milho, feijão, café e maracujá
(coletivo), criatório de gado, peixe, galinha, carneiro (co-
letivo) e abelha para produção de mel (individual), arte-
sanato e ervas medicinais para a venda (grupo de mulhe-
res), além de um viveiro de mudas nativas para o reflo-
restamento das terras (coletivo). Apesar de não atingirem
todas as famílias, são iniciativas importantes sob o con-
trole das comunidades e, a maioria, administradas pelas
associações indígenas.
As respostas a serem dadas pelos Tupiniquim e
Guarani a esse novo desafio serão decisivas para ga-
rantir a continuidade histórica deles enquanto povos
indígenas e estão sendo aguardadas com muita expec-
tativa e esperança por seus aliados e por todos aque-
les que os apoiaram durante o processo de recuperação
das terras, sobretudo pelos que ainda continuam im-
pactados pela monocultura do eucalipto e em disputa
com a Aracruz Celulose.

As mulheres sofreram com muita intensidade os impactos dos eucaliptais 29


Referências
1- Cartilha Arãdu Porá Rape, de autoria dos Guarani da aldeia Tekoa Porá Nhãdéwa-Espírito 13- Jornal do Brasil – 06/06/1981.
Santo-MEC/FNDE SEDU-ES – sem data.
14- Jornal de Brasília – 06/06/1981.
2- O Fórum Campo Cidade (1993 a 1998) congregava o Movimento Sindical (CUT e vários
sindicatos), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento de Direi- 15- Dom João Batista Mota de Albuquerque – Arcebispo, e Dom Luiz Gonzaga – Bispo
tos Humanos, o Movimento pela Moradia, a Comissão de Caciques e Lideranças Tupiniquim Auxiliar (ambos falecidos).
e Guarani, o Conselho Indígenista Missionário (Cimi), mandatos dos deputados estaduais
do PT, dentre outros, em apoio às lutas dos trabalhadores do campo e da cidade do Espírito 16- Alguns acontecimentos ocorridos no País no final da década de 1980 e início da década
Santo, incluindo a demarcação das terras indígenas. seguinte contribuíram para motivar e impulsionar a segunda luta dos Tupiniquim e Guarani
pela recuperação de suas terras. O mais importante foi a promulgação da Constituição
3- Em 2007 foram demarcadas a Terra Indígena Tupiniquim (14.227 ha), onde estão loca- Federal em 1988, cujo capítulo dos Índios foi uma conquista das forças progressistas no
lizadas as aldeias Tupiniquim Caieiras Velhas, Irajá e Pau Brasil, e as aldeias Guarani Boa Congresso Nacional, das entidades aliadas à causa indígena e dos povos indígenas que ocu-
Esperança e Três Palmeiras, e a Terra Indígena Comboios (3.800 ha), onde está localizada param, literalmente, o Congresso durante o processo constituinte. Outro fato importante
a aldeia Tupiniquim Comboios, totalizando 18.027 ha. Em 2003, foi demarcada a Terra foi a edição do decreto-lei nº 22 de 1991 que dispunha sobre os procedimentos administra-
Indígena Caieiras Velhas II (57 ha), onde está localizada a aldeia Guarani Piraquê-Açu. tivos de demarcação de terras indígenas. Um de seus artigos estabelecia o direito dos povos
Portanto, os Tupiniquim e Guarani possuem atualmente 18.084 ha. indígenas de requerer da Funai a revisão de demarcações anteriores que haviam excluído
indevidamente partes do território tradicional. Era o caso dos Tupiniquim e Guarani com a
4- Hemming, 1978: 494. demarcação de 1981. Com base neste decreto-lei (revogado posteriormente pelo decreto
1775/96), a Funai criou um Grupo de Trabalho para realizar estudos das terras indígenas
5- Esta região tinha como limite sul a margem esquerda do Rio Piraquê-Açu e ao norte o li- no Espírito Santo, os quais apontaram a necessidade da ampliação das terras para 18.071
mite estabelecido pela sesmaria de 1760 (caminhos de Comboios), medindo 38 km. Do leste ha em 1997.
(Oceano Atlântico) a oeste, os 39 km da sesmaria de 1760. Total da área: 148.200 ha.
17- Cimi Leste, Campanha Internacional pela Ampliação e Demarcação das Terras Indíge-
6- Esta área tinha entre os limites sul-norte cerca de 38 km, conforme a nota anterior, e do nas Tupiniquim e Guarani. Aracruz (ES), 1996.
leste (Oceano Atlântico) a oeste cerca de 17 km, onde o Grupo Técnico (GT) da Funai (Portaria
nº 783 de 1994) localizou a aldeia Areal no limite oeste do território Tupiniquim, totalizando 18- O Núcleo Interinstitucional de Saúde Indígena (Nisi-ES), criado em 1994, fazia parte
64.600 ha. Subtraindo os 10 mil ha ocupados pela Cofavi, o território Tupiniquim e Guarani do modelo de Atenção Integral à Saúde Indígena, da Fundação Nacional de Saúde (Funasa),
media cerca de 55 mil ha no final da década de 1960. proposto pelo decreto federal nº 1.141/94. Faziam parte do Nisi, órgãos governamentais
(federais, estaduais e municipais) e órgãos não-governamentais, tendo a participação pari-
7- Segundo os índios, cada aldeia tinha em média dez famílias, totalizando 400 famílias e tária dos índios. Competia a este fórum de parceiros formular, executar e avaliar ações na
uma população aproximada de dois mil índios. área de saúde indígena. No entanto, o Nisi-ES foi o único no País que desenvolveu também
ações nas áreas de educação e agricultura.
8- Cimi Leste, Campanha Internacional pela Ampliação e Demarcação das Terras Indíge-
nas Tupiniquim e Guarani. Aracruz (ES), 1996. 19- A comunidade Tupiniquim de Comboios decidiu, sem comunicar às outras cinco comu-
nidades e à Comissão de Caciques, assinar um TAC com a empresa e por isso não participou
9- Idem. da auto-demarcação das terras.

10- Idem. 20- Schubert, Arlete, Fábio Villas e Winnie Overbeek, A reconquista da Terra Indígena no
Espírito Santo, Revista Proposta, nº 107/108, dez/maio 2005.
11- Neste período, a ditadura militar dava sinais de enfraquecimento. Na economia, a
desaceleração do crescimento econômico e a aceleração da inflação (em torno de 80%) já 21- Entre os anos 2000 a 2003, os Tupiniquim e Guarani participaram, ao lado de enti-
demonstravam o esgotamento do chamado “milagre econômico” e anunciavam a recessão dades ambientalistas, associações de moradores, de pescadores e outras, da luta contra a
da década seguinte. No plano político, a vitória do MDB nas eleições de 1978 significou instalação da empresa de mineração Totham que pretendia extrair sedimentos calcários na
uma manifestação de oposição da população brasileira à ditadura militar. A reorganização foz do Rio Piraquê-Açu. O projeto incluía também o uso de uma área de 57 hectares de
do movimento sindical, a retomada do movimento popular, impulsionado pela ala progres- terra indígena, não-demarcada e de preservação permanente. A ocupação desta área pelos
sista da igreja católica, através das CEBs e das pastorais sociais, a participação da socie- índios, no mês de agosto de 2000, contribuiu para impedir o licenciamento da empresa e
dade civil na vida política, principalmente na luta pelos direitos humanos e no movimento deu origem à aldeia Guarani Piraquê-Açu. Posteriormente, a terra foi demarcada como TI
pela anistia, a luta contra a censura na imprensa e nas atividades culturais, a reconstrução Caieiras Velhas II.
das entidades do movimento estudantil, dentre outros, disseminaram no País grandes ma-
nifestações públicas contra a ditadura militar. Dos eventos mais significativos, podemos 22- Schubert, Arlete, Fábio Villas e Winnie Overbeek, A reconquista da Terra Indígena no
destacar o ato organizado pelo movimento contra a carestia em 1978, que reuniu cerca de Espírito Santo, Revista Proposta, nº 107/108, dez/maio 2005.
vinte mil pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, e a greve dos metalúrgicos de São Bernardo
do Campo (SP), em maio de 1979, que durou 13 dias e encorajou outras greves por todo o 23- As informações que seguem foram extraídas do Informe sobre o Termo de Ajustamento
País. Em 1980, foi fundado oficialmente o Partido dos Trabalhadores (PT) como a alternativa de Conduta (TAC) entre os Tupiniquim/Guarani, Aracruz Celulose e a Fundação Nacional do
político-partidária dos trabalhadores. Também foi a partir da década de 1970 que os povos Índio (Funai), elaborado por Fábio Villas/Winnie Overbeek – assessoria indígena e membros
indígenas no Brasil se mobilizaram para retomar seus territórios invadidos e assegurar da Rede Alerta contra o Deserto Verde – Vitória – 07/12/2007.
outros direitos. É neste contexto de mobilização e luta popular, sindical e indígena que
acontece a primeira luta dos Tupiniquim e Guarani contra a Aracruz Celulose. 24- Apesar de terem sido criadas de “fora para dentro”, “de cima para baixo”, das suas
estruturas verticalizadas, das direções centralizadas e da rigidez dos estatutos, estas as-
12- Na contestação apresentada pela Aracruz Celulose, em 1997, ao laudo antropológico sociações foram, aos poucos, “domesticadas” pelos índios, tornando-as mais próximas da
da Funai que identificou os 18.070 ha como sendo tradicionalmente ocupados pelos Tupini- organização tradicional dos Tupiniquim e Guarani, baseadas na horizontalidade e nas de-
quim e Guarani, há um trecho que faz uma interessante referência a este fato: “a chegada cisões coletivas.
dos descendentes dos Guarani teria ocorrido em função de uma “revelação” feita a um
membro da tribo. Quem pode assegurar, então, que novas revelações não surgirão? Tem 25- Principalmente na Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas
cabimento um investimento de mais de US$ 3 bilhões ficar refém de “revelações” ou de Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e no já extinto Conselho de Articulação dos Povos e
simples interesse de ampliar as áreas então detidas pelos descendentes dos índios?” Organizações Indígenas no Brasil (Capoib).
30
2 Entre a terra
e o carvão:
as comunidades
quilombolas
Selma Dealdina

“E de tudo que plantaram, nada lhes


restou, nem da terra, nem dos frutos,
apenas a liberdade.”

Na história, há vários fatos que nos envergonham.


Mas nada é tão vergonhoso e abominável quanto a es-
cravidão. Arrancaram-nos da nossa pátria, nos trou-
xeram à força em navios negreiros e nos forçaram a
trabalhar debaixo do sol escaldante sob surras e humi-
lhações. Quantos negros foram jogados ao mar, morre-
ram de doenças, de fome e frio? Trabalhamos de graça,
ajudamos a erguer economicamente vários países e,
depois, num ato de extrema “bondade”, fomos jogados
ao vento, sem nome, sem endereço, sem dinheiro, sem
terra, sem trabalho e sem mesmo saber assinar o pró-
prio nome. Tivemos que nos contentar com a falsa “li-
berdade” que nos foi dada. Eu não sei de onde são meus
antepassados, não sei onde procurar de onde vieram,
mas tenho certeza de que Santos não é meu sobrenome.
Marginalizaram a nossa religião, mas, com muito custo,
conseguimos manter a nossa cultura. A abolição “deu”
a liberdade aos negros, mas não lhes garantiu alguns
direitos fundamentais, como acesso à terra, à moradia,
enfim, às condições necessárias que nos permitissem
exercer uma cidadania de fato.
A resistência quilombola vem desde a época da escra-
vidão, quando os negros fugiam e se aquilombavam em
Guilherme Resende

comunidades, chamadas de mocambos ou quilombos.


Muitas comunidades assim se formaram Brasil afora, tais
como Palmares, no século XVII, os quilombos de Minas
Gerais, Goiás e Mato Grosso no século XVIII, e vários ou-
tros na Bahia, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Rio de 31
Janeiro, Maranhão e Pará, no século XIX. Segundo o pro- entender a lei e vivendo com tanta injustiça.
fessor Ubiratan Castro, “um desconhecido Brasil negro Apesar do governo Lula não ter titulado nenhum pe-
se revelou, vindo à tona um novo movimento de afirma- daço de terra quilombola no Espírito Santo, os ânimos
ção de identidade. E, com ele, uma nova bandeira de luta estão à flor da pele quando se questiona o “direito de
pela terra’’. A emancipação dos escravos, em 1888, não foi propriedade” e a forma como tudo aconteceu. Daí, per-
acompanhada por medidas que permitissem aos grupos cebe-se que enfiou-se a mão num vespeiro, e as reações
negros permanecer na área rural. Apenas um século de- são idênticas, tanto por parte da empresa multinacional
pois, com a Constituição de 1988 e o reconhecimento dos Aracruz Celulose como por alguns proprietários, ini-
direitos dos quilombolas, começou-se a lançar luz sobre a ciando assim uma guerra racial e territorial. Diante da
existência dessas comunidades. reação dos proprietários aos recentes processos de re-
Hoje, 120 anos depois, ainda carregamos, nos pulsos, conhecimento oficial do território quilombola do Sapê
as marcas dos grilhões, nos pés, o peso das correntes e, do Norte, as comunidades intensificaram o modo de se
nas costas, as cicatrizes das chibatas. defender e lutar pela sobrevivência em suas terras.
Acreditávamos no passo importante para nós, brasilei- As famílias quilombolas procuram manter vivas as for-
ros e brasileiras, quando, em 2002, a “esperança venceu o mas de organização em comunidade, suas manifestações
medo” e, pela primeira vez, nós - o “povão” - estaríamos culturais e, principalmente, a base familiar de produção,
no poder. No entanto, as coisas não caminharam como na defesa de um território e um ideal de vida comunal,
esperávamos ou, talvez, como idealizamos nos nossos que sonham e lutam bravamente para manter, até os dias
sonhos de governo. Ficamos num “faz-e-desmancha” atuais. Nesses processos de estudos e pesquisas, para fins
que ninguém entende mais nada. de titulação dos territórios quilombolas, tem sido muito
A cada momento surge uma palavrinha nova e a da vez, interessante a aproximação entre as comunidades que
e muito bem usada, é criminalizar. decidiram lutar pela retomada de seus territórios, o que
tem levado a uma integração maior, não só da região nor-
Situação de conflito hoje te do Espírito Santo, mas de todo o estado e do Brasil.
“Depois que ela [Aracruz Celulose] chegou aqui, acabô com Em 20 de novembro de 2003, quando o presidente da
tudo, a gente tinha água com fartura, muitos peixes, muita República assinou o Decreto 4.887, regulamentando o
caça, dendê, frutas, mandioca à vontade... Agora nem cobra procedimento de identificação, reconhecimento, delimi-
consegue viver no meio do eucalipto. O eucalipto só presta tação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
para encher nossas casas de cupim. A Aracruz acabou com remanescentes das comunidades de quilombos, houve
minha alegria de viver. Hoje, vivo cercado igual bicho... Ela um alvoroço no País inteiro. A partir daquela data ocor-
pode devolver as terras, mas ela vai devolver os córregos, reram as mais diferentes manifestações. Na comunidade
os animais, os remédios, as matas virgens que existia aqui? Alpes, no Rio Grande do Sul, em dezembro de 2008, os
Muita gente foi pra cidade e morreu de depressão, por não irmãos Joelma e Volmir, ambos membros e fundadores da
poder está vivendo em cima do que é seu... Foi aqui que Associação Quilombola, foram assassinados por um fa-
nasci e aqui quero morrer e ninguém me tira daqui, nem ela zendeiro contrário à titulação da comunidade. Ocorreram
[Aracruz Celulose]... Quando me alembro daquele tempo, também casos mais ‘leves’, como em Paraguaçu, na Bahia,
meus óios enche de água. Naquele tempo, a gente era livre, onde o fazendeiro mandou soltar o seu gado nas lavou-
como os passarinhos. Na terra, tudo que plantava dava. Nóis ras dos quilombolas, além de destruir casas e assustar os
era livre. Hoje, não. Eles, da Visel, e até mesmo a pulíça, moradores sob ameaça de fogo. Muitos outros casos acon-
entra na nossa terra, bota o dedo na nossa cara, dentro tecem nas várias comunidades espalhadas pelo País, que
da nossa casa, joga nossas coisas todinha no chão e, se não chegam ao conhecimento de todos.
a gente responder, eles leva a gente preso. Estou com 74 No Espírito Santo, mais precisamente no Sapê do
anos, nunca tinha entrado numa delegacia. Quando entrei, Norte, as reações foram diversas. Logo no início, em-
foi para ver meu filho, que acusaram de tá roubando madeira. pregados armados da empresa de segurança Visel, con-
Ele tava catando graveto pra dá aos fios o que comer. Onde tratada pela Aracruz Celulose e, substituída pela em-
já se viu prender um homem por querer matar a fome da sua presa também privada Garra, chegaram a entrar nas
famia. E o que eles roubaram de nóis? Ninguém prende eles casas das famílias quilombolas e procuraram proibir
não? Justiça, só defende quem tem dinheiro...” a circulação dos membros das comunidades nas áre-
(Domingos Ayres, 74 anos – Comunidade Retiro, as de plantação de eucalipto. As famílias quilombolas
São Mateus, em 12 de abril de 2009) do Sapê do Norte vivem isoladas em ilhas cercadas por
eucalipto. Tais procedimentos visam proibir a caça e a
Vivemos nos contos de “como era e como ficou”, e casos pesca nos poucos rios e córregos da região que ainda
como o do senhor Domingos Ayres são contados por mui- não secaram. Aqueles que ainda têm água estão sendo
32 tos quilombolas que sobrevivem aos eucaliptais, tentando covardemente contaminados pelos venenos da Aracruz
Celulose. Proíbem também andar depois do pôr do sol. - O território de Serraria, no município de São Cristóvão,
Ou seja, os quilombolas estão encurralados entre as teve seu processo de identificação e delimitação conclu-
plantações e as montanhas de eucaliptos cortados, sem ído em 2006 e a presidência do Incra assinou a Portaria
poder fazer o que sempre fizeram com liberdade. Declaratória, que reconhece seu território com área de
Nisso tudo, o que mais choca é a omissão e a conivência 1.219 hectares.
das autoridades locais, que se limitam a acusar os qui- - Os trabalhos de identificação e delimitação do territó-
lombolas de roubo de madeira e incriminar os mesmos. rio de São Jorge foram realizados desde 2005.
A polícia os prende a toda hora e sem motivos aparentes. - Os trabalhos de identificação e delimitação do ter-
Essa perseguição resultou em mais de sessenta quilom- ritório de São Domingos foram concluídos e o relatório
bolas processados e/ou socialmente criminalizados, mar- foi publicado em dezembro de 2009.
cando a vida de chefes de famílias, donas de casas, idosos, - Os trabalhos de identificação e delimitação do terri-
mulheres e jovens. Pessoas de bem que, aos poucos, vão tório da Bacia do Angelim estão no início.
vivendo aqueles casos antigos que eram contados por Nenhum avanço significativo ocorreu recentemente e
nossos antepassados, quando os capitães do mato iam à um dos principais entraves para que os processos de
caça dos escravos que se auto-libertavam. A diferença é devolução das terras aos quilombolas sejam concluídos
que estamos falando de situações que acontecem agora é o Movimento Paz no Campo (MPC), que defende os
em pleno século XXI. interesses dos ruralistas e da Aracruz.
A história se repete, seja no norte ou na região serra-
na capixaba. A forma com que foram arrancadas as ter- O Sapê do Norte
ras dos(as) negros(as) que viviam no norte do Espírito Os remanescentes de quilombos do Sapê do Norte, um
Santo, com a chegada da monocultura de eucalipto e, território com cerca de 35 comunidades e mais de 1.200 fa-
mais tarde, a cana, é exatamente a mesma que contam mílias quilombolas, vêm ao longo dos anos sofrendo uma
os negros da região serrana e sul do Espírito Santo, com grande criminalização. Esse processo começou na década
os fazendeiros e seus gados. E a reação dos ditos “pre- de 1970, quando os quilombolas foram obrigados a deixar
judicados” é a mesma, também reagindo com violên- suas terras e tiveram que ir para as grandes cidades em
cia em casos como em São Pedro, município de Ibiraçú, busca de sua sobrevivência. Nas favelas, longe da zona ru-
onde o fazendeiro alvejou a igreja da comunidade com ral, foram obrigados a enfrentar situações adversas.
tiros para intimidar os moradores e fazê-los parar com Para aqueles que permaneceram resistindo nas comuni-
o processo de reconhecimento. dades, restou a convivência com todos os impactos ambien-
tais e socioeconômicos causados pelas grandes empresas de
O processo de regularização no Sapê do Norte álcool e celulose. Esses quilombolas sofrem um impacto am-
Após a assinatura do Decreto 4.887/2003, o órgão res- biental muito forte como, por exemplo, os córregos e rios que
ponsável pela implantação de suas determinações, o Ins- existiam e que hoje não existem mais, as caças e matas que
tituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), tinham com fartura e hoje já não existem mais, bem como as
pressionado pelas comunidades quilombolas, começou a matérias primas que utilizavam para fabricar seus utensílios
atuar na regularização de suas terras no estado do Espí- e artesanatos, e que também deixaram de existir. Essas per-
rito Santo. das acabam também com todo um saber, com os costumes e
O Sapê do Norte constitui o maior território de co- tradições de um povo, que tenta guardar na memória a his-
munidades quilombolas no estado e sua situação é tória acumulada desde seus ancestrais. Resistindo ao tempo,
a seguinte: mantém viva sua revolta e indignação nas letras das brinca-
- O território de Linharinho, no município de Concei- deiras de caráter religioso-cultural, nos grupos de Jongo, Ti-
ção da Barra, com 9.542,57 ha (85% ocupado pela Aracruz cumbi e Reis de Boi. Isso se traduz também nos pedidos aos
Celulose), teve seu relatório de identificação e delimita- santos protetores dos negros. Dentre eles, o mais famoso é
ção divulgado no Diário Oficial da União, em 13 de abril São Benedito, a quem são dedicadas muitas ladainhas, rezas,
de 2006. A Portaria de Reconhecimento foi publicada em missas e promessas de um futuro melhor na tão almejada
maio de 2007, sendo a primeira experiência resultante terra prometida.
do trabalho do Incra na região capixaba. No entanto, a A partir do ano de 2003, por falta de opção, os quilom-
Aracruz Celulose questionou a portaria do Incra judi- bolas que não tinham condição nenhuma de tirar o sus-
cialmente e obteve sucesso no início de 2009, com uma tento da sua terra, de plantar sua rocinha, de fazer seu
liminar do Tribunal Regional Federal no Rio de Janeiro, beiju, sua farinha, iniciaram o processo de fazer carvão
suspendendo o processo de titulação. A empresa alega usando restos de madeira que sobram após o corte do
que legalmente deveria ter sido notificada antes do início eucalipto. A princípio, eram poucas famílias, mas, com o
dos trabalhos de identificação da área, alegação contesta- passar do tempo, esse número foi aumentando, porque a
da pelo Incra. situação degradante abrangia todas as famílias. Algumas 33
políticas públicas voltadas para comunidades conside- ram os quilombolas como cobaias. Nessa “ação”, levaram
radas carentes, tais como Bolsa Família, micro-créditos, presos um menor e um deficiente visual. A autuação de
Vale Gás, Peti [Programa de Erradicação do Trabalho In- busca incluía dois senhores com mais de oitenta anos. A
fantil], bem como políticas nas áreas de saúde, educação, ilegalidade da operação foi confirmada no dia seguinte
moradia, emprego, geração de renda e saneamento, não em nota do Ministério Público Federal do Espírito Santo.
chegaram à maioria dessas comunidades. Em meio a esses conflitos cotidianos, é que foi criado no
A Aracruz Celulose, por sua vez, começou a tirar ain- município de São Mateus, com apoio da Aracruz Celulose
da mais proveito dessa situação, desestimulando os qui- e sob a liderança de um conhecido historiador do muni-
lombolas a lutar pela conquista da terra e se afirmarem cípio, o Movimento Paz no Campo (MPC). Essa foi a gota
como quilombolas. Uma das iniciativas da empresa foi es- d’água para acirrar os ânimos na região. Ficamos a um
timular a criação da Associação de Pequenos Agricultores passo de assistir ao retorno do Apartheid1 em pleno sé-
e Lenhadores de Conceição da Barra (Apal-CB), com o culo XXI, com uma diferença do que aconteceu na África
objetivo de organizar a coleta de lenha, cedida pela Ara- do Sul: aqui, o MPC conta com o apoio de negros nas co-
cruz. Quem fizesse parte dessa associação deveria seguir munidades quilombolas, que ainda não compreenderam
alguns critérios, dentre os quais não identificar a entida- e, por isso, não aceitam a importância da titulação coletiva
de com o movimento quilombola. Essa iniciativa, de cer- dos territórios quilombolas.
ta forma, conseguiu dividir as comunidades entre a terra Os quilombolas são ameaçados e intimidados. Vivem
e o carvão, sendo que naquele momento, por questão de constantemente com medo de andar sozinhos no meio das
necessidade, os quilombolas não tinham outra opção. Era grandes plantações de cana e eucaliptos. Não podem criar
necessário coletar lenha para garantir a sobrevivência. soltas as poucas criações que têm, de galinhas, porcos ou
Somos quilombolas por identidade e resistência e, por cavalos. Os quilombolas vivem espremidos e, como se não
isso, não nos entregamos. Mesmo assim, chegaram a fazer bastasse o eucalipto e a cana, chegou ao norte - ou melhor,
uniformes de cores diferentes para cada comunidade e li- já está lá - um gasoduto da Petrobras que cortou o territó-
mitar a área de extração de lenha para cada comunidade, rio ao meio.
sendo que a comunidade “A” não poderia entrar na área Infelizmente, o mais precioso direito que os quilombo-
da comunidade “B”. Isso já era uma forma de provocar las têm não é respeitado: o direito à terra, previsto no Art.
conflitos entre os quilombolas, que sempre viveram sem 68 da Constituição Federal. Os quilombolas perderam suas
muros e cercas e costumavam trabalhar de forma coletiva terras e, apesar de todas essas dificuldades e sacrifícios,
em suas plantações, colheitas e nos ajuntamentos para a ainda estão resistindo e lutando para a realização desse
construção de moradias. Quando descobriram que era um direito, que até hoje lhes é negado.
jogo da Aracruz Celulose, eles se organizaram. Estavam
em número muito maior os que pegavam o facho (resto de “...Deixa nós livre2... Livre de processos,de criminalização,
madeira), chegando a aproximadamente 500 catadores. A livres de eucalipto e cana, livre com e na nossa terra.”
Aracruz começou a diminuir o tamanho das áreas de co-
leta, que cada vez ficavam mais longe, até mesmo em ou-
tros estados. Desencadeou-se um dos principais motivos
para a empresa iniciar um verdadeiro festival de prisões
e criminalizações de quilombolas, chegando a prender de
uma só vez cerca de cinquenta pessoas da comunidade de
São Domingos, em Conceição da Barra. Em outra ocasião, Referências
foram presos e processados mais de cem quilombolas 1- Segundo Wikipédia: Apartheid (“vida separada”) é uma palavra de origem afrikaans,
adotada legalmente em 1948 na África do Sul para designar um regime segundo o qual
que estavam pegando o facho no município de Linhares. os brancos detinham o poder e os povos restantes eram obrigados a viver separados dos
Em setembro de 2009, três jovens quilombolas de uma brancos, de acordo com regras que os impediam de ser verdadeiros cidadãos. Este regime
mesma família foram presos quando estavam próximos foi abolido por Frederik de Klerk em 1990 e, finalmente, em 1994 eleições livres foram
realizadas.
de suas casas pegando madeira de eucaliptos para fazer
carvão. Eles foram abordados por policiais militares e vi-
2- Filme Amistad, de Stephen Spielberg/1997.
gilantes da Aracruz Celulose, foram presos em flagrante e
ficaram três meses detidos sem serem julgados.
O último caso de violação explícita dos direitos huma-
nos foi em novembro de 2009, quando 39 quilombolas da Referências Bibliográficas
comunidade de São Domingos foram presos numa mega- * Castro, Ubiratan. Ex-presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP), de 2003 a 2006,
em entrevista dada ao jornalista Lorenzo Aloé, publicada na Revista de História, edição
operação ilegal da polícia militar com cerca de 130 mili-
dezembro de 2007.
tares armados com fuzis e metralhadoras, cães, cavalos e
34 ônibus. Um verdadeiro treinamento de guerra, onde usa- * Fonte de pesquisa: site Wikipédia.
3
vertiginoso crescimento da destruição dessa floresta,
através do projeto estatal militar de extensos plantios de
eucalipto para a produção de celulose, integrante do II
Plano Nacional de Desenvolvimento (1974).
A implantação dos plantios industriais de eucalipto da
empresa Aracruz Celulose nessa região traz a transforma-
ção no uso da terra, incentivada e legitimada pelo Estado
através de legislações específicas, e impõe uma nova lógica
A degradação de apropriação do espaço, ditada pela propriedade privada,
pelo uso restrito, pela acumulação e pelo lucro. Junto dessas
socioambiental transformações, um manejo extremamente impactante, com
o plantio da monocultura em nascentes e zonas de recarga

no Sapê do Norte hídrica, a retirada de matas ciliares, o estrangulamento de


1

cursos d’água pelas estradas, o aterro de lagoas, a capina e


o controle químico de pragas com elevadas doses de agro-
Simone Batista Ferreira tóxicos e herbicidas. Danificando o meio natural, a nova si-
tuação passa a desestruturar o modo de vida das comunida-
des locais, outrora estruturado numa forma de manejo que
mantinha os ciclos reprodutivos da vida.
O presente artigo busca analisar a gama de A busca pelo entendimento desse conflito é um amplo
impactos socioambientais causados pelos universo a ser desvendado, uma vez que são bem escas-
plantios industriais de eucalipto do complexo sos os registros sobre essa problemática, presente em
sua maior parte na memória das comunidades locais que
produtivo de celulose, implantado no norte
testemunharam toda a degradação. Nesse sentido, esta
do Espírito Santo, pela Aracruz Celulose, em pesquisa teve como fonte principal as informações colhi-
meados da década de 1970. das junto às comunidades locais por meio de entrevistas,
depoimentos e diversos “causos” que revelam o conheci-
mento de sujeitos que vivenciaram as transformações em
Até meados do século XX, a região fronteiriça entre o seu lugar de vida.
Espírito Santo e a Bahia – denominada “Sapê do Norte” Essa memória viva contrapõe-se à imagem do desen-
- era predominantemente ocupada por um campesina- volvimento e qualidade ambiental, difundida por este se-
to diversificado, que compreendia comunidades caboclas, tor produtivo da celulose e pela imprensa que se coloca
pescadoras e quilombolas, que tirava seu sustento do uso a seu serviço. Neste sentido, procuramos abrir aqui um
do meio natural. Aqui, a rica floresta Atlântica, agrupando espaço para a voz dos impactados, trazendo a proposta de
mata densa, lagoas e sapezais nos terrenos sedimentares uma reflexão acerca desse paradigma desenvolvimentis-
terciários e áreas de inundação nas planícies de inunda- ta que, de forma autoritária, massacra uma grande diver-
ção dos rios, apresentava a fartura suficiente para suprir sidade ambiental e cultural, fontes de saberes e de curas,
essas comunidades de água, peixe, carne, frutos, madeira, fontes de beleza e qualidade de vida.
ervas e raízes medicinais. A fartura estendia-se à terra: no
“sertão”, a “terra era à rola”, lugar dos roçados de mandioca “Terra à rola” e modo de vida
e criações, apropriada pelas posses que passavam de pai Referindo-se ao tipo social e cultural do universo das
para filho. Essa situação favorecia o uso comum dos recur- “culturas tradicionais” do homem do campo no Brasil,
sos oferecidos pelo meio e, assim, concretizava o território  
Cândido (1988) utiliza o termo “rústico”, que englobaria
das comunidades. a “cultura camponesa, cabocla ou caipira, definida pelas
Iniciada em pequena escala na década de 1920, a explo- características do isolamento, da posse de terras, do tra-
ração comercial dessas áreas de floresta sofre um gran- balho doméstico, do auxílio vicinal, da disponibilidade
de aumento a partir da década de 1950. O crescimento de terras e da margem de lazer”. O conceito trabalha a
urbano-industrial do centro-sul do País tem fome de ma- questão organizacional das comunidades, ou seja, a for-
deira, que começa a ser saciada pela exuberância da Mata ma como as comunidades se organizam coletivamente
Atlântica do norte do Espírito Santo. Da mesma maneira, para garantir sua reprodução social.
inicia-se a produção de carvão da Acesita Energética e No Sapê do Norte, essa reprodução social dava-se pela
o plantio de eucalipto pela Companhia Vale do Rio Doce predominante apropriação e uso comum dos recursos,
(CVRD), que era exportado para fábricas de celulose eu- através de práticas extrativistas nas grandes extensões de
ropéias. Em meados da década de 1970, toma pulso um matas, brejos e rios, assim como da pequena produção das 35
roças. A forma da organização produtiva baseada na posse trabalho que constrói o patrimônio da família. Neste sen-
e uso comum é definida por Almeida (1987) como sistema tido, as sociedades camponesas tradicionais estariam es-
de posse comunal: truturadas no tripé terra, família e trabalho, categorias
relacionadas entre si e vistas como valores vinculados a
“O significado que a terra possui nas áreas de ocupação princípios organizatórios próprios.
recente e naquelas regiões de colonização antiga, onde se A terra é o “chão da morada”, “um espaço onde se re-
verificam formas de posse comunal, remete às regras de produzem socialmente várias famílias de parentes, des-
um direito consuetudinário que prescreve métodos de cul- cendentes de um ancestral fundador comum” (Idem). É o
tivo em extensões, que podem ser utilizadas à vontade por espaço da reciprocidade, princípio moral onde a prática
cada grupo familiar, sem exigência de áreas contíguas ou da troca de tempo responde à satisfação das necessidades
de ter o conjunto de suas atividades produtivas confinadas de trabalho. A troca articula os elementos terra, trabalho
numa parcela determinada. Delineiam-se domínios de cará- e alimentos, que expressam uma relação também moral
ter comunal, que não pertencem individualmente a nenhum entre os homens e deles com a natureza. No uso da terra,
grupo familiar e que são vitais para a sobrevivência do con- o trabalho dá-se como valor ético, construindo a família
junto de unidades familiares, tais como: cocais, babaçuais, enquanto valor.
fontes d’água, igarapés, pastagens naturais e reservas de Enfocando as comunidades do Sapê do Norte, cabe es-
mata, de onde os camponeses retiram palha, talos, lenha tender o entendimento das sociedades camponesas, rús-
para combustível, madeiras para construções, murtas e ou- ticas ou tradicionais para o uso comunal e extrativista de
tras espécies vegetais utilizadas em cerimônias religiosas espaços e recursos naturais, visando a subsistência do
ou de propriedades medicinais reconhecidas.” (p.47) grupo. Estas comunidades são extrativistas na sua ori-
gem, tendo na floresta tropical úmida e no mar a base
Nesses sertões, a “terra era à rola”, assim como os de- de sua sobrevivência. Araçá, cambucá, caju, pitanga, goi-
mais recursos que supriam a existência. A “terra à rola” ti, jaca, paca, tatu, capivara, traíra, robalo, piau, morobá
configurava a disponibilidade de terras, fator fundamen- e outros alimentos nativos da floresta formavam a mesa
tal na organização destes grupos, e é atestada pelo depoi- local, complementada pelo peroá, pescadinha, cação, su-
mento de “Dona” Dorota, antiga moradora da comunidade ruru e outros alimentos da água salgada, pelas criações
do Angelin: domésticas de porco e galinha, pela batata, quiabo, abó-
bora, pimenta, coco e, principalmente, o aipim e a man-
“– ... De primero, minha filha, vou te contar, você chegava lá dioca, cultivados nas pequenas roças itinerantes envoltas
no Angelin, você fazia uma casa aqui... aí você ia embora, pela imensa floresta. Madeiras, fibras e cipós eram uti-
voltava de novo, tornava a fazer lá diante, assim que era, que lizados na produção de armadilhas de pesca e caça, em
era do Estado... A terra era à rola!” utilitários como jacás, samburás, esteiras, redes de pesca,
(Dorotéia Batista, 77 anos, em 04 de maio de 1999) e na construção de moradias, através da técnica do estu-
que. Ervas e raízes medicinais, junto das benzedeiras e
A existência dos territórios de uso comum e da “terra parteiras, constituíam a medicina local, transformando as
à rola” era possibilitada pela relativa situação de isola- plantas coletadas em chás, xaropes, unguentos, pomadas,
mento que a zona fronteiriça entre o Espírito Santo e a pós, óleos e banhos, combinando potencial farmacológico
Bahia mantinha em relação aos centros urbano-indus- com a fé, resultante do sincretismo religioso entre os cul-
triais, esquecida, durante um intervalo de tempo, pela tos de origem afro-indígena e as práticas cristãs do meio
valoração do capital. Esse relativo isolamento foi favo- rural. A maior parte da subsistência era, assim, fartamen-
recido, ainda, pela luta de grupos indígenas na defesa te suprida através do “usufruto” do meio natural; assim,
de seu território e pelo quadro natural e as dificuldades não havia grandes necessidades de compra:
que impunha à sua penetração: a densa floresta tropi-
cal úmida, entrecortada por numerosos e caudalosos “– Mas, comprava as coisas pra comer ?
rios e zonas de inundação, habitada sobretudo pelos Umberto – Comprava !... Não, a gente só comprava mais era
grupos indígenas Aimorés, contribuíram para deixar o memo só o sal e o querosene que nóis comprava...
norte do Espírito Santo em situação quase inatingível – E o resto ?
pelos grandes projetos de desenvolvimento até mea- Umberto – O resto, nóis se virava por aqui memo.
dos do século XX. – Tinha bastante ?
Para estes grupos diferenciados do campesinato, a ter- Umberto – Tinha ! Era peixe, era carne, gordura a gente
ra constitui a “expressão de uma moralidade, (...) algo quase num comprava, porque matava um capado aí de 30
pensado e representado no contexto de valorações éti- quilo, você derretia e era quase meia lata de banha...”
cas” (Woortmann, 1989), e não simplesmente um objeto (Umberto Batista do Nascimento,55 anos,
36 de trabalho ou mercadoria. É sobre a terra que se faz o em 27 de setembro de 1999)
Um outro traço característico era a solidariedade como do Sapê do Norte, além das povoações de Campinas e
princípio organizativo. O mutirão ou “ajuntamento” era Barreiras, situadas às margens do Rio Cricaré:
uma prática cotidiana de cooperação, solicitada por quem
estivesse precisando ou mesmo oferecida pelos vizinhos, “São Mateus, incluindo a população de Barra, atual município
e acontecia na ocasião da derrubada de mata para abrir a de Conceição da Barra, em que se localiza o ritual do Ticumbi,
roça, na fabricação da farinha, na construção das casas e era o maior centro de escravos do Espírito Santo. (...) Os
farinheiras, através da técnica do barreio. descendentes desse enorme contingente negro habitam o
Esse modo de vida estruturava um território baseado interior dos municípios de São Mateus e Conceição da Barra.
em relações muito peculiares e um saber construído e Vivem em roças onde cultivam mandioca, conservando
cristalizado através dessas relações: hábitos próprios herdados dos antepassados e integrando
uma imensa comunidade negra onde todos são parentes
“O modo como os homens produzem seus meios de vida e/ou compadres, concentrando-se na região rural. Dessa
depende, sobretudo, da natureza mesma dos meios de vida comunidade negra sai o Ticumbi.” (p.25 e 32)
com que se encontram e que trata de reproduzir. Este modo
de produção não deve se considerar somente enquanto Assim como outras manifestações culturais afro-brasilei-
reprodução da existência física dos indivíduos. É, sobretudo, ras, o Ticumbi também não consiste na adaptação passiva do
um determinado modo da atividade destes indivíduos, um africano escravizado à nova referência cultural que se im-
determinado modo de manifestar sua vida, um determinado põe, mas é fruto de um processo concomitante de assimila-
modo de vida dos mesmos. Tal e como os indivíduos ção e resistência, atestando a “continuidade e reelaboração
manifestam sua vida, assim são. O que são coincide, por de um complexo cultural básico negro em confronto com a
conseguinte, com sua produção, tanto com o que produzem prática religiosa do colonizador” (Lyra, 1981). Constitui um
como com o modo como produzem. O que os indivíduos são auto poético e musical tocado ao som de pandeiros e viola,
depende, portanto, das condições materiais de sua produção.” onde dois reis africanos – o Rei de Congo e o Rei de Bamba -
(Marx, [1974]) duelam em versos, embaixadas e espadas para ver quem faz
a festa para São Benedito:
Configurando o território como um todo e em suas re-
des de relações, esses agrupamentos se situavam ao lon- “Reis de Bamba é reis valente,
go dos vales de rios. Em algumas localidades, suas mora- não tem pena da pobreza,
dias concentravam-se ao redor de capelas e campos de Só pensa em violência,
futebol, lugar do encontro, concretizando as relações de só por conta da riqueza.
vizinhança mais próximas entre as famílias. Sua inserção Reis de Congo está brigando
na sociedade mais abrangente se estabelecia principal- pra defender São Benedito,
mente em relação à cidade mais próxima, onde se efeti- Tá pegando sua bandeira pra levar lá pro Egito.
vavam as trocas comerciais. Ainda povoa a memória dos Reis de Bamba está dizendo:
mais antigos a época em que se levava alguns produtos ‘Eu quero ver quem é bonito’,
da roça no “lombo do animal” ou nas canoas, para serem Ele vai topar parada se pegar São Benedito.
vendidos nas cidades de Conceição da Barra e São Ma- Reis Bamba e seu vassalo,
teus: abóbora, aipim, farinha de mandioca, lenha. eu quero ver sua jornada,
Outra forma de encontro, ainda presente, acontece du- Se você diz que não tem medo,
rante as festividades religiosas, seja na roça, seja na cida- comigo tu vai topar parada.”
de. Em homenagens aos santos, em festas entremeadas (Baile de Congo do Ticumbi do Congado –
pelos cultos religiosos cristãos e pelas “brincadeiras” do Entrada de Contra-Guia e Versos, 2001)
Reis de Boi, do Baile de Congo de São Benedito “Ticum-
bi”, do Jongo e do Samba. É o tempo da festa presente, do O Rei de Congo, sempre vencedor, batiza o Rei de Bamba:
encontro marcado ano a ano, do relembrar os antepas-
sados idos, do culto aos santos. É o momento de reviver “Por certo o rei de Congo, personificando aquele que na
parentes da região, das cidades e do “sertão”, que vêm própria história da África foi chamado ‘rei cristão’, retém
prestigiar a festa e, mais uma vez, reafirmar sua memória os signos brancos católicos. Curiosamente, seu direito de
e traços de identidade. fazer a festa de São Benedito decorre do fato de ser ele ‘o
A “brincadeira” do Ticumbi preenche grande parte do rei mais velho’. Valorizado segundo a pertinência de uma
espaço lúdico e sagrado. Bernadete Lyra (1981) afirma cultura branca, o rei de Congo tem sua prioridade afirmada
que o Ticumbi faz parte do universo banto das conga- através de um traço cultural negro. Após vencer a ‘guerra’, o
das e tem como círculo geográfico ritualístico a cidade rei de Congo se apressa em batizar o inimigo. Assim como os
de Conceição da Barra, a povoação de Santana, a zona senhores se apressavam em batizar os escravos chegados 37
da África. O rei de Bamba submete-se ao batismo com seus algumas plantas são utilizadas em banhos de descarrego,
guerreiros”. (Lyra, 1981:93) defumação e benzimentos.
Essas construções culturais afro-brasileiras reforçam
São Benedito é quem recebe grande parte da devo- a existência de um território negro no Sapê do Norte,
ção no Sapê do Norte. O santo negro é compreendido constituído por várias comunidades2:
como o que ajuda os mais desfavorecidos, no espelho
de sua história de cozinheiro que, longe dos olhos da Tabela 1: Comunidades negras rurais do Sapê do Norte
nobreza da Idade Média, doava comida aos pobres. São
Benedito e seus devotos possuem forte proximidade e
as relações entre eles não se dão por intermédio da
“imagem”. A “imagem” é o santo, que tem dono e mo-
radia. A relação de devoção a São Benedito é retrata-
da pelo texto do Baile de Congo. O pedido de ajuda ao
“santo milagroso” dá-se, ao mesmo tempo, numa certa
horizontalidade, quando os devotos chamam sua aten-
ção para o sofrimento que vivem, num tom de cobrança
e ressentimento:

“Eu vivo sempre sofrendo,


eu vivo sempre sofrendo
São Benedito, meu santo,
São Benedito, meu santo
Me ajuda, São Benedito,
Me ajuda, São Benedito
Será que vós não tá vendo?
Será que vós não tá vendo?”
(Baile de Congo de São Benedito de Conceição da Barra.
Mestre Tertolino Balbino, 2005)

Da mesma maneira, esta forma de manifestação cultu-


ral abre espaço para as críticas tecidas a respeito de con-
jecturas locais:

“O grande culpado são vocês / que aquela floresta


plantou / De cana-de-açúcar e eucalipto / O povo da terra
expulsou / E vocês vão morrer de fome / Ou comer erva
daninha / Por que raiz de cana-de-açúcar nem eucalipto
/ Não dá pra fazer farinha / Nem tão pouco criar gado /
Porcos e muito menos galinha.”
(Baile de Congo de São Benedito de Conceição da Barra - Embaixada
do Secretário do Rei de Congo, 2007)

Além da religiosidade que acompanha as “brincadei- Segundo Lyra (1981), a existência destas comunida-
ras”, vinculadas aos rituais católicos, outras eram caracte- des testemunham uma história de escravidão africana
rísticas do Sapê do Norte, como a Cabula – que tinha o seu e de aquilombamento na região:
ritual realizado nas matas - ou Mesas de Santo – cujos ri-
tuais ainda são realizados nos terreiros. Na Mesa de San- “Toda a história do negro no Espírito Santo está salpicada
ta Maria, Mesa de Santa Bárbara e Mesa de São Cosme e de quilombos, mocambos e insurreições.(...) Ligada longo
Damião, os santos cristãos são cultuados conjuntamente tempo ao território de São Mateus, de onde se desmembrou
com entidades como caboclos, pretos velhos e povos da em 1833, Conceição da Barra até hoje deve sua produção
água. A incorporação das entidades visa realizar traba- agrária aos negros que, quer pelas constantes fugas durante
lhos de limpeza espiritual e outros pedidos. Os rituais são a escravidão, quer pela fixação agrária em seu território após
feitos a partir de orações da igreja e pontos de terreiro, a Abolição, permaneceram no interior, ao longo dos peque-
38 referentes a um santo ou entidade. Da mesma maneira, nos afluentes do Rio Cricaré e do Rio Itaúnas, principalmente
na região conhecida como região do Sapê. (...) as condições das para outros estados e até mesmo países. Este mode-
propícias ao aquilombamento e, sobretudo, o retorno aos mo- lo de exploração repete-se nos rios Itaúnas, Cricaré, São
delos negros tribais após a libertação muito contribuíram para Domingos e ao longo do Vale do Rio Doce.
a taxa atual da população de cor, uma das mais elevadas do Além de efetivar a demarcação da fronteira, essa for-
estado.” (p.28, 30 e 31) ma de exploração da floresta é incentivada pela fome de
madeira trazida pelo crescimento urbano-industrial do
“Vocação Madeireira” centro-sul do País no Pós-Guerra (Becker, 1973), que co-
Até o início do século XX, o norte do Espírito Santo exi- meça a ser saciada pela exuberância da floresta tropical
bia grandes extensões de densa floresta tropical. Embora do norte capixaba, através da exploração de algumas es-
a região guardasse o que havia de melhor em Mata Atlân- pécies, como a peroba (Paracotema peroba) e o jequitibá
tica, a indústria madeireira localizada no Rio de Janeiro e (Cariniana sp.). Para a efetivação da exploração, é neces-
São Paulo utilizava apenas o pinho-de-riga importado da sário criar as condições de penetração no território, onde
Letônia, Lituânia e Estônia (Medeiros, 1999). A peroba- o extermínio indígena, a construção de estradas, da ponte
do-campo, proveniente de Campos, no Rio de Janeiro, foi sobre o Rio Doce e, posteriormente, da BR-101, constituí-
a primeira espécie de madeira nativa a substituir as ma- ram-se os principais vetores.
deiras importadas: era madeira de troncos retos, uma das A exploração de algumas espécies dá lugar à substitui-
mais bonitas da Mata Atlântica e servia para vários ser- ção da floresta pela extensa monocultura do eucalipto. A
viços. Essa descoberta estimulou as serrarias do Rio de partir da década de 1960, as zonas planas dos Tabuleiros
Janeiro a saírem à procura de “reservas” da peroba. Terciários ocupados pela floresta, majoritariamente locali-
Inicia-se, então, uma nova forma de valorização desse zadas nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra,
território de fronteira, ditada pelo capital. Na época, o foram transformadas em plantios industriais de eucalipto
governo do estado do Espírito Santo preocupava-se com para produção de celulose. Cabe citar que, nessa época,
sua efetiva ocupação, uma vez que existia o temor que algumas destas áreas serviam à produção de carvão vege-
a Bahia ocupasse a região. Desse modo, são definidas as tal para siderurgias (Acesita Energética) - e de eucaliptos
primeiras políticas de exploração madeireira, através das para exportação e produção de celulose (Companhia Vale
quais concediam-se extensas áreas de floresta para a ex- do Rio Doce). No entanto, nesse momento, a continuidade
ploração privada, que em troca deveria traçar um plano da destruição da floresta passa a ser realizada em verti-
de ocupação. Num primeiro momento, nesse modelo de ginosa escala pela motosserra e pelo trator de esteira, o
exploração da floresta, os rios eram utilizados como vias “correntão”, símbolo do desmatamento. Sua intensificação
de escoamento das toras de madeira, que eram amarra- pode ser testemunhada pelos dados a seguir, que eviden-
das umas às outras como jangadas, até chegarem à foz. ciam a profunda alteração no uso da terra verificada nos
Dos portos, em toras ou serradas em tábuas, eram envia- municípios de Conceição da Barra e São Mateus:

Tabela 2: Uso da terra (estabelecimentos) Conceição da Barra – 1960 a 1996

1960 1970 1975 1980 1985 1996


Lavoura permanente 771 589 140 352 290 265
Lavoura temporária 1.449 1.201 606 432 316 296
Pastagem natural 658 630 693 418 241 286

Pastagem plantada 860 925 54 211 50 74


Matas naturais 1.467 732 191 268 113 226
Matas plantadas 213 14 5 9 8 26
Terras em descanso 36 90 66 120

Terras não-utilizadas 482 605 307 142 199 32

Irrigação 8 2 9

TOTAL 1.753 4.696 2.032 1.924 1.292 781


Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996 39
Gráfico 1: Uso da terra (estabelecimentos) – Conceição da Barra – 1960 a 1996

Tabela 3: Uso da terra (área/ha) – Conceição da Barra – 1950 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Gráfico 2: Uso da terra (área) – Conceição da Barra – 1950 a 1996

40
A partir desta série de dados, pode-se observar que hou- em 83,68% deles e ocupavam 55,82% da área do municí-
ve um grande decréscimo do número de estabelecimen- pio, em 1996, elas haviam sofrido uma queda vertiginosa
tos com lavouras permanentes e temporárias, enquanto de 54,75% no número de estabelecimentos e de 42,95%
estas últimas tiveram um aumento em área - o que pode na área ocupada, estando presente em apenas 28,93% dos
estar relacionado com o plantio da monocultura do eu- estabelecimentos e ocupando 12,87% da área do muni-
calipto, de grande extensão, mas concentrado em poucas cípio. Quanto às “matas plantadas”, sofreram redução no
propriedades. Os estabelecimentos com matas naturais número de estabelecimentos e aumento na área.
tiveram uma grande diminuição em seu número e área. Vejamos agora os dados referentes ao município de
Enquanto em 1960, as matas naturais estavam presentes São Mateus:

Tabela 4: Uso da terra (estabelecimentos) – São Mateus – 1960 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1960, 1970, 1975,1980, 1985 e 1996

Gráfico 3: Uso da terra (estabelecimentos) – São Mateus – 1960 a 1996

A partir desta análise, podemos observar que as la- do município. Quase metade dos estabelecimentos rurais
vouras permanentes tiveram um aumento no número de de São Mateus perdeu suas áreas de matas naturais, e as
estabelecimentos e na área ocupada, enquanto as lavou- que ainda existem ocupam uma pequena área, muitas
ras temporárias tiveram queda no número de estabeleci- vezes restrita às obrigatórias reservas legais. Quanto às
mentos e em sua área. Quanto às áreas de matas naturais, “matas plantadas”, novamente sofreram redução no nú-
que ocupavam 81,08% dos estabelecimentos e 48,78% de mero de estabelecimentos e aumento na área, o que in-
área, tiveram uma grande redução, estando presentes em dica o crescimento dos plantios industriais de eucalipto
35,81% dos estabelecimentos, onde ocupam 11,15% da área – equivocadamente chamados de “matas plantadas”. 41
A diversidade de milhares de hectares de floresta foi destruída para dar lugar ao deserto verde dos eucaliptos

Tabela 5: Uso da terra (área) – São Mateus – 1950 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Gráfico 4: Uso da terra (área) – São Mateus – 1950 a 1996

42
Estes dados revelam que o crescimento da área ocupa- Esse momento conjugava o interesse privado das em-
da pela monocultura do eucalipto se dá sobre as terras presas, o apoio do Estado e as proposições de órgãos in-
outrora ocupadas, principalmente, pelas matas e lavou- ternacionais como a FAO (agência da Organização das
ras, que correspondiam aos espaços de uso das comuni- Nações Unidas para a alimentação e agricultura), que
dades locais. A perda das terras de cultivo e da floresta preocupados com a geração de excedentes desses recur-
significou a perda de alimento, a perda da água, a perda sos estratégicos para o uso industrial, a partir da década
de medicamentos, a perda da terra de uso comum para o de 1960, passaram a subsidiar programas de expansão da
uso do monopólio, a perda, enfim, das condições de sus- produção florestal em países como o Brasil, onde havia
tentabilidade de um modo de vida. condições ecológicas favoráveis para o rápido crescimen-
to das florestas, disponibilidade de terras, abundância de
Lógicas diversas, territórios sobrepostos mão-de-obra barata e políticas econômicas de governo
Os grandes plantios com fins silviculturais no Bra- que privilegiavam o setor. O Estado brasileiro consolidava
sil tiveram forte impulso através do Programa Nacional seu apoio através da criação de órgãos oficiais de fomen-
de Papel e Celulose, integrante do II Plano Nacional de to e fiscalização dos plantios, de legislações específicas e
Desenvolvimento (PND), elaborado pelo governo Geisel normas fiscais de incentivo ao setor, “associando prote-
em 1974 e que tinha por metas a ampliação do consumo ção/conservação/expansão de maciços florestais de ma-
interno e da exportação da celulose e do papel. Segun- neira tão intensa e amparada oficialmente como qualquer
do Magaldi (1991), a Política Florestal que se implantava país de economia planificada” (Magaldi, 1991:95).
constituiu o “divisor de águas” na história do setor flores- O extenso leque de leis de incentivo aos “refloresta-
tal brasileiro, primando por um planejamento estratégico mentos” inicia-se com a Lei 5.106, de 02 de setembro de
da produção através de ações que: 1966, que é considerada o marco inicial dessa legislação
específica, ao determinar em seu Artigo 1°, que as “impor-
“(...) vão desde as concepções sobre as diretrizes tâncias empregadas em reflorestamento e florestamento
políticas gerais, legislações específicas e disposições poderão ser abatidas ou descontadas nas declarações de
administrativas, passando pelo planejamento do rendimentos de pessoas físicas e jurídicas residentes ou
cultivo e das etapas de produção, estudos e ações domiciliadas no Brasil [...]”.
ligados ao controle de custos, viabilização financeira Dalcomuni (1990) alerta, entretanto, que esse incen-
e operacional de fontes de geração de energia e de tivo já tinha sido iniciado com o Novo Código Florestal
infraestruturas ligadas ao transporte, abastecimento (Lei 4.771, de 15 de maio de 1965), que embora expres-
industrial, estocagem de matérias-primas e redes de sasse certa preocupação preservacionista com as flo-
comercialização, pesquisa básica e aplicada sobre restas nativas – através da definição de áreas de pre-
espécies mais adequadas à utilização econômica e servação permanente, por exemplo, apoiava a formação
sua padronização, assim como no desenvolvimento dos plantios homogêneos de árvores para o consumo
de processos, técnicas e materiais, tanto no âmbito das empresas que utilizavam essa matéria-prima e já
do manejo florestal como no plano de transformação atribuía a isenção de impostos para seus projetos, ren-
industrial”. (p.95) das e área territorial. No mesmo caminho, em 1967 é 43
criado o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Flo- Fundo de Investimentos Setoriais (Fiset) em 12 de de-
restal (IBDF), órgão governamental que tinha como zembro de 1974, através do Decreto-Lei nº 1.376. O Fi-
objetivo coordenar todas as atribuições referentes à set seria alimentado pelas importâncias descontadas do
exploração e comercialização da madeira, bem como ao imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas, a serem
plantio de árvores e à proteção das florestas. O IBDF aplicadas em empreendimentos florestais. Essas impor-
nasce com a função de administrar os incentivos fiscais tâncias passaram a ser depositadas em conta específica
ao reflorestamento e acompanhar os projetos florestais. do Banco do Brasil e só poderiam ser movimentadas após
Dessa forma, além dos instrumentos jurídicos criados, aprovação dos projetos pelo IBDF.
criava-se também uma estrutura administrativa que Toda essa política de incentivos fiscais ao refloresta-
impulsionava os projetos de reflorestamento. mento transparece no crescimento vertiginoso da área dos
A política de incentivos é ampliada com a criação do plantios industriais de eucalipto (Dalcomuni, 1990:108).

Tabela 6: Plantios industriais de árvores executados pela indústria brasileira de celulose e papel,
e ainda existentes no final da década de 1980 (área - ha)

Segundo Goldenstein (1975), nessa época, as principais - Flonibra Empreendimentos Florestais S/A, formada
empresas do setor no País eram: em 1974 mediante associação da CVRD com a Japan Brazil
- Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) - e suas sub- Paper and Pulp Resources Development Co. (JBP), com ati-
sidiárias, a Florestas Rio Doce S/A e a Docemade, que vidades localizadas no Espírito Santo e sul da Bahia e metas
tinham a atribuição de captar incentivos. A CVRD, uma das de produção de três milhões de toneladas de cavacos e 800
maiores reflorestadoras do País, tinha como projetos a ex- mil toneladas de celulose anuais;
portação de cavacos de madeira para indústrias de celulo- - Cenibra, resultante também da mesma associação
se no exterior e a produção de celulose destinada à expor- acima, mas com atividades em Minas Gerais, cuja fábrica
tação. Em 1974, a CVRD tinha 56 mil hectares no Espírito possuía, em 1975, capacidade para produzir 759 tonela-
Santo e Minas Gerais, 15 mil hectares na zona do Rio Doce das de celulose diárias;
44 e 300 mil hectares no médio vale do Rio Jequitinhonha; - Jari Florestal e Agropecuária, com 1,5 milhão de hec-
tares contíguos ao Rio Jari, nos estados do Amapá e Pará, ameaças que intimidavam os moradores locais, estimu-
com a produção de gmelina arbórea e pinus em unidades lando um intenso processo migratório para as cidades
combinadas de serrarias, fábricas de compensados, cha- locais e outros centros urbanos maiores, como a capital
pas, celulose e papel; do estado.
- Plantar – Planejamento, Técnica e Administração de Além da política de incentivos, o Estado legitima essa
Atividades Rurais Ltda., formada em 1967 no município de nova forma de apropriação e uso da terra através da
Itapeva (SP) e que, em 1974, dispunha de 85.773 hectares; transformação das terras de uso comum em terras pri-
- Aracruz Celulose S/A, que surge em 1972 como su- vadas ou “devolutas”, com posterior negociação com as
cessora da Aracruz Florestal S/A, numa junção de vários empresas de celulose. Na época da entrada da Aracruz
grupos acionistas: BNDE (25,90%), Cia. Souza Cruz In- Celulose no Sapê do Norte, o Estado passou a exigir dos
dústria e Comércio (25,29%), Fibase (14,72%), Grupo Bil- moradores o requerimento de posse das terras. Para a
lerud (6,07%), Grupo Lorentzen (5,08%), Vera Cruz Agro- demarcação da terra, era necessário possuir recursos
florestal S/A (3,37%), Grupo Moreira Salles (2,63%), e os para o agrimensor e cartório; portanto, poucos tiveram
restantes 391 acionistas, como o Grupo Oliver Araújo, a condições de efetivá-la. Através da demarcação, o re-
Companhia Brasileira de Projetos e Obras (CBPO), Para- querimento representava a garantia de propriedade
napanema S/A, Refinaria União e outros. para as famílias, mas, por outro lado, implantava a lógica
Relatos orais afirmam que a chegada do eucalipto no e a realidade da propriedade particular sobre o antigo
extremo norte do Espírito Santo é datada das décadas de território de uso comum.
1950 e 1960, com os objetivos de exportação de cavacos e Os objetivos de assegurar a implantação da nova lógi-
produção de carvão para siderurgia, através das empresas ca de propriedade vinculam-se diretamente ao projeto
Vale do Rio Doce e Acesita Energética. Em sua ocupação, estatal de desenvolvimento da exportação da celulose,
estas empresas foram seguidas por outras de menor por- uma vez que as áreas não solicitadas pelos moradores
te, como a Ouro Verde, Tecniflora, Reflorestadora Cricaré locais seriam passíveis de uso para esse fim. Não sendo
e Brasil Leste Agroflorestal, cujas propriedades de terra e consideradas juridicamente como de uso comum, mas
capital foram transferidas à Aracruz Celulose S/A. como “devolutas”, essas terras passavam a adquirir o
No mesmo ano da criação do IBDF, a Aracruz Florestal potencial de mercadoria. As estratégias utilizadas pela
inicia sua produção no município de Aracruz, visando a ex- empresa iam da demarcação forjada à falsa informação,
portação de cavacos para países produtores de celulose. Em das ameaças à sedução de compra. Como “mensageiros”
1972, é iniciada a construção da primeira fábrica da Ara- da transação comercial, a Aracruz Celulose contratava
cruz, que passa a expandir seus plantios aos municípios de pessoas nascidas nas comunidades – como Pelé (nome
São Mateus e Conceição da Barra, visando a produção de verdadeiro, Benedito Braulino), que convenceu várias
celulose para exportação. famílias negras rurais a vender suas terras à empresa
A escolha dessas duas localidades foi atribuída a al- – , e outros figurantes trajados de autoridade militar e
guns fatores favoráveis, como a topografia dos Tabuleiros exercendo o poder da ameaça e coerção, como o tenente
Terciários, favorável à mecanização, a dinâmica climática Merçon. Desta forma, a perda dessas terras, através da
e a proximidade do Porto de Vitória. No entanto, ambas venda forçada, grilagem ou abandono, possibilitou a es-
as localidades constituíam territórios étnicos ocupados truturação do novo território do capital. Como testemu-
de forma ancestral e não se legitimavam pela lógica da nha Domingos Camillo:
propriedade privada da terra-mercadoria, mas sim pela
apropriação comum da terra como sustentação da vida. “Dominguinho – Não tinha eucalipto, não. E aí, o que que
O município de Aracruz era parte do território Tupini- acontece? Veio um grimensor aí, um tal de Valzinho, e
quim, que se estendia do sul da Bahia ao Paraná. A partir passou a perna em todo mundo aí, sabe.
da década de 1960 passa também a ser território Guara- – Veio de onde?
ni, povo indígena que chega do sul do País em busca da Dominguinho – Veio da cidade de São Mateus. Ele que
“Terra Prometida” e é acolhido pelos Tupiniquim. Quan- mediu as terra, pra fazer os documento das terra pra
to a São Mateus e Conceição da Barra, constituíam terri- Aracruz, sabe. Então, esse pessoal do Angelin aí, tudo eles,
tórios de antigos agrupamentos negros rurais, oriundos a terra deles ia até a estrada, da linha que era igual ao do
dos “tempos da escravidão” nas fazendas de exploração meu avô, né, e hoje eles só ficaram com um pedacinho,
de madeira e produção de farinha de mandioca. Assim, né. Esse cara, ele entrou lá ao tempo que muito deles num
em ambos os territórios, a ausência de documentação de tinha documento, tinha um Incra, uma coisa assim que eles
propriedade da terra facilitava a especulação imobiliária pagavam, e esse cara, era Valzinho, veio como agrimensor e
e a grilagem, consolidando o processo de territorializa- foi medindo as terra, foi medindo as terra e cortou as terra do
ção do capital através da expropriação das comunidades, pessoal tudo no meio aí.
que se consolidou por meio de mecanismos de coerção e – O que ele falava, esse Valzinho ? Ele chegava medindo as 45
terras pra que? A territorialização das atividades produtivas da Aracruz
Dominguinho – Pra Aracruz. Celulose se faz através da imposição de uma nova lógica de
– Eles falavam que a terra já era da Aracruz? apropriação do espaço, ditada pela propriedade privada,
Dominguinho – Falavam que já era da Aracruz. E eles pelo uso restrito, pela acumulação e pelo lucro. Junto dela,
pegavam. Esse cara, esse cara ele vendeu as terra toda, né. o comportamento e manejo extremamente impactantes da
Ele vendeu pra Aracruz as terra toda. O pessoal ficou com monocultura em larga escala produz a danificação do meio
esse pedacinho de terra foi porque a Aracruz é que deixou. natural e passa a desestruturar o modo de vida das comu-
Mas eles tinham a área toda comprada. nidades locais, outrora estruturado numa forma de manejo
– Então ele requereu do Estado... que mantinha os ciclos reprodutivos da vida.
Dominguinho – Ele requereu e vendeu, e assim tem Assim, para os que ainda ficaram, a perda de suas terras
documento falso pra caramba nesse negócio. É porque essa e floresta trouxe inúmeras dificuldades de ali permanecer,
área do meu avô, entende, é uma área de herdeiro, da minha como a situação de “imprensamento” imposta pelos exten-
avó, da minha bisavó, aquela coisa toda, né. Então, é... ele sos talhões de eucalipto na terra concentrada nas mãos da
com documento, né”. empresa Aracruz Celulose. Esse processo de concentração
(Domingos Camillo, 41 anos, em outubro de 1999) fundiária pode ser visualizado pelos dados abaixo:

Tabela 7: Grupos de Área Total (estabelecimentos) Conceição da Barra – 1940 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Gráfico 5: Grupos de Área Total (estabelecimentos) Conceição da Barra – 1940 a 1996

46
Quanto ao número de estabelecimentos, podemos ob- Em termos percentuais, em Conceição da Barra temos
servar que houve uma diminuição geral do número ab- 91,11% de pequenos estabelecimentos (até 100 hecta-
soluto de estabelecimentos, com destaque aos estabeleci- res) ocupando 10,17% da área do município, enquanto
mentos entre 10 e 100 hectares, que se encontram equiva- os grandes estabelecimentos (acima de 1.000 hectares)
lentes em número aos estabelecimentos entre 100 e 1.000 somam 1,31% e ocupam 75,48% da área do município.
hectares. Quanto à área ocupada, verifica-se um grande Estes dados revelam uma altíssima concentração fun-
decréscimo relacionado aos estabelecimentos com até diária ditada, principalmente, pela monocultura do eu-
1.000 hectares, acompanhado por um vertiginoso cresci- calipto – que corresponde às maiores propriedades de
mento da área dos estabelecimentos com 10.000 hectares terra, seguida pela monocultura da cana-de-açúcar. Os
e mais. Ou seja, o número e a área dos estabelecimentos pequenos estabelecimentos encontram-se “imprensa-
com até 1.000 hectares sofreram diminuição, enquanto dos” em meio a essas monoculturas e correspondem aos
cresceu a área dos estabelecimentos com áreas maiores sítios familiares e aos cinco assentamentos rurais exis-
de 10.000 hectares. tentes no município.

Tabela 8: Grupos de Área Total (área) – Conceição da Barra – 1940 a 1996

Gráfico 6: Grupos de Área Total (área) - Conceição da Barra – 1940 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Gráfico 6: Grupos de Área Total (área) - Conceição da Barra – 1940 a 1996

47
Tabela 9: Grupos de Área Total (estabelecimentos) – São Mateus – 1940 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Gráfico 7: Grupos de Área Total (estabelecimentos) São Mateus – 1940 a 1996

Os dados referentes a São Mateus revelam a diminuição os médios estabelecimentos (de 100 a menos de 1.000 hecta-
do número de estabelecimentos entre 10 e 100 hectares, res) somam 10,31% e ocupam 29,26% da área do município.
enquanto os menores de 10 hectares e os situados entre Embora menos acentuada do que no município de Concei-
100 e 1.000 hectares praticamente se mantêm. Em ter- ção da Barra, a concentração fundiária permanece no mu-
mos de área, há diminuição da ocupada pelos estabeleci- nicípio de São Mateus, ditada também pelas monoculturas
mentos entre 10 e 100 hectares, acompanhada pelo cres- do eucalipto, da cana-de-açúcar e das pastagens. O número
cimento dos estabelecimentos acima de 10.000 hectares, de pequenos estabelecimentos de São Mateus aproxima-se
seguidos pelos situados entre 1.000 e 10.000 hectares. do número existente em Conceição da Barra, contudo a área
Em São Mateus, temos 88,90% de pequenos estabelecimen- por eles ocupada em São Mateus equivale ao dobro da área
tos (até 100 hectares) ocupando 21,01% da área do município, que ocupam em Conceição da Barra. Estes dados derivam da
enquanto os grandes estabelecimentos (acima de 1.000 hec- existência de um maior número de comunidades campone-
tares) somam 0,79% e ocupam 49,7% da área do município, e sas e de assentamentos rurais no município de São Mateus.

Tabela 10: Grupos de Área Total (área) – São Mateus – 1940 a 1996

48 Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996
A concentração fundiária produzida pela cadeia produtiva Degradação socioambiental do Sapê do Norte
da celulose, incentivada e legitimada pelo Estado a partir da A agroindústria de celulose no Espírito Santo e no
década de 1960, concretizou-se enquanto uma outra forma sul da Bahia concretizou-se sobre o território original-
de relação com o meio e a natureza. Conduzida pela lógica da mente ocupado pela Mata Atlântica, floresta tropical
alta produtividade, que impõe condições como a velocidade que outrora cobria toda a faixa litorânea brasileira, com
e a homogeneidade, essa nova relação produtiva vai ocasio- cerca de quatro milhões de hectares, e hoje constitui-se
nar uma gama de alterações negativas no substrato natural, em remanescente com menos de 8% de sua área origi-
que irá interferir diretamente nas formas de existência e de nal. A cobertura florestal existente no estado do Espíri-
organização da vida das comunidades do Sapê do Norte. to Santo também sofreu uma drástica redução.

Gráfico 9: Evolução do desmatamento no bioma Mata Atlântica

Fonte: Ipema. Vitória, março de 2004

No norte do estado, a partir da década de 1960, a des- quebrava tudo ! E a gente, quando eles chegava assim, era
truição da floresta era realizada pelo “correntão”, en- paca, era tatu, era veado, era tudo, os bicho ficava entocado
grenagem que opera com dois tratores de esteira e uma tudo, fazia dó, preguiça ! Um dia, tava num lugar, cheio de
grossa corrente, que agressivamente derruba as árvo- ave chorando ! Malvadeza ! Eu vi isso demais aí, ó ! Mas o
res e destrói a fauna, conforme testemunho de mora- que que vai fazer, né?
dores locais: – E essas madeiras da mata, ela fazia o que com elas ?
Caboquinho – Queimava.”
“ – Como é que ela começava a trabalhar (Ângelo Camillo, 61 anos, em 05 de maio de 1999)
no terreno ?
Caboquinho – Ah, o primero que veio foi o A destruição da floresta tropical de Tabuleiros para dar
desmatamento, né. lugar aos plantios homogêneos de árvores e em larga esca-
– Mas os terrenos que a Aracruz comprou, tinham mata la degradou a elevada diversidade biológica local e o lugar
também, tinha terreno de mata nativa, de floresta ? da vida dessas comunidades. Além da perda de alimentos e
Caboquinho – Mata nativa ! Tinha ! Mata nativa ! utensílios, a destruição dessas espécies significou a perda
Quebrava, quebrava tudo ! Até hoje eu sinto uma falta, uma de um vastíssimo banco genético cujo potencial permane-
revolta tão grande... Você passava daqui pra Conceição da ce pouco conhecido.
Barra, aqui já você passava por cada mata na beira dessa Essa diversidade foi testemunhada pelo pesquisador
estrada ! ... Mata purinha ! Aí, ela pegava com o correntão e Augusto Ruschi (1976), que listou 240 espécies de árvores 49
de grande porte, 478 espécies de aves, 70 de mamíferos, Atlântica (Ipema, 2004) atualizam essas pesquisas acer-
41 de répteis, 31 de anfíbios e 37 espécies mais significa- ca da diversidade biológica, ressaltando a importância do
tivas de insetos. Dados do Instituto de Pesquisas da Mata endemismo no bioma Mata Atlântica como um todo.

Tabela 11: Diversidade de espécies e endemismos presentes no bioma Mata Atlântica

Fonte: Ipema. Vitória, março de 2004

A diversidade faunística de determinado ambiente pode comparar a produção de biomassa animal em ambientes
ser mensurada conforme a biomassa animal produzida. diferenciados, o pesquisador concluiu que a biomassa ani-
Sua diminuição, após a implantação da monocultura do mal produzida pelo ambiente da monocultura do eucalipto
eucalipto em larga escala, pode ser ilustrada pelos dados chega a ser bem inferior à biomassa produzida pelo am-
oriundos de pesquisa feita por Augusto Ruschi (1976). Ao biente dos desertos:

Tabela 12: Biomassa animal produzida em diferenciados ambientes (kg/ km²/ ano)

Fonte: Ruschi, Augusto. Boletim do Museu de Biologia “Prof. Mello Leitão”. Santa Tereza, 1950 e 1976

A redução da biodiversidade como um todo pode também “retardadores químicos” de suas folhas, que são tóxi-
ser verificada pela diminuição do manto orgânico outrora cos para os organismos e microorganismos – como a
formado com os detritos da floresta. O manto orgânico é res- minhoca e outros decompositores – responsáveis pela
ponsável pelo retorno de nutrientes ao solo e pelo armaze- porosidade e permeabilidade do solo, pela decomposi-
namento de umidade superficial. Ao comparar a floresta na- ção da matéria orgânica e o consequente retorno dos
tiva com a monocultura do eucalipto, Ruschi afirma que na nutrientes minerais, como discutem Vandana Shiva e
floresta nativa, o manto orgânico varia de 60.000 a 90.000 kg/ J.Bandyopadhyay (1991):
ha/ano, enquanto que no eucaliptal chega somente a 15.000
kg/ha/ano, o que reflete a diminuição da diversidade bioló- “Os escassos resíduos folhosos do eucalipto não
gica e o empobrecimento dos solos. são efetivamente transformados em matéria orgânica
Ainda em relação à fertilidade do solo, a monocultura decomposta porque o eucalipto é tóxico para os organismos
do eucalipto solapa a produtividade biológica através do solo que constituem as cadeias alimentares de
de dois processos, mais acentuados em regiões áridas. decomposição. (...) Através dessa poluição invisível do solo,
Um deles é a grande necessidade de nutrientes que o os plantios de eucalipto destroem os recursos vivos que são
eucalipto requer para seu crescimento rápido; o outro elementos fundamentais da cadeia alimentar que mantém o
50 refere-se às propriedades alelopáticas presentes em ciclo de nutrientes.”(p.91)
A perda de fertilidade do solo é observada empirica- aquele buero, né, fazia aquele buraquinho, jogava terra pra
mente pela comunidade local: cima do córrego, tampou.
– De quando é esse aterro aí ?
“Caboquinho – ... Eu fico olhando, depois que plantar o Umberto – Ah, isso aí, isso aí tem uns... 20 e poucos anos,
eucalipto, vai passar um tempo que o eucalipto não vai dar já, que acabaram com eles, essas... as pontezinha.
mais, e o que vão fazer com essa terra nativa, hein ? Vai – Mas foi a Aracruz que fez o aterro ?
chegar um ponto que a terra não vai resistir mais, né ? Umberto – Prefeitura, né, e a Aracruz veio e... a Aracruz tirou
– Por que você acha ? as ponte, veio e jogou terra.”
Caboquinho – Ah, ela cansa, né. Será que vai ficar (Umberto Batista do Nascimento, 57 anos, em 27 de setembro de 1999)
abandonada ?... Ah, mas deve de criar uma outra coisa,
porque é muita terra, né ? Muita terra ela tem... O que eu Os impactos oriundos desse manejo somam-se ao com-
sei é que vai chegar num ponto que o eucalipto não vai dar portamento biológico das espécies plantadas na escala da
mais, não! Já tem partes por aí mesmo que ele já tá fraco. monocultura nos curtos ciclos de corte exigidos pelo agro-
É, já tem. negócio, evidências estampadas no meio físico e reforça-
– Como é que fica fraco ? das pelos depoimentos das comunidades locais. A vivência
Caboquinho – Ele já não engrossa mais. de “Seu” Osmar testemunha a morte de quase todos os ca-
Só vara. Então, já tá começando, é sinal de que já tá torze rios e córregos que atravessavam a estrada entre a
começando, mesmo.” Vila de Itaúnas e a sede de Conceição da Barra. Em 1999,
(Ângelo Camillo, 61 anos, 05 de maio de 1999) apenas o Córrego São Domingos, na localidade da comuni-
dade de Linharinho, continha água.
A vida biológica do solo também é destruída pela gran-
de quantidade de agrotóxicos e herbicidas utilizados no “– E quando o eucalipto chegou, como é que foi que ele
manejo florestal do eucalipto, principalmente no período entrou na terra?
de plantios e rebrota, quando a planta ainda é jovem. O Seu Osmar - ... Depois que o eucalipi chegou, acabou com
uso desenfreado de insumos químicos pelas monocultu- esses mato, acabou até com as comida dos boi... eles
ras contamina o solo, destruindo microorganismos, inse- araram tudo para plantar o eucalipi. E o eucalipi, o eucalipi
tos e raízes responsáveis por sua aeração, porosidade e derrotou com nóis do lugar porque... comeu as água toda.
decomposição dos detritos orgânicos. Dessa forma, mais Você não vinha aqui no tempo que não existia o eucalipi,
fertilidade natural é perdida, uma vez que a contaminação senão você ia ver, você comia peixe aí à vontade. Hoje o
do solo inviabiliza a formação de húmus. pobre não acha nem uma piaba pra comer! Que acabou as
Um outro impacto no solo é de ordem estrutural, au- água, só tem o canal do rio... Não pega nada ! (...)
mentando a sua suscetibilidade à erosão: seus troncos – E os córregos aqui ?
lisos, combinados a uma cobertura restrita – menos Seu Osmar – Os córrego, tudo tinha água. Depois com os
estratos que a floresta tropical –, contribuem para que eucalipi, os eucalipi formaram mesmo, do jeito que você tá
a precipitação atinja o solo mais intensamente e mais vendo, tem eucalipi de São Mateus aqui, é tudo eucalipi, e aí
rapidamente. Aumentando a erosão do solo, produz-se foi diminuindo, foi secando os córrego, foi secando as lagoa...
o assoreamento dos cursos d’água. Esse processo ero- – Tinha lagoa ali, seu Osmar ?
sivo foi intensificado ainda mais pelas obras estruturais Seu Osmar – Tinha... tinha lagoa nesses lugar aí, tem lagoa.
construídas para dar sustentação à implantação da mo- Aqui no Angelin tinha... quantas lagoa ? Uma... duas lagoa
nocultura e seu escoamento: aterros, estradas e a substi- ! Quando do tempo de enchente, era bocado botar canoa
tuição das pontes de madeira por manilhamentos. pra passar pr’aqui, que ninguém podia passar.(...) Então,
aí depois, depois disso as água, as água quando chove
“Umberto - A terra que eles araram, aí a chuva batia e aqui, num dá mais pra encher nem lagoa nem córrego... os
acabou com o leito dos córrego. córrego virou terra. Nóis saía daqui pra Barra, às vezes saía
– Por que ? tarde de casa e ia tomando banho nesses córrego. Hoje, só
Umberto – Porque jogou o barro tudo dentro se vê água na igrejinha. Se tiver com sede, só se vê água na
do córrego. igrejinha... Num tem córrego nenhum. Era uma beleza, aqui
– Eles tiraram a mata que tinha em volta era uma beleza, agora... Agora, agora eu num sei o que vai
dos rios ? acontecer... com os que tão nascendo, tão crescendo...”
Umberto – Tiraram. Pois é, aí, o barro descia, né, e vinha (Osmar Souto, 76 anos, em 03 de maio de 1999)
indo, foi indo, foi secando, foram fazendo aterro no meio
dessa estrada aí, como era tudo ponte antigamente, nessa A vivência da seca produzida nos ecossistemas onde o
estrada pra chegar na Barra, esses correguinho era tudo eucalipto foi plantado em larga escala e em curtos perío-
ponte. Então, o córrego passava por baixo, né. Aí jogaram dos de corte é reforçada por algumas pesquisas. Shiva et 51
all (1991) afirmam que o eucalipto possui sistemas radi- a umidade local de forma intensa, principalmente na sua
culares bem abrangentes que são responsáveis por sua fase de crescimento.
“estratégia esclerofítica”: O papel que as lagoas desempenham no equilíbrio hí-
drico dessa região merece ser destacado. Ora apresentando
“Esta estratégia esclerotífica do eucalipto, de dar seu espelho d’água, ora caracteristicamente apresentadas
continuidade a altas taxas de transpiração mesmo durante como muçunungas, as “lagoas” são formas hídricas comu-
períodos de tensão temporária da umidade, é um perigo mente encontradas nestas regiões planas de sedimentação
ecológico, pois permite ao eucalipto crescer sob condições terciária e quaternária e correspondem a áreas de nascen-
nas quais outra vegetação, com necessidades hídricas tes, afloramento do lençol freático e armazenamento de
similares, pararia de demandar os escassos recursos umidade. Funcionando como esponjas que retêm umidade,
de água.” (p.74) são “zonas de recarga hídrica”, quando alimentam os cur-
sos d’água, ou “zonas de descarga hídrica”, quando rece-
Esta argumentação é reforçada por Augusto Ruschi, ci- bem o excesso de umidade de uma área de maior altitude
tado por Medeiros (1995), segundo a qual o “consumo mo- ao redor. Ao ser plantado ao redor destes corpos d’água, o
numental de água” realizado pela monocultura do euca- eucalipto não desempenha o mesmo papel de proteção das
lipto é responsável pela deficiência hídrica verificada nas matas ciliares e da muçununga e passa a consumir a umi-
localidades do Espírito Santo, onde se estabelece: dade local de forma intensa, principalmente na sua fase de
crescimento. Esse processo é agravado pelos curtos ciclos
“Como já explanei em outras palestras, a fisiologia de de corte, uma vez que essa periodicidade não permite que
algumas espécies, como o Eucalyptus saligna, o mais a árvore adulta diminua seu consumo hídrico nem devolva
plantado no Espírito Santo, exige um consumo monumental umidade ao ambiente.
de água. [...] a partir do terceiro ano de vida, uma planta Da mesma maneira que comprometem a quantidade de
desta espécie consome por ano 19,6 milhões de litros água no Sapê do Norte, os plantios industriais de eucalipto
de água, e um hectare com 2.200 árvores consome para a produção de celulose vêm danificando a qualidade
49,6 bilhões de litros de água, dando esse total uma dessa água. O uso indiscriminado de insumos agroquímicos
equivalência pluviométrica de 4.000 mm de chuva por ano. escoam para os leitos dos rios, córregos e lagoas, contami-
Se considerarmos que na região dos eucaliptais da Aracruz nando suas águas, matando animais e envenenando traba-
Celulose e da CVRD ou Flonibra a precipitação anual chega lhadores. Uma grande maioria dos moradores abandonou o
em média a 1.400 mm/ano de chuva, a diferença necessária uso da água dos córregos e os poços e cacimbas despontam
de mais de 2.000 mm é retirada do solo e subsolo, tanto como principais fontes de água consumida na região.
pela função osmótica como pela função de sucção das
raízes.” (p.60) “– Mas , Luzinete, fala pra mim... eles borrifavam veneno
aqui, no eucalipto? Botavam veneno aqui e ia pro rio ?
A forma de se medir esse elevado consumo de água do Luzinete – É. Eles bate muito... A gente tem medo porque
eucalipto está na mensuração dos índices de evapotrans- eles joga muito veneno nesse ocalipto, né. Aí a gente tem
piração, processo realizado pelas folhas e suas superfícies medo porque muitas vezes, num chove e aquele veneno
internas, após a incidência direta da luz do sol, refletida e fica acumulado na terra. Quando a chuva bate, aquela água
re-irradiada pelo solo e toda a vegetação circundante. A eva- corre tudo pra esses lugar... que era os córrego que secô.
potranspiração indica que a árvore está realizando seu cres- Aí enche, mas a água fica com uma cor feia, ocê num pode
cimento através da fotossíntese, com produção de biomas- tomar banho, ocê num pode lavar uma roupa, ocê num pode
sa e oxigênio. Quando há decréscimo do conteúdo hídrico, usar aquela água.
produz-se o murchamento e “cessação da ampliação celular, – Pra nada...
fechamento dos estômatos, redução da fotossíntese e inter- Luzinete – Pra nada, aquela água num serve pra nada. Tem
ferência nos muitos processos metabólicos básicos”. (Shiva a água lá no rio, mas pra gente é mesmo que não ter.”
et all, 1991:73) (Luzinete Serafim Brandino, aproximadamente com 30 anos,
Nesse sentido, a observação do crescimento rápido e 03 de maio de 2000)
ininterrupto da monocultura do eucalipto, mesmo duran-
te períodos com carência de chuvas, indica que o consumo Outros depoimentos denunciam danos à saúde, como
hídrico continua a ser realizado pela planta jovem, seja no o de Jorge Francelino, 61 anos, que, após um ano e dois
nível mais superficial do solo ou em profundidades maio- meses de trabalho na empresa Plantar – que presta ser-
res, o que sustenta a argumentação sobre as “estratégias viços de manejo dos plantios à Aracruz Celulose S.A. –, foi
esclerofíticas”. Dessa maneira, ao ser plantado ao redor demitido por apresentar queixas relacionadas ao seu es-
de lagoas e rios, o eucalipto não desempenha o mesmo tado de saúde, totalmente comprometido pelo manuseio
52 papel de proteção das matas ciliares e passa a consumir intenso de agrotóxicos. Seu longo depoimento afirma que
esse manuseio acontece durante nove horas diárias e que
mesmo os funcionários recém-admitidos se queixam de referências
dores de cabeça e tonturas, chegando mesmo a desmaiar 1- Artigo elaborado a partir da Dissertação de Mestrado em Geografia Humana
intitulada Da fartura à escassez: a agroindústria de celulose e o fim de territórios
no campo. comunais no extremo Norte do Espírito Santo, orientada pelo Prof. Dr. Ariovaldo
Estas evidências empíricas, presentes e de memória, Umbelino de Oliveira e defendida em maio de 2002 na Universidade de São Paulo.
questionam o discurso e a propaganda das empresas
2- Informações oriundas de levantamentos de campo, com destaque à participação na
produtoras de celulose. Cada testemunho de um mora- pesquisa Territórios Negros do Sapê do Norte. Koinonia e FASE, 2003.
dor, cada relato de suas vivências doces e amargas, jogam
por terra as certificações de qualidade ambiental dessas
empresas e questionam o paradigma hegemônico do de-
senvolvimentismo, tão ufanado pelos índices do Produto
Interno Bruto (PIB) nacional. O extermínio da vida se dá
em todos os níveis, incluindo o humano, e em nome do de- Referências Bibliográficas
Almeida, Alfredo Wagner Berno de. 1987/88. Terras de preto, terras de santo, terras de
senvolvimentismo econômico e concentrador, estabelece- índio – posse comunal e conflito. In: Revista Humanidades n.º15, ano IV. Brasília: UnB, pp.
se a mono-cultura, a não-diversidade biológica, cultural, 42-48.
social e econômica.
Baile de Congo de São Benedito – Ticumbi de Conceição da Barra. Mestre Tertolino Balbino.
2005 e 2007.
Considerações finais
“Aruê, Ticumbi, aruê, Ticumbi, Baile de Congo de São Benedito – Ticumbi do Bongado. Mestre Ângelo Camilo. 2001.

O que fez este povo de errado ? Baile de Congo de São Benedito – Ticumbi de Itaúnas. Mestre João de Deus Falcão dos
O que fez este povo de errado assim?” Santos. 2001.
(Baile de Congo de São Benedito de Itaúnas, 2001) Becker, Bertha K. 1973. O Norte do Espírito Santo– região periférica em transformação. In:
Revista Brasileira de Geografia nº 35 (4). Rio de Janeiro.
Os versos indagam ao santo onde está o erro desse Candido, Antônio. 1964 [1988]. Os parceiros do Rio Bonito (8.ª ed.). São Paulo: Livraria
povo. Erro que, talvez, justificaria tantas perdas. O antigo Duas Cidades.
território da fartura hoje é caracterizado pela escassez:
Dalcomuni, Sônia Maria. 1990. A implantação da Aracruz Celulose no Espírito Santo –
perdeu-se a floresta, perdeu-se a água, perdeu-se o ali- principais interesses em jogo. Dissertação de Mestrado em Economia. Rio de Janeiro: UFRRJ.
mento farto e a vida da roça; perdeu-se os medicamentos
e as práticas comuns. Goldenstein, Léa. 1975. Aspectos da reorganização do espaço brasileiro face a novas
relações de intercâmbio – uma análise geográfica do reflorestamento e da utilização
Fortemente amparado pelo Estado, consolidou-se um da madeira por indústrias de celulose. Tese de Livre-Docência em Geografia. São
macro projeto regido pela lógica capitalista sobre um ter- Paulo: USP.
ritório outrora gerido pela ética das comunidades tradi- IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985, 1996. Municípios
cionais, camponesas ou rústicas, que utilizavam a terra e de Conceição da Barra e São Mateus.
outros recursos naturais como o sustentáculo de sua vida
Ipema. 2004. Conservação da Mata Atlântica no Espírito Santo. Vitória.
cotidiana. As terras de uso comum foram forçadas a se
transformar em propriedades privadas. O ambiente físico, Lyra, Maria Bernadete Cunha de. 1981. O jogo cultural do Ticumbi. Dissertação de
diretamente vinculado à manutenção do modo de vida lo- Mestrado em Comunicação. Rio de Janeiro: UFRJ.
cal, foi exaurido e esgotado pela nova lógica de produção. Magaldi, Sérgio. 1991. Ação do Estado e do grande capital na reestruturação da atividade
Este trabalho objetivou abrir espaço para a voz e saberes econômica: o cultivo florestal e a cadeia madeira-celulose/ papel. Dissertação de Mestrado
em Geografia. São Paulo: USP.
dos impactados, que conjuntamente a outros saberes oriun-
dos de pesquisas, vêm dar visibilidade à contestação do dis- Marx, Karl. 1970. La ideologia alemana (5.ª ed.). Montevidéu/Barcelona: Ed. Pueblos
curso e imagem veiculados massivamente pelas empresas Unidos/ Ed. Grijalbo.
de celulose. Os relatos aqui expostos retratam um momento Medeiros, Rogério. 1995. Ruschi – o agitador ecológico. Rio de Janeiro: Record.
de um processo ainda em curso. “Ciclo da peroba inicia o desbravamento do Norte”. In: Jornal A Gazeta. Vitória, 11.07.99.
É de fundamental importância que essas questões Projeto Egbé – Pesquisa Territórios Negros do Sapê do Norte-ES. 2002 e 2003.
conquistem seu espaço na academia, na imprensa e no Coordenação: Koinonia e Fase.
senso comum, colocando em pauta a discussão das ma-
Ruschi, Augusto. 1950. Boletim do Museu de Biologia “Prof. Mello Leitão” 1. Santa Tereza.
zelas geradas pela lógica autoritária da acumulação de
uns poucos e a exclusão e expropriação da maioria. E Ruschi, Augusto. 1976. O eucalipto e a Ecologia. Boletim do Museu de Biologia “Prof. Mello
Leitão” 44, série Divulgação. Santa Tereza.
também alimentando a esperança acerca das possibili-
dades práticas de reversão desses impactos sofridos pe- Shiva, Vandana e Bandyopadhyay, J. 1991. Inventário ecológico sobre o cultivo do eucalipto.
las comunidades extrativistas, quilombolas, camponesas, Tradução Ana Lúcia da Costa Pereira. Belo Horizonte: Comissão Pastoral da Terra.
pelos povos indígenas e demais povos, e da reconstrução Woortmann, Klaas A.A.W. 1989. Com parente não se neguceia: o campesinato como ordem
de seus territórios de vida digna. moral. In: Anuário Antropológico 87. Brasília: UnB/ Tempo Brasileiro. 53
4
seus territórios tradicionais e por justiça socioambiental.
Tendo em vista que os problemas e os desafios são muitos
e comuns às mulheres do campo e da cidade, mulheres
de diferentes lugares denunciaram a degradação ambien-
tal e a miséria produzidas pelo projeto agroindustrial da
Aracruz Celulose e pelo avanço do agronegócio em terras
capixabas e brasileiras. Elas levantavam a bandeira da re-
forma agrária e da soberania alimentar.
No mesmo dia, São Mateus, cidade localizada no norte
do Espírito Santo, foi palco de um corajoso ato organizado
Agronegócio pela Via Campesina. Setecentas pessoas, a maioria mu-
lheres, marcharam pelas ruas da cidade até a BR 101 (ro-

e a vida das dovia que atravessa a cidade) com o objetivo de impedir o


tráfego de caminhões que transportavam eucalipto para
a fábrica da empresa localizada no município de Aracruz.
mulheres
1
O norte do estado concentra grande parte da monocul-
tura de eucalipto da Aracruz, localizada nos municípios
Gilsa Helena Barcellos e Simone Batista Ferreira de Conceição da Barra (cerca de 70% do município), São
Mateus (cerca de 50%) e Aracruz (cerca de 50%).
Na manhã do dia 11 de setembro de 2007, cerca de mil
pessoas, integrantes do Movimento de Mulheres Cam-
Antes do sol nascer no dia 8 de março de 2006, Dia In- ponesas (MMC) e da Via Campesina, em mais uma ação
ternacional da Mulher2, duas mil integrantes da Via Cam- contra o deserto verde, trancaram o portão do viveiro de
pesina3 ocuparam o viveiro de mudas da empresa Aracruz eucalipto da Votorantim Celulose e Papel, em Capão do
Celulose S.A (Arcel), no Rio Grande do Sul4. Em uma ação Leão, próximo à cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul.
relâmpago, com vendas de cor lilás sobre os rostos, elas Essa ação deu continuidade àquela ocorrida em 8 de mar-
destruíram milhares de mudas de eucalipto. O movimento ço de 2006: “O objetivo era denunciar o monocultivo de
teve como objetivo chamar a atenção da opinião pública eucalipto no estado, a consequente destruição ambiental,
brasileira para os impactos produzidos pela monocultura o desinteresse dos governos pela agricultura campone-
de eucalipto e pinus sobre o povo e os ecossistemas lo- sa e a produção de alimentos e chamar a atenção para a
cais. Tais atividades de monocultivo são conduzidas por necessidade da reforma agrária”6. Segundo as mulheres
empresas multinacionais do agronegócio. As mulheres que conduziram a ação, os impactos do monocultivo no
camponesas relacionaram o deserto verde, causado pelos Rio Grande do Sul já são visíveis: a grande seca no sul do
eucaliptos, à aridez e à morte e explicitaram que, se por estado, que possui a maior área de produção de eucalipto;
um lado, diversidade e fertilidade são fatores que possibi- as alterações bruscas de temperatura; o desaparecimento
litam a vida, a monocultura e a desertificação representam do bioma Pampa, levando à perda de uma biodiversidade
a morte. “No Dia Internacional da Mulher de 2006, o Brasil extraordinária; a diminuição da produção de alimentos;
assistiu — em parte, sem entender — a uma batalha his- o ressecamento de fontes hídricas; a poluição e a dimi-
tórica. A batalha entre a fertilidade e a aridez. [...] Entre a nuição do fluxo de água nos rios; e o enfraquecimento
dureza do lucro sem escrúpulos e a ternura das mães”5. do solo. Algumas cidades, para contornar a escassez, pas-
A estratégia político-discursiva das mulheres da Via saram a racionar o consumo de água. Nas regiões mais
Campesina buscou sensibilizar a opinião pública brasilei- atingidas pelo monocultivo, têm surgido vários casos de
ra para a gravidade da ampliação de plantios homogêneos alergia e doenças de pele, devido ao alto uso de agrotóxi-
em larga escala sobre terras brasileiras. A Aracruz Celulo- co pelas empresas.
se – que se instalou naquele estado sem respeitar princí- As ações das mulheres não pararam por aí. Dois anos
pios de justiça socioambiental – tem sido alvo há décadas depois, na manhã de 09 de março de 20097, 1.300 mulhe-
de denúncias dos movimentos que atuam no campo. res da Via Campesina do Espírito Santo, Minas Gerais,
Exatamente um ano depois, as ruas da cidade de Vitória, São Paulo e Rio de Janeiro ocuparam o Portocel, porto de
capital do Espírito Santo, foram ocupadas por 1.500 pesso- exportações da Arcel, localizado em Barra do Riacho, mu-
as, na sua grande maioria mulheres camponesas e urba- nicípio de Aracruz, no Espírito Santo.
nas, brancas e negras, indígenas e quilombolas. Novamen- De acordo com as participantes, a ação objetivou, mais
te no Dia Internacional da Mulher, as capixabas romperam uma vez, denunciar a concentração de terras da empresa
o silêncio, marchando e gritando, em coro, pelo fim da vio- usadas para plantio de eucalipto para exportação, prejudi-
54 lência, pelo direito dos povos indígenas e quilombolas ao cando a soberania alimentar. Também denunciaram o re-
passe de recursos públicos do Estado brasileiro, por meio para as famílias assentadas e para a população das
do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e So- cidades onde a empresa está instalada”.
cial (BNDES), para a Arcel. (Silvestre, 2009, p. 1)

“A empresa se apropria de recursos públicos, mas não Também foi incluída na lista de denúncias das mulheres
gera nem garante empregos, destrói o meio ambiente o uso abusivo de água pela empresa.
e não contribui para o desenvolvimento nacional...
Para salvar a Aracruz da falência, o governo repassou, “Para cada hectare de eucalipto plantado são consumidos
via BNDES – com recursos do Fundo de Amparo ao 49 bilhões de litros de água. A fábrica de Barra do Riacho, ao
Trabalhador (FAT) - R$ 2,4 bilhões para o grupo Votorantim lado do porto ocupado, consome 248 mil metros cúbicos de
comprar ações da Aracruz. Mesmo com os recursos de água por dia, equivalente ao consumo diário de 2,5 milhões
amparo ao trabalhador, a empresa não garante emprego de pessoas”.
e já demitiu mais de 1.500 trabalhadores terceirizados. (Silvestre, 2009, p. 1)
O caso é uma demonstração de que os interesses das
empresas privadas se sobrepõem aos interesses do povo Demonstrando o alto nível de organização dessas mu-
brasileiro. [...] é uma das principais representantes do lheres, ocorreram, ao mesmo tempo, diversos outros
agronegócio no País. Concentra cerca de 300 mil hectares eventos: ocupação e corte de eucalipto numa área de
de terras, sendo parte devolutas, ou seja, pertencentes ao propriedade do Grupo Votorantim, no Rio Grande do Sul;
Estado, com monocultura de eucalipto. Boa parte dessa ocupação e corte de cana numa área da Cosan [tercei-
área foi tomada de comunidades indígenas, quilombolas, ra maior produtora de açúcar no mundo e quinta maior
pescadoras e ribeirinhas. Nessa mesma quantidade de produtora global de etanol], em São Paulo; e ocupação
área poderiam ser assentadas cerca de 20 mil famílias, do prédio do Ministério da Agricultura, em Brasília, por
gerando empregos no campo e produção de alimentos cerca de 800 delas.

Inúmeras mobilizações reuniram camponeses, quilombolas, mulheres e indígenas na denúncia sobre os impactos das monoculturas de eucalipto
Tamra Gilbertson

55
um acentuado desequilíbrio ambiental e sérios problemas
sociais, gerando graves consequências para o planeta: “É
um modelo que se apropria da água, da terra, das fontes
de energia, dos minérios, das sementes e de toda biodi-
versidade. Exerce controle das sementes, utiliza transgê-
nicos e agrotóxicos, que provoca o aumento de doenças,
especialmente em mulheres e crianças” (Via Campesina;
Fetraf, 2009). Denunciam, ainda, que o plantio de árvores
homogêneas avança sobre a floresta Amazônica e sobre o
que resta da Mata Atlântica, do Cerrado e do Pampa.
 As sequentes manifestações no Dia Internacional da
Mulher, tendo como tema central o monocultivo de ár-
vores homogêneas no Brasil, sinalizam a voracidade da
globalização hegemônica sobre o meio ambiente e - par-
Tamra Gilbertson

ticularmente - sobre as mulheres, cuja reação político-


organizativa tem se desenvolvido nas diversas escalas:
local, nacional e global. São movimentos que, cada vez
mais, vêm tomando corpo e incomodando os defensores
As mulheres estiveram presentes em todas as frentes de luta
da lógica hegemônica de desenvolvimento. A partir das
suas experiências e organizações, as mulheres explici-
O grito das mulheres ecoou nacionalmente: “O mundo tam que o atual modelo de desenvolvimento é desumano
precisa de mais comida e menos papel: mulheres camponesas e não interessa à maioria da população brasileira. Elas
em luta contra o agronegócio, pela reforma agrária e sobera- afirmam que é preciso pensar em outros modos de viver
nia alimentar”. e valorizar aqueles existentes que já compreendem que o
ser humano é parte da natureza e não algo externo a ela.
“A Aracruz Celulose se orgulha de ser a ‘líder mundial
na produção de celulose branqueada de eucalipto.’ Ela 1- A batalha entre o lucro e a defesa da vida:
responde por 27% da oferta global do produto, produzindo Aracruz Celulose x mulheres indígenas
cerca de 3,2 milhões de toneladas anuais de celulose. e quilombolas
Destas, 96% são para exportação, 41% para Europa, A partir do início da década de 1960, o Estado brasi-
34% para América do Norte e 21% para a Ásia. 77% da leiro abraçou fortemente a proposta de modernização do
produção é para papel higiênico, papel toalha, lenço, papel seu território e estimulou a entrada de projetos agroin-
absorvente e outros produtos descartáveis. Isso significa dustriais que buscavam matéria-prima farta e mão-de-
que a extração de recursos naturais está voltada para obra barata. Foi no auge do discurso desenvolvimentista
atender ao mercado externo e não gera impactos positivos da ditadura militar, mais especificamente em 1967, que a
para a economia local. Importante ressaltar ainda que a empresa Aracruz Florestal S.A. foi implantada no Espírito
indústria de papel e celulose não paga todos os impostos Santo, instalando-se no norte do estado, sobre as terras
previstos na legislação porque possui isenção fiscal. A dos povos indígenas Tupiniquim e Guarani. “Em 1975, o
Lei Kandir isentou os produtos primários destinados à território indígena de 40.000 ha já se encontrava devasta-
exportação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e do e prestes a ser transfigurado numa extensa monocul-
Prestação de Serviços (ICMS).” tura de eucalipto pelo empreendimento agroflorestal de
(Via Campesina; Fetraf, 2009) grande porte e pioneiro no Brasil8”.

A empresa Votorantim foi incluída na lista de empre- “É meus primos. Quando a Aracruz chegou aqui e botou eles
sas denunciadas pela Via: “Suas barragens desalojam as pra fora... ela chegou invadindo. Quando ela chegou, eles
comunidades [...], ela lucra com a venda de energia en- ficaram com medo e largaram a terra deles e foram embora.
quanto possui energia subsidiada de empresas estatais. Ela chegou com um monte de tratô e passou em cima das
Além disso, demite trabalhadores enquanto se dá ao luxo casinhas deles. As casinhas era de palha, barreada, que eles
de aumentar seu capital, com a compra de novas empre- morava. Aí, tem os meus primos que têm vontade de retornar
sas, através do apoio do Estado.” pra dentro da aldeia de novo.”
(Via Campesina; Fetraf, 2009) (Maria Loureiro, aldeia Tupiniquim Irajá)

As mulheres reafirmam também que os monocultivos – A partir daí, o processo de invasão começou a se expan-
56 com destaque para a cana, a soja e o eucalipto – causam dir: terras devolutas, situadas ao norte do estado, foram
ocupadas, chegando, em 1974, ao Sapê do Norte, lugar Apesar de todos os indícios histórico-culturais da pre-
onde vivem comunidades negras rurais, hoje reconheci- sença secular de povos tradicionais na região norte do
das como remanescentes de quilombos. Espírito Santo, a Aracruz Celulose, para garantir a posse
de seus territórios, utilizou-se da estratégia discursiva de
“Localizado nos municípios de Conceição da Barra e São produção da ausência dos Tupiniquim e das comunida-
Mateus, na região norte do Espírito Santo, o território des remanescentes de quilombos, não lhes reconhecen-
quilombola denominado Sapê do Norte faz jus ao seu nome, do a identidade. Os Tupiniquim são citados pela empresa
já que a planta nativa chamada sapê representa a metáfora como resultantes de um forte processo migratório gerado
vegetal da resistência histórica das comunidades negras a partir da instalação da sua primeira fábrica, no muni-
rurais desde a luta contra o sistema escravista à longa cípio de Aracruz, ou seja, trabalhadores – e suas famílias
trajetória de práticas de sua erradicação na região, que – que vieram em busca de emprego. Quanto aos quilom-
culmina [...], com a implementação do projeto agroindustrial bolas, a empresa chegou a proibir que utilizassem esse
de monocultura de eucalipto da empresa multinacional termo de identidade no processo de negociações sobre a
Aracruz Celulose, favorecida pelo regime das terras coleta do resíduo de eucalipto – alternativa de sobrevi-
devolutas, pela política governamental de incentivos fiscais vência encontrada por essas famílias, buscando driblar a
e de investimentos do BNDES, consolidando a ação de um escassez que lhes foi imposta.
Estado como produtor de sua invisibilidade.”9
“Hoje eles falam: ‘Ah, não tem mais quilombo’. Como não
A produção de celulose da empresa Aracruz teve início tem, se nós estamos aqui desde antes de 1888?”
com a construção da primeira fábrica, em 1978, sobre a (Elda Maria - “Miúda”, comunidade quilombola de Linharinho)17
aldeia indígena Macacos. Nesse período, o ambientalista
Augusto Ruschi10 já tornava pública a sua preocupação No caso das populações indígenas, a ação mais ousa-
com o desenho de um grande deserto verde em territó- da da empresa foi a contratação de uma equipe técnica
rio capixaba. Desde então, a Aracruz Celulose inaugu- – mantida, espertamente, no anonimato – que realizou um
rou três fábricas de celulose para exportação. A empresa estudo histórico-antropológico comprovando, segundo
produz, na atualidade, cerca de 2,3 milhões de tonela- essa equipe, que o povo Tupiniquim18 jamais povoou a re-
das/ano de celulose. A maior parte é enviada a países do gião. A cartilha A questão indígena e a Aracruz constituiu
Norte e destinada à produção de papéis descartáveis. uma das peças da campanha publicitária que divulgou
A chegada desse projeto agroindustrial foi devastadora fragmentos do estudo realizado.
para as populações locais: de quarenta aldeias indíge-
nas, hoje só restam sete11. De acordo com informações “O que tá acontecendo agora é assim: as pessoas
quilombolas, das 10.000 famílias que compunham as cem estavam falando lá nos comércios que os índios não
comunidades12 que existiam na região norte do Espírito eram mais índios, como se fôssemos ladrões, e que,
Santo, restam apenas 1.200, distribuídas entre aproxi- em qualquer lugar que a gente for, a gente ia fazer
madamente 32 e 37 comunidades, cercadas pelo euca- bagunça. Aí, eles falaram nos comércios, né? Muitos
lipto e pela cana-de-açúcar para a produção de álcool13. começou a vigiar, dizendo que os índios podia roubar
Além da perda do território, essas populações tiveram alguma coisa nos supermercados, pra que os índios
que conviver, nesses últimos anos, com perdas culturais não roubasse alguma coisa. A gente teve discriminação
e ambientais, que geraram um alto grau de desorgani- também nas escolas. Os professores falavam que
zação social e de identidade. Hoje, o Espírito Santo tem a gente não era índio e começavam a fazer alguns
cerca de 200 mil hectares de eucalipto14. Desse total, 128 comentários, principalmente minha sobrinha. Uns tempos
mil hectares, segundo a Aracruz Celulose S.A., são terras aí, teve discriminação nas escolas de um professor.
próprias15. O restante refere-se a áreas fomentadas e de Ela voltou para casa chorando. Aí os pais dela precisou
outras empresas. ir lá pra conversar com eles. A discriminação é assim,
Devido à forte concorrência no mercado mundial de muita chacota, alguma coisa assim: os pais vão lá, eles
celulose, para se constituir como uma empresa compe- não têm como falar com índios mais velhos e, aí, eles
titiva e garantir seu espaço, a Aracruz Celulose precisa descontam nos filhos, né? nas escolas.”
constantemente ampliar sua capacidade produtiva. Por (Ângela, aldeia Tupiniquim Irajá)
isso, tem investido muito na compra de terras em vários
estados brasileiros. Adquiriu, inclusive, as plantações de O passivo social, cultural e ambiental devido às popu-
árvores e a fábrica de celulose da Riocell, no Rio Grande lações indígenas e quilombolas é imenso. Essas popula-
do Sul. Em 2005, a empresa inaugurou, no sul da Bahia, ções resistem. Várias ações pela retomada de seus ter-
juntamente com a transnacional finlandesa-sueca Stora- ritórios foram organizadas. Mas não só os que viveram
Enso, sua quarta fábrica, denominada Veracel Celulose16. os impactos mais diretos se mobilizaram. Segmentos da 57
sociedade civil, indignados com o curso desse grande da e recompor o modo de vida do seu povo.
projeto e com a conivência dos órgãos governamentais, Os relatos e as observações a seguir não têm a pre-
articularam-se. Hoje há uma aliança permanente entre tensão de abordar todos os aspectos que alteram a vida
as populações do entorno das grandes plantações e or- das mulheres, nem de tratá-los com a profundidade que
ganismos da sociedade civil, constituindo a Rede Alerta merecem. Objetiva trazer a leitura das mulheres sobre a
contra o Deserto Verde19, da qual o Movimento Mundial própria realidade, mostrando como elas têm lidado com o
pelas Florestas Tropicais (WRM) tem sido um impor- processo ocorrido nos últimos 40 anos. Tratam-se de mu-
tante aliado. lheres, intencional ou descuidadamente, invisibilizadas
pela história. Mulheres que têm se constituído, ao lon-
2- Histórias de vida e morte: relatos de mulheres go das últimas quatro décadas, em sujeitos de resistência
sobre os impactos vividos e imensuravelmente fiéis à luta do seu povo. Este texto
“Essas perdas causaram um impacto muito grande porque constitui-se numa tentativa escrita de valorizar a expe-
elas mexem, de uma forma violenta, com a vida de todos riência das mulheres num contexto de monocultura de
nós, principalmente com a vida de nós, mulheres, porque larga escala no Espírito Santo.
nós fazemos... junto, claro, com nossos companheiros, mas
a gente é que faz a vida e, aí, somos nós que tiramos nosso “E para nós, mulheres, foi um impacto muito forte também.
tempo para falar com nossos filhos, para falar da nossa Nós temos esse sentimento, esse sentimento da perda das
história, e isso tá ficando meio vazio”. nossa riqueza”.
(Olindina, Associação de Mulheres Negras de São Mateus e Comissão (Maria Loureiro, Comissão de Mulheres Indígenas Tupiniquins e
Quilombola do Sapê do Norte) Guaranis, aldeia Irajá)

A realidade contemporânea dos negros remanescentes “Então, acabou com parte da nossa vida, nossa liberdade
de quilombos e dos índios tupiniquins e guaranis no Espí- e nossa cultura, do nosso dia-a-dia, nossa saúde. Essa
rito Santo remonta à história da colonização brasileira: ín- vinda das grandes empresas para cá acabou com tudo,
dios e negros escravizados para atender aos interesses do tirou um pedaço de dentro da gente. É como um pedaço,
capitalismo colonial europeu. Durante séculos, indígenas como se a gente tivesse uma parte viva e outra morta,
e africanos partilharam o drama da escravidão e do abuso como se fôssemos vivos-mortos, né?, devido às grandes
em “território brasileiro”20. Mulheres foram violentadas e empresas, após entrarem pra cá. A gente era feliz. Agora
mortas. Negras foram usadas como reprodutoras de mão- não, a gente vive infeliz da vida. Precisamos brigar pelo
de-obra escrava e como mães-de-leite. Uma história que que é nosso, pelo nosso território, por aquilo que eles
essas populações fazem questão de não esquecer e que arrancaram de nós, e com isso foi tudo, tudo que era
lhes determinou um lugar histórico de subalternidade no nosso. Então, fica um protesto, né? Por conta da gente, da
processo de construção da sociedade brasileira. comunidade inteira”.
Paralelamente à tristeza da violência e do genocídio a (Eni, comunidade quilombola de São Domingos)
que esses povos foram submetidos, escreve-se uma im-
portante história de resistência nos últimos cinco séculos. 2.1- Os “tês” que tecem a vida:
A maior prova dessa resistência é a presença de indígenas território, terra e trabalho
e quilombolas em todas as regiões brasileiras. “E a gente vem lutando assim, juntando com as outras
Com ingredientes modernos e desenvolvimentistas, a 36 comunidades para lutar pelo território, pela questão
relação entre os povos tradicionais do Espírito Santo e a das terras, que foram terras tomadas do nosso povo,
Aracruz Celulose S.A. reedita a história colonial – alguns dos nossos antepassados e, hoje, tá na mão da Aracruz
a chamariam de relação pós-colonial, ou seja, formas de Celulose. Então, a luta que nos une, hoje, é a expansão
dominação que caracterizaram o período colonial, reela- da eucaliptocultura dentro das nossas comunidades”.
boradas e transportadas para a contemporaneidade – e (Kátia, Comissão Quilombola Sapê do Norte, comunidade
impõe às comunidades indígenas e quilombolas perdas quilombola do Divino Espírito Santo)
materiais e simbólicas irreparáveis.
Como no período colonial brasileiro, as mulheres indí- Historicamente, as populações indígenas e quilombolas
genas e quilombolas são vítimas de abuso e desrespeito. viveram no Brasil em grandes extensões de terras com
Vêem-se expropriadas dos seus saberes, lidam com a dis- densas florestas. São populações que dependem direta-
persão de suas famílias, perdem os seus espaços de socia- mente dos seus ecossistemas para a reprodução do seu
lização: os rios, as matas, os lugares onde se realizavam os modo de vida e estabelecem uma forma de organização
rituais de reza e as celebrações. No entanto, a nostalgia que comunitária em que a terra é um bem coletivo e não uma
sentem de outrora traduz-se numa imensa esperança de mercadoria utilizada para acumulação de bens e riquezas.
58 recuperar seu território, a biodiversidade nele antes conti- São povos que recusaram a leitura moderna da separação
sujeito-natureza e se vêem como parte dela, por isso a
agressão à natureza é a agressão a eles mesmos. A terra
e tudo o que está nela deve ser usado e preservado com
muita responsabilidade para as atuais gerações e para as
que virão. Dessa forma, e não por mera coincidência, são
populações que conseguiram preservar parte importante
dos seus ecossistemas até meados do século XX, quando
ocorreu a chegada da empresa Aracruz Celulose S.A. ao
Espírito Santo.
O conceito de território que orienta a vida desses povos
diferencia-se profundamente daquele de Estado-Nação,
que se hegemonizou e buscou uniformizar padrões de
apropriação e de uso da terra, excluindo outras formas de
organização territorial. No Brasil, só a partir da Constitui-
ção Federal de 1988 foram reconhecidos os direitos dos
indígenas e quilombolas aos seus territórios tradicionais
(no caso do Art. 68, referente aos quilombolas, só reco-
nhece o direito, mas não o regulamenta). No entanto, o
fato de a Constituição ter reconhecido não garantiu, até
a atualidade, que esses povos fossem protegidos das in-
vestidas ferozes do agronegócio, que, cada vez mais, exige
“recursos naturais” para a sua expansão.
Dados e depoimentos registram que as populações indí-
genas tinham, até a década de 1960, 40 mil hectares de flo-
O universo feminino foi especialmente atingido pela implantação da Aracruz
restas de Mata Atlântica, usufruídos por quarenta aldeias,
enquanto os quilombolas tinham grandes parcelas de terra
divididas entre as cem comunidades21 existentes na época. Como é relatado por Rosa, a partir de meados da dé-
A forma de organização territorial dessas populações era cada de 1960 a realidade mudou. Com a perda do ter-
muito parecida22: moravam em casas distantes umas das ritório, muitas famílias buscaram outras regiões para
outras, o que lhes garantia espaço para a criação de ani- viver. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
mais e para o exercício da agricultura, viviam da caça e da (IBGE) registra que vivem, hoje, de forma dispersa, no
pesca e tinham uma alta capacidade de auto-sustentação. estado, cerca de 8.500 indígenas desaldeados, um nú-
mero quase quatro vezes maior do que o daqueles que
“Nós morávamos numa aldeia que chamava Cantagalo. Fica permaneceram em território indígena. No caso dos qui-
lá acima um pouco de Pau-Brasil... Todo o nosso trabalho a lombolas, o Morro São Benedito, bairro localizado no
gente fazia. Plantava e colhia feijão, essas coisas tudo que a município de Vitória, é constituído por grande parte das
gente colhia. A gente comprava só o que precisava... Então, famílias expulsas do Sapê do Norte. Registra-se, tam-
ali nós vivia nessa aldeia e tudo que nós queria era a mata. bém, em outros locais da região metropolitana, como o
Essa mata, que era formada das coisas que a gente ia fazer: município de Serra, a existência de quilombos urbanos
era gamela, era peneira, tapiti, né? Tudo isso vinha dessas formados a partir de meados da década de 1970.
matas e isso sustentava porque a gente vendia as coisas As décadas de 1960, 1970 e 1980 foram marcantes para
que a gente produzia, que a gente fazia. Então, também a história ambiental do Espírito Santo. A Mata Atlântica,
eram dos rios, era as matas, era caça, tinha muita caça, um dos ecossistemas de maior diversidade biológica do
tinha muito peixe no rio. Então, era dessas coisas aí que nós planeta, deu lugar a uma paisagem uniforme e triste: a
vivia. Então, nossos pais cuidavam de nós, quando existia monocultura de eucalipto em larga escala.
essa mata. Mas, depois que a Aracruz chegou, foi botando
todo mundo pra fora e comprando por pouca coisa. Dava “Porque, no passado, era muito bom, né? Hoje, se andar de
aquele pouquinho de dinheiro para o pessoal e o pessoal ia um lugar pra outro, a gente só vê só a água do rio poluído. A
na conversa deles que tinha que vender. Aí, eles iam tirando natureza, ela é muito importante, também, pra gente, né? A
logo tudo mundo, iam derrubando as casas pra fazer as natureza é as matas, é tudo, é as caças, os passarinhos, é
plantações... Então, essa Aracruz acabou com tudo, né? tudo, aí a gente tem que cuidar da natureza.”
Acabou com tudo que nós tinha, acabou com a nossa mata, (Nilza, aldeia Tupiniquim Comboios)
acabou com o nosso rio, com os peixes, as caças...”
(Rosa, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil) A extinção da maioria das aldeias indígenas e das co- 59
Então, você tem que produzir uma coisa pra depois
produzir outra. É, na mesma terra. Aí, você tem que esperar
descansar, né? Tem aquele processo todo, pra poder você
botar outra semente lá.”
(Cláudia, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“Muita gente aqui tem vontade de vivê da terra. Tem muita


gente que tá num beco sem saída, não faz nada. Nós aqui
tamos muito apertado pra fazê plantação. Eu acho que tem
como resgatá. Tem que ensinar nossos filhos...
nossos netos... pra eles não deixar a cultura acabá. Tem
que resgatá. O meu sonho é ter de novo as roça.”
(Maria Loureiro, aldeia Tupiniquim Irajá)

A redução dos grandes quintais produziu uma alteração


nas atividades domésticas femininas. As mulheres cuida-
vam das suas casas, da horta, cultivavam suas ervas para
uso doméstico e medicinal e criavam pequenos animais,
que também eram fonte de alimento. Seus filhos tinham
espaço suficiente para brincar.

“Aquele era um bom tempo! Fazíamos muita coisa. A gente


trabalhava, mas não tinha tanta preocupação como tem hoje.
As mulheres tinham mais tranquilidade, até com os próprios
filhos. A gente era muito mais feliz.”
(Célia, aldeia Pau-Brasil e pastora da Assembléia de Deus)
A chegada da Aracruz alterou profundamente as relações sociais
Observa-se que, para elas, o lugar da aldeia ou da co-
munidade constituía-se num espaço seguro, que lhes
munidades quilombolas levou parte dessas populações a dava tranquilidade para organizar o futuro.
se aglutinar em fragmentos do território das aldeias que
restaram. Outras buscaram regiões próximas para reco- “Ah, eu acho que mudou muito, porque, naquela época, que
meçar a vida. era Sapê do Norte, como eu nasci, criei e andava e sabia
como era Sapê do Norte. Você chegava em qualquer lugar,
“Mas eu gostaria que a gente ganhasse as terras pra você colocava uma roça. Você roçava, botava pra queimar,
oferecer coisa melhor pros nossos netos, né? Tê a roça chamava era, de primeiro, chamava ‘ajuntamento’, né? Com
da gente, colhê as coisas, as criação, ter mais espaço pra todas as pessoas! Parente, amigo, tudo. Aí a gente botava
gente morá... é bom, né? Porque um lugar imprensado uma roça, assim, em qualquer lugar aí, e era muita gente!
assim é muito ruim. Morá mais distante é bom pra gente tê Saía colocando roça. E agora você não tem... esses lugar,
criação dos animais, pros netos da gente e pra nós também, apertadinho, que você vai plantar aquele pedacinho... fica
pra gente ficá mais à vontade. Porque é triste morá tudo oprimido, não tem como, porque tá tudo rodado de eucalipto.
embolado e não ter espaço pra nada. Que as crianças vive Mora aquele monte de família de gente naquele lugar
imprensado e a gente tem que corrê atrás deles pra não apertadinho! Não tem como, né? Você, pra criar... se for uma
deixar eles ir pra rua. E num lugar mais distante fica melhor galinha, não pode, assim, criar um porco solto, um animal,
pra gente. É melhor que eles fica à vontade, né? Com mais que era tudo solto. Não tinha nada... as coisas que pegasse
terra vai melhorá muito... melhora, se Deus quisé!” aquilo, né? Plantava de tudo naquela roça... agora, você
(Francisca, aldeia Tupiniquim Irajá) não pode. Até pra você torrar uma farinha num forno, você
não pode entrar dentro do eucalipto pra pegar uma varinha.
“De primeiro, era assim: cada um tinha suas roças e hoje não Porque eles estão cercando. É Visel [empresa de vigilância
tem como. Aí é todo mundo de mutirão. Comunitário. Alguns privada contratada pela Aracruz Celulose], bota até polícia,
que têm, né, perto de casa, mas aquele pedacinho, né, que né? Vai entrar e eles estão atrás perguntando o que que vai
também... tudo espremido. Como ela, também, eu estava fazer. Se panha uma varinha, eles estão perguntando pra
falando ali, eu tenho lá minha rocinha de abacaxi, mas, que é. Então, ficou uma coisa... tudo que eu tô vendo, muito
60 assim, se eu plantar abacaxi, não posso plantar mandioca. diferente. Não tem nada. Até planta que se planta não presta
mais como era antes, porque eles jogam aquele monte de da aldeia. Mudou porque até para chover... essas mudanças
veneno, aquelas coisas tudo. Por isso que as coisa estão do eucalipto que fizeram, hoje: os rios tinha correnteza, hoje
difícil. Aí, pra mim, mudou muito porque eu conheci Sapê em dia fica aquele fiozinho de água. Como a gente vai poder
do Norte, no tempo da minha mãe, pequena, nós tem tanta plantar? Tem tempo que a horta precisa ficar regando ali; a
terra aí nesse eucalipto! Eu tenho meus filho aí, não pode terra fica seca, torrada ali. A dificuldade, hoje, pra a gente ter
conseguir fazer uma casa, vive assim, pelo lugar dos outro uma alimentação saudável, tem que plantar e adubar. Ou,
porque tá tudo oprimido do eucalipto, porque tomou tudo, né? então, tem que comprar no mercado, na feira, mas mesmo
A gente sente com aquilo. Mudou muito, muito mesmo, pelo assim não é saudável, porque eles não vão ter tempo de ficar
que eu conheci do Sapê do Norte, e o que tá agora. Minha adubando ali, uma alimentação orgânica. Não vão ter tempo.
palavra é essa.” Então, eu acho que, pra gente poder conquistar o de antes,
(Benedita, comunidade quilombola de São Domingos) vai ter que lutar muito, e não vai ser como antes, né? Mas,
pelo menos, se a gente conseguir pelo menos a metade.
O ajuntamento, relatado por Benedita, era uma prática Pra gente poder passar, não pra gente, pros nossos filhos,
dessas populações. As pessoas encontravam-se para se nossos netos.”
ajudar e para celebrar. As mulheres quilombolas, junto (Cláudia, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)
com a comunidade, escolhiam o lugar para o plantio da
roça, que era feita por consórcio. Hoje, a realidade é outra: “Quando não existia esse eucalipto aí, você podia plantar
há a prática dos mutirões que busca, diante da escassez tudo misturado e dava! O meu pai plantava mandioca e
imposta, potencializar, ao máximo, o uso da terra para a plantava feijão no meio. Um litro de feijão plantado, ele
agricultura. No caso dos índios, a aldeia reserva um peda- colhia 80 litros de feijão, e era junto com a mandioca. Tirava
ço de terra onde é realizado o plantio. Tem direito a par- o feijão, e a mandioca subia. Hoje, não pode. Se plantar um
ticipar da partilha quem contribui com trabalho. É muito pedacinho de mandioca, é só mandioca. Se você plantar
comum as mulheres que são chefes de família ou têm ma- feijão, é só feijão. Se você misturar, um atrapalha o outro.
ridos trabalhando fora da aldeia organizarem mutirões A terra não tem mais aqueles sais minerais, vitaminas
até o processo da colheita. Há homens que também par- completas pra produzir tudo isso, juntos. Não tem mais como.
ticipam. Há também algumas iniciativas individuais de Mudou muito. Hoje, se faz um pedacinho de roça e pronto. E
plantio, mas nem sempre alcançam o resultado esperado. não dá nem pra sobreviver.”
Além da falta de espaço, um outro problema enfrentado é a (Eni, comunidade quilombola de São Domingos)
perda da fertilidade natural do solo e a desertificação, pro-
duzidas pelo intenso e mau uso da terra – plantio de euca- Há registros históricos do século XIX referentes à
lipto em curtos ciclos de corte e em zonas de mananciais, grande produção de farinha de mandioca no Sapê do
acompanhado pelo uso intensivo de agroquímicos. Norte, inicialmente realizada pela mão-de-obra escrava
de grandes fazendas. Finda a escravidão, as comunidades
“A situação lá em Caieiras é a mesma situação que a irmã de quilombolas deram continuidade a essa produção, des-
Pau-Brasil falou; é assim: uns anos atrás, muitos anos atrás, tacando-se como grandes produtoras de farinha e beiju
quando ainda era criança, lembro que a gente colhia feijão. – alimento tradicional à base de farinha de mandioca –,
Era um feijão diferente de hoje, porque não usava nada de produtos que ainda abastecem as regiões próximas.
químico na terra. Aquela coisa bonita mesmo! A batata, o
aipim eram bem diferentes. E hoje... onde já foi tirado uma “Eu conto sempre assim o que a minha mãe contava:
parte de eucalipto, Paulo [ela referia-se ao marido] limpou um que tinha muita caça, muito peixe. Tem o rio de São
pedaço e fez uma rocinha lá. Plantou um aipim lá e tava até Domingos, não tem mais água, não encontra caça mais.
com dificuldades até pra crescer a raiz. O milho que plantou Só mesmo tatu, capivara... Peixe também acabou de vez.
lá também ficou bem pequeninho, uma coisa bem diferente Se a gente quiser peixe, tem que comprar na cidade, não
do que era antes. Antes, a terra tava boa. Hoje, a terra já tá existe mais. Meus filhos não conhecem mais essa coisa.
acabada por causa do plantio de eucalipto. O rio não tem Primeiro, tinha mata, tinha muito sapê, que o pessoal
mais e a terra tá bem seca.” mais velho... quem tinha gado soltava. Hoje, não existe
(Benilda, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha) mais. E aí vai acontecendo. Cada dia que passa tá ficando
mais pior. Que essa empresa [ela refere-se à empresa
“Por causa que as plantações, hoje em dia, tudo tem que Aracruz Celulose S.A.] acabou com todas coisas que tinha
ter adubo. Que, de primeiro, não precisava você adubar aqui: tinha aipim, tinha... A gente querendo encontrar as
terra. Hoje em dia, pra plantar qualquer coisa, tem que coisas que existiam, mas a gente não conhece mais. A
adubar, que a terra ficou arenosa. Já vem do eucalipto, ele gente fazia uma roça, plantava bananeira. Primeiro, ela
tirou todas as vitaminas da terra... De primeiro, sem ter o ficava bonita, hoje morre e não dá um cacho de banana.
eucalipto, a gente... parecia que até o clima mudou, dentro Mandioca aqui acabou mesmo, era o que os meus pais 61
mais usavam. Feijão, o meu pai plantou muito. Feijão, outras funções, na maioria das vezes, servindo a funcio-
abóbora...” nários da Aracruz ou de suas empresas terceirizadas.
(Domingas, comunidade quilombola de São Domingos)
“Eu trabalhei muitos anos numa casa em Coqueiral24. O
“Ah! Falava causo e sorria, mas era muita brincadeira marido da minha patroa era funcionário da Aracruz Celulose.
demais! Tinha aquela água boa, todo mundo tomava banho. Eu saía a pé da aldeia e ia trabalhar na casa deles, com
Dia de calor, menino tomava banho à vontade, né? Era muito chuva ou com sol. Eu tinha as crianças pequenas e não tinha
bom! Dia de quinta-feira, tudo reunia que ia ralar mandioca. com quem deixar. Minha filha de oito anos é que cuidava dos
Aí fazia beiju pra ir pra feira. Era pamonha, beiju de coco, mais novos. Mas eu não podia deixar de trabalhar, precisava
beiju de massa com coco, era uma alegria, ali era mutirão, sustentar meus meninos. Eu praticamente criei os filhos
era tudo mundo ajudando o outro. Era muito bom demais! deles. Não podia cuidar dos meus direito, mas cuidava dos
Isso tudo deixa saudade.” deles. Até hoje, quando eu encontro os meninos na rua,
(Benedita, comunidade quilombola de São Domingos) agora eles já são grande, eles me chamam de mãe. Se bem
que já tem muito tempo que eu não vejo eles.”
“Mas nós, quilombolas, sempre tivemos produção. Minha (Margarida, de nome indígena Ipotyroby, aldeia Tupiniquim Caieiras
avó ia pelo rio de canoa pra vender farinha no porto de São Velha)
Mateus. Ela tinha produção, tinha café, tinha mandioca.
Então, é isso que nós temos que fazer pra que nossos filhos, “Hoje, as mulheres indígenas enfrentam mais as dificuldades,
nossas crianças, pra que nós tenhamos a nossa produção.” porque, no passado, elas tinham muita fartura. As mulheres
(Olindina, Associação de Mulheres Negras de São Mateus indígenas ficavam em casa com seus filhos e tinha muitas
e Comissão Quilombola do Sapê do Norte) plantações e se dedicavam a colher as folhas, enquanto os
maridos estavam fazendo outras coisas. Tinha muita fartura.
“Antigamente, a gente vivia melhor. A gente respirava Hoje, além de não ter muito as plantações, o desemprego é
melhor, a gente produzia mel, a gente fazia beiju, adoçava muito. Hoje, para ter mais alguma coisa, a gente tá tentando,
tudo com mel, fazia bolo de massa de fubá, café de cana. em grupos, apoios de projetos, essas coisas para enfrentar
[Hoje] nossa maior renda aqui é a produção de farinha e mais um pouco as dificuldades. Porque, no passado,
de beiju23. Mas isso, a renda está acabando, porque não as mulheres indígenas nem precisavam trabalhar como
estão conseguindo manter pra plantar mandioca. Então é empregadas. Hoje, a gente tem que procurar serviço para
isso aí, a gente tá lutando com várias pessoas, de várias poder ajudar a manter a casa.”
comunidades, todas unidas. E o objetivo é todos lutar juntos (Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena,
pra conseguir essas terras.” aldeia Tupiniquim Irajá)
(Elisângela, comunidade quilombola de São Domingos)
“Antes, trabalhávamos só dentro da aldeia, na roça, com
Com a redução do território, muitas famílias tiveram os filhos. A gente ia pra roça, levava os filhos, plantando
que sair dos seus lugares de morada para conseguir tra- mandioca, plantando milho... isso mesmo. Levava um pano
balho. Por isso, mulheres foram transformadas em em- grande e fazia aquela rede. Ali botava os meninos enquanto
pregadas domésticas, babás, diaristas, lavadeiras, entre a gente limpava e plantava. A empresa, hoje, acabou com
tudo isso. As mulheres, hoje, a maioria, coitadas, estão
procurando emprego nas casas de famílias. Agora mesmo
Os impactos nos rios e lagos da região foram drásticos
foi muita menina procurando emprego em Coqueiral. Antes
não precisavam, porque índio tinha trabalho. Esses dias
mesmo, tem minha sobrinha, ela tava falando: ‘Isso tudo
por causa da empresa’. A Aracruz não dá emprego, mas
tem gente que trabalha na empreiteira; mulher tem pouca...
A empresa contrata os lá de fora, não contrata índio. Tem
mulheres trabalhando fora, mas são só algumas, algumas
são domésticas também. Domésticas ganham um salário-
mínimo ou menos de um salário.”
(Maria Loureiro, aldeia Tupiniquim Irajá)

Segundo Maria Loureiro, da aldeia Irajá, em 2006, “... tra-


balhando de doméstica tinha umas dez. Porque, por causa
da demarcação, eles não contratam mais índios”. Na busca
62 do trabalho, as mulheres lidam com a discriminação étnica.
“D. Maria, de Caieiras, tava reclamando ontem, na Funai, que
ela tá passando dificuldade porque ninguém quis dá emprego
pra ela. E ainda dizem pros índios: ‘Vocês não precisam
trabalhar’.”
(Tureta, representante local da Funai em 2006)

As mulheres indígenas contam com o atendimento da


educação infantil nas aldeias, em tempo parcial, o que
tem facilitado um pouco mais suas vidas. No entanto essa
política não resolve o problema da sua ausência em casa.

“Hoje, aqui, a criança, a partir de 4 anos, fica na pré-escola


até as 11h20. Aí, depois que saem da escola, fica com o pai
ou com algum vizinho. E já quando têm meninos grandes...
estuda de manhã... que tem 12 e 13 anos, aí, quando chega
em casa, fica com os menores. Muitas vezes, fica com o
vizinho, com parentes. Aqui não tem creche, só tem a pré-
escola que é pra criança de 4 a 6 anos. Aí fica difícil pra
algumas também.”
(Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena,
aldeia Tupiniquim Irajá)

O fato de as mulheres serem forçadas a se distanciar


mais cedo dos seus filhos para trabalhar fora das aldeias
interfere no processo da amamentação, que, na maioria
das vezes, era realizado por um tempo longo.

“Com seis meses é suficiente, né? Assim os médicos


Trabalhando fora, as mulheres não conseguiam mais amamentar como antes
fala, né? Antigamente, mamava até dois, três anos. Hoje,
mesmo se quisesse, tem que trabalhar. É que a gente vai
trabalhar. Essa aqui, mesmo, mama, só mama quando eu Celulose e as populações indígenas em 1998, a empresa
chego do serviço.” articulou cursos de cabeleireira, manicure e pintura para
(Claudia, aldeia Tupiniquim Pau Brasil) as mulheres, curso de garçom para mulheres e homens e
curso de mecânica e de carpintaria exclusivamente para
homens.
“Mas a maioria, mesmo, tira a mama novinho. Os bichinho
tão fraquinho, né?” “Isso foi um convênio da Aracruz com o Senac26 pra tá
(Benedita, comunidade quilombola de São Domingos) desenvolvendo isso lá dentro da aldeia. A esposa do Jetibá
[assessor da empresa para assuntos indígenas] é que deu
Há mulheres indígenas que têm um trabalho formal: um curso pras mulheres de pintura.”
trabalham nas escolas e postos de saúde dentro das al- (Tureta, representante local da Funai em 2006)
deias. Essas são vistas pela comunidade como alguém
numa condição privilegiada, já que têm uma renda men- Com alto índice de desemprego nas aldeias, a estratégia
sal garantida, diferente da grande maioria da população da empresa foi levar até elas cursos profissionalizantes,
local. Segundo informações das próprias mulheres, há buscando causar boa impressão. A Aracruz Celulose não
em torno de doze mulheres indígenas trabalhando no vi- gosta de ser identificada como empresa que desestruturou
veiro da Aracruz Celulose. A empresa opta por contratar e empobreceu essas populações, em especial por serem
mulheres para o trabalho de reprodução de mudas por- populações que vivem no entorno da sua fábrica. Não é
que ele exige delicadeza, paciência e cuidado, caracterís- um bom cartão de visitas e compromete a sua imagem. O
ticas do trabalho feminino. Algumas poucas trabalham incentivo a tais atividades era usado em suas campanhas
em empresas terceirizadas, geralmente em tarefas simi- publicitárias. Com os cursos, seu objetivo foi transformar
lares àquelas vinculadas ao trabalho doméstico, como, caçadores, agricultores, erveiras e artesãs ociosos em tra-
por exemplo, cozinhar e limpar. balhadores “civilizados”, integrados às relações moder-
Antes da ruptura do acordo firmado entre a Aracruz nas de trabalho, desvinculando da terra e da natureza o 63
seu modo de sobrevivência. No entanto, mesmo aqueles cesso que prepara o menino índio para a vida adulta. A
que fizeram os cursos continuaram desempregados. ausência desse ritual produz, nos Guarani e Tupiniquim,
um vazio no processo de construção da identidade mas-
“Até então as mulheres têm que aprender os cursos, culina. Se não há caça, o que fazer? O papel do homem
mais têm que dá continuidade, pensar em projetos [que dentro da comunidade e da família fica profundamente
permitam resgatar a cultura]. Fazer projetos para ter uma fragilizado, beirando a ausência.
auto-sustentação. Porque se tem que saí pra trabalhar
fora vai ser um problema na comunidade. Se aprender e “E a gente também [as mulheres indígenas] está passando
implantar alguma coisa dentro da comunidade, aí não tem por grandes dificuldades, até mesmo dificuldades de arrumar
problema. Por exemplo, a garçonete... as mulheres... se for emprego. Os homens também ficaram sem o serviço deles.
uma mulher casada a aprender um curso de garçonete pra Hoje, eles vão para o mato e chegam em casa preocupados
ela saí da comunidade... Às vezes tem família casada que porque não acham nada pra fazer.”
combina, mas, se for uma família que não combina, aí vai (Marli, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)
trazer transtorno pra família. Vai acontecer alguma coisa
entre a esposa e o marido.” “Igual como minha mãe fala, que quando meu finado pai
(Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena, ia caçar, matava variedades de caças. Meu pai, antes de
aldeia Tupiniquim Irajá) morrer, ele saía pra caçar e voltava com variedades de
caça, né? Às vezes, ela tinha até que jogar alguma fora,
Se há especificidades dos impactos sobre o univer- que já tava mais passada, porque naquela época não
so feminino, há também aquelas que golpeiam o mun- tinha geladeira. Tinha que salgar pra não ficar ruim, né?
do masculino. Os homens indígenas e quilombolas que E hoje em dia, não. Às vezes, assim, o impacto que eu
se dedicavam à agricultura, à caça e à pesca vêem-se, na acho assim que a mulher sente é... por exemplo, o meu
atualidade, transformados em desempregados ou alimen- marido, né? Os maridos delas vão caçar aí, mas não pega
tam o grande contingente de mão-de-obra barata. A ma- uma caça, aí, quer dizer, a gente fica triste, né?... Eles vão
téria-prima utilizada pelos homens, como taboa, palhas e caçar e, às vezes, não caçam nada. Eles vão caçar, mas
determinados tipos de madeira para a produção de game- não acham. Às vezes, eles vão o primeiro dia, o segundo
las, peneiras e tapitis, desapareceu. Essas perdas e mu- dia, o terceiro dia, até trazer unzinho. Interessante é que,
danças interferiram drasticamente no papel do homem quando eles chegam, eles dividem o que for pras famílias.
dentro da comunidade e da família. O caçador que, para E tem vezes que eles vão e não pegam nada, né?”
as populações indígenas, significa coragem, força, aquele (Kátia, aldeia Tupiniquim Irajá)
que garante o sustento da família, perdeu seu lugar e foi
lançado para um espaço vazio. “Porque, hoje, se a gente observar dentro da nossa
comunidade, as mulheres trabalha mais do que os próprios
“Os Guarani sempre tiveram o costume de caçar. Os homens, porque eles não têm trabalho pra fazer. Os homem
meninos têm que aprender a caçar. Então ele acompanha não têm. Por exemplo, a pesca... aqui todas as família se
o seu pai quando ele vai caçar. Só que quando ele sai mantinha da pescaria, e hoje é bem pouco a família que
pra conseguir caça, roda a noite toda, a noite toda, e não vai na maré pescar por causa dos impactos. Já não tem
encontra nenhuma caça, nada, nada... Isso é muito triste mais muito mariscos igual os que tinha antigamente. Mas
pr’um Guarani. Às vezes até encontra uma paca, um só que, na nossa família, nós não perdemos essa cultura. O
gambá, mas é muito pouco. Então, a gente sai com eles de meu esposo pesca, o esposo dela, que é meu cunhado, ele
noite, mas volta no outro dia... e não tem nenhuma caça pra pesca, né? Porque, por exemplo, mesmo que tenha esse
mostrar pra família. Já aconteceu da gente sair e os guarda impacto de acabar com as matas, de ter secado bastante rio,
da empresa prendê a gente. Eles diz que nós estamos mas se a gente não procurar, a gente vai perdendo nossa
caçando na propriedade que é dela. Eu não sei por que eles cultura, a pesca, o artesanato, a caça. O pouco que temos
coloca aquela placa: ‘É proibido caçar [animal silvestre]’. não podemos deixar, porque é a cultura nossa. Mesmo
Eu não sei por que. No meio do eucalipto não tem nada, que tenha outro trabalho, a gente tem que ter ela firme e
nenhum animal vive no meio do eucalipto, nem passarinho. resistente pra poder se manter. E pra nós, mulheres, foi um
Só formiga e cupim vive no meio do eucalipto.” impacto muito forte também.”
(Toninho, de nome indígena Werá Kwaray, Cacique Guarani – (Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena,
depoimento dado na audiência pública da Comissão de aldeia Tupiniquim Irajá)
Meio Ambiente, na Assembléia Legislativa, em 2002)
“Mas hoje, se você sai pra procurar, não acha. Quando chega
A perda da atividade da caça interrompe um rito de em casa vem a tristeza na pessoa. Às vezes, os filhos... às
64 passagem antigo vivenciado por essas populações: o pro- vezes, o pai sai pra procurar, pensando que vai trazer alguma
coisa. Chega e não traz. Aí a família toda fica preocupada na tos como esse tornam o ambiente familiar inseguro e as
sua casa, né?” mulheres mais suscetíveis à contaminação por doenças
(Marli, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá) sexualmente transmissíveis (DSTs).

“Se os caçadores da própria aldeia forem mesmo caçar, eles “Eu creio que sim. Agora eles vão procurar outra caça lá
são presos. Por que, dentro da própria aldeia, eles não podem fora [ela refere-se a possíveis relações com outras mulheres
caçar mais, né? Porque é culpa da gente? Mas não é! São as não-índias]. Às vezes, ao invés de caçador, eles viram a
pessoas de fora mesmo, que, hoje em dia, a gente quer comer caça (risos). Igual assim como o meu sogro, né? Como meu
uma caça, a gente só vai comer escondido, senão o Ibama27 marido falava, o meu sogro... Quando o meu sogro era vivo,
vem lá, prende você, porque você tá... né? Porque muitos vão ele saía pouco da aldeia... era mais pra comprar mais óleo,
de fora caçar, leva, mas eles é pra o lazer. Agora a gente às arroz. Mas o resto eles faziam aqui, como a farinha, o feijão,
vezes quer matar uma caça lá, pra gente comer, pra lembrar a caça... tinha galinhas no quintal. Mas era muito difícil eles
dos velhos tempos, e a gente não pode. Porque a gente vivia irem pra fora. Hoje em dia, você vê que a maioria dos índios
da caça, da pesca.” tem que trabalhar. Pra ter o sustento da aldeia tem que sair
(Cláudia, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil) fora da aldeia, e tá difícil arrumar serviço fora da aldeia.”
(Maria Helena28, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)
“E também, se vai caçar, não consegue... o Ibama, né?...
perseguindo a pessoa. As tartaruga também. Nós vivia da A segunda mudança está relacionada com o aumento
tartaruga de primeiro. Os mais velhos matavam tartaruga e do consumo de álcool pelos homens. Há também mulhe-
comia, né? Comia os ovos dela e, hoje em dia, se matar uma, res que bebem, mas em menor número. Hoje, o alcoolis-
pode contar que vai pra cadeia. Como é que pode viver a mo nas aldeias é um fato, e esse acontecimento reper-
cultura do índio desse jeito?” cute também sobre as mulheres, que têm que lidar com
(Nilza, aldeia Tupiniquim Comboios) uma situação que envolve seus maridos e filhos.

“Quando eu era criança, lá na aldeia, a gente morava lá na “Têm muitas pessoas que bebe aqui na aldeia. Às vezes,
aldeia. Meu pai costumava caçar muito e tinha muito caça ele deixa de cuidar dos filhos, da família, pra viver no
lá, em Pau-Brasil, naquelas matas. Hoje, não tem mais as alcoolismo... Já é uma doença porque, por exemplo, não
matas; no lugar da mata tem hoje o eucalipto”. só por causa das nossas dificuldades de perder... a perca
(Célia, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil) é que vai fazer a gente ficar bebendo? Porque eu falo isso:
‘Se só ficar bebendo, bebendo, não vai resolver não os
As mulheres indígenas mais velhas observam mudan- problemas, vai agravar mais os nossos problemas dentro
ças no comportamento masculino, em especial a partir da comunidade’.”
da década de 1970. A primeira diz respeito ao fato de os (Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena,
homens saírem frequentemente das aldeias e buscarem aldeia Tupiniquim Irajá)
relacionar-se com mulheres não-índias. Comportamen-
O alcoolismo é apontado pelas mulheres como um dos
fatores que contribuem para o aumento da violência do-
méstica, questão ainda tratada com certo tabu.

“Eu já sofri agressão pelo marido. Há doze anos atrás...


do primeiro marido que eu tive, por ele ser alcoólatra. Eu
já fui espancada por ele ao ponto de eu ir na delegacia,
sim. Minha filha tinha três anos nessa época e, por ele ser
uma pessoa muito violenta, ele bateu nela. Aí eu fui na
delegacia. Mas aí eu mesmo tomei a decisão, que eu vi que
a delegacia não dava jeito nele. Aí, então, eu peguei e me
separei dele. Larguei ele pra lá.”
(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“Meu marido, ele bebia muito, até que um dia ele tentou me
bater e aí eu dei uma tampa de panela de pressão na cara
dele e mandei ele embora. Ele dizia que não gostava de
mim porque eu era índia.” 29
As mulheres se organizaram em grupos para reconquistar suas terras (Margarida, de nome indígena Ipotyroby, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha) 65
Observa-se que, na atualidade, principalmente a partir
do assassinato de duas mulheres indígenas, uma tupini-
quim e uma guarani, os grupos de mulheres indígenas nas
aldeias querem romper com o tabu e discutir o assunto,
buscando formas de enfrentar o problema. Sentem-se es-
timuladas também pela recente promulgação da Lei Ma-
ria da Penha30, que trata da violência doméstica no Brasil.
Diante da escassez de trabalho, homens caçadores
foram transformados em “biscateiros”, empregados da
construção civil ou estão desenvolvendo outras ativida-
des. Na realidade quilombola, a falta de emprego é muito
grande e muitas famílias agricultoras e extrativistas, in-
cluindo mulheres chefes de família, foram transformadas
em carvoeiras, vivendo da coleta do resíduo de eucalipto.

“E agora ficou ruim... e o emprego agora? Emprego aqui


ainda, que coloca sempre uma pessoa é a Disa, que coloca
pra trabalhar, né?... e a Plantar31... algumas pessoas, mas o
desemprego tá tudo, a maioria tudo é desempregado. Agora,
quando eles chegam a dar esse residuozinho de eucalipto,
fazendo pouco da gente, né, ninguém quer, mas eles
também só dá quando quer, e esse é só o passatempo, mas
nós quer é nossas terras.”
(Benedita, comunidade quilombola de São Domingos)

Uma das características da Aracruz é evitar contratar


trabalhadores oriundos das populações locais. As mu-
lheres indígenas relatam situações que vivenciaram em
suas aldeias.

A maior preocupação das mulheres é com a saúde de seus filhos

Prostituição infantil e monocultura

Segundo a Promotoria da Vara da Infância e Ju- “Na nossa região, esse ano, foi o que mais cresceu
ventude do Espírito Santo, o extremo norte do Es- [ela refere-se à prostituição]. As empresas de cana
pírito Santo, local onde vivem as comunidades qui- traz as pessoas de outra região, estão trazendo pra cá.
lombolas, é onde se registra o maior número de Aqui tem uma que chama Saionara. A gente teve até
prostituição infantil do estado. Os fatores que mais uma reunião em Conceição da Barra com o prefeito,
contribuem para a questão são a pobreza, produzi- umas três pessoas de Saionara e tinha umas dez das
da, em especial, pela monocultura de eucalipto e de comunidades. Aí falamos sobre isso, porque eles trazem
cana-de-açúcar, e o trabalho temporário dos corta- o pessoal para cá. Depois, aqui, eles não quer saber
dores de cana, que vêm de regiões distantes e ficam da saúde, polícia... não tem segurança. Aí está dando o
pouco tempo na região. Isso se agrava ainda pelo fato maior problema na região, porque o pessoal de menor
de a região ser cortada pela BR 101. Cada vez mais começa a se envolver muito. Em Conceição da Barra,
surgem notícias de mães adolescentes e mulheres também, o pessoal colocou que tá tendo demais.”
contaminadas por DSTs/Aids. (moradora da comunidade quilombola de São Domingos)

66
“Queria falar sobre o que acontece lá na aldeia de Caieiras. chega de tarde. A responsabilidade é toda da mãe. E aquela
Assim, quando o pessoal lá, os jovens, ficam sabendo mãe que se preocupa mesmo com a família, ela tem que sair
que uma firma tem emprego, eles vão lá. Só que eles não para procurar alguma coisa para trazer pra casa. Porque ela
gostam de mostrar identidade indígena. Eles vão muito tirar tá ali no dia-a-dia.”
identidade de branco por causa disso. E lá eles falam que (Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena,
não moram na aldeia. Alguém foi lá que só tinha identidade aldeia Tupiniquim Irajá)
indígena porque não tinha outro documento. Aí eles falaram:
‘Não vou te dar emprego, porque você é índio’. Ele disse: “É triste a gente chegar dentro de casa e ter filho
‘Sou índio, mas não estou morando na aldeia, sou contra pequenininho e ele pedi: ‘Mamãe, me dá um prato de
a luta pela terra’. Aí ele conseguiu emprego, mas só que a comida’, e ela não ter. É muito triste!”
empresa mandou alguém investigar. Aí ele foi até a cidade de (Marli, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)
Aracruz, por uns dias, para a casa de parentes, mas depois
voltou para aldeia e aí foi demitido do serviço.” Antes, essas populações estabeleciam relações de troca34
(Benilda, representante das mulheres indígenas na Apoinme32, nas quais o dinheiro aparecia muito raramente. Hoje, ele
aldeia Tupiniquim Caieiras Velha) é imprescindível para garantir a sua subsistência.

“Eles não dão serviço para os homens e nem pras mulheres. “Tinha muitas coisas. Todo mundo tinha criação, tinha porco
Quem tá lá é porque foi antes da demarcação; já tem até e tinha coisas assim. Mas tinha dia que não tinha nada, né?
dez anos de trabalho. Mas, depois da demarcação, ficou Às vezes, um vizinho... porque andava tudo a pé, né? Às
difícil arrumá trabalho. A fala é essa mesmo: por causa da vezes, ia na Barra comprar peixe e chegava e mandava um
demarcação33 é que elas num precisa trabalhá, que nós tem peixinho pra cada um. Ou, então, a gente vinha também e
recursos, aí não precisa. Isso é um engano, né? Porque trazia banana, fazia polenta, fazia beiju e vinha trocar por
até hoje tá balançado, não se resolveu tudo. Aí vem a peixe na praia. Os pescadores chegavam com fome... eles
dificuldade, falta de emprego, falta de trabalho.” dava o peixe e a gente dava o alimento e trazia o peixe
(Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena, pra cá. Às vezes, levava o alimento pra trocar com peixe e
aldeia Tupiniquim Irajá) comia farinha no caminho, porque sentia fome.” (risos)
(Glória, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)
“Agora nem serviço acha mais, né? Porque tá todo mundo
sem trabalho, passando dificuldade. Por que tá todo mundo “Em termos da agricultura, hoje tudo tem que ser comprado.
sem trabalho? Sai pra arranjar trabalho, mas ninguém dá Antes, como disse a Glória, antes era bastante a troca; era
trabalho porque falta a pessoa entender nossa situação. Eles difícil, mas era bom. Hoje, tudo a gente depende do dinheiro;
não gosta de índio e eles fala isso na nossa cara. Eles acha não se consegue dá um passo em Barra do Sahy se não
que a Aracruz ajuda muito os índio. A Aracruz colocou que tiver dinheiro. Hoje a troca é muito pouco. Ainda troca alguma
ela ajudava. Ajudou no quê? Ela destruiu foi as matas”. coisa, mas agora é muito menos que antigamente.”
(Maria, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha) (Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“Para conseguir um trabalho, isso também acontece nos “A gente não tinha falta de nada para alimentar os nossos
quilombolas, para os quilombolas conseguir fazer um curso, filhos... Eu sou mãe de treze filhos. Meus filhos foram criados
ele precisa negar que é quilombola.” com os peixes, com as caças. Hoje, eu tenho meus netos,
(Olindina, Associação de Mulheres Negras de São Mateus e Comissão meus bisnetos e eles têm as coisas assim tudo comprado,
Quilombola do Sapê do Norte) né? E, antigamente, nós não comprava nada, a não ser,
assim, o arroz; o óleo, quase não comprava também. A
Uma das maiores consequências da ausência de traba- gente criava era os porco. Com as coisas que nós plantava
lho é a falta de alimentos. As mulheres, que têm a res- na nossa terra era para sustentar nossos porco, nossas
ponsabilidade de preparar o alimento da família, admi- galinhas. Nós criava muito galinha e aí nossos filhos viviam
nistram, cotidianamente, a escassez. no meio da riqueza, mas dali daquela terra. Mas, depois que
Aracruz chegou, acabou com tudo... Então acabou tudo,
“Já pensou uma mãe procurar alguma coisa pra dá pros acabou tudo. Essa Aracruz Celulose acabou com nossas
filhos e não tem? Procurar um café, um leite, e não tem. Não coisas tudo. Agora, nós vivemos assim com as coisas todas
tem um pão, uma comida não tem. Porque a criança não compradas, trabalha pra comprar tudo, não é mais como
quer nem saber de onde sai e como sai. Então, as mães se antigamente.”
preocupa mais mesmo. A mãe sabe de tudo o que acaba ali (Rosa, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)
dentro de casa. O pai, por exemplo, se tem um serviço, ele
sai de casa de manhã, faz uma marmitinha, carrega e só Nesse contexto de ausências, o artesanato surge como 67
uma possibilidade para driblar a escassez. Os grupos de juntava tanta gente! Era o lugar de lavar roupa. Terminava de
mulheres artesãs buscam articular a função cultural do lavar roupa, a gente tomava banho e vinha embora, né?”
artesanato indígena à geração de renda. Entretanto, a (Maridéia, Comissão de Mulheres Indígenas e aldeia
perda das matas comprometeu a disponibilidade da ma- Tupiniquim Pau-Brasil)
téria-prima utilizada para a sua produção.
Segundo o Relatório de Impactos da Apropriação dos
“Nossa! Teria mais valor o nosso artesanato! É o urucum, o Recursos Hídricos Pela Aracruz Celulose nas Terras Indí-
jenipapo... é mais pra pintura corporal; mas, assim, o barro genas Guarani e Tupiniquim, elaborado pela Associação
vermelho, a folha da cana, a folha do pé de araçá, da pedra dos Geógrafos do Brasil (2004), foram desmatados, só no
vermelha... Então, são tudo tintura natural. Até aquele melão município de Aracruz, 430 km² da floresta tropical plu-
de São Caetano... ele tinha uma tintura natural. É através do vial nativa para dar lugar à plantação de eucalipto. Rios
artesanato que a gente fala da [nossa] cultura. É uma coisa imprescindíveis à vida das populações indígenas, como o
significante. Quando você compra um artesanato, você quer Guaxindiba e o Sahy, que banhavam a aldeia Pau-Brasil,
ficar mais bonita, para nós, não. Quando você compra o praticamente desapareceram.
nosso artesanato, você leva um pouco da cultura.”
(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil) “Depois, eles começaram a botar os remédios. Começaram
acabando com tudo. Os remédios [agrotóxicos] matavam as
“... porque as mulheres, de primeiro, tinha muita coisa caça, os passarinhos, a água contaminava também, matava
que dava para elas se manter... assim, material de fazê os peixes, os caranguejos como tem lá em Pau-Brasil. Lá
artesanato, que as mulheres fazia muito. E hoje não existe tem um riozinho que subia lá para Barra do Sahy. Então, ali,
muito. Pra fazê alguns cordão, precisa ir longe, porque os aquele rio se acabou, né? Os peixes também se acabaram
pedacinhos de mato que tem aqui... não tem muitas coisas tudo, por causa do veneno que eles foram botando. Foram
que a gente necessita. Algum material tem perto... algumas acabando com nossos peixes, nossos caranguejos. Não
sementes que a gente colhe... Por exemplo, se pegar a tem mais nada lá no mangue. Pode ir lá olhar que você não
semente pra plantá, pode até nascer e aí a gente tem aquela vê mais nada, caranguejo, guaiamu, tudo isso era nosso
semente pra fazê o artesanato. Mas aquelas sementes alimento, que nos alimentava. A gente não tinha falta de
que existia perto das casas, hoje já não existe mais. Então, nada, alimentava nossos filhos.”
tem a dificuldade pra gente colher esse material. E, hoje, (Rosa, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)
as mulheres que têm dentro da comunidade é que tem que
procurar algum serviço pra ajudar a manter a casa, né?” “Quem fez tampar o rio foi a Aracruz, porque plantou
(Maria Loureiro, aldeia Tupiniquim Irajá) eucalipe e puxou a água e o rio... agora tudo... e também
muita barragem, muito bueiro, manilha, né? Perdeu a
“Não se acha um cipó mais. Não se acha uma palha mais. força da água e aí foi que secou o rio. De primeiro, era
Se eles quiserem... Primeiro, os índios faziam suas casa de correnteza, e, agora, cadê?”
palha, tinham como fazer uma casa de palha, tinha palha (Francisca, aldeia Tupiniquim Irajá)
e tinha madeira. Hoje, não se acha mais nada. Então, as
coisas ficaram muito difíceis. Essa realidade acabou com os Muitas crianças passaram a ficar sob os cuidados de vizinhos ou de irmãos
indígenas mesmo, com a gente das aldeias. Todas as aldeias
ficaram prejudicadas.”
(Marli, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)

Apesar das dificuldades encontradas para a produ-


ção do artesanato, as mulheres indígenas estão cada vez
mais organizadas, buscando garantir a recuperação da
matéria-prima original, as condições físicas e materiais
adequadas para a realização do trabalho e alternativas de
comercialização. Segundo elas, o artesanato é uma forma
de lhes garantir a auto-sustentação, impedindo que saiam
das aldeias para buscar trabalho.

2.2- Rio: lugar de encontro


“Era tão maravilhoso se abrisse o rio pra nós. Nós lavava
roupa, nós pegava água pra bebê, pra fazer comida... A
68 gente pescava peixe, pegava com peneira. A mulherada...
Esse drama ocorreu também na região onde vivem as com as águas dos rios. Por isso muitos adolescentes ín-
comunidades quilombolas: a vivência [dos quilombolas] dios não sabem nadar, algo difícil de ser compreendi-
testemunha a morte de quase todos os 14 rios e córre- do no imaginário social brasileiro. Os Tupiniquim, que
gos que atravessavam a entrada de Itaúnas e a sede de pertencem ao tronco linguístico Tupi, sempre viveram
Conceição da Barra. Em 1999, apenas o São Domingos, às margens de grandes rios. Para as indígenas, a falta da
afluente do [Rio] Cricaré, dispunha de água35. Os rios es- água e a água contaminada são problemas que se mani-
tão assoreados e/ou contaminados. festam no cotidiano da casa. Elas têm que cozinhar, lavar
A situação do Rio Comboios é um exemplo da prepo- a roupa e providenciar água para beber e banhar os seus
tência e do desmando da Aracruz Celulose no trato da filhos menores.
questão hídrica. Em 1999, ela fez a transposição das águas
da bacia hidrográfica do Rio Doce para a bacia do Rio Ria- “A gente pescava de anzol, pescava de rede, botava uma
cho, por meio da construção do canal que ela denominou cruzeira, fazia um mundéu, pegava uma caça, né? um
de Caboclo Bernardo, buscando garantir o abastecimento tatu, muito gostoso. Aí agora, se ir... Eu acho que quem
de água para a terceira fábrica da empresa. “Entre o canal mata um inocente, nem vai preso. Agora, só por causa de
e a planta do complexo celulósico se encontram a aldeia uma caça ou um peixe, a gente leva aí não sei quantos
Comboios e o Rio Comboios [...]. Depois da construção do anos de cadeia, que eles promete. Mas acabou nossos
canal, não é mais possível sua utilização para beber ou peixe. São Domingos, Santana... nós ia com aqueles balaio
para banhar porque a água provoca febre, vômitos, ‘en- que nós pescava, pegava era muito peixe! Agora, acabou
caroça’ o corpo”.36 tudo! Secou os córrego, né? Se tiver algum córrego, mas
ninguém não pode comer um peixe preto, igual teve uma
O rio era o espaço de socialização das mulheres. que falou aí que a água é preta, né? Aquela água preta que
ninguém... Vixi! Nem... que roupa! Ninguém nem vai fazer
“A nossa preocupação era a falta do rio, e agora ela é bem isso! Aí, acabou. As nossas cultura, nossos passarinho,
maior. É igual você falou: ‘tomá o banho, lavá a roupa, de ter aqueles passarinho tão gostosinho que a gente pegava,
a água em casa’. Como você falou, não é tanto dos homens, fritava pra comer, né? Que isso tudo a gente fazia, que era
né?. E quando tinha o rio aqui, as mulheres pegavam suas da roça mesmo! Aí, agora, acabou.”
trouxas de roupa... e era aquela festa na beira do rio, todas (Benedita, comunidade quilombola de São Domingos)
lavando a roupa. Era mais no dia de sábado, e quem tinha
tempo, durante a semana. Já era um trabalho a menos, “Eu não tenho meu pai mais, mas o meu pai me contava
porque tinha aquela quantidade grande de água no rio e tudo muito sobre o córrego em São Jorge. Isso era muito
ficava mais fácil. Quando a gente tinha que pegar no poço, importante para eles [para os quilombolas]. Isso era
descer uma ladeira onde tem o poço hoje... Então, essa importante pra gente também. Mas, como que é que se
preocupação não é dos homens, é mais das mulheres, e, vai cuidar do rio, se o rio está todo envenenado com os
quando falta essa água nas caixas ou tem um problema na defensivos [agrotóxicos] que eles colocam para manter...
bomba, os homens não vão pegar o balde... são bem poucos para exportar o rico papel deles. Então, para exportar o rico
que vão pegar o balde e descer a ladeira, né? E quando papel, eles danificam o rio, acabam com a vida e a saúde
tinha só um pouquinho de água, a gente ia se virando. Mas de todos nós. E aí nós ficamos mais prejudicados ainda e
a preocupação é das mulheres mesmo, né? De ir lá pegar eles não têm a relação direta com o veneno do rio, porque
água no poço e ter essa água em casa. Até que... quer somos nós e os funcionários deles que têm esse contato.”
dizer, quando tinha rio essa preocupação diminuía porque, (Olindina, Associação de Mulheres Negras de São Mateus e da
pelo menos, pra lavar a roupa, a gente tinha como resolver Comissão Quilombola do Sapê do Norte)
o problema. A dificuldade aumentou quando esse processo
todo aí, com a chegada de eucalipto foi sugando essa água O rio era o lugar de encontro das mulheres. O momento
do rio, que chegou ao ponto que chegou hoje.” do lazer, da conversa, da troca de experiências e saberes,
(Maria Helena, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil) o espaço das combinações e do reforço dos laços afetivos
e comunitários, suprimidos pela implantação do agrone-
“Eu acho que o rio traria mais união, porque na beira do rio gócio da celulose.
a gente lava a roupa, conversa, se distrai. Acho também que
seria uma higiene mental, e as crianças... [nós] não teria “Lavava muita roupa junto. Era o mesmo ponto. A hora que
tanto medo delas aprenderem a nadar. No rio tinha a taquara aquele bocado de mulheres colocava a roupa pra quarar,
pra fazê a peneira... camarão... o pitú, né?, traíra...” elas tinham mania de falar. A gente coloca de molho, né? Lá
(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil) o alvejante era folha de mamão, né? (risos) e colocava... A
grama grande na beira do córrego, cultivava aquela grama e
As gerações mais jovens perderam a familiaridade jogava aqueles lençóis brancos, roupas brancas, e alvejava 69
mesmo, de verdade. De vez em quando salpicava aquele Amplas conhecedoras da biodiversidade, essas popula-
pouquinho de água e alvejava mesmo, de verdade.” ções viram-se impedidas de continuar a exercitar seus sa-
(Eni, comunidade quilombolas de São Domingos) beres e práticas relacionados com a saúde. Com a destruição
da floresta e a implantação de postos de saúde nas aldeias,
A recuperação dos rios das áreas indígenas pela Aracruz iniciaram-se as dificuldades de continuar a produção e o
Celulose constituía item do acordo feito entre a empresa e uso dos remédios naturais. Com o passar do tempo, tornou-
a Associação Indígena Tupiniquim e Guarani, em 1998. No se cada vez mais difícil para as velhas gerações transmitir
entanto, a questão não saiu do papel e a situação agravou- às mais novas o seu conhecimento sobre as diversas espé-
se desde então. As mulheres que apostam na capacidade de cies de uso medicinal que compunham a Mata Atlântica.
regeneração da natureza sonham em banhar-se um dia nos Muitas foram extintas, outras encontram-se em processo
rios de outrora. de extinção. A situação agrava-se ainda mais quando há o
aumento dos problemas de doença da população local.
2.3- A saúde regada a rezas e ervas medicinais
“A planta medicinal pode ter morrido nas cozinhas, mas no “Tem muita pressão alta... Não existe remédio para pressão
coração da gente nunca morre não, porque faz parte da alta? Não existe remédio para diabetes?”
saúde, é algo alternativo, e eu acho que a gente tem que (Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)
batalhar. Por isso que a gente entrevista muito os adultos, os
mais velhos.” Entre os moradores das aldeias são muito comuns os
(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, Comissão de Mulheres problemas respiratórios, em especial na aldeia Pau-Bra-
Indígenas, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil) sil, localizada a três quilômetros da fábrica de celulose. As
crianças são as que mais sofrem com o problema.
“O remédio natural é muito importante. A gente tem que
tomar até acabar essa doença. Minha avó falava que podia “Hoje, as crianças nascem e com um mês de nascido, tá
tomar. A gente tem que pedir pra Deus que ele vai mostrar o lá fazendo nebulização. E isso é o quê? É o impacto da
verdadeiro remédio. Nós acreditamos no remédio vivo.” empresa, entendeu? Do que vem do ar. Essas doenças não
(Joana, de nome indígena Tatatxî, Comissão de Mulheres Indígenas, eram de índia, o câncer... porque hoje tudo é artificial.”
aldeia Guarani Boa Esperança) (Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

Vários rituais, práticas e tradições da cultura indígena deixaram de ser transmitidos para as novas gerações: culturas milenares ameaçadas

70
Com as ervas cada vez mais raras, as mulheres, respon- Tive meus filhos tudo em casa, com parteira.”
sáveis por cuidar da saúde dos filhos, enfrentam dificul- (Joana, de nome indígena Tatatxî, educadora indígena,
dades para lidar com as doenças da família e, sem alter- aldeia Guarani Boa Esperança)
nativa, dão passagem à medicina convencional. Hoje, o
uso de remédios farmacêuticos é bastante comum entre O relato indígena combina com as informações qui-
os índios. lombolas a respeito do desaparecimento das parteiras e a
adoção – embora dificultosa – do atendimento médico do
“Tá entrando muito remédio de farmácia nas aldeias.” Sistema Único de Saúde (SUS)38.
(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)37
“São Barto era o santo das parteiras. São Barto ajudava
“A gente usava várias ervas para dor de barriga. Para quando ganhavam os nenês em casa. Tinha as parteiras.
dor de cabeça era folha de urucum. Mas hoje as pessoas Minha mãe mesmo era parteira. Hoje, nasce tudo no
preferem ir à farmácia do que tomar remédio caseiro. O hospital, porque não tem parteira mais. As parteiras já
xarope da folha de maracujá, da folha da arnica deixa morreu, aí é tudo médico. No tempo que era só parteira,
a pessoa que tem problemas curada. A carobinha cura não existia nem médico, e o que existisse não ia lá, não.
coceira, cura tudo. O banho é muito bom. A gente tá Minha mãe mesmo era igual a médico. Todos os problemas
fazendo pouca coisa por falta de ervas.” ela resolvia. Mas eu não aprendi o que ela fazia, não, eu
(Nilza, Comissão de Mulheres Indígenas, aldeia Tupiniquim Comboios) era bem mais nova, alguma coisa ela ainda me ensinou.”
(Benedita, comunidade de São Domingos)
“Morei na roça, morava na roça, morei muito tempo
lá, meus filhos tive todos com parteira. Aqui, o que as Outra informação refere-se à mudança física do corpo
mulheres mais reclamam é sobre a saúde dos filhos da mulher. A obesidade, tanto da mãe quanto dos bebês,
mesmo... Geralmente, o pessoal fala que os remédio não durante a gestação, dificulta um parto natural. Essa situ-
tem mais... aqueles que eles usavam pra fazer o chá. Um ação tem sido atribuída ao consumo de comida industria-
fazia chá, outros fazia garrafadas. Hoje, isso aqui não lizada pelas mulheres, diferentemente do que acontecia
existe mais, porque não existe mais a mata. Eles falam que quando elas se alimentavam da comida produzida pelas
não tem mais aquela mata. Ah! Jesus, onde tem aquele aldeias ou extraída das matas, sem qualquer aditivo quí-
mato? Hoje não existe os remédios do mato. O pessoal, as mico. Também se atribui à alimentação a menstruação
meninas grávidas começa fazer logo pré-natal no hospital e precoce das meninas, que vivenciam a maternidade cada
quando vêm de lá já chega cheio de problema...” vez mais jovens.
(Maria Goreti, comunidade quilombola de São Domingos)
“De qualquer forma, o índice de cesariana hoje é bem
O nascimento é um acontecimento muito especial na maior do que antigamente. O parto normal, às vezes, é
vida das populações indígenas. No entanto, nesse novo difícil porque as mulheres engorda muito e aí têm que
contexto, transformou-se num desafio envolvendo esco- fazer cesariana.”
lhas nunca antes imaginadas: o parto será normal ou ce- (Maria Helena, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)
sariana? “Dona” Marilza, de nome indígena Keretxu-Endi,
uma sábia velhinha, liderança Guarani, analisa por que é Uma das alternativas utilizadas por algumas mulheres
tão difícil, atualmente, as mulheres terem filhos com par- indígenas para combater a obesidade é o uso de drogas
teiras. Segundo ela, as parteiras estão desaparecendo, e para emagrecer.
as mulheres indígenas fazem o acompanhamento com os
médicos da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que “Antigamente não tinha isso. Ninguém se preocupava com
não incentivam o trabalho das parteiras. gordura ou com magreza. Por exemplo, eu... minha família
mesmo... minha mãe era alta e forte, né? Mas ela não se
“As mulheres tinha cinco, dez, onze filhos e não tinha preocupava que tinha que emagrecer pra ficar bonita. Ela
problema nenhum. Agora, elas têm problema. Porque, sempre falava que a beleza Deus é que dá pra gente. Hoje,
muitas vezes, hoje, as doenças que está acontecendo é a gente vê muitos remédios pra emagrecer que tá trazendo
porque as mulheres não procuram os remédios do mato. muitas doenças pras mulheres que quer, através de vários
Elas vai no médico e ele fala que você não vai ter mais medicamentos, ficar bonita. Aqui na aldeia algumas tomam.
cinco, seis filhos, que você tem problemas. Minha avó falou Eu conversei essa semana com algumas que tão tomando
que os brancos que quer acabar com o índio, não quer remédio pra emagrecer. Só que, hoje, esses remédios tão
mais que os índios têm muito filho. Ela [minha mãe] ajudava fazendo mal. Eu mesma nunca tomei e não pretendo tomar.”
minha avó a fazer parto. Hoje, já não faz mais. Antes, tinha (Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena,
parteira, e os remédios era do mato. Eu nunca fui a médico. aldeia Tupiniquim Irajá) 71
Outro aspecto que interfere na realização de partos na- “Eu aprendi com minha avó, minha bisavó, que benzia...
turais nas aldeias estaria ligado ao sedentarismo. Hoje, Eu comecei a benzer com 12 anos. Eu tenho aquele dom.
por falta de espaço físico e por assumir novas tarefas di- Daí eu comecei a benzê. Eu benzo gente aqui da aldeia,
ferentes daquelas tradicionais da mulher indígena, o cor- gente fora da aldeia. Eu já benzi gente até de Ibiraçu. Já
po da mulher está mais fragilizado e suscetível a doenças. veio gente de Vitória e eles ficaram bom. Quando eu rezo,
Antes, segundo uma liderança guarani, “... as mulheres eu rezo de noite, com o nome da pessoa. O chá depende
tinham mais força nas pernas”. São comuns relatos de pra quem é. Tem poucas ervas, porque muitas acabaram,
mulheres que foram submetidas a cesarianas. Há casos porque a Aracruz derrubou muitas madeira forte que tinha,
de perdas de bebês no nascimento, o que, para essas po- os remédios que tinha ela derrubou. Na mata é difícil achar
pulações, é um acontecimento grave e triste. erva, mas eu vou pela beira das casas... a gente acha
ainda poucas, mas a gente consegue ainda capim-cidreira,
“Nós, Guarani, precisamos pensar a saúde guarani. Minha macaé, cidreira, a pitanga, que também dá chá bom, a
esposa teve neném. Foi a primeira vez que uma mulher aqui menina da banana prata, que serve pra diarréia...”
na minha família foi operada para ter neném. Ela e o neném (Maria Loureiro, aldeia Tupiniquim Irajá)
quase morreram. A criança até hoje tá internada na UTI
Neonatal lá em Vitória. Minha esposa, depois que chegou Atualmente, as mulheres buscam desenvolver projetos
aqui, chegou com a barriga inchada. Aí eu fiz um chá pra de implantação de hortas, comunitárias ou individuais, nas
ela e foi graças a esse chá que eu percebi que tinha alguma suas aldeias, com o intuito de produzir alimentos e ervas
coisa errada. Aí eu levei ela aqui no hospital em Aracruz. medicinais. Elas têm consciência de que parte da matéria-
Tiveram que abrir de novo a barriga dela e descobriram que prima usada para seus remédios caseiros foi extinta, toda-
a médica tinha esquecido de tirar... como é o nome mesmo? via o seu principal alvo são aquelas que estão em processo
Aquilo que o neném fica dentro. Pois é, ela esqueceu de tirar de extinção. A retomada do território embute a esperança
a placenta e ela quase morreu por causa disso. Me disseram de recuperação das matas e, com ela, de parte importante
até que se eu quiser entrar com um processo contra a das árvores e da vegetação que constituíam a base das prá-
médica eu posso fazer. Então, se não fosse o chá, ela podia ticas de saúde indígena e quilombola.
ter morrido.” Em especial, nas quatro últimas décadas, essas popula-
(Toninho, de nome indígena Werá Kwaray, Cacique da aldeia ções experimentaram mais intensamente o significado da
Guarani Boa Esperança) palavra doença. A saúde está vinculada à vida, à natureza
(aquela que guarda parte importante do conteúdo mate-
Continuando a analisar a saúde das mulheres, uma rial e simbólico das práticas culturais); já a doença articu-
velha guarani diz que as mulheres, antes, tinham maior la-se à morte da natureza, à presença da monocultura nos
controle sobre o seu corpo, ou seja, elas controlavam a seus territórios. A vitória, na luta contra a monocultura, é
sua fertilidade. a vitória da vida sobre a morte.

“Quando queriam ter muito filhos, a mulher guarani... tinha 3- Considerações finais
um cipó na mata que elas usava, mas agora ele não existe Um das características essenciais dessas populações é
mais. E o contrário também. Quando a mulher guarani não a sua capacidade de resistência. Articuladas a outros mo-
queria ter filho, elas bebia uma garrafada [de ervas] que vimentos, como a Via Campesina e a Rede Alerta contra
também tinha na mata.” o Deserto Verde, são protagonistas do maior movimento
(Marilza, de nome indígena Keretxu-Endi, aldeia Guarani Piraquê-Açu) socioambiental do Espírito Santo, realizando inúmeras
ações de enfrentamento ao agronegócio da monocultu-
Muitas mulheres relatam que engravidavam de dois em ra de eucalipto. Hoje, essas populações têm importantes
dois anos, demonstrando que faziam, de uma forma mui- instrumentos de organização e contam com o apoio ex-
to particular, o seu planejamento familiar. Hoje, a forma pressivo de movimentos sociais e ONGs locais, nacionais
mais comum de controle de natalidade é o uso de pílula e internacionais.
anticoncepcional ou a laqueadura de trompas. As mulheres, por sua vez, buscam assumir, cada vez
A forte crença religiosa guiada pela presença de Ñhan- mais, o seu lugar nesse processo de luta. Quando “[...] o
deru e Tupã39 orienta a vida dessas populações. Entre os ambiente começar a doer nos seus filhos, muitas mulhe-
Guarani ainda estão presentes muitos rituais de rezas, res atuarão”40. Assim se escreve a história das mulheres
conduzidos pelos pajés, como um caminho para a cura indígenas e quilombolas do Espírito Santo que, ao longo
de doenças e a geração da saúde. Em alguns rituais, fica dos últimos 40 anos, vivem os impactos da monocultura
difícil identificar se são próprios da tradição indígena ou em larga escala, juntamente com as suas famílias e o seu
se são resultado do contato com práticas religiosas não povo, indignando-se diante de tanta violência e opressão.
72 indígenas. A prática do benzimento é um deles. São mulheres que, agora, por escolha, ocupam o espaço
público como portadoras dos clamores do seu povo.
O processo de organização das mulheres em espaços
específicos é recente. No caso das mulheres indígenas,
por exemplo, há grupos organizados em cada aldeia vol-
tados à produção do artesanato e ao resgate dos saberes
e uso das ervas medicinais. Algumas se encontram num
processo de organização mais avançado, outras estão ain-
da iniciando. Buscando reforçar o seu processo de orga-
nização, há pouco mais de um ano, criaram a Comissão de
Mulheres Indígenas Tupiniquins e Guaranis, que busca
articular as mulheres indígenas de todas as aldeias e de-
senvolver atividades e lutas do seu interesse.
Observa-se que todo o movimento organizativo pro-
tagonizado pelas mulheres tem estimulado o reconhe-
cimento público dos diversos trabalhos que realizam: na
frente de batalha, buscando fazer a auto-demarcação do
território; no enfrentamento à polícia, na ocupação da
fábrica da Aracruz (ocorrida em 2005); na cozinha, pre-
parando a comida para as grandes assembléias indíge-
nas. Dessa maneira, elas vêm, cada vez mais, ampliando
os seus espaços de socialização41 e procurando substituir,
em parte, aqueles que lhes foram arrancados. A organiza-
ção tem contribuído também para aumentar a sua auto-
estima. São mulheres que se reconhecem indígenas e se
sentem responsáveis em partilhar com outras mulheres
as suas conquistas.
As mulheres quilombolas, que são muito mais nume-
rosas, também iniciam o seu processo de organização. Há
mulheres representando suas comunidades na Comissão
Quilombola do Sapê do Norte. Outras buscam articular
grupos de base de mulheres.42
Em agosto de 2007, no processo de ocupação de uma
parcela do território da Comunidade Quilombola de Li-
nharinho, que se encontra sob o controle da empresa
Aracruz, as mulheres quilombolas marcaram presença
de diferentes formas: na condução política do movimen-
to; na cozinha, preparando a alimentação dos ocupantes;
nas ações de protesto, quando divulgaram o Manifesto do
Grupo de Mulheres da Escola Quilombola43, expressando
a sua indignação com a lentidão do governo federal em
reconhecer e demarcar os territórios quilombolas.
Mulheres indígenas e quilombolas, que por tantas dé-
cadas partilharam dos impactos da monocultura de eu-
calipto, buscam, agora, partilhar a sua experiência orga-
nizativa, descobrindo juntas os caminhos da liberdade.
Mulheres que estão cada vez mais próximas e que se for-
talecem mutuamente, lutando contra a opressão do agro-
negócio e do patriarcado.
Tamra Gilbertson

Vivendo de modo comunal, os índios se reconhecem como parte da natureza 73


Referências contou com o apoio de outros movimentos sociais e parceiros, concretizando-se num
1- Este texto foi extraído, com alterações, da publicação Mulheres e Eucalipto: histórias acampamento que ali se manteve por 21 dias. No acampamento foram construídas
de vida e resistência, das mesmas autoras, realizada pelo Movimento Mundial pelas diversas barracas, uma cozinha comunitária, uma cacimba, vários plantios de nativas e
Florestas Tropicais (WRM) em 2007. À luz da experiência das mulheres indígenas frutíferas, inserindo vida na paisagem anterior de monocultivo do eucaliptos.
Tupiniquim, Guarani e quilombolas do norte do Espírito Santo, este texto busca mostrar
parte das implicações da monocultura de eucalipto sobre a vida das mulheres. 14- A meta do governo federal proposta no Plano Nacional de Florestas (PNF), de 2005, é
aumentar as plantações de árvores, no Brasil, de 5 para 7 milhões de hectares, até 2007.
2- O Dia Internacional da Mulher, 8 de março, é celebrado por diversos movimentos de Na mesma linha, o governo do Espírito Santo lançou, em 2005, um plano estratégico para
mulheres, em várias partes do mundo. No dia 8 de março de 1857, as operárias têxteis o setor, pretendendo duplicar a área de plantações no estado até 2010.
de uma fábrica em Nova Iorque entraram em greve, exigindo a redução da jornada de
trabalho de dezesseis horas para dez horas. Trabalhando dezesseis horas por dia, essas 15- A empresa, no seu cálculo, inclui terras indígenas e quilombolas apropriadas
operárias recebiam menos de um terço do salário dos homens. Devido a esse movimento, como terras devolutas, a partir da década de 1960, revelando a total ausência do
foram trancadas dentro das dependências da fábrica e incendiadas vivas. Cerca de 130 reconhecimento desses territórios étnicos pelo Estado brasileiro.
mulheres morreram queimadas. Em 1910, numa conferência internacional de mulheres
realizada na Dinamarca, foi estabelecido o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. 16- Cada uma delas, a Stora-Enzo e a Aracruz Celulose, possui 50% das ações na
empresa Veracel Celulose.
3- São mulheres do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O MMC e o MST integram a Via Campesina, que é 17- Liderança quilombola da comunidade de Linharinho e membro da Comissão
um movimento internacional que articula movimentos de camponeses (pequenos, médios Quilombola do Sapê do Norte. Consultar: Oliveira, Osvaldo Martins de et al. Quilombo:
produtores e sem-terras) da América Latina, Ásia e Europa. No Brasil, a Via Campesina autodefinição, memória e história. In: Castanhede Filho, Andréa et al. O Incra e os desafios
possui alguns fóruns regionais e um fórum nacional. Para maiores informações, consultar para a regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasília: MDA/
o site: <www.viacampesina.org>. Incra, 2006. p. 123.

4- O viveiro se localiza na fazenda Barba Negra, em Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul. 18- Os Guarani chegaram à região em meados da década de 1960, na busca da “Terra
sem Males” ou da “Terra Sagrada”, e habitaram o território Tupiniquim.
5- Via Campesina, 2006, p. 26
19- A Rede Alerta contra o Deserto Verde é uma rede informal que se formou em 1999,
6- Movimento Mulheres Camponesas (MMC), Brasil, 2007, p. 1. constituída por comunidades impactadas pela monocultura de eucalipto, por movimentos
sociais e por entidades de apoio, com o intuito de frear a contínua expansão das
7- O 08 de março de 2009 caiu em um domingo, por isso a escolha de se realizar monoculturas de árvores e de apoiar as lutas de resistência das comunidades impactadas. A
atividades no dia 09 de março. O Fórum de Mulheres do Espírito Santo, no dia 09 de Rede começou a organizar-se no norte do Espírito Santo e no extremo sul da Bahia, onde,
março, realizou uma marcha pelas ruas da cidade de Vitória, com mais de 500 pessoas, conjuntamente, existem cerca de 500 mil hectares sob o domínio de algumas empresas
com a temática: “Mulheres livres! Povos soberanos! plantadoras de eucalipto. Posteriormente, Minas Gerais, o estado com a maior área de
plantações no Brasil – com cerca de 2 milhões de hectares – integrou-se à Rede, tendo
8- Associação dos Geógrafos do Brasil. Relatório de impactos da apropriação dos em vista a iminência da instalação da Aracruz Celulose no norte do estado, seguido do Rio
recursos hídricos pela Aracruz Celulose nas terras indígenas Guarani e Tupiniquim. de Janeiro. Por último, o Rio Grande do Sul também passou a fazer parte da organização,
Vitória: AGB, 2004. devido à expansão das monoculturas de eucalipto e pinus no sul e no oeste desse estado.

9- Ciccarone, Celeste. Territórios quilombolas no Espírito Santo: a experiência do Sapê 20- Antes da chegada dos europeus colonizadores, esta terra constituía, em sua
do Norte. Apresentação. In: Castanhede Filho, Andréa et al. O incra e os desafios para totalidade, diversos territórios indígenas.
a regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasília: MDA/Incra,
2006. p. 117. 21- Esses números são divulgados por lideranças indígenas e quilombolas. Apesar da
dificuldade de se precisar exatamente o tamanho da área usada pelas comunidades e o
10- Considerado a maior autoridade mundial em beija-flores, o ecologista capixaba número de aldeias e comunidades quilombolas existentes até as décadas de 1960 e 1970,
Augusto Ruschi dedicou sua vida à luta ambiental. Morreu em 1986, aos 70 anos de idade os mais velhos, que guardam na memória os acontecimentos longínquos, constituem-se
(Folha de São Paulo on-line, 1986, [s.p.]). as principais fontes de informação que permitem recompor a história desses povos.

11- Conforme o censo demográfico da Funai de 2004, na região, a população era de 22- Essas populações sempre fizeram o uso comum do território. No entanto, na década
2.765 índios, sendo 2.552 Tupiniquim e 213 Guarani. A população ocupava 7.061 de 1960, o estado capixaba, que tinha interesse em caracterizar aquelas terras como
ha de terra, habitando sete aldeias: Caieiras Velhas, Irajá, Pau Brasil, Comboios, Boa devolutas, impôs aos moradores das comunidades negras rurais que requeressem sua
Esperança, Três Palmeiras e Piraquê-Açu (aldeia criada para impedir a instalação, em pequena parcela individual de terra ao governo estadual e a registrassem nos cartórios
área indígena, de uma empresa exploradora de algas calcárias, a Tothan). A conquista de registro de imóveis. As terras não requeridas foram consideradas devolutas e ficaram
mais recente das populações indígenas foi a oficialização, por meio de duas portarias disponibilizadas, posteriormente, para a empresa Aracruz.
do governo federal, do reconhecimento de 10.966 ha de terra sob o controle da
Aracruz Celulose S.A. como terras indígenas, totalizando 18.027 ha de terras indígenas 23- Uma iniciativa importante das comunidades quilombolas protagonizada pelas mulheres
no Espírito Santo. é a Festa do Beiju, um evento que acontece uma vez por ano e que reúne as diversas
comunidades, buscando recuperar e fortalecer práticas tradicionais da culinária quilombola.
12- De acordo com o depoimento dos moradores mais antigos, cem é o número que as
lideranças quilombolas usam para definir a quantidade de comunidades existentes na 24- Coqueiral, bairro situado no município de Aracruz, criado pela empresa para abrigar
época, no entanto é difícil precisar esse dado. A certeza que se tem é de que existiam os seus empregados.
muitas comunidades dispersas no território Sapê do Norte.
25- O acordo foi firmado em decorrência do segundo processo de autodemarcação,
13- A comunidade quilombola de Linharinho teve reconhecido o seu direito a 9.542 ha iniciado pelas populações indígenas, em 1998. A estratégia da empresa foi – juntamente
de terra por meio da portaria n.° 78, assinada pelo governo federal em 14 de maio de com o gabinete da presidência da República (Fernando Henrique Cardoso), a Funai e a
2007. No entanto, ao que parece, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que Polícia Federal – isolar as lideranças do movimento em Brasília, forçando-as a um acordo,
a terra seja demarcada. Buscando exercer pressão política em prol da demarcação de seu com validade de vinte anos, bastante favorável à empresa. O acordo determinava que
território, a comunidade ocupou, em agosto de 2007, uma área atualmente em poder os índios não poderiam questionar a decisão, inconstitucional, do governo brasileiro de
74 da empresa Aracruz Celulose S.A., de onde há a memória da grilagem. Essa ocupação repassar as terras indígenas para a Aracruz e, como contrapartida, a empresa, durante
vinte anos, financiaria projetos nas aldeias. Dessa forma, ela conseguiu desmobilizar as Referências Bibliográficas
ações de autodemarcação. Amato, Fábio. Produção de álcool no Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, p. B5, 18 mar. 2007.

26- Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (iniciativa privada). Associação dos Geógrafos do Brasil. Relatório de impactos da apropriação dos recursos
hídricos pela Aracruz Celulose nas terras indígenas Guarani e Tupiniquim. Local: AGB,
2004.
27- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, órgão
vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Barcellos, Gilsa Helena; Ferreira, Simone Batista. Mulheres e eucalipto: histórias de vida e
resistência. Montevideo: Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (World Rainforest
28- Maria Helena é não-índia. Casou-se com um tupiniquim e vive na aldeia Pau-Brasil. Movement - WRM). Coleção do WRM, plantações nº 11, dez. 2007.

29- O ex-marido de Margarida é não-índio. Ciccarone, Celeste. Territórios quilombolas no Espírito Santo: a experiência do Sapê do
Norte. Apresentação. In: Castanhede Filho, Andréa et al. O incra e os desafios para a
30- A Lei n.º 11.340/07, Lei Maria da Penha, dá cumprimento à Convenção de Belém do regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasília: MDA/Incra,
Pará, tipifica e define a violência doméstica e familiar como uma forma de violação dos 2006. p. 116-122.
direitos humanos, altera o código penal e possibilita que os agressores sejam presos,
acaba com as penas pecuniárias e prevê inéditas medidas de proteção para as mulheres Ferreira, Simone R. B. Da fartura à escassez: a agroindústria de celulose e o fim dos
que correm riscos de morte, como o afastamento do agressor do domicílio e a proibição territórios comunais no extremo norte do Espírito Santo. 217 f. Dissertação (Mestrado
de sua aproximação física da mulher agredida e dos filhos. em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2002.
31- A Disa é uma empresa produtora de álcool e grande plantadora de cana-de-açúcar. A
Plantar é a empresa terceirizada pela Aracruz para cuidar do plantio de eucalipto. Kaplan, Temma. Uncommon women and the common good: women and environmental
protest. In: Rowbotham, Sheila; Linkogle, Stephanie (Ed.). Women resist globalization:
32- Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo. mobilizing for livelihood and rights. London: Zed Books, 2001. p. 28-42.

33- Aleida refere-se às tentativas de autodemarcação realizadas pelas populações Lage, Nilson; Chernij, Carlos. Filhos da pobreza/queda da natalidade x aumento da
indígenas para a retomada do seu território. Houve três movimentos buscando miséria. IstoÉ, São Paulo, 2003. Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoe/1744/
autodemarcar o território. A primeira demarcação aconteceu em 1981, a segunda, em ciencia/1744_filhos_pobreza.htm >. Acesso em: 15 jun. 2006.
1998 e a última, em 2005.
Morre Ruschi, pesquisador dos pássaros. Folha de São Paulo On Line. São Paulo, 4 jun.
34- Até hoje não existe uma expressão em guarani que traduza a palavra “vender”. 1986. Disponível em: <www.almanaque.folha.vol.com.br/cotidiano_041jun1986.htm-
13k>. Acesso em: 5 jul. 2006.
35- Ferreira, Simone R. B. Da fartura à escassez: a agroindústria de celulose e o fim dos
territórios comunais no extremo norte do Espírito Santo. 217 p. Dissertação (Mestrado Movimento das Mulheres Camponesas do Brasil. MMC e Via Campesina trancam portões
em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São de viveiros de eucalipto seguindo na discussão contra o Deserto Verde. Disponível em:
Paulo. São Paulo, 2002. p. 160. <http://www.mmcbrasil.com.br>. Acesso em: 16 set. 2007.

36- Associação dos Geógrafos do Brasil. Relatório de impactos da apropriação dos recursos Oliveira, Ariovaldo Umbelino de. A questão fundiária, entraves, desafios e perspectivas:
hídricos pela Aracruz Celulose nas terras indígenas Guarani e Tupiniquim. Vitória: AGB, 2004. A questão da propriedade da terra no Brasil. Palestra apresentada no Seminário da
Terra. Promoção: Bancada Estadual do Partido dos Trabalhadores e MST/ES. Vitória, em
37- Deusdéia é funcionária do posto de saúde da aldeia Tupiniquim Pau-Brasil, 14 set. 2007.
administrado pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
Oliveira, Osvaldo Martins de et al. Quilombo: autodefinição, memória e história. In:
38- O SUS é o sistema público brasileiro de saúde. A Funasa é vinculada a ele. Castanhede Filho, Andréa et al. O incra e os desafios para a regularização dos territórios
quilombolas: algumas experiências. Brasília: MDA/Incra, 2006. p. 123-130.
39- Ñhanderu – Deus Guarani; Tupã – Deus Tupiniquim.
Paredes Piqué, Susel. Invisibles entre sus árboles. Lima: Centro da Mulher Peruana Flora
40- Kaplan, Temma. Uncommon women and the common good: women and environmental Tristán, 2005.
protest. In: Rowbotham, Sheila; Linkogle, Stephanie (Ed.). Women resist globalization:
mobilizing for livelihood and rights. London: Zed Books, 2001, p. 28-42. p. 29. Plataforma del Acción. Instituto del Tercer Mundo. Compromisos: resoluções aprobadas
por la conferencia. Disponível em: <www. socwatch@socialwatch.org >. Acesso em: 2
41- Como resultado da presença política das mulheres indígenas e quilombolas nos set. 2007.
fóruns específicos de mulheres, foi aprovada a moção de solidariedade aos povos
indígenas do Espírito Santo na última Conferência Nacional de Políticas Para as Silvestre, Luciana. Mulheres da Via Campesina ocupam porto da Aracruz Celulose. Informe.
Mulheres, ocorrida em Brasília. 09 mar. 2009.

42- Mais recentemente, no processo de ocupação de uma parcela do território que se Via Campesina. O latifúndio dos eucaliptos: informações básicas sobre as monoculturas de
encontra sob o controle da empresa Aracruz, em Linharinho, mulheres que frequentam árvores e as indústrias de papel. Porto Alegre, 2006.
a Escolinha Quilombola – divulgaram o Manifesto do Grupo de Mulheres da Escola
Quilombola, em agosto de 2007. Via Campesina, Fetraf. Manifesto do 8 de março: mulheres camponesas na luta contra o
agronegócio, por Reforma Agrária e Soberania Popular. Mar. 2009. Disponível em:
43- A Escolinha Quilombola é uma iniciativa da Federação dos Órgãos de Assistência <www.mst.org.br>. Acesso em 13 mar. 2009.
Social e Educacional (Fase) do Espírito Santo.

75
76
PARTE 2
• Impactos sobre os recursos hídricos
• Impactos sobre o trabalho

77
A exuberância da Mata Atlântica foi continuamente
destruída para permitir o aumento da monocultura
homogênea do eucalipto: cenário desolador
Tamra Gilbertson

78
APRESENTAÇÃO
Os próximos três capítulos abordam os impactos
1 A re-significação
da água pelo uso
industrial
Marilda Teles Maracci

“Nossa briga é por causa da Aracruz ter plantado este eucalipto


e destruído nosso rio, que antes as mulheres todas lavavam
roupa, nós pescava, tomava banho, pegava água para
cozinhar e para beber. E hoje está tudo seco e não podemos
mais beber água de rio por causa do veneno”.1

Considerando a íntima relação existente entre latifúndio


das plantações de eucalipto e fábricas de celulose e monocultura, o modelo produtivo monocultor, pelo seu
da empresa Aracruz sobre a água e as comunidades caráter de grande concentração fundiária e de exploração
que dependem dela. O primeiro texto, de autoria de de recursos naturais, seja para produção de eucalipto,
Marilda Teles Maracci, aborda principalmente os im- soja, cana ou outras culturas inseridas nas demandas do
pactos que as plantações de eucalipto nos anos de mercado consumidor capitalista mundial, constitui-se em
1960 e 1970 causaram sobre as comunidades indíge- fator gerador de danos sociais e ambientais que vitimam
nas e quilombolas do ponto de vista da sua relação ín- particularmente as populações camponesas e tradicionais.
tima com os recursos hídricos, até então abundantes Ou seja, as racionalidades que fundamentam tais práticas
nos seus territórios. Em vez de suprir plenamente as produtivas constituem-se num processo de negação e
demandas diversas dessas comunidades, os recursos destruição da agricultura de subsistência e dos mundos
hídricos ganham um destino radicalmente diferente: de viver dessas populações, além do aprofundamento da
as árvores de eucalipto e as insaciáveis fábricas de marginalização econômica e social de amplos setores da
celulose da Aracruz. sociedade civil.
No segundo texto, Daniele Meirelles e Marcelo Cala- Nessa perspectiva, a instalação do complexo agro-in-
zans abordam a construção, a partir de 1975, das três dustrial Aracruz Celulose S/A no Espírito Santo alterou
fábricas de celulose da empresa e o consumo de água significativamente o padrão de posse e de uso da terra
dessas fábricas, construídas pela Aracruz ao lado do e das águas, atingindo as populações locais preexisten-
bairro de pescadores Barra do Riacho, além das políticas tes (citando apenas populações atingidas diretamente),
empresariais para justificar e disfarçar esse consumo aprofundando restrições territoriais e custos ambientais.
cada vez mais exorbitante. No terceiro capítulo dessa se- A expansão da empresa é extremamente acelerada e a di-
gunda parte, Marilda Teles Maracci apresenta as obras mensão dos danos sociais e ambientais e os conflitos de-
mais recentes de desvio e represamento de água, os im- correntes aprofundam-se também em ritmo acelerado.
pactos dessas sobre a vida de comunidades pesqueiras, As comunidades pré-existentes no litoral norte do Espí-
como Comboios e Barra do Riacho, as irregularidades rito Santo, integradas à Mata Atlântica, realizavam apro-
ocorridas no processo de licenciamento do Canal Cabo- priações comunitárias da terra e, consequentemente das
clo Bernardo, bem como a luta das comunidades indíge- águas. A partir do final dos anos de 1960, os territórios dos
nas Tupiniquim e Guarani na tentativa de recuperar os municípios de Aracruz, São Mateus e Conceição da Barra,
rios Sahy e Guaxandiba, que passam por seu território. principalmente, foram invadidos pelos amplos monoculti- 79
80
vos de eucalipto, matéria-prima fundamental para a pro-
dução da celulose branqueada, que, por sua vez, demanda
em seu processo de produção a utilização de recursos hí-
dricos em quantidades particularmente insustentáveis. Ou
seja, a amplitude dos danos ambientais e sociais desse em-
preendimento empresarial celulósico apresenta-se tanto
pela concentração de grandes extensões de terras quan-
to pela utilização de enorme quantidade de água, transfor-
mada e reduzida a recurso hídrico industrial.

A substituição da mata nativa


por plantio de eucalipto
Especificamente no que se refere à substituição da Mata
Atlântica por plantios de eucalipto, os argumentos da em-
presa e da respectiva rede de técnicos e pesquisadores
conflitam-se com as constatações verificadas em diversos
relatos/demonstrações das populações tradicionais que
ainda resistem ilhadas pela monocultura. Os relatos des-
sas populações encontram correspondência, no entan-
to, com diversos outros estudos disponíveis2. Percebe-se
nesse conflito que “o que é político, se apresenta como ra-
zão técnica (...) práticas desenvolvimentistas comandadas
pela lógica econômica que se sobrepõe às temporalidades
bio-geo-físico-químicas e culturais distintas de cada lugar”
(Porto-Gonçalves, 2006, p. 20).
No contexto da invasão de seus territórios, a devastação
da mata nativa, substituída pela monocultura de eucalip-
to, configurou-se como o principal elemento de desorga-
nização do cotidiano tradicional das populações pré-exis-
tentes, como, por exemplo, dos Tupiniquim e dos Guarani.

“Estamos imprensados pela Aracruz Celulose. Há uns trezentos


metros da aldeia já começava a plantação de eucalipto, e se
um funcionário te visse lá dentro, você tinha que dar um jeito
de correr. Tínhamos que cortar lenha pra fazer comida e não
havia mais matéria-prima nenhuma nas nossas terras.”
(Djaguareté, liderança Tupiniquim)

De acordo com fotos aéreas datadas de 1965, a região


hoje ocupada pelo plantio e pelo complexo fabril celuló-
sico era coberta em grande parte pela Mata Atlântica. Da
mesma forma, Estudos de Impacto Ambiental e os res-
“Através da análise de fotos aéreas obtidas pectivos Relatórios de Impacto Ambiental (EIA/Rima),
em 1970/1971, verificou-se que pelo menos feitos em 1986/1987 pelo Instituto Tecnológico da Uni-
30% da superfície do município de Aracruz versidade Federal do Espírito Santo para a Secretaria de
era coberta por floresta nativa no início da Estado da Saúde - órgão responsável pelo licenciamento
década de 1970, que foram substituídas por ambiental à época - , afirmam que:
florestas homogêneas de eucalipto para
a Arflo.” “Através da análise de fotos aéreas obtidas em 1970/1971,
[Rima/Aracruz Florestal, 1987, p. 6] verificou-se que pelo menos 30% da superfície do município
de Aracruz era coberta por floresta nativa no início da década
de 1970, que foram substituídas por florestas homogêneas
Foto aérea: Rio Piraquê-Açu, de eucalipto para a Arflo.”
município de Aracruz (ES), 1965 [Rima/Aracruz Florestal, 1987, p. 6]3 81
Segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia O déficit de águas decorrentes da substituição da mata
e Estatística (IBGE), dos 66,3% do território capixaba co- nativa por plantio de eucaliptos no norte do Espírito San-
berto por florestas nativas em 1950, restavam em 1970, to é uma evidência relatada pelas populações locais5, que
apenas 8,5%. Em 1971, o biólogo Augusto Ruschi denun- percebem a grande transformação na dinâmica hídrica
ciava o desmatamento da Mata Atlântica pela empresa e o do complexo geográfico que envolve seus territórios. To-
desaparecimento das espécies da ornitofauna nativa. das as comunidades atingidas são unânimes em afirmar a
diferença percebida nos níveis dos rios e córregos, o de-
“Assisti, em áreas da então Aracruz Florestal, coisas como saparecimento de tantos outros e de nascentes, a ausên-
esta: com a derrubada das florestas que margeavam a cia das matas ciliares, a interrupção de rios por barragens
estrada que vai de Santa Cruz para Aracruz, pelo lado da e manilhas, além da contaminação por agrotóxicos e es-
margem esquerda do Piraquê-Açu, até os papagaios ficavam goto. São impactos evidenciados no meio físico, constata-
atônitos ao regressarem à tarde para o pernoite nas matas dos pelas populações locais e verificados por diversos es-
que tinham deixado pela manhã, pois com os tratores, tudos, constituindo-se em um dos elementos contunden-
usando correntões de 50 metros de extensão, nos quais os tes dos conflitos territoriais em pleno processo no Espíri-
elos pesam mais de 100 quilos cada, muitos hectares iam to Santo6. O biólogo Augusto Ruschi alertou:
sendo derrubados diariamente, e muitas vezes capturei no
solo, entre ramagens e mesmo na estrada, exemplares de “Em 30 anos, os nossos desertos de eucaliptos estarão ainda
papagaios. Esse tipo de derrubada afastou impiedosamente mais estéreis, sem pássaros, sem outras árvores. [...] Quem
um grupo de 600 índios que ali vivia havia mais de 50 planta uma área totalmente com eucalipto, nas proporções
anos, conforme descrevi em publicação científica. Pois fiz, como se está fazendo no Espírito Santo, está fabricando
pela primeira vez, um estudo sobre a prospecção de uma deserto pelo simples fato de ser uma floresta homogênea de
população indígena e a área mínima que é indispensável espécie exótica, onde não há um ecossistema, mas um único
para que possa viver em seu habitat, suprida de alimentação nicho ecológico de consorciação, que é o eucaliptal. Depois,
e tudo mais que é fundamental para sua sobrevivência.” nem os eucaliptos crescerão mais. [...] Como já explanei em
(Ruschi, 1954, s/n)4 outras palestras, a fisiologia de algumas espécies, como
o Eucalyptus saligna, o mais plantado no Espírito Santo,
“As presentes espécies eram abundantíssimas nas matas exige um consumo monumental de água. Segundo as
que ligavam Santa Cruz a Aracruz, onde foram feitas e ainda análises realizadas pelos professores Franco e Inforzato e
continuam as derrubadas com dois tratores em paralelo, ainda Villaça e Ferri, em 1954, no boletim da Faculdade de
ligados por um correntão, que avançam sobre a floresta Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,
virgem e levam tudo de roldão. Mais de vinte quilômetros em nº 173, série Botânica 11, a partir do terceiro ano de vida,
linha reta desta floresta, por mais de seis de profundidade uma planta dessa espécie consome por ano 19,6 milhões
vem sendo derrubada, e a cada dia são centenas de de litros de água, e um hectare com 2.200 árvores consome
hectares, e após um mês recebem fogo, e logo com a 49,6 bilhões de litros de água, dando esse total uma
calagem do terreno, vem em seguida o plantio do eucalipto.” equivalência pluviométrica de 4.000 mm de chuva por ano.
(Ruschi, 1971, s/n, apud AGB-ES, 2004, s/n) Se considerarmos que na região dos eucaliptais da Aracruz
Celulose e da CVRD ou Flonibra a precipitação anual chega
A área de ocupação indígena, quilombola e campone- em média a 1.400 mm/ano de chuva, a diferença necessária
sa estava prestes a ser transfigurada numa extensa mo- de mais de 2.000 mm é retirada do solo e subsolo, tanto pela
nocultura de eucalipto, provocando impactos de grande função osmótica como pela função de sucção das raízes.
magnitude, particularmente nas comunidades indígenas. Retira até mesmo do lençol freático o restante da água de
que necessita, e assim a água vai escapando, num déficit
Até 1975, foram plantados 51 milhões de pés de eu- que cresce anualmente até atingir maiores profundidades.”
calipto, 70% dos 40 mil hectares de terra em Aracruz e (Ruschi, in Medeiros, 1995, s/n)7
30 mil hectares nos municípios de São Mateus e Con-
ceição da Barra, ao longo do litoral norte do estado. Nos É importante reafirmar que o fator gerador dos grandes
10% restantes do litoral, constituídos por floresta nati- danos sociais e ambientais que vitimam populações cam-
va, 1% era reservado à área de preservação ambiental ponesas e tradicionais é, fundamentalmente, o modelo
sob o controle da Aracruz Celulose e inacessível à po- produtivo de monocultivos em grandes extensões de ter-
pulação local, impedida de explorar os recursos naturais ra, seja ele de eucalipto, soja, cana etc. O monocultivo de
para sua própria sobrevivência. O município de Aracruz eucalipto para produção de celulose, no entanto, traz em
tem 1.435 km², dos quais foram desmatados pelo menos si graves especificidades no que diz respeito ao manejo, à
430 km² da floresta tropical pluvial nativa para dar lugar grande escala, à grande proporção de uso de água no pro-
82 à plantação de eucalipto (AGB-ES, 2004). cesso produtivo da celulose, e, ainda, ao caráter de expan-
Foto aérea: Rio Riacho,
município de Aracruz (ES) 1965 83
são extremamente acelerada que caracteriza o empreen- contabilizam o sumiço de inúmeros córregos e lagos. Alguns
dimento papeleiro, cuja demanda de consumo mundial de seus antigos leitos ainda podem ser observados, em meio
de papéis amplia-se de forma desmesurada. ao eucaliptal, secos. Ou seja, ainda que o consumo de água
Por isso, é importante que consideremos a demonstra- fosse semelhante, para os povos da floresta e campesinos,
ção, aqui, dos efeitos do plantio e do manejo de eucalip- seria melhor que esse consumo estivesse sendo feito pela
to em larga escala com curtos períodos de corte (entre 5 a Mata Atlântica, e não pela monocultura do eucalipto.”
7 anos) sobre os recursos hídricos nos ecossistemas e no (Fase, 2006, p. 21)13
modo de viver das populações onde é plantado, fartamen-
te documentados nos Relatórios Técnicos de Identificação Ainda no campo acadêmico, são fartos os estudos
e Delimitação de Territórios Quilombolas publicados pelo científicos disponíveis que apontam os efeitos que o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (In- plantio de eucalipto causa nos recursos hídricos. Na
cra-ES), pesquisas acadêmicas, relatórios de 2002 e 2003 Índia, por exemplo, Vandana Shiva (1971) demonstra a
da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômi- “estratégia esclerofítica” da planta eucalipto como um
cos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca), documentá- perigo ecológico, por possuir sistemas radiculares bem
rios em vídeo8 e reportagens em revistas e jornais locais9. abrangentes, o que permite extrair e armazenar água
Segundo o jornalista capixaba Rogério Medeiros, até 1995, do solo dando continuidade a altas taxas de transpira-
156 córregos já tinham desaparecido no município de Con- ção mesmo durante períodos de tensão temporária da
ceição da Barra10. umidade. Essa habilidade “permite ao eucalipto cres-
No entanto, sendo a disponibilidade de água um fator cer sob condições nas quais outra vegetação, com ne-
relevante nos altos indicadores de produtividade apre- cessidades hídricas similares, pararia de demandar os
sentados pela empresa, a sua apropriação pelo capital, a escassos recursos de água” (Shiva, 1971, p. 74). O pro-
lógica e as re-significações dos recursos hídricos por tal fessor e pesquisador sul-africano Dr. Harald Witt, da
uso são radicalmente conflitantes às da apropriação/sig- Universidade de Natal, em Durban, afirma que os efei-
nificação social da água. Este conflito aparece em diversas tos da monocultura de eucalipto sobre nascentes, cór-
arenas, mas equipes científico empresariais, nas disputas regos e rios foram constatados em pesquisas desde
metodológicas, constroem argumentos a partir de cálcu- 1936 na África do Sul e que esse debate está superado
los (bastante limitados) do consumo de água nas planta- em seu país (WITT, 2001, s/n)14. No Brasil, o geógrafo
ções de eucalipto. A ciência empresarial sustenta a “tese Aziz Ab-Saber, o ambientalista Sebastião Pinheiro15 e
da semelhança”, restringindo-se apenas à mensuração do o naturalista capixaba Augusto Ruschi, dentre outros,
consumo: “o consumo de água nos plantios de eucalipto é sustentam que é alto o consumo de água nas monocul-
semelhante ao da floresta nativa”11, opondo-se sobretudo turas em larga escala, particularmente de ciclo curto
à realidade experimentada pelas populações tradicionais de eucalipto, como é o caso em questão.
do Espírito Santo nas últimas quatro décadas. No Espírito Santo, o que se verifica em toda a extensão
Não são poucos os documentos, estudos, pesquisas, re- das plantações de eucalipto para celulose são práticas de
latos, depoimentos, denúncias e demonstrações empí- manejo que agravam a condição ambiental e socialmente
ricas que compõem acervos de movimentos campone- danosa que é própria das monoculturas em geral. Simone
ses, indígenas, quilombolas, entidades civis, pesquisado- R. B. Ferreira (2002), em sua pesquisa sobre os impactos
res universitários e ONGs revelando uma outra realida- da monocultura de eucalipto no norte do Espírito Santo,
de, oposta aos resultados demonstrados pelo setor celuló- identificou os seguintes problemas de manejo:
sico. A Rede Alerta contra o Deserto Verde reúne um amplo
acervo de produção coletiva12 nesse sentido, o que possi- “No manejo florestal da agroindústria de celulose estão
bilita, por exemplo, este pertinente questionamento “so- presentes: o plantio ao redor de nascentes, zonas de recarga
bre a tese da semelhança”: hídrica e cursos d’água; a retirada de matas ciliares; o
assoreamento dos rios, principalmente na época do corte
“Ainda que a tese da ciência empresarial fosse e plantio, quando o solo fica mais exposto; a diminuição
inquestionável e definitiva. Quer dizer, ainda que, ‘o consumo do manto orgânico no solo, provocando a diminuição
de água nos plantios de eucalipto é semelhante ao da da umidade local; a contaminação da água e do solo
floresta nativa’, fosse uma sentença correta e cientificamente por agrotóxico e herbicida; a morte biológica do solo; o
demonstrável, convém pensar ainda nas inescapáveis manilhamento e represamento dos rios e córregos, com
diferenças e radicais dessemelhanças, tal como comparam a construção das estradas para o transporte do eucalipto
os índios Guaranis e Tupiniquins, os quilombolas e (realizado por grandes carretas); a abertura de jazidas de
campesinos que testemunharam boa parte da Mata Atlântica barro e areia (para a manutenção de estradas) próximas a
sendo substituída pelos eucaliptais da empresa, e desde cursos d’água e dentro de lagoas”.
84 1968, quando se iniciou a conversão para a monocultura, (Ferreira, 2002, p. 134)
Com relação às nascentes, observa-se plantios de Água, reconhece o grande consumo de água no setor
eucalipto no entorno e sobre nascentes16, em áreas de quando apresenta dados e discute os custos do grande
reservas hídricas superficiais, o que é evidenciado pelo consumo de água para o setor:
afloramento de água de várias nascentes e pela pre-
sença de diversos olhos d´água dentro da área de plan- “Como a água sempre custou pouco (apenas o custo de
tio de eucalipto na ocasião das chuvas, constatando que captação, tratamento e distribuição), a filosofia era a de se
a empresa infringiu a Resolução do Conselho Nacio- usar bastante água. O porquê disso é fácil de entender:
nal de Meio Ambiente (Conama), nº 303 de 20 de mar- quanto mais água se usa no processo, mais fácil fica a
ço de 2002, (Art 3º, “2”), que estabelece limites e defi- eliminação de contaminantes indesejáveis que causam cor
nições referentes às Áreas de Preservação Permanen- na celulose e incrustações no processo. [...] não há muito
te.17 Na ocasião da “CPI da Aracruz” (2002), foi consta- tempo atrás, atingíamos essas enormidades de 150 a 250
tado em depoimento da geógrafa Simone Ferreira que m³ de consumo de água por tonelada de celulose e de 25 a
o plantio de eucalipto da empresa Aracruz Celulose já 40 m³ por tonelada de papel. Algo definitivamente inaceitável
infringia a Resolução do Conama nº004/8518, ainda vi- para os padrões de hoje. O mundo mudou nesse período,
gente no período, quando foram observados, por mais as empresas e as tecnologias se aperfeiçoaram, procurando
de três anos de pesquisa, afloramentos de várias nas- consumir menos água e gerar menos efluentes. Chegamos
centes dentro do plantio de eucalipto e a ausência de hoje a valores entre 25 a 40 m³/adt [tonelada seca ao ar,
mata ciliar em zonas de recargas hídricas e, ainda, que corresponde à unidade de medida de celulose – do inglês
não foi respeitado o mínimo de 30 metros de mata ci- “air dry ton”] na fabricação da celulose kraft branqueada
liar determinado pelo Código Florestal no córrego de de eucalipto e a 7 a 15 m³/tonelada na fabricação do
Mangabeira, que liga Conceição da Barra à Itaúnas19. papel branco. É uma grande melhora, mas não podemos
Está colocado em questão, portanto, um processo de ainda aceitar isso como bom. A água ainda é muito barata,
grande impacto ambiental como resultado do plantio entre 0,05 a 0,12 US$/m³ (2 a 4 US$/adt), mas o custo do
de árvores de crescimento rápido em grandes exten- tratamento dos efluentes não é tão barato assim (entre 7 a
sões de terras e do manejo desse cultivo (agrotóxicos, 15 US$/adt de polpa, dependendo da intensidade e do tipo).
utilização de reservas hídricas do solo e corte em me- Isso tudo só falando em custos diretos, sem depreciação.
nos de 7 anos). É crescente a demanda de produção in- Há também uma velha regra muito fácil de se entender:
dustrial de celulose branqueada de fibra curta para fa- quanto mais água uma fábrica capta, maior será o volume
bricação de papéis especiais, cujo destino é o atendi- de efluentes que ela gerará. Nada mais natural, é a velha lei
mento do elevado e insustentável padrão de consumo de conservação das massas de Lavoisier, “tudo o que entra
dos países do Norte, preferencialmente. Esta produção, deve sair” para se manter o balanço material. Óbvio, então,
por sua vez, exige enorme consumo de água e gran- que os custos aumentam conforme usarmos mais água, já
de descarga de efluentes industriais. No setor indus- que haverá mais efluentes a tratar.”
trial, a indústria de papel e celulose é tradicionalmen- (Foelkel, 2007)21
te uma das maiores consumidoras de água, e de água
limpa e fresca. Nota-se que a inaceitabilidade do enorme consumo de
No complexo industrial da Aracruz Celulose S/A, água, do ponto de vista do setor celulósico-papeleiro, re-
portanto, além da demanda de volumes consideráveis fere-se apenas aos custos operacionais22, fator prepon-
de água e da geração de grandes vazões de efluentes, derante que atualmente mobiliza esforços para reduzir
algumas características químicas dos efluentes gera- as taxas de consumo por toneladas, somados às exigên-
dos na fabricação de celulose, notadamente cor e com- cias do mercado internacional quanto à sustentabilidade
postos orgânicos clorados, são potenciais causadores ambiental. Nessa mesma racionalidade, a Aracruz Celu-
de danos ambientais. Depois de usada para refrigera- lose informa em seu Relatório Anual de Sustentabilidade
ção ou diretamente no processo industrial da celulose, 2006 que reduziu seu consumo de água para 35,2 m3/tsa
a água retorna para as outras águas da região, carre- (toneladas/ano).
gando consigo os restos dos processos industriais, en- Porém, é importante diferenciar quantidade de consumo
tre eles o cloro, ainda hoje usado no branqueamento da por tonelada de quantidade de consumo absoluto de água.
celulose (Fase, 2006). Por se tratar de uma empresa de expansão acelerada em
Uma tonelada de celulose requer 25 a 50 m³ de água. segmentos temporais muito curtos, essa diferenciação tor-
Para produzir papel, o volume de água varia de 6 m³ a na-se fundamental na discussão do uso da água enquanto
30 m³ - a depender do grau de umidade da polpa (Foe- recurso hídrico. Seu consumo de água segue aumentando
lkel, 2004)20. Celso Foelkel (2007), pesquisador técnico proporcionalmente ao crescimento de sua capacidade pro-
do setor celulósico, em seu artigo A Fabricação de Ce- dutiva, ainda que em taxas menores por toneladas, e esses
lulose Kraft Branqueada de Eucalipto e o Consumo de números não são apresentados nem discutidos. 85
2
tram ilhadas em meio ao eucaliptal da empresa.
Difícil, e mesmo impossível, é separar a problemáti-
ca da água das demais temáticas do mesmo território em
disputa: a questão da terra, a questão das florestas e da
Papel para o Norte, biodiversidade, a temática das culturas tradicionais e do
poder. Sem desrespeitar a integralidade e unidade das lu-

hiper-consumo de tas territoriais, apresentamos uma breve historiografia da


empresa, desde a perspectiva da água.

água no Sul: uma História da primeira fábrica no Espírito Santo - 1978


História da água em Barra do Riacho, quem lembrava
hidro-genealogia era “seu” Abdon, antigo morador do distrito litorâneo, no
município de Aracruz. Em sua vizinhança, no final dos
das fábricas anos de 1970, veio se instalar o complexo industrial da
Aracruz Celulose S/A.
da Aracruz 23
O pequeno distrito, com cerca de duas mil famílias,
era formado principalmente por pescadores. Logo, ele
Daniela Meirelles e Marcelo Calazans24
se transformou em hospedagem para milhares de tra-
balhadores temporários atraídos para a região durante a
construção da primeira planta industrial da empresa. No
pico da obra, eram 13.996 trabalhadores26, em sua gran-
Desviando rios para abastecer seus reservatórios de de maioria homens. As noites de Barra do Riacho nunca
água para o processo industrial. Lançando seus efluentes foram tão movimentadas: prostituição, violência, tráfico.
nas águas da região. Plantando sua monocultura de euca- Um jornal da época estampou a seguinte manchete: “Do-
lipto sem respeitar lagos, nascentes e córregos. Lançando mingo em Barra do Riacho: quando a cidade vira zona”27.
herbicidas e pesticidas sobre seus plantios industriais. Este povoado só voltaria a ser tão movimentado no início
Irrigando mudas nos viveiros e plantios. A Aracruz Ce- dos anos de 1990, quando ocorreu a construção da segun-
lulose S/A sempre requisitou enorme volume de água da da fábrica de celulose. Os trabalhadores temporários vêm
sociedade civil em seu entorno territorial. e se vão, porém a fama de “bairro de prostituição” não
No complexo industrial da Aracruz Celulose S/A, a abandona a imagem de Barra do Riacho, afetando o coti-
água é consumida em vários setores e momentos de seu diano das famílias que lá habitam.
processo produtivo: no manejo e na preparação dos ca- Mas não era apenas o abrupto impacto da superpopu-
vacos, no digestor e no branqueamento, na caustificação lação diante da ínfima infraestrutura local o que indig-
e no forno de cal, na depuração da polpa branqueada, na nava a população pescadora de Barra do Riacho. Com
secagem e no turbo-gerador e, sobretudo, na alimentação a nova vizinhança empresarial, a água passou a ser um
das caldeiras. Também é intensamente utilizada nos pro- grande problema.
cessos de deslignificação, na secagem, no enfardamento e Sobre o período anterior à conclusão das obras da pri-
na evaporação25. meira fábrica, em setembro de 1977, em plena ditadura
Depois de usada para a refrigeração ou diretamente no militar, “seu” Abdon lembra que:
processo industrial da celulose, a água retorna para as
outras águas da região, como efluente, carregando consi- “Eles prenderam o rio lá onde o Jiúna encontra com o
go os restos dos processos industriais. Riacho pra fazer a barragem móvel. Aí, nós ficamos com
No viveiro e nos plantios homogêneos de eucalipto de a água salgada até o meio. Quarenta barcos vão ficar sem
rápido crescimento, a água é elemento fundamental para o barra pra poder passar. Dentro do Rio Riacho esgota o Rio
desenvolvimento das mudas e da planta, em seu curto ci- Constantino, o Córrego do Arrozal, o Águas Claras, o Brejo
clo evolutivo, até chegar à idade de corte. Não apenas o sol Grande, o Rio Quilombola, o Araraquara, o Ribeirão da
dos trópicos, mas também a disponibilidade de água é fa- Linha, o Ribeirão do Cruzeiro, a Lagoa do Aguiar, a Lagoa
tor relevante nos altos indicadores de produtividade apre- de Baixo, a Lagoa do Meio, o Rio Pavão, o Maruboa, todos
sentados pela empresa. eles agora esgotam pra fábrica e nós ficamos sem água
Para piorar, os agrotóxicos, herbicidas e pesticidas, lí- porque ela ficou presa”.28
quidos ou granulados, são amplamente utilizados na
monocultura em larga escala de eucalipto, que afetam Oito meses depois, em 13 de abril de 1978, o relatório
diretamente os recursos hídricos das populações tradi- da administração da Aracruz Celulose S/A, referente ao
86 cionais que habitavam a Mata Atlântica e hoje se encon- exercício de 1977, divulgava para seus acionistas e pú-
blico em geral, os momentos finais de construção da pri- Aracruz. Até hoje, parte da celulose da empresa ainda usa
meira fábrica de celulose no Espírito Santo, então previs- cloro no processo de branqueamento. A decisão pelo uso
ta para iniciar suas operações em julho de 1978. De fato, ou não do cloro é menos uma filosofia da própria empre-
conforme lembrava “seu” Abdon, as obras no sistema de sa e mais uma determinação do mercado consumidor. Se
águas eram das mais adiantadas. O enunciado do relató- o mercado alemão não aceita cloro e o japonês o aceita,
rio empresarial confirma: a empresa tem celulose para ambos. E a regulação brasi-
“e) Sistema de águas: essa área apresenta um índice ge- leira é flexível o suficiente para absorver as duas formas
ral de conclusão de 92,6 por cento do total da obra. O res- de produção. Mas nessa época, na Aracruz, ainda não ha-
tante prossegue sem que se observe desvios significati- via celulose sem cloro. Esse debate se inicia apenas com a
vos no cronograma de execução e sem prejuízo no abas- chegada da segunda fábrica.
tecimento de água à fábrica; que vem sendo feito desde
agosto de 1977.”29 A problemática ambiental
Como e de que forma conseguiram uma reserva de água da segunda fábrica – 1991
suficiente para abastecer a primeira fábrica? E qual era Inaugurada no dia 27 de maio de 1991, com a presen-
o volume dessa demanda? Quanto pagava? O relatório da ça do presidente Fernando Collor de Melo, a segunda fá-
empresa sequer tangencia o assunto. No documento, ne- brica da Aracruz Celulose S/A consumiu investimentos
nhuma referência a “seu” Abdon ou aos conflitos em Bar- de US$ 1,2 bilhão. Para captar esse montante, uma nova
ra do Riacho. Nenhum aprofundamento quanto à forma- e grande orquestração de interesses foi montada. Afinal,
ção de seu reservatório de água. Não eram informações como na entrevista de Francisco Gros, então presidente
para constar em um relatório da administração. Não in- da empresa:“Este é o maior projeto de papel e celulose
teressavam aos acionistas e nem era razoável que fossem em todo o mundo e também o maior projeto de execução
de domínio público, ainda menos para um público sob in- definida no Brasil no momento, mesmo considerando in-
tervenção política de uma ditadura militar. vestimentos públicos”.32
À época, no texto da própria empresa, ou conforme Palavras semelhantes haviam sido ditas em 1978. He-
ecoado pela mídia regional30, fazia-se sempre referência rança direta do discurso da ditadura militar – a idéia de
a um “relatório otimista”, pois a obra estava adiantada, um País gigante que finalmente acorda para seu futuro
algumas partes já concluídas, e a indústria se preparava estrelato no mundo, os mega-projetos de desenvolvimen-
para o início da fase operacional. to, o discurso do progresso, do País que cresce; a empre-
Quanto ao abastecimento de água para a fábrica, o oti- sa repetia: a maior do mundo, o maior empréstimo, a mais
mismo da empresa era mais que justificado. De fato, não avançada tecnologia...
havia “desvios significativos”, ao menos quanto ao “crono- Um ano depois da inauguração da segunda fábrica,
grama de execução”. No entanto, havia sim desvios signi- ocorreu, no Rio de Janeiro, a Conferência das Nações
ficativos, e muitos. Não no prazo da obra, mas no sentido Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, mais
de rios e córregos e lagos, e junto com isso, no destino dos conhecida como Eco-92. No mesmo período, o presidente
quarenta barcos, inclusive o de “seu” Abdon. Com a chega- do Conselho de Administração da Aracruz Celulose, Er-
da do complexo industrial da Aracruz Celulose S/A, se ini- ling Lorentzen, assinava em Roterdã, na Holanda, a “car-
cia em Barra do Riacho um conflito por água que perdura ta de princípios” sobre desenvolvimento sustentável33, da
até hoje, e ainda se amplia, mais de 30 anos depois. Câmara de Comércio Internacional, com apoio das Na-
E com a primeira fábrica se inicia também toda a pro- ções Unidas. Sem abandonar o discurso faraônico da “or-
blemática do cloro, amplamente usado no processo de dem e do progresso”, herdado dos anos de 1960. Trinta
branqueamento da celulose e eliminado através dos anos depois, a Aracruz potencializa ao máximo seu dis-
efluentes industriais da empresa. Ao contrário da pressa curso ambiental. Uma tecnologia de branqueamento da
em assegurar o abastecimento de água da fábrica de ce- celulose, usando o dióxido de cloro (ECF), e o título de
lulose, no relatório de 1978, consta que a fábrica de clo- “plantador de florestas”, faziam parte de uma grande jo-
ro-soda estava ainda em seu projeto básico, preliminar, gada publicitária. Um marketing estrategicamente verde.
pois o início de sua operação estava previsto apenas para Em 1993, Lorentzen ganhou, em Nova Iorque, o prêmio
1979. Enquanto isso, segundo a empresa:“o branquea- “Personalidade do Ano”, concedido pela Câmara de Co-
mento se fará com o uso exclusivo de clorato de sódio no mércio Brasil-Estados Unidos.
primeiro estágio”.31 Entretanto, o discurso da modernização ecológica da
Para garantir a pureza e a brancura exigidas pelo con- empresa estava diretamente relacionado à oportunidade
sumidor do Norte, a fábrica de 1978 lança, por um ano, o econômica do momento, conforme entrevista do próprio
cloro elementar e restos de matéria orgânica nas águas da Lorentzen à época: “Sem a nova tecnologia, deixaríamos
região. E durante 13 anos, contínua e ininterruptamente, de vender 150 mil toneladas de celulose ao mercado inter-
o cloro continua um elemento constante nos efluentes da nacional”. Ou ainda, na mesma entrevista: “Rapidamente, 87
a companhia desenvolveu a tecnologia de branqueamen- no, sob o tema: “Não ao Deserto Verde. A Farsa da Ara-
to usando somente dióxido de cloro (ECF) ou dispensando cruz”. No cartaz que convocava o ato público, constava
totalmente a substância (TCF), técnica que resulta na fa- uma lista de críticas à duplicação da empresa.
bricação de quatro novos tipos de celulose, atualmente re-
presentando cerca de 30% de sua produção total”.34 • “Produz 1 milhão toneladas/ano (não aceitável em ne-
O discurso do cloro foi tão massificado dentro e fora nhum outro país);
da empresa que, repentinamente, boa parte de seus di-
retores pareciam acompanhar as mais recentes relações • Cerca de 7 mil famílias, entre camponeses e índios, foram
entre cloro e saúde humana. Conforme Armando Figuei- retiradas de suas terras;
ra, presidente da Aracruz Celulose S/A, em 1991: “Vamos
fazer a adaptação utilizando o oxigênio por exigência de • Concentração fundiária. A indústria possui 142 mil hecta-
nossos compradores, para não perder a competitividade. res da área do estado plantada com eucaliptos;
Alguns especialistas internacionais concluíram que o clo-
ro tem substâncias cancerígenas”35. • Expulsão do homem do campo e consequente prolifera-
Na mesma entrevista, um dado raramente transpareci- ção de favelas;
do pela empresa: “O diretor industrial da empresa, Car-
los Augusto Aguiar, ressalta que foi utilizado o que há de • Redução drástica da área cultivável com alimentos básicos;
mais moderno para o controle ambiental. Todo o trata-
mento dos efluentes é feito por sete lagoas de aeração e o • Destruição de 80 mil hectares de florestas naturais;
volume de água tratada (200 mil m3 por dia) abasteceria
uma cidade como Fortaleza, exemplifica o diretor”36. • Desaparecimento de 156 córregos em Conceição da Barra;
Certamente que a população de Fortaleza, capital do
Ceará, no Nordeste brasileiro, é bem mais expressiva que • Lançamento de organoclorados e dioxinas no mar e no ar;
a população que habitava a imediata vizinhança das duas
fábricas, no município de Aracruz. • Causa empobrecimento do solo e impede o poder de rege-
Não obstante o alarido empresarial acerca dos “30% da neração das plantas nativas” 37.
produção total” sem cloro, a maior diferença da primeira
para a segunda fábrica está relacionada, principalmente, As relações entre a empresa e o ex-governador Al-
aos distintos contextos históricos de construção e inaugu- buíno Azeredo também não eram das melhores38. Ten-
ração de ambas. do tido sua educação básica em meio à ditadura mili-
A primeira, em plena ditadura militar, sem chance de tar, com o poder federal verticalizado, centralizando to-
ser publicamente criticada, sem resistência possível. Já dos os espaços decisórios, a Aracruz Celulose S/A nun-
durante a construção da segunda, a sociedade brasileira ca havia precisado negociar com os governos estaduais,
vinha de um intenso processo de re-democratização. menos ainda com a sociedade civil regional, pois tinha
No início da década de 1990, o marketing verde empre- acesso direto a Brasília e aos militares.
sarial, apoiado substancialmente nos lemas do “free-clo- Ainda que barganhando com o Estado, a empresa pas-
ro” e da “plantação de florestas”, podia ter um efeito inter- sa a perceber que os grandes prêmios e o marketing ver-
nacional de vasto alcance, porém era inexpressivo regio- de internacional e o acesso a Brasília não eram mais su-
nalmente, vis a vis o que a sociedade civil experimenta- ficientes para garantir todas as “contratações” necessá-
va no entorno da empresa: pouca água, pouca pesca, pou- rias para a segurança máxima do retorno dos investimen-
ca mata, pouca caça, pouca terra. Índios guaranis e tupi- tos. Seja na vizinhança de seu mega-complexo industrial,
niquins, pescadores, pequenos agricultores, trabalhado- seja ao longo de seus 130 mil hectares39 de monocultura
res da fábrica e dos plantios, trabalhadores de empreitei- de eucalipto, no norte do Espírito Santo e extremo sul da
ras sub-contratadas para o manejo, todos já experimenta- Bahia, a empresa precisava negociar com os poderes pú-
dos dos impactos negativos da primeira fábrica, demons- blicos locais, pressionados por índios, pescadores, cam-
travam seu descontentamento com o projeto em expan- poneses, quilombolas, trabalhadores do próprio comple-
são. A Aracruz Celulose passa a ser publicamente acusa- xo e algumas ONGs, igrejas e pastorais.
da com maior intensidade pela precarização das condi- Interessante observar que, embora violando direitos
ções de trabalho, concentração de terras e devastação das fundamentais da população tradicional da região desde
matas e dos rios da região. 1968, quando se iniciam os plantios, a empresa só vem a
O apoio de um conjunto de ONGs veio se somar à re- ser multada pela primeira vez, em 24 de março de 1991,
sistência das populações locais. O barco do Greenpeace pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Seama),
ancorou no porto da Aracruz e um ato público contra a e justamente às vésperas da visita do príncipe Charles
88 empresa foi realizado na escadaria do palácio do gover- (Reino Unido)40.
Meses depois, em setembro de 1991, uma nova manche-
te nos jornais estampava: “Seama multa e ameaça fechar a
Aracruz Celulose”. Essa foi a segunda multa, de CR$ 704
mil, “por estar lançando efluentes líquidos sem tratamen-

Projeto Conexão Sul


to e de forma clandestina no córrego do Engenho”41.
A abertura política em si não significou um pleno pro-
cesso de re-democratização do País. Quer dizer, o retor-
no a um funcionamento mínimo das instituições políti-
cas republicanas (parlamento reaberto, eleições diretas
O deserto verde dos eucaliptais se espalha pelo Espírito Santo
para presidente, independência entre os poderes, direi-
tos civis e políticos, fim da censura) não garantiu a re-
versão da profunda desigualdade social do Brasil. Assim, to, desde o início das operações da primeira fábrica, em
a Aracruz Celulose S/A, concentradora de água e terra, 1978, que a Aracruz Celulose S/A nunca pagou nada pela
de renda e de poder, jamais se viu ameaçada pelo pro- apropriação e uso privado desse recurso coletivo. Se fosse
cesso de reabertura política, ainda que o novo contexto água captada, tratada e distribuída pela Companhia Es-
a tenha obrigado a negociar minimamente com o estado tadual de Saneamento (Cesan), pelo volume do consumo
e os poderes públicos locais. industrial, a conta de água da Aracruz Celulose seria algo
A partir da década de 1990, a empresa saberia encontrar em torno de R$ 16 milhões mensais.
caminhos de viabilização de seus projetos junto aos poderes Isso, sem contar o consumo da unidade industrial de
públicos locais e regionais. O financiamento de campanhas Guaíba, adquirida em 2003 da Riocell, S.A., no estado do
políticas de parlamentares federais, estaduais e municipais, Rio Grande do Sul, com capacidade para 400 mil tonela-
o apoio direto a campanhas para o poder executivo, em di- das de celulose/ano. E ainda a mais recente expansão da
versas prefeituras, também ao governo do estado e mesmo empresa, a Veracel Celulose, com capacidade de 900 mil
à presidência da República42, tal como a construção de fó- toneladas/ano.
runs e espaços para o poder judiciário e recursos para sus- A demanda por água nas fábricas da Aracruz Celulose
tentar pesquisas e teses nas universidades públicas e priva- S/A é compatível à sua posição de líder na oferta global
das, são exemplos de algumas ações adotadas pela Aracruz de celulose branqueada de fibra curta de eucalipto. Em
nesse período. Mesmo algumas ONGs e sindicatos de traba- 2004, a empresa foi responsável por 28% da oferta mun-
lhadores não deixaram de ter suas “cotas” de legitimação da dial do produto.
poluição da Aracruz Celulose S/A, em “parcerias” para edu- Em seu Relatório Anual – 2004, a Aracruz Celulose S/A
cação e preservação empresarial do meio ambiente, o cha- comemora um “cenário econômico mais favorável”, ten-
mado “ambiental-business”. do em vista um aumento no consumo mundial de celu-
A Aracruz Celulose S/A inicia, então, um processo de lose de 6% ao ano, o dobro da média histórica. O mais re-
atuação mais capilar junto à sociedade civil e política cente mercado chinês e o aumento do consumo na Euro-
local. Já na terceira fábrica, muitos dos políticos e téc- pa e América do Norte orientaram para a seguinte meta
nicos dos órgãos públicos que denunciavam a empre- pra 2006: 32% da celulose de fibra curta de todo o plane-
sa nos anos de reabertura, comemoraram sua inaugu- ta45. Quanto maior o consumo de papel no Norte, mais
ração, com a presença de outro presidente, Fernando otimismo, pois mais produção e lucro, assim indefinida-
Henrique Cardoso. mente, diminuindo ou, se possível, externalizando seus
custos. É a lógica da empresa, conforme seu Relatório
Mais água para a terceira fábrica - 2003 Anual 2004: “O objetivo estratégico da Aracruz é ampliar
Inaugurada no dia 02 de agosto de 2003, a chamada “Fi- sua participação no mercado global de celulose de fibra
berline C” é a terceira fábrica instalada na mesma região curta nos próximos anos, e se manter entre as empresas
de Barra do Riacho, no Espírito Santo. Com uma capaci- com mais baixo custo de produção do setor no mundo,
dade produtiva de 700 mil toneladas de celulose/ano, a adicionando valor para os acionistas e demais interessa-
fábrica C realiza a meta total de 2 milhões de toneladas/ dos na Companhia.”
ano, tão alardeada nos outdoors e banners e anúncios em No sobre-valor dos acionistas e demais interessados
jornais, através da publicidade empresarial. não tem sido debitada a conta d’água, desde a fábrica
Hoje, o complexo industrial da Aracruz Celulose S/A, de 1978, ao contrário da vizinhança, que paga pelo con-
em Barra do Riacho, consome cerca de 250 mil metros cú- sumo doméstico familiar (quando tem água encanada)
bicos de água por dia43. Tal quantidade poderia abastecer ou compra água mineral captada e engarrafada lon-
uma cidade de 2,5 milhões de habitantes, número equi- ge dos eucaliptais e da indústria. Isso para quem pode,
valente ao da população da região metropolitana de Vitó- pois, para quem não pode, há sempre uma última al-
ria44. Um hiper-consumo que, ainda, cresce. E, no entan- ternativa, a “alternativa infernal”, qual seja: arriscar-se 89
nos rios e córregos e lagos que ainda restam na região. Hoje, nas cercanias das três fábricas, um novo vocabu-
Hoje, os rios e córregos de “seu” Abdon já não são sufi- lário re-nomeia e re-significa todo o território. Se nas po-
cientes para tamanha escala de consumo industrial. Ou- pulações tradicionais rurais os verbos conjugados com a
tros recursos hídricos vêm sendo requisitados para ga- água eram beber, pescar, nadar, lavar, brincar, transpor-
rantir o reservatório de abastecimento e, principalmen- tar, batizar; hoje, a empresa conjuga outros verbos, com a
te, a expansão da indústria da celulose, ainda que tenham mesma água: desviar, armazenar, branquear, caustificar,
de ser desviados a distâncias cada vez maiores em rela- depurar, secar, deslignificar, enfardar, evaporar. Também
ção às fábricas, afetando mais populações e bacias hídri- entre os substantivos, uma nova nomeação. Desapare-
cas. É o caso do Canal Caboclo Bernardo. Desde sua aber- cem os córregos e rios, ribeirões, lagos e lagoas, e entram
tura, para abastecer a terceira fábrica, a Aldeia Indíge- em cena os canais e reservatórios, as barragens, elevató-
na Tupiniquim de Comboios, foi diretamente impactada rias e comportas. Apropriada pela empresa, a água é re-
– na criação de gado, na agricultura de várzea, na pesca significada em seu uso industrial. Não se trata mais de
do camarão. água, recurso de uso coletivo, associado à segurança ali-
A água reclamada pelos índios de Comboios e pelos mentar e a tantos ritos sociais. Para a empresa e seu uso
pescadores de Barra do Riacho abastece hoje os três re- privado, o que importa é o H2O.
servatórios artificiais do complexo industrial da Aracruz:
o Reservatório Águas Claras, o Reservatório Pavor e o Re- Mais água para a Aracruz
servatório Santa Joana46. Desviando rios e córregos e se A atual lei de outorga d’água favorece o uso de água
alimentando das bacias hídricas do Rio Riacho, do Rio pelas grandes empresas. A Aracruz Celulose já fez a re-
Gimuhuna e do Rio Doce, a empresa bombeia toda essa quisição de outorga de direito de uso da água em dois
água para sua Estação de Tratamento de Água (ETA), pois pontos do Rio Doce, no córrego Rancho Alto, no Rio Itaú-
a água reclamada pelo processo industrial não pode ser nas e no Rio Reis Magos, para abastecimento de carro
consumida imediatamente, tal como é apropriada junto pipa, irrigação de plantações, aplicação de agrotóxicos e
aos rios. Deve ser tratada pela empresa, ao contrário das combate a incêndios. E ainda deve se beneficiar com a
águas naturais da população que habita o entorno indus- outorga preventiva, em detrimento da água para os pe-
trial, poluídas para o consumo humano. quenos agricultores.

Grandes intervenções foram feitas no Rio Doce para garantir o abastecimento de água para as fábricas: população sem acesso

Projeto Conexão Sul

90
3
agricultura industrial, vinculado ao processo mais amplo
de apropriação territorial, além de aprofundar as assi-
metrias na distribuição e/ou apropriação social da água,
impõe às populações tradicionais atingidas e à socieda-
Desvios e de civil, re-significações da água (e do território) em seu
uso industrial.
represamento Um voraz consumo de água

de rios: Desde sua instalação, uma série de procedimentos -


como desvios de rios e córregos e construção de barra-

irregularidades
gens - foram feitos para fins de abastecimento das fábri-
cas de celulose. Os desvios e represamentos foram feitos
sem a elaboração de Estudos de Impacto Ambiental (EIA)
e os abusos e de Relatórios de Impacto Ambiental (Rima).
Na ocasião da “CPI da Aracruz”, o depoimento de Her-
Marilda Teles Marraci val Nogueira Júnior, então presidente da Associação Co-
munitária de Barra do Riacho48, foi bastante esclarecedor
sobre a situação dos rios apropriados pela empresa para
seu uso industrial:
Embora as publicações da empresa não apresentem in-
formações transparentes sobre a utilização dos recursos “Queremos deixar registrados os problemas ocasionados
hídricos, agregando informações das indústrias, viveiros, com os desvios dos rios, pois, aquela comunidade [Barra
plantações, porto e infraestrutura, e considerando os ci- do Riacho] tinha uma cultura pesqueira artesanal antes de
clos de crescimento e expansão da empresa em curso, po- ser implantado o empreendimento da Aracruz Celulose,
de-se estimar a dimensão do que representa e represen- em torno de novecentos moradores. (...) foi feita uma
tará, dentro em breve, o consumo de água no conjunto comporta próxima ao norte da Barra do Riacho, acima do
das operações industriais e nas monoculturas de eucalip- Rio Comboios, que desemboca no Rio Riacho. Esse Rio
to da Aracruz Celulose. Esta estimativa é respaldada pe- Riacho desemboca na Barra do Riacho, na falada boca
las próprias constatações e denúncias das populações lo- da barra. Esse rio tem um braço, o canal do Rio Juuna
cais e pelos diversos estudos já realizados. Eles compro- [Gimuhuna], acima do Rio Comboio indo ao norte. Esse Rio
vam os graves danos ambientais e sociais causados pelo Juuna [Gimuhuna] terminava no Rio Riacho. Porém, vindo
processo de apropriação dos recursos hídricos em territó- para a Barra do Riacho, foi feita essa comporta e essas
rios comunais, atualmente sob restritos e “ilhados” terri- águas passaram a ter o seu fluxo para aquela barragem
tórios dentro do complexo geográfico apropriado por esse artificial, aquela lagoa artificial de propriedade da Aracruz
mega empreendimento. Consideremos, novamente, a re- Celulose. Aquela região era rica de nascentes e rios.
lação íntima existente entre latifúndio e monocultura e Essa barragem usufrui tanto do Rio Mãe Boa como do Rio
que a expansão em curso significa ampliação na aquisi- Pavo, do Rio Juuna [Gimuhuna] e do Rio Riacho. (...) o Rio
ção de terras, consequente ampliação da utilização de re- Engenho, ao sul da área urbana da Barra do Riacho (...),
cursos hídricos e, certamente, aprofundamento das já tão fica em torno de quatrocentos metros da linha férrea da
graves implicações sociais e ambientais. Portocel. A nascente desse rio é próxima da barragem.(...).
A Aracruz Celulose anuncia investimentos em aquisi- Essa barragem tem também ligação com o Rio Engenho.
ção de terras e desenvolvimento de “florestas plantadas” A oeste está o Rio Mãe Boa e também o Rio Pavo. Todos
para suportar o projeto de expansão, nos seguintes va- esses, a barragem acaba concentrando essa quantidade
lores, em milhões de dólares: 261 em 2008; 41 em 2010 de água para servir a empresa”.
e 27 em 201147. Como observa Carlos W. Porto-Gonçal- (depoimento de Herval Nogueira Júnior, 2002)49
ves (2006), “A extensão territorial tornou-se, novamen-
te, quem diria?, estratégica. Área, muita área. Água, mui- A apropriação de enorme quantidade de recursos hí-
ta água. Conflito, muito conflito.” (Gonçalves, 2006, p. 19). dricos para a fabricação de pasta de celulose deu-se em
Considerando, pois, o complexo geográfico que envolve etapas, de acordo com o ritmo de construção e amplia-
os conflitos territoriais em questão, a problemática dos ção das unidades fabris. Primeiramente, foi construído
recursos hídricos está intimamente relacionada às da ter- um sistema integrado de reservatórios utilizando os rios
ra, das florestas e biodiversidade, das culturas tradicio- e córregos a partir de desvios e barragens, conforme de-
nais e das relações sociais e de poder. monstrou o depoimento de Herval Nogueira, para abas-
O processo de apropriação dos recursos hídricos pela tecimento das duas primeiras fábricas (A e B). As nascen- 91
tes e grande parte dos cursos dos rios e córregos citados 0,5% (...). E o então secretário de Meio Ambiente do Espí-
passaram a ser de uso exclusivo da empresa Aracruz Ce- rito Santo, Almir Bressan, destacou que “o canal, bem ad-
lulose. A segunda etapa foi a grande obra de transposição ministrado como está sendo, proporciona um balancea-
de bacias (Rio Doce, sob administração federal, e Rio Ria- mento maior dos níveis de água, restabelecendo o equilí-
cho, sob administração estadual) para captação de água brio ambiental da região” (AGB-ES, 2004, s/n). No entan-
com a construção do Canal Caboclo Bernardo para abas- to, é possível perceber apenas pela observação simples,
tecimento da terceira fábrica (C), atingindo as comunida- em campo, da velocidade do escoamento do movimento
des de pescadores de Barra do Riacho e comunidades in- da água do Canal Caboclo Bernardo, que este se dá em
dígenas Tupiniquim. grande velocidade e que o volume captado e transporta-
do pelo canal é muito grande.
A construção do Canal Caboclo Bernardo A água captada do Rio Doce através dos canais Cabo-
O Canal Caboclo Bernardo foi construído em 1999 a clo Bernardo, Riacho e DNOS, percorre uma extensão su-
partir da demanda criada pela construção da “Fábrica perior a 40 km e segue em direção ao complexo fabril da
C” da Aracruz Celulose, provocando significativas alte- Aracruz Celulose através do leito do Rio Riacho. Junto ao
rações no comportamento hídrico da região. O referido ponto de deságue do Rio Gimuhuna, afluente do Rio Ria-
canal, construído perpendicularmente em relação ao Rio cho, a empresa construiu uma Estação Elevatória que re-
Doce50, faz a captação de águas desse rio utilizando os ca- tém o fluxo do Rio Riacho, que transporta as águas cap-
nais de drenagem do Departamento Nacional de Obras tadas no Rio Doce e, por meio de um sistema de bom-
de Saneamento (DNOS), construídos nos anos de 196051, o beamento a motor com alta potência inverte o curso do
Canal do Riacho52, o Rio Riacho53 e o Rio Comboios54, for- Rio Gimuhuna de seu caminho natural de deságue para
mando um sistema integrado de captação de águas para o a direção contrária à sua jusante, rumo aos reservatórios
abastecimento do complexo fabril celulósico. Entre o Ca- das fábricas, utilizando este rio, portanto, como canal de
nal Caboclo Bernardo e a planta do complexo fabril en- transporte das águas captadas desde o Rio Doce até as
contram-se a Aldeia Tupiniquim Comboios e os povoados represas artificiais de armazenamento de água. Dessa
de Vila do Riacho e de Barra do Riacho, estes dois últimos forma, a empresa, além de captar águas da bacia do Rio
com grande contingente de pescadores. Doce, converge toda a rede natural de captação de água
Os canais do DNOS foram construídos para drenagem (afluentes, subafluentes e rede de drenagem) da bacia do
das áreas pantanosas nos terrenos do Vale do Suruaca55, Rio Riacho para seus reservatórios industriais.
direcionando os fluxos hídricos ao Rio Riacho, com o ob- O geógrafo André Coelho (2005) identificou, em suas
jetivo de ampliar a área agrícola e fazendas de criação de pesquisas, transformações provocadas pelo sistema de
gado da região, o chamado processo da “cerca andante” 56 captação de águas e faz as seguintes constatações:
e, logo depois, recuperados, passam a atender a deman-
da de água para a indústria de celulose. Segundo a em- “Chegando próximo à foz, no distrito de Barra do Riacho,
presa, “a captação foi feita a 22 km da foz do Rio Doce, na o curso do Rio Riacho desvia-se e começa a correr no
Fazenda Monterrey. A partir daí, construiu-se um canal sentido contrário do Rio Gimuhuna, em direção à Estação
de apenas 2 km para fazer a interligação de 42 km de ca- Elevatória na qual a água é levada, por meio de bombas,
nais abertos há mais de 20 anos pelo DNOS, que necessi- para um reservatório da indústria situado em nível superior
taram apenas de recuperação e manutenção. A água flui ao terreno circundante (nos tabuleiros costeiros). A outra
por gravidade ao longo de todo o percurso”57. parte do canal de captação liga à nascente do Rio Comboios,
Segundo relatório da Associação dos Geógrafos Brasi- passando por dentro da Reserva Biológica e Indígena de
leiros (AGB-ES, 2004), o gerente de Meio Ambiente e Se- mesmo nome, na qual os índios antes faziam o uso da água
gurança Industrial da Aracruz, Alberto Carvalho de Oli- para pesca, lazer e abastecimento. Agora, estão limitados
veira Filho, em 2004, comentou que o sistema atua, “de de tais usos pelo despejo das águas provenientes do Rio
duas formas: no período de estiagem, capta água do Rio Doce. Nessa complexa rede de canais, existem comportas
Doce e a leva até a região de Aracruz. No período de de controle de vazão da água evitando possíveis inundações
cheias, faz a drenagem da região”. Quando ele fala que o na planície, e ao mesmo tempo, dependendo dos períodos
“sistema atual” devemos entender que o sistema a que ele de estiagens prolongadas, há a possibilidade de aumentar
se refere é operado pela empresa. Assim, por trás da im- a vazão de água em direção ao reservatório da referida
pessoalidade do sistema há um sujeito poderoso agindo indústria. Praticamente, não existe qualquer controle pelos
(AGB-ES, 2004, s/n). órgãos fiscalizadores da quantidade diária de água retirada
O professor Orlindo Borges, então consultor do proje- do Rio Doce. (...) segundo entrevistas realizadas com o
to Caboclo Bernardo58, afirmou que: “quando compara- presidente da Associação dos Pescadores e também com
do com a vazão histórica do Rio Doce nos últimos 68 anos, outros pescadores, não há, como no passado, a abundância
92 que foi de 952 m³/s, o volume a ser aduzido representa de peixes. Segundo eles, nos últimos anos, a foz [do Rio
Doce] tem passado por uma série de mudanças e processos Os Tupiniquim de Comboios relatam que o argumen-
relacionados, sobretudo, com a diminuição da vazão do to técnico utilizado para o convencimento da comunida-
rio, agravada com [a] construção do canal de captação e de versou sobre a necessidade da construção do canal para
transposição das águas do Rio Doce para o abastecimento corrigir o PH da água do Rio Comboios e para abastecer a
do reservatório da indústria de celulose”. população de Vila do Riacho e Barra do Riacho. Segundo
(Coelho, 2005, p. 5455)59 Luiz Carlos Cacá Gonçalves, prefeito de Aracruz na épo-
ca da construção do canal, “a captação do Rio Doce solucio-
Rio Comboios: de um regime fluvial nou o problema de falta de água das comunidades de Vila
para um regime industrial do Riacho e Barra do Riacho e aumentou as áreas irrigáveis
O Rio Comboios foi incluído no sistema de controle das para a agricultura (...)”. E, acrescenta: “graças a essa inicia-
águas captadas do Rio Doce através de diques instalados tiva, agora premiada em âmbito nacional64, o município de
no Canal Caboclo Bernardo e que regulam a vazão de acor- Aracruz retomou sua capacidade de desenvolvimento eco-
do com as necessidades de armazenamento da empresa. A nômico, sobretudo para a sua grande potencialidade que é
abertura das comportas dá-se de acordo com o volume de o setor industrial”65. Como se pode constatar, o desenvolvi-
vazão. Com esse sistema, o nível do Rio Comboios, que an- mento se faz em detrimento do modo de viver das popula-
tes era regulado pelo regime natural de inundação sazo- ções pré-existentes.
nal, passou a ser controlado pela empresa. Desse modo, a Segundo João Mateus, então cacique da aldeia Com-
região do entorno do Rio Comboios - cuja rede natural de boios, nunca foi feito um estudo em sua aldeia para o
drenagem constitui-se de várzeas, brejo e pântano, fatores controle da qualidade da água do Rio Comboios, nem an-
importantes associados à fertilidade do solo e à prática da tes nem depois da construção do Canal Caboclo Bernar-
agricultura da comunidade Tupiniquim de Comboios – foi do, que justificasse o argumento da correção do PH da
drasticamente afetada. água. Ele acrescenta que: “hoje não temos nosso rio, te-
A aldeia de Comboios está próxima à região deltaica do mos é um braço do Rio Doce. A água tem gosto de lama,
Rio Doce. Essa é uma região de vegetação de restinga e fede, causa febre, vômitos, encaroça o corpo. Antes era o
matas de tabuleiro (Mata Atlântica de baixada), com ex- mesmo que beber água mineral. Tinha lagoas. O canal foi
tensas áreas de brejos sob influência de várias lagoas do engolindo as lagoas”. Os Tupiniquim afirmam que a cons-
sistema de várzeas. Essas características físicas permi- trução do Canal Caboclo Bernardo “matou as águas” da
tiam aos Tupiniquim de Comboios vivenciar os benefícios região e que, além de inundar nascentes, a inclinação do
da rede de drenagem natural nas proximidades imediatas terreno na construção do canal capta água também das
do Rio Comboios. Segundo depoimentos dos Tupiniquim, nascentes do entorno, conforme demonstraram em cam-
o nível de água desse rio subiu consideravelmente depois po os Tupiniquim (AGB-ES, 2004, s/n).
da construção do Canal Caboclo Bernardo. Dessa forma, as
várzeas - antes utilizadas para o cultivo de alimentos (ar- Barra do Riacho
roz, feijão, hortaliças) em períodos de seca sazonal60 - ago- “A comunidade de Barra do Riacho não recebe nenhuma
ra, são inundadas pela abertura do canal, de acordo com as gota d’água deste desvio para seu abastecimento, pelo
necessidades da empresa, o que independe da sazonalida- contrário, as águas do Rio Riacho diminuíram. A comunidade
de61. É importante considerar que mais de 90% do território se vê obrigada a comprar água mineral engarrafada no
da aldeia Comboios localiza-se à beira mar, constituindo- mercado ou, na pior das hipóteses, utiliza água de um
se, portanto, de solo arenoso. Com as interferências na di- córrego próximo que está contaminado”66.
nâmica hídrica do Rio Comboios, que passou a receber um
maior volume de água vinda do Rio Doce, a comunidade O Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Aracruz
Tupiniquim perdeu o controle de parte importante de seu (SAAE), através do Of. 201-02/SAAE-ARA de 18 de ju-
já restrito território para o cultivo de alimentos. nho de 2002, informou que “a captação de água de Barra
Os Tupiniquim de Comboios62 relataram alterações sig- do Riacho é feita na lagoa Santa Joana, local já sem in-
nificativas na quantidade e na qualidade da água do Rio fluência do canal, que não traz benefício às caracterís-
Comboios, que passou a receber também todos os resídu- ticas físico-químicas da água captada”. Segundo relató-
os e dejetos que nele são lançados, desde o estado de Mi- rio da AGB-ES (2004), o mesmo ofício informa que a ca-
nas Gerais, onde nasce, até o Espírito Santo, onde deságua. nalização não beneficiou o distrito de Barra do Riacho
A qualidade da água prejudicou muito a produtividade de porque a captação do abastecimento desse distrito no
peixe e camarão, que costumavam pescar para consumo Rio Riacho está em um ponto, à jusante, anterior ao des-
e para venda. Relatam ainda que os peixes do rio pratica- vio das águas para os reservatórios de abastecimento da
mente desapareceram. As águas do Rio Doce transportam Aracruz Celulose. Barra do Riacho fica depois desse re-
peixes para as águas do Rio Comboios mas, segundo rela- ferido ponto, às margens da foz. Fica evidenciado, assim,
tam, são “peixes ruins”63. que a justificativa do estado quanto à necessidade da 93
Fotos: Relatório da AGB – Vitória 2004

O desvio das águas do Rio Doce para a bacia do Rio Riacho provocou a degradação dos cursos d’água e nascentes: tudo para abastecer a Aracruz

construção do Canal para resolver problemas de abas- entre o mar e o Rio Riacho, na sua foz. No local, é possí-
tecimento de água do distrito são infundados67. No en- vel observar claramente um intenso processo de assorea-
tanto, justamente por localizarem-se às margens da foz, mento e um estado de desequilíbrio dos processos depo-
a redução do volume de águas do Rio Riacho que acon- sicionais e erosionais entre o rio e o mar na foz do Riacho.
tece após o ponto de inversão de seu curso, atinge subs- Com a redução do fluxo de água do Rio Riacho, houve um
tancialmente os pescadores de Barra do Riacho. comprometimento da dinâmica da foz, cujo controle mor-
Barra do Riacho é vizinha imediata da planta do com- fológico dá-se agora pelo domínio da ação das ondas do
plexo fabril celulósico e está cercada por grandes exten- mar, reduzindo a capacidade do Rio Riacho em transpor-
sões de plantio de eucalipto. Herval Nogueira demons- tar os sedimentos para desobstruir sua foz, resultando no
trou em campo, durante várias caminhadas no entorno que os pescadores de Barra do Riacho chamam de “fecha-
de Barra do Riacho, o estado de degradação dos cursos mento da boca da barra”. Observa-se ainda um movimen-
d’água e nascentes e as obras de barragens realizadas to de migração rápida dos bancos de areia motivada pela
pela empresa. Diante da foz do Rio Riacho ele explicou energia das ondas. Segundo Herval Nogueira, em poucos
que depois da construção do Canal Caboclo Bernardo ve- dias, e até mesmo horas, muda completamente a configu-
rificou-se o estreitamento da boca da foz do Rio Riacho, ração da “boca da barra”.
provocado por bancos de areia formados pelo mar. A di- Com estes problemas, as embarcações de pesca arte-
minuição do fluxo de água do Rio Riacho, a partir do sis- sanal, recurso tradicional de sobrevivência da comuni-
tema de inversão do fluxo do seu afluente Rio Gimuhuna dade pesqueira do povoado, não conseguem chegar ao
(nas proximidades do povoado de Barra do Riacho), tor- mar e nem retornar em períodos de maré baixa. Esse
nou insuficiente o movimento de retirada da areia pela fato impõe a diminuição das horas de pesca, agora deter-
94 água do rio, desequilibrando a dinâmica de movimento minadas pelas marés e, consequentemente, uma drásti-
ca diminuição na produção de peixes. Isso provocou um manik Pompeu, mesmo tendo elaborado um parecer ex-
grande impacto na economia da comunidade de pesca- tremamente detalhado sobre os aspetos legais e jurídicos
dores, que já enfrenta a concorrência com grandes bar- do licenciamento, desconsiderou o conceito de bacia hi-
cos de pesca empresarial que realizam atividade preda- drográfica estabelecido na Lei 5.818/98, com o agravante
tória sem fiscalização nas águas desta comunidade, se- de que nem mesmo os técnicos da Seama, que se pronun-
gundo os pescadores de Barra do Riacho68. A comunida- ciaram no processo de licenciamento fizeram menção à lei
de pesqueira de Barra do Riacho reivindicou providên- estadual, omitindo dados essenciais à tramitação do pro-
cias junto à empresa que dispôs uma draga para retirar cesso, descuidando-se da defesa do interesse público e da
a areia depositada. Herval Nogueira explica que “a dra- observância da legalidade. O parecer do consultor técnico
ga retira a areia do canal da foz e a amontoa na praia, do da empresa, Antônio Eduardo Lanna, foi mais explícito: “a
lado direito. O mar, por sua vez, retira a areia do barran- utilização da água derivada do Rio Doce será para atender
co, à esquerda, na tentativa de repor o material. Em épo- o Parque Industrial da Aracruz Celulose S/A”73.
ca de maré alta, o mar passa por cima do barranco”69.
Licenciamentos: ausência e ilegalidade
Uma transposição de bacias Os eventos relatados a seguir demonstram, mais uma
A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hí- vez, o papel ativo do Estado por meio de autoridades lo-
dricos (Seama) recomendou à Prefeitura Municipal de Ara- cais, regionais e até federais, no favorecimento dos proje-
cruz a contratação de profissionais especializados em re- tos do Grupo Aracruz no território capixaba.
cursos hídricos, como o engenheiro Antônio Eduardo Lan- O licenciamento para a construção do Canal do Rio Doce
na, do Rio Grande do Sul, e o advogado Cid Tomanik Pom- foi concedido pela Seama em processo que durou menos de
peu, de São Paulo. O primeiro elaborou um parecer técni- um mês, sem a exigência de EIA/Rima. Conforme o exposto
co onde considera que o Rio Doce, em épocas de inundação, anteriormente, trata-se de transposição de bacias, sujeita à
como a de 1979, lança suas águas sobre a bacia do Rio Ria- elaboração do Estudo de Impacto Ambiental, conforme o art.
cho e que, por este motivo, o aproveitamento das águas do 2°, VII da Resolução 01/86 do Conama.
rio federal ocorreria em sua própria bacia, o que não carac- O promotor público do estado na Curadoria de Meio
terizaria “transposição de bacias” (nos termos da Resolu- Ambiente, Dr. José Cláudio Pimenta, manifestou-se so-
ção 01/86 do Conama – art. 2, VII e da Lei 4.701/92 – art. 75, bre esse processo de licenciamento no OF/CAAB/N°
VI). Sendo assim, não haveria necessidade de licenciamen- 292/2001, de 27 de agosto de 2001:
to mediante a exigência prévia de EIA/Rima. O advogado
Cid Tomanik Pompeu elaborou um extenso parecer jurídi- “No tocante aos licenciamentos ambientais relacionados com
co com base nas informações técnicas de Antônio Eduardo a empresa Aracruz Celulose, que tramitam junto à Seama,
Lanna, onde concluiu que o licenciamento poderia ser fei- constatamos que há uma licença requerida pela Prefeitura
to sem a elaboração de EIA/Rima70. Municipal de Aracruz, para adução de água do Rio Doce,
A montagem do processo na Seama, sob o manto do in- mediante um sistema de canais e comportas de controle
teresse público personificado numa instituição, a Prefei- de vazão e transferência d’água até o Rio Riacho, tendo
tura Municipal de Aracruz, desconsiderou o conceito de como beneficiária principal a empresa, com direcionamento
bacia hidrográfica estabelecido no art. 6° da Lei Estadual do fluxo d’água para o sistema de captação do complexo
5.818, de 30 de dezembro de 1998, que dispõe sobre a Polí- industrial da fábrica de celulose. Releva salientar que esse
tica Estadual de Recursos Hídricos: “área drenada por um licenciamento foi requerido pelo poder público municipal, sob
curso d’água ou por uma série de cursos d’água de tal for- os auspícios de critérios privilegiados, em face ao interesse
ma que toda a vazão efluente seja descarregada através de público subjacente. Nesse caso, de forma inusitada, na fase
uma só saída, na porção mais baixa do seu contorno”71. de acompanhamento e cumprimento das condicionantes
Do ponto de vista legal e geográfico, o Rio Doce e o Rio impostas, a Seama passou a tratar o assunto diretamente
Riacho têm bacias distintas. Limitadas por divisores de água, com a empresa Aracruz Celulose, que assumiu as
tanto a bacia do Rio Doce quanto a bacia do Rio Riacho, cada obrigações antes pactuadas pela municipalidade.”
uma em sua unidade fisiográfica, recolhem a precipitação, (Dr. José Cláudio Pimenta, APUD AGB-ES, 2004, s/n)
agem como um reservatório de água e sedimentos, defluin-
do-os em uma seção fluvial única (exutório), cujas drena- O licenciamento do Canal do Rio Doce foi feito através
gens são exorréicas72. Portanto, se o Rio Doce e o Rio Riacho do Processo n° 295/99 da Seama, onde o município de Ara-
possuem saídas exorréicas distintas, a chamada canalização cruz, “solicita LP (Licença Prévia) e LI (Licença de Instala-
das águas do Rio Doce, que é um rio federal, para o Rio Ria- ção) para captação de adução de água para abastecimento
cho (rio estadual) configura, rigorosamente, uma transposi- público”. No referido processo, foram constatadas irregu-
ção de bacias. laridades administrativas, cujos desdobramentos são pas-
Visando o interesse privado, o consultor jurídico Cid To- síveis de responsabilização administrativa, civil e criminal 95
lação do direito à água. Consta dos Autos da “CPI da Ara-
cruz” um documento do advogado Sebastião Ribeiro Filho
(OAB/4.060) no qual são apresentadas as “Condições sobre
Relatório da AGB – Vitória 2004

o Licenciamento da Canalização de Água do Rio Doce para


o Município de Aracruz-ES” (Ribeiro Filho, 2002)74. Segun-
do o documento do advogado, oficialmente, o pedido de li-
cenciamento à Seama para a construção do Canal Cabo-
clo Bernardo foi uma iniciativa da Prefeitura Municipal de
Aracruz. Primeiramente, um ofício do gabinete do prefei-
to municipal (GAB120) requeria o licenciamento à Seama,
em 14 de abril de 1999 e, somente em 27 de abril de 1999, o
O Canal Caboclo Bernardo não tem estudo de impacto ambiental: ilegal pedido de licenciamento foi elaborado em formulário pró-
prio da Seama, tendo anexado o Termo de Referência para
de todos os que participaram das irregularidades. elaboração da Declaração de Impacto Ambiental (DIA):
Segundo Relatório da AGB-ES (2004), na página 2 do
processo de licenciamento, verifica-se que a Seama fez o “O Termo de Referência e o DIA, ao que parece, foram
enquadramento da atividade como “aumento da disponibi- entregues ao órgão estadual na mesma data, o que
lidade hídrica nas várzeas do Rio Riacho nos municípios de é estranho, pois, o objetivo do primeiro documento
Aracruz e Linhares”, onde o responsável pela informação (proposto pela empresa consultora que elaborou o DIA
sobre o licenciamento assina em nome da Prefeitura Muni- para o município de Aracruz, conforme as Fls. 04 a 10
cipal de Aracruz, na data de 22 de abril de 1999. Mas, quan- do Processo) é o de orientar a elaboração do segundo e,
do são iniciados os despachos administrativos no referido caso haja a necessidade, o órgão ambiental deve solicitar
processo, conforme a folha 12 do processo da Seama, a tra- modificações, inclusão de tópicos a serem analisados – não
mitação do processo data de 15 de abril de 1999, constando contemplados na proposta –, e ao que tudo indica, embora
a seguir que a data de recebimento da Secretaria seria 16 não haja referência expressa, o Termo de Referência foi
de abril de 1999. A AGB-ES (2004), então, questiona: aceito como proposto.”
(Ribeiro Filho, 2002)75
“Como é possível um órgão público receber um documento
em 15 de abril de 1999, quando o enquadramento da atividade Na análise, realizada por Sebastião Ribeiro Filho, do Pro-
data de 22 de abril de 1999? Confusão com as datas pode cesso Administrativo do referido pedido de Licenciamento
ocorrer e não implicar em irregularidade. No entanto, o prefeito Ambiental, técnicos da Seama, em 06 de maio de 1999, indi-
municipal, no Ofício (gab) n° 120, de 14 de abril de 1999, onde caram a necessidade de consultoria externa para embasa-
requer o licenciamento para a obra, enfatiza que ‘reforçamos o mento técnico-legal e um ofício foi encaminhado ao prefeito
caráter emergencial, para análise deste projeto, em função da de Aracruz, em 07 de maio de 1999, solicitando ao mesmo o
gravidade e tendência da seca atual’”. pleito dos técnicos do órgão estadual para “... garantir maior
(AGB-ES, 2004, s/n) agilidade para o processo de licenciamento” (Ofício/Seama/
GS-N°301/99)76. Quatro dias depois, em 11 de maio de 1999,
Observando as datas em que a Seama recomendou a um fac-símile chega à Seama, contendo parecer técnico de
contratação – Ofício/Seama/GS – nº 301/99 de 07 de maio um engenheiro, do qual Sebastião Ribeiro Filho destaca: (...)
de 1999, uma sexta-feira, bem como a do parecer do en- merecem transcrição as afirmações das fls. 23 e 24:
genheiro Antônio Eduardo Lanna, datado de 10 de maio
de 1999, a segunda-feira seguinte, não é preciso muito es- “1. Trata-se de projeto de aproveitamento das vazões do Rio
forço para saber que tal contratação foi feita sem obser- Doce e sua própria bacia, mais especificamente no leito maior
vância da Lei de Licitações, uma vez que o “parecer jurí- deste curso de água e que é localizado na região deltaica da
dico” é datado de 12 de maio de 1999. Há também o fato sua foz;
da empresa Aracruz Celulose S/A ter assumido o cum-
primento das condicionantes da licença de instalação da 2. A utilização da água derivada do Rio Doce será para
chamada “canalização das águas do Rio Doce” cerca de atender o Parque Industrial da Aracruz Celulose S.A., já
um ano após o licenciamento, numa clara demonstração existindo outorga neste sentido, concedida pelo Ministério
de que a empresa sempre foi a maior beneficiária desse das Minas e Energia; em situações de emergência, poderá
processo (AGB-ES, 2004). associar-se com a prefeitura de Aracruz para realizar
Sem EIA-Rima, fruto de uma enorme omissão e clara ir- abastecimento público da região, tendo em vista a utilização
responsabilidade do estado e de seus órgãos licenciado- prioritária para esta finalidade.”
96 res, o Canal Caboclo Bernardo é prova inequívoca de vio- (anexo/Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 2.030)
Segundo a análise do advogado Ribeiro Filho sobre o esse problema e a Aracruz declarava que não precisava
processo em questão, já no dia 12 de maio de 1999 téc- de água, mas sentia um projeto interessantíssimo. Eles
nicos da Seama/DLAIA concordavam com a concessão conseguiram até fazer nesse canal uma ligação para o
da licença ambiental pretendida. Nesse mesmo dia, ou- Rio Comboios para termos essa água também, só que ela
tro fac-símile chegou à Seama, apresentando parecer téc- é controlada. Se necessitamos da água, não temos essa
nico77 de um consultor contratado pela prefeitura de Ara- prioridade. Essa é a dificuldade dos moradores”.
cruz, favorável ao licenciamento do projeto. A partir des- (depoimento de Herval Nogueira, 2002)83
sas informações, Ribeiro Filho avalia em seu documen-
to que ocorreu uma celeridade incomum na tramitação A luta pela recuperação do Rio Sahy
do processo de licenciamento do Canal Caboclo Bernar- e Rio Guaxindiba
do: “... atropelando a legalidade administrativa...” 78. Na se- “A água do rio era usada para trabalhar na cozinha, lavar
quência, Ribeiro Filho considera inexplicável a Seama ter vasilhas, roupas, tomar banho e pescar. As mulheres
solicitado a contratação de consultor externo ao municí- tomavam banho às 17 horas e os homens só depois,
pio requerente do licenciamento: “Esta é, no mínimo, im- à noite. Era um importante momento, onde todos
própria, pois nos quadros do órgão há assessor jurídico participavam, desde crianças até os mais velhos. E
com especialização em Direito Ambiental...”79. Por fim, Ri- também, nós, aqui de Pau Brasil, atravessávamos pelo rio
beiro Filho estranha que tenha sido a Prefeitura Munici- para as aldeias Canta Galo, Olho D´água e Caieiras Velha.
pal de Aracruz a requerente do licenciamento, quando no Era uma forma de visitarmos nossos parentes. Tinha peixes
parecer técnico afirma-se que as águas derivadas do Rio como traíra, tainha, cará, robalo e camarão. A gente comia
Doce tinham como destinação atender ao parque indus- isso tudo, mas agora, sem ter onde pescar, para comer
trial da Aracruz Celulose S.A.80. peixe, temos que comprar.”
Ao contrário do que afirma o parecer técnico encomen- (“Seu” Antonino Tupiniquim, cacique de honra da aldeia Pau Brasil)84
dado pela prefeitura de Aracruz, Ribeiro Filho avalia tra-
tar-se de uma transposição de bacias hidrográficas, o que Em setembro de 2002, quando foi feita uma revisão do
exigiria, com base na Legislação em vigor, a “... elaboração Termo de Ajuste de Conduta (TAC)85 – acordo entre a Ara-
de Estudos de Impacto Ambiental, e não uma Declaração cruz Celulose e os indígenas de Aracruz desde a demar-
de Impacto Ambiental”81 preparada pela própria reque- cação de 1998 –, os Tupiniquim e os Guarani pressiona-
rente. Afirma Ribeiro Filho: ram a empresa, acrescentando ao conteúdo do documen-
to um importante termo aditivo: “(...) realização de estudo
“A concessão do licenciamento ambiental pela Seama ao técnico sobre a recuperação total dos rios Sahy e Guaxin-
município de Aracruz, para captação de água do Rio Doce e diba a ser entregue às comunidades no prazo de 60 dias
a autorização pelo Idaf [Instituto de Defesa Agropecuária e contados desta data, com definição de medidas e estima-
Florestal] para a supressão da vegetação considerada como tiva dos custos necessários a esta recuperação”. A exigên-
de preservação permanente ferem frontalmente o princípio cia de recuperação dos rios Guaxindiba e Sahy pela Ara-
da legalidade, previsto no art. 37, caput, da Constituição cruz Celulose partiu dos Tupiniquim da Aldeia Pau Brasil
Federal (...). A legalidade, in casu, é a exigência da e foi apoiada pelas demais aldeias e pelo Ministério Pú-
elaboração de EIA/Rima, e não a dispensa deste, como fez o blico Federal (ES).
órgão estadual e ainda, a prévia autorização do Ibama para a Interrompidos em seu curso por barragens, cercados
supressão da vegetação à margem do Rio Doce, a despeito por maciços contínuos de plantio de eucalipto, poluídos
da discussão da ilegalidade da Medida Provisória 1.736/99.” pelo esgoto urbano da Aracruz, agravado pela expansão
(Ribeiro Filho, 2002)82 urbana no entorno da empresa fomentada pela sua ins-
talação86, o destino desses rios está diretamente relacio-
Informações sobre o Canal Caboclo Bernardo po- nado ao destino dos Tupiniquim de Pau Brasil. A propos-
dem ser também colhidas do depoimento de Herval ta de recuperação dos rios apresentada pela empresa não
Nogueira Júnior à “CPI da Aracruz”: foi aceita por eles que decidiram, através da Associação
Indígena Tupiniquim e Guarani (AITG) e por intermé-
“O problema maior foi quando tomamos conhecimento do dio do Conselho Indigenista Missionário do Espírito San-
projeto Rio Doce. Pelo menos pela mídia, vimos o prefeito, to (Cimi-ES), demonstrar seus próprios argumentos, con-
em 1999 – tenho uma cópia aqui – que mencionava que figurando-se um confronto político no campo técnico e
esse projeto era salutar para o benefício das comunidades metodológico acerca dos procedimentos de estudos e re-
que estavam com problema de água. E o que ocorreu cuperação destes rios.
com isso? Onde foi feito um projeto com apoio da Aderes Responsabilizada pelos danos, a Aracruz Celulose te-
[Agência de Desenvolvimento em Rede do Espírito Santo] ria então que se responsabilizar pela recuperação. A
e do governo do estado, todos juntos tentando solucionar empresa, consciente de que se implantou sobre territó- 97
rios indígenas, assumiu o encargo, apesar de disponi- volvidas, e a pedido destas, um levantamento dos impac-
bilizar apenas R$ 120 mil para uma obra que custaria tos sobre os recursos hídricos em seus territórios, onde
no mínimo R$ 6 milhões, conforme relatório da pró- os saberes mais uma vez se encontraram. O chamado Re-
pria empresa87. A empresa entregou à Associação In- latório da AGB-ES89 foi entregue e apresentado à AITG e
dígena Tupiniquim e Guarani (AITG) uma proposta de às comunidades reunidas na aldeia Tupiniquim Caieiras
estudo e recuperação sob o título: Estudos de Recupe- Velhas, em março de 2004.
ração de Rios e Córregos na Área da Associação Indí- A aldeia Tupiniquim Pau Brasil, localizada próxima aos
gena88, sem nenhuma consideração quanto à participa- rios Sahy e Guaxindiba, é tradicionalmente ligada a estes
ção das populações indígenas e pescadoras no proces- rios e sofre grandes impactos negativos provocados pela
so de estudo e recuperação. Numa evidência do confli- chegada da empresa Aracruz Celulose e pelo sequente
to de racionalidades distintas, a Aracruz Celulose apre- crescimento da população urbana do município de Ara-
sentou uma proposta de obras de engenharia hidráuli- cruz. Os danos iniciais deram-se pela substituição da ve-
ca de escoamento das águas dos rios e/ou córregos em getação nativa, incluindo mata ciliar90, pelo plantio do eu-
alguns de seus trechos. Estas obras, de caráter paliati- calipto, em fins da década de 1960 e na década de 1970.
vo e imediato, dirigiam-se apenas a alguns dos sinto- Alguns resultados do referido relatório serão expostos,
mas do problema ambiental, não tocando nas suas cau- resumidamente, a seguir.
sas e não considerando a bacia hidrográfica dos rios em
questão. A exigência dos Tupiniquim e dos Guarani era Rio Sahy
a de que as intervenções fossem para a recuperação to- “Nós, Tupiniquim, somos povo do banhado, povo das águas,
tal dos rios, conforme constava no referido acordo assi- que se refresca nas águas. O Rio Sahy era onde as crianças
nado pelas partes (TAC). tomavam banho, mesmo no batismo. Podia mergulhar e be-
Inconformados com o descaso e paliativos sugeridos ber daquela água, sem medo de se contaminar, de adoecer.
pela empresa, os índios solicitaram à AGB-ES um pare- Infelizmente, é uma dor no meu coração ver estas águas po-
cer técnico sobre a proposta empresarial de estudos. Num luídas, com mau cheiro hoje”.
encontro de saberes, a equipe de geógrafos demonstrou, (Iara Tupã, Deusdéia, mulher Tupiniquim, liderança da Aldeia de Pau Brasil)91
em parecer técnico, considerando as causas dos proble-
mas hídricos, sobretudo a partir da participação, do saber Sem a presença da vegetação ciliar, o escoamento do
e do relato dos índios que, para a recuperação total de um Rio Sahy é superficial, por conta do assoreamento. Esse
rio é indispensável abranger toda a bacia hidrográfica, e tipo de escoamento provoca o transporte dos sedimentos
não apenas trechos do leito e suas imediações. Depois de e entulhos para o rio de forma mais intensa. A inunda-
exaustivo debate entre empresa e seus técnicos, geógra- ção do antigo leito do rio por ocasião de altos índices plu-
fos da AGB, lideranças Tupiniquim e Guarani, os enge- viométricos, ocasiona alagamentos das terras ribeirinhas.
nheiros da Aracruz Celulose reformularam por diversas Este potencial risco já é mais evidente nessa área estuda-
vezes suas propostas e os estudos foram finalizados em da, devido ao seu relevo suave e à presença de planícies
novembro de 2004, ainda aquém do diagnóstico elabora- de inundação com presença de várzeas. Em períodos de
do pela AGB em março de 2004. seca sazonal, a alta porosidade da sedimentação dos alu-
No dia 17 de outubro de 2002, a pedido da comunidade viões, que foram depositados no período das chuvas, re-
indígena Pau Brasil, a AGB recebeu do Cimi a solicitação sulta, em uma considerável baixa na disponibilidade dos
de “apoio e assessoria na avaliação do estudo a ser apre- recursos hídricos na região, por infiltração e/ou por eva-
sentado pela empresa Aracruz Celulose, bem como nos poração. Segundo o relato de uma liderança Tupiniquim
trabalhos de recuperação do Rio Sahy, no sentido de ga- da Aldeia Pau Brasil:
rantir que a reivindicação da comunidade fosse realizada
integralmente”. Tal estudo referia-se ao Instrumento Par- “Nossa briga é por causa da Aracruz ter plantado este
ticular de Segundo Aditivo a Termo de Ajustamento de Con- eucalipto e destruído nosso rio, que antes as mulheres
duta e Ratificação de Obrigações Recíprocas - Termo Adi- todas lavavam roupa, nós pescava, tomava banho, pegava
tivo ao acordo de 1998 entre a Empresa Aracruz Celulose água para cozinhar e para beber. E hoje está tudo seco e
S/A e a Associação Indígena Tupiniquim e Guarani (AITG), não podemos mais beber água de rio por causa do veneno.
assinado pelas partes em 04 de setembro de 2002, conten- Neste rio tinha muitas qualidades de peixe. Os mais velhos
do o aditivo citado. contavam que este rio nunca secava. Bem próximo da Aldeia
Após os pareceres da AGB-ES sobre a recuperação dos tinha um porto e íamos de canoas até Barra do Sahy, e
rios Sahy e Guaxindiba, previamente discutidos com os não tinha mato nenhum no meio do rio, e dava muito peixe.
Tupiniquim e Guarani, contendo considerações metodo- Faziam canoas com vela e iam até o mar. Saíam deste porto
lógicas coincidentes com o entendimento destes, a equi- e iam até o mar”.
98 pe de geógrafos elaborou junto com as comunidades en- (Liderança Tupiniquim, apud AGB-ES, 2004, s/n)
A área de plantio é atravessada por estradas construí- de canoas. Atualmente, encontra-se apenas um leito de
das pela empresa para o tráfego de veículos no transporte aproximadamente 1,50 m de largura. No entorno, a mata
da sua produção. Na construção dessas estradas, a empre- ciliar é mínima, quase ausente. Em outro ponto conheci-
sa utilizou o sistema de manilhas em vários trechos do rio. do como Ariribá (S 19º 50’ 40” e O 40º 15’ 18”)94, o córre-
Segundo depoimento de uma liderança indígena: go Sahy Mirim, afluente do Sahy, encontra-se totalmente
seco, devido à construção da Barragem do Inácio à mon-
“Este rio [Rio Sahy] era limpo, tinha muita água e muito peixe tante, que impede a chegada da água. Esta barragem foi
e nós pescava muito aqui de tarrafa e rede e pescava muitos construída em 1972, com a finalidade de captação de água
peixes de várias espécies. Mas com a chegada da Aracruz e para a fábrica da Aracruz Celulose. Segundo depoimento
do eucalipto, construíram esta estrada e desviaram o curso do de uma liderança indígena de Pau Brasil:
rio, colocaram estas manilhas, algumas mais alta que o nível
do rio e bloquearam a passagem do rio. Antes aqui existia “Esta represa foi construída pela Aracruz para irrigar suas
uma ponte de madeira, onde nós passava por baixo dela com mudas de eucalipto. Somente ela sabia desta represa e
as canoas. Hoje a água está parada. Antes desta estrada, o somente ela usou esta represa. Há dúvidas se ainda ela
rio era limpo, fundo, com areia fina nas margens e tinha muito é usada. O ladrão por onde sairia a água não permite a
camarão pitu. A maré tinha influência até neste ponto. Hoje, saída e, desta forma, o rio abaixo deste ponto está morto.
virou um brejo. No início, foi até bom, pois ficou muito peixe Esta represa não permite a passagem da água, matando,
preso, mas hoje acabou a natureza do rio. A maré não entra, o portanto, o rio acima da represa, pois represou totalmente o
rio não passa mais, está tudo parado, morto.” rio, e também abaixo, pois não permite a passagem de água
(Liderança Tupiniquim, apud AGB-ES, 2004, s/n) suficiente para manter a vida deste rio.”
(Liderança Tupiniquim, 2004, apud AGB-ES, 2004, s/n)
Em um trecho do leito de Rio Sahy (S 19º 50’ 29” e O
40º 15’ 07”)92, constatou-se o início de uma obra de mani- Próximo à nascente do Rio Sahy (S 19º 49’ 15” e O 40º
lhamento do curso natural do rio, realizado pela empre- 14’ 17”)95, a mata ciliar é ausente com presença de pasto
sa sem autorização dos caciques. Em outro trecho, deno- e dejetos. Em outro ponto, à jusante, conhecido como
minado Morro do Carvão (S 19º 49’ 08” e O 40º 14’ 42”)93, Ponte do Morubá (S 19º 49’ 15” e O 40º 14’ 17”)96, o rio
existe um manilhamento já construído há alguns anos em está assoreado, sem mata ciliar e com áreas de plantio de
uma área de declive, onde são formadas pequenas corre- eucalipto da empresa. Neste ponto também é grande a
deiras no canal fluvial inviabilizando a piracema. À mon- emissão de esgoto in natura dentro do rio, com presença
tante das manilhas existe um vale de aproximadamente de uma rede de aguapés por toda a extensão, vegetação
quatro hectares, vestígio de um considerável leito fluvial esta que funciona como bioindicador do processo de
no passado, por onde seus antepassados deslocavam-se eutrofização. A foz do Rio Sahy está totalmente assoreada,

Ponto de inversão do curso do Rio Gimuhuna, à esquerda, em direção ao reservatório hídrico da Aracruz Celulose: a morte de um rio

99
Relatório da AGB – Vitória 2004
O assoreamento da foz do Rio Riacho é uma consequência das ações irresponsáveis e da ganância da Aracruz: cumplicidade do Estado

comprometendo a atividade dos pescadores do lugar. mas depois que a Aracruz chegou, expulsou as pessoas
Segundo depoimento de uma liderança dos pescadores: do campo, que vieram para o litoral e foram invadindo a
área do rio e do mangue. Antes, a boca do rio fechava
“Eu peguei muito peixe aqui, de tarrafa, na época somente uma vez por ano, por no máximo trinta dias. Nós
quando eu comecei pescando. Mais acima tinha um íamos de canoa até o porto de Pau Brasil. Isso não está
porto de canoas. Hoje está invadido por casas. Depois pior porque eu e outros pescadores resistimos bastante”.
que chegou a Aracruz, foi acabando o rio, devido aos (Liderança de pescadores, apud AGB-ES, 2004, s/n)
aterros e barragens. Eu fico triste de ver este rio assim.
Está todo sendo invadido. A água está toda poluída. Este Rio Guaxindiba
rio era largo e entrava barcos grandes. Hoje acabou Quanto ao Rio Guaxindiba, o relatório da AGB-ES
tudo. Eu acho que o Rio Sahy ainda tem solução. Mas o (2004) apresenta também uma avaliação crítica. Além do
Guaxindiba é mais complicado. Lá era um rio muito bonito, desmatamento de praticamente toda a vegetação natu-
onde batizavam as crianças, tomavam banho, pescavam. ral do entorno para o plantio de eucalipto, verifica-se
Aquele rio é difícil recuperar. Agora, este é possível. Pode também a ausência da mata ciliar e consequente asso-
começar fazendo o roncamento, pois permitiria a água reamento. Sua nascente encontra-se dentro do períme-
do mar entrar e lavar o rio. Mas tem que ter projeto. Eu tro urbano do município de Aracruz onde recebe esgo-
espero que antes de eu morrer, eu veja este rio vivo de to in natura a partir do Bairro de Fátima. Em seu tra-
novo. Pois se continuar do jeito que vai, os nossos netos jeto, o fluxo percorre uma grande área de monocultura
nem rio vão ver mais. Antes da chegada da Aracruz, de eucalipto pertencente à Aracruz Celulose, recebendo
poucas pessoas moravam aqui nesta vila, tinham apenas agrotóxicos. A galeria por onde passa todo o esgoto da
três casas, inclusive a da minha avó, e o mar entrava cidade termina dentro do Rio Guaxindiba, transportan-
até bem no fundo do mangue, tudo aqui era mangue e do os dejetos. São esgotos domésticos, esgoto químico de
lá em cima tudo era mata, com poucas áreas de pasto empresas e outros mais, provocando a morte da fauna
e roça, de lavradores pequenos, demais era tudo mata. e deixando suas águas impróprias para o uso, num evi-
Com a chegada da Aracruz, foi desmatando, foi plantando dente e avançado processo de eutrofização, chegando à
eucalipto e com isso foi acabando o rio. Hoje é tudo sua foz praticamente sem vida. É deste rio que é capta-
eucalipto e os bichos a Aracruz matou tudo. Hoje ela põe da a água para o abastecimento do povoado de Barra do
placas dizendo que é proibido caçar e pescar, mas quem Sahy. O córrego Sahy-Mirim, afluente do Sahy, encontra-
acabou com os bichos foram eles. Antes tinham muitos se totalmente seco devido à construção da Barragem do
bichos, hoje não tem mais nada, a Aracruz acabou com Inácio, que impede a chegada da água – esta barragem
100 tudo. Este rio era largo, tinha uma ponte bem comprida, foi construída em 1972 com a finalidade de captar água
para a fábrica da Aracruz Celulose (AGB-ES, 2004, s/n). curso d’água, tanto de pessoas, como de fauna aquática
Segundo depoimento de uma liderança dos pescadores e ribeirinha. É urgente, também, a eliminação do despejo
na foz do Rio Guaxindiba: de esgotos, que prejudica as múltiplas atividades neste
corpo d’água. Partindo-se da situação crítica atual, urge
“Este rio era a fonte de água da vila. Todos vinham buscar repovoar os cursos d’água por re-introdução de espécies
água neste rio. Além disso, este rio era onde tomávamos que habitavam o antigo leito, resgatando as práticas da
banho e era usado para celebrações de batismo. Com a pesca tradicional. E, integrando-se à Política Nacional de
chegada dos novos moradores, foram invadindo a área Recursos Hídricos, é necessária a criação de um Comitê de
do rio, desviaram seu curso e canalizaram o rio. Este rio Bacia com a participação da comunidade indígena, pequenos
nasce em Aracruz. Antigamente, ele tinha bastante água, agricultores, pescadores, empresas, municipalidade e demais
mas com a chegada da florestal, com o plantio do eucalipto, atores que do rio dependem, espaço de discussão em prol da
acabou com a água. Era tudo mata. Peixe, a gente pegava gestão dos recursos hídricos.”
de tarrafa: robalo, tainha, traíra, cará. Várias casas e ruas (AGB-ES, 2004, s/n)
foram construídas em cima do rio. A água que tomamos
ainda hoje é deste rio, daqui ela vai pro SAAE e recebe Os Tupiniquim e os Guarani tornaram pública a pro-
tratamento químico. E pelo que sabemos, na cabeceira do blemática da água nos seus territórios na forma de ma-
rio tem um lixão, em Aracruz. E tem muito eucalipto com nifestos, protestos e passeatas. Em novembro de 2003, foi
agrotóxico. Muitas pessoas, quando tomam desta água, realizado um grande protesto no próprio Rio Guaxindi-
sofrem de dor de barriga. Morava numa localidade nas ba, com fechamento simbólico da via de despejo do es-
margens do Guaxindiba, subindo o rio numa caminhada goto ao rio.
pela mata, numa trilha que durava aproximadamente uma Por iniciativa das comunidades Tupiniquim e Guarani,
hora, onde meus familiares tocavam roça. Isso há pouco houve uma mobilização envolvendo pescadores, quilom-
mais de quarenta anos, onde hoje tem somente eucalipto. bolas, agricultores, ambientalistas, o Ministério Público,
Neste rio, passavam canoas que subiam até Pau Brasil, AGB, Cimi, Fase e demais integrantes da Rede Alerta con-
canoas de duas ou três pessoas”. tra o Deserto Verde, com vistas a pressionar a Aracruz a
(Liderança de pescadores, apud AGB-ES, 2004, s/n) assumir os danos causados e iniciar um processo de re-
cuperação total dos rios Guaxindiba e Sahy no municí-
A tese da “recuperação total” foi, portanto, o ponto de pio de Aracruz.
maior conflito entre a Aracruz e as comunidades indíge- Em março de 2005, no Dia Internacional das Águas, os
nas no processo de negociação da recuperação dos rios Tupiniquim e Guarani realizaram uma passeata em Bar-
Sahy e Guaxindiba. Esta tese, enquanto aditivo do acor- ra do Sahy, bairro balneário do município de Aracruz, de-
do entre as partes, foi uma grande conquista dos Tupi- nunciando a situação de seus rios e córregos.
niquim e dos Guarani. A empresa insistiu em não con- Na Aldeia Guarani Piraquê-Açu (TI Caieiras Velhas II),
siderar a “recuperação total” na sua metodologia, bem está instalada a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE),
como a história de uso e danos dos rios e seus principais sob a responsabilidade do SAAE. O esgoto deposita-
agentes, descumprindo o acordo assinado com os índios. do provém do Bairro Coqueiral97, município de Aracruz,
A AGB-ES conclui assim seu relatório: construído pela empresa Aracruz Celulose para seus fun-
cionários. Comparado às aldeias indígenas ou aos demais
“A recuperação destes rios, segundo a visão geossistêmica, distritos e bairros do município de Aracruz, o núcleo habi-
deve ser total, em toda a sua bacia, pois a intervenção tacional da empresa, o bairro Coqueiral, distingue-se pela
parcial não recupera a qualidade ambiental hídrica, infraestrutura urbana. São equipamentos que não estão à
consequentemente não gerará a solução dos problemas de disposição dos índios e demais vizinhanças. E, tampou-
cunho socioambiental. Para a recuperação total dos rios, co, a maior parte dos trabalhadores envolvida no comple-
faz-se necessária a recuperação das matas ciliares com xo Aracruz pode desfrutar desses benefícios; apenas uma
espécie nativas, da nascente à foz, constituindo um banco pequena parte, notadamente os diretamente contratados
de sementes e sendo, posteriormente, acompanhada da para trabalhar na indústria (Fase-ES, 2006, p. 73).
restauração da biodiversidade da fauna característica da O esgoto deste núcleo urbano é jogado no quintal do
Mata Atlântica brasileira. Faz também necessário rever vizinho, a aldeia Guarani Piraquê Açu, que teme pela
as construções das barragens e manejar e/ou eliminar as contaminação. Atos de protestos foram feitos no entor-
existentes, uma vez que, além de interromper o fluxo do no da ETE. Reuniões com a Funai e o SAAE foram rea-
rio, podem ocasionar problemas à jusante e à montante. lizadas para discutir o problema. No entanto, os tanques
Partindo-se do princípio que rio não é somente água, de decantação, chamados pelos Guarani de “pinicão”, es-
deve-se priorizar a construção de pontes em detrimento tão lá até hoje – ignorados pela Aracruz Celulose, indi-
do manilhamento, para possibilitar o deslocamento pelo ferentes para o SAAE, sem definição pela Funasa, preo- 101
cupante para o Ministério Público Federal. A ETE está a elo entre o visível e o invisível. “À água estão associadas
50 metros das casas Guarani da aldeia Piraquê Açu. Em- crenças, religião, ritos, mitos, memórias, relações políticas,
presa e órgãos públicos postergam uma decisão do que regras e práticas de reciprocidade, economia, alimentação,
fazer. Nas palavras de Severina, mulher guarani da al- usos e conceitos sobre o corpo, enfim, cultura” (Verdum,
deia Piraquê Açu: 2004, s/n). O autor acrescenta: “a pressão hoje existente so-
bre os territórios indígenas decorre da idéia disseminada
“É um absurdo nós vivermos com isso, faz mal à saúde. O em amplos setores da sociedade nacional” e, infelizmente,
cheiro é péssimo, atrai muitos mosquitos, polui até a água essa disseminação atinge comunidades indígenas quan-
do poço artesiano. Então, a empresa pode construir todo um to à idéia de que “a exploração dos recursos lá existentes
bairro para seus trabalhadores, gerentes e chefes, e nós é pode gerar “desenvolvimento’” (Verdum, 2004, s/n). Para
que ficamos com o esgoto de toda essa gente? Por que não os núcleos do poder econômico e político e para grande
fizeram os pinicões dentro do próprio bairro Coqueiral e por parte da sociedade nacional, o desenvolvimento justifica-
que vieram lançar seus esgotos em terra indígena? (…) depois ria, inclusive, utilizar as terras indígenas para a implanta-
de uma chuva forte que deu, lá pelo ano 2000, o pinicão ção da monocultura de produtos agrícolas de exportação,
estourou, e uma criança que brincava na água ficou doente, como é o caso do atual contexto brasileiro.
morrendo três dias depois. E até hoje nenhuma providência foi O conflito entre matrizes de racionalidades distintas
tomada, nem empresa, nem prefeitura, nem nada”. fica claro quando se tem, de um lado, diversas sociedades
(Severina, Guarani, aldeia Piraquê-Açu, apud Fase-ES, 2006, p. 74) comunais, tradicionais, não-capitalistas, fundamentadas
na relação de reciprocidade, onde natureza e cultura for-
Observa-se, portanto, que, conforme afirma Henri Ac- mam um complexo. Do outro, o entendimento de mundo a
selrad (1998), práticas discriminatórias por parte das polí- partir da dominação econômica e política dos territórios,
ticas governamentais concorrem para a produção de desi- fundamentado na visão dicotômica de Natureza e Socie-
gualdades ambientais, quando os critérios da distribuição dade, em concepções que reduzem a Natureza à dimen-
locacional dos rejeitos perigosos inclui o fator etnia como são físico-material e de recursos inesgotáveis, externo ao
indicador potente, além do próprio fator baixa renda (Ac- humano99. A idéia de evolução vincula-se na mesma pro-
selrad, 1998, p. 10). Caracteriza-se, assim, um caso de “ra- porção da apropriação e domínio fundamentada, antes
cismo ambiental”98, que se alinha à idéia da inferiorida- de tudo, na lógica da produção capitalista e em modelos
de do outro, legitimando-a, aprofundando-a e constituin- de desenvolvimento monocultor, exportador, tecnicis-
do parte das “múltiplas estratégias de inferiorização” de ta. A ciência apropriada por esta concepção hegemônica
que fala Boaventura de Souza Santos (1999), por parte da é transfigurada em tecnologia a serviço do “desenvolvi-
racionalidade dominante, pois, como denuncia o autor: mento econômico”, onde o fosso entre Natureza e Socie-
dade intensifica-se, firmando a falsa hierarquia do saber
“o selvagem é a diferença incapaz de se constituir em científico sobre os saberes tradicionais. O império desta
alteridade. Não é o outro porque não é sequer plenamente razão é oportuno ao modo de produção capitalista. Espe-
humano. A sua diferença é a medida da sua inferioridade” cializa-nos. Fragmenta-nos. Grande violência, a violência
(Souza Santos, 1999, s/n). epistêmica (Maracci, 2006).

O projeto agro-florestal celulósico no Espírito San-


to causou grandes impactos negativos diretos e indire-
tos nos territórios indígenas, atingindo particularmente
os sistemas hídricos. A racionalidade econômica hege-
mônica é pautada na ideologia do desenvolvimento que
fundamenta a exploração predatória do que chama de
“recursos naturais”, e que se expande e se projeta de for-
ma acelerada contra a natureza e os territórios indígenas
e de demais populações pré-existentes locais, e dispõe de
uma fraca percepção social sobre a conexão entre água e
terra, no contexto dos direitos destes povos.
Concordando com Ricardo Verdum (2004), os modelos
e práticas indígenas de gestão da água no Brasil têm sido
ignorados ou simplesmente desprezados e vistos como ir-
racionais ou não adequados à racionalidade econômica
hegemônica. A água tem uma importância e um signifi-
102 cado multidimensional para as comunidades indígenas: é
Referências
1- Liderança Tupiniquim, Aracruz (ES), 2004. 16- Segundo Kleerekoper (1944), conforme o modo da água jorrar no solo, três tipos de
nascentes podem ser distinguidas: reocreno, limnocreno e helocrenos. Reocrenos são
2- Cf., por exemplo, amplo acervo de pesquisas realizadas por Augusto Ferreira Ruschi, nascentes cuja água ao sair do solo forma imediatamente um riacho, havendo maior ou
disponíveis no Museu de Biologia Prof. Mello Leitão, Santa Tereza –ES. menor correnteza na própria nascente; limnocrenos são nascentes que formam uma poça
sem correnteza em toda a massa de água e, finalmente, helocrenos são nascentes cuja
3- Fonte: Relatório da AGB-ES (2004). Impactos da apropriação dos Recursos Hídricos pela água se espalha numa superfície extensa do solo, formando um brejo sem superfície de
Aracruz Celulose nas Terras Indígenas Guarani e Tupiniquim – ES. Vitória, março de 2004. água livre. (Kleerekoper, 1990, 2ªedição).
(OBS: relatório de estudos de impactos solicitados pelos índios à AGB-ES)
17- Segundo a Resolução Conama Nº 303, de 20 de março de 2002 (Art. 3º, II), constitui
4- Ruschi, Augusto. Boletim do Museu de Biologia Prof. Mello Leitão, Série Proteção à Área de Preservação Permanente a área situada ao redor de nascente ou olho d`água,
Natureza, nº 18 -16-01-1954. ainda que intermitente, com raio mínimo de cinqüenta metros de tal forma que proteja,
em cada caso, a bacia hidrográfica contribuinte.
5- Compreendendo o entorno e interior das plantações de eucalipto: quilombolas, [http://www.cetesb.sp.gov.br/licenciamentoo/legislacao/federal/resolucoes/2002_Res_
pescadores, indígenas, assentamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem CONAMA_303.pdf.]
Terra) e demais famílias camponesas.
18- A Lei 4.771/65, através de seu artigo 2º, item “c” declarou como de "preservação
6- Cf. Autos da “CPI da Aracruz” (2002), op. cit. ; Fase (2006), H2O para Celulose X água permanente" as florestas e demais formas de vegetação natural situadas “nas nascentes,
para todas as línguas – o conflito ambiental no entorno da Aracruz Celulose S/A – Espírito ainda que intermitentes e nos chamados "olhos d'água", qualquer que seja a sua
Santo; Ferreira, S.R.B (2002); Relatório da AGB-ES (2004); Gomes, Helder (2002); situação topográfica, num raio mínimo de 50 (cinqüenta) metros de largura”. A Resolução
Relatório GT da FUNAI, 1997; Seminário Internacional Sobre Eucalipto e Seus Impactos, Conama 005/85 (art. 3°, III) praticamente reitera o texto. A Lei nº 7754 de 14/04/89
Comissão de Meio ambiente da Assembléia Legislativa, Vitória ES (2001) (Publicação); estabelece medidas para proteção das florestas estabelecidas nas nascentes dos rios e
Ruschi, Augusto (extensa produção de documentos, encontrado principalmente no acervo dá outras providências. [Nelson Tembra (07 de outubro de 2006) in:http://forum.jus.uol.
do Museu de Biologia Professor Mello Leitão, Santa Teresa - ES). com.br/discussao/4852/qual-a-definicao-legal-de-margem-ou-leito-de-rio-para-fins-
delicenciamento-ambiental/]
7- Ruschi, Augusto. Desertos de florestas - Biblioteca do Museu de Biologia Prof.
Mello Leitão, Santa Teresa (ES), s/d. Fonte: Medeiros, Rogério, 1995, in: [http://www. 19- Cf. Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 1991 e 1992.
seculodiario.com/ruschi], acesso em fevereiro de 2008.
20- Palestra proferida por Celso Foelkel, vice-presidente da ABTCP, sobre o tema Como
8- Por exemplo: Rede Alerta contra o Deserto Verde (2002). Cruzando o Deserto Verde. Administrar o Consumo de Energia, Água e Outros Insumos no Fórum Anave 2004. [Fonte:
Direção Ricardo de Sá, Espírito Santo. www.celuloseonline.com.br – acesso em abril de 2005]

9- Cf. Revista Século e jornal eletrônico Século Diário: www.seculodiario.com.br [acervo 21- Cf. Eucalyptus Online Book - Edição n. 11 junho de 2007 http://www.eucalyptus.com.
on line]; Revista Olhar Crítico – www.olharcritico.com.br [acervo on line]. br [acesso em janeiro de 2008]

10- Cf. Jornal Século Diário. www.seculodiario.com.br – acervo; e Ferreira, 2002. Este 22- Cf. também, Andrade, 2006: “Nesse processo é gerada uma taxa de cerca de
trabalho traz depoimentos de várias pessoas das comunidades quilombolas como, por 700 m3/h de água branca e devido às propriedades físico-químicas deste efluente,
exemplo: “A vivência de ‘seu’ Osmar testemunha a morte de quase todos os 14 rios e especialmente seu conteúdo de matéria orgânica e sua alta dureza, não é possível
córregos que atravessavam a estrada entre Itaúnas e a sede de Conceição da Barra. [...] a reutilização total dessa água na etapa de branqueamento sem causar problemas
Dona Alaíde, da comunidade negra de São Domingos, também testemunha a seca dos rios operacionais.” (Andrade, 2006, p.vii)
e lagoas, criatórios de peixe.” (Ferreira, 2002, p. 130-132).
23- Capítulo extraído do livro: Meirelles, Daniela e Calazans, Marcelo (2006) H2O para
11- Aracruz Celulose. Box intitulado “Você sabia? - Uso da água: o consumo de água pelos Celulose x Água para todas as línguas – o conflito ambiental no entorno da Aracruz Celulose
plantios de eucalipto é semelhante ao da floresta nativa”. In: Relatório de Sustentabilidade S/A – Espírito Santo. Fase/ES
2004, disponível em: www.aracruz.com.br.
24- Daniele Meirelles e Marcelo Calazans são técnicos da Fase/ES e membros da Rede
12- Cf.: Fase-ES (2006), Relatórios DESC 2002 e 2003; Autos da CPI da Aracruz 2002; Alerta contra o Deserto Verde
Boletins diversos da WRM (Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais), particularmente
a publicação intitulada Plantações não são Florestas; Relatório da AGB-ES 2004 25- Conforme Cepemar, Relatório de Impacto Ambiental (Rima) Fiberline C – Relatório
(2004); Publicações do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos técnico, 1999.
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e Movimento das Mulheres Camponesas (MMC).
26- Relatório de Administração da Aracruz Celulose, 1978.
13- Fase (2006). H2O para Celulose X água para todas as línguas – o conflito ambiental
no entorno da Aracruz Celulose S/A – Espírito Santo. Espírito Santo, p.21. A Fase-ES é 27- Jornal Posição, 14 de setembro de 1977.
integrante da Rede Alerta contra o Deserto Verde.
28- Jornal Posição, n. 20, pg.6, 14 de agosto de 1977.
14- Cf. palestra O eucalipto e a água: verdade ou falácia?, por Harald Witt, da Ong
Timberwatch, in Seminário Internacional sobre o eucalipto e seus Impactos. Vitória, Espírito 29- Relatório de Administração da Aracruz Celulose S/A, exercício 1977.
Santo, Comissão de Agricultura e Meio Ambiente da Assembléia Legislativa. Brasil/2001.
30- Vide Relatório de Administração da Aracruz Celulose S/A, exercício 1977 e jornal
15- Cf. palestras de Aziz Ab-Saber e Sebastião Pinheiro em Seminário Internacional sobre regional A Tribuna, 31 de outubro de 1978.
o eucalipto e seus Impactos. Espírito Santo, Comissão de Agricultura e Meio Ambiente
da Assembléia Legislativa. Brasil/2001. Sebastião Pinheiro é engenheiro agrônomo e 31- Relatório de Administração da Aracruz Celulose S/A, exercício 1977.
florestal, funcionário do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social da UFRGS;
membro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação em Agricultura e Saúde (Gipaas); 32- Entrevista concedida ao jornal A Gazeta, em 11 de fevereiro de 1988.
ambientalista da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Aziz Ab-
Saber é geógrafo, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP. 33- O conceito de sustentabilidade foi apropriado pela Comissão Brundtland e, desde
103
então, se tornou um conceito estruturador do marketing verde empresarial e do discurso Projeto Tamar, com 833 hectares e que protege uma área de 14 km no litoral norte do
da modernização ecológica. Espírito Santo.) e deságua no Rio Riacho, município de Aracruz. A aldeia Tupiniquim
Comboios - oficialmente TI Indígena Comboios - faz limite com a Reserva de Comboios.
34- Entrevista concedida ao jornal Gazeta Mercantil, 22 de outubro de 1993. [Fonte: http://www.brasilchannel.com.br]

35- Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em 25 de agosto de 1991. 55- O Vale do Suruaca constituía-se de terrenos pantanosos, área de várzea contínua,
com 145 mil hectares ao norte do Rio Doce e 35 mil ao sul deste Rio e no centro-leste
36- Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em 25 de agosto de 1991. do Espírito Santo, abrangendo os municípios de São Mateus, Linhares e Aracruz. O DNOS
esgotou as águas do Vale de Suruaca para permitir a expansão das propriedades rurais,
37- Cartaz de 28 de maio de 1992, convocando ato público. Arquivo Fase-Ibase. a chamada “cerca andante”. Atualmente, a região sofre um processo de desertificação
química que atinge uma área de 32.870 hectares. Com a drenagem da água, aflora a
38- Jornal A Gazeta, 09 de maio de 1991. matéria orgânica, originada da turfa. Na sua decomposição, é produzido enxofre. Este, na
presença da água, produz o ácido sulfúrico. [Fonte: www.seculodiario.com.br – “Tragédia
39- Conforme jornal Gazeta Mercantil, 28 de maio de 1991. do Suruaca” - acesso em dezembro de 2007]

40- Conforme o jornal A Gazeta, de 23 de abril de 1991, essa primeira multa foi de CR$ 56- Na medida em que a água ia sendo drenada, as cercas iam caminhando e
600 mil e se referia a problemas técnicos no forno da fábrica, elevando a emissão de aumentando as propriedades. Fontes: Revista Águas do Rio Doce s/d [http://www.
gases na atmosfera, quando a empresa realizava ajustes durante a fase de ampliação aguasdoriodoce.com.br] p. 23; e www.seculodiario.com.br - 27 de outubro de 1999 –
da fábrica. acessos em dezembro de 2007.

41- Jornal A Gazeta, 18 de outubro de 1991. 57- Cf. Relatório da AGB-ES, 2004.

42- Segundo o Tribunal Superior Eleitoral do Brasil, nas eleições de 2002, a Aracruz Celulose 58- O projeto de engenharia final foi elaborado, segundo a empresa Aracruz Celulose,
S/A foi a segunda maior empresa a apoiar as campanhas para os parlamentos (federal e pela CBC - Construtora Base e Comércio Ltda. (CBC) e os estudos ambientais foram
estadual) e também para o governo do estado e presidência da República. elaborados pelo Centro de Estudos Ambientais (CEA), Gestão da Qualidade do Meio
Ambiente e Hidrossistema Engenheiros e Consultores (MPS). Os aspectos ambientais
43- Idem. foram analisados, segundo a empresa, pela Secretaria de Meio Ambiente do Espírito Santo
(Seama), que concedeu uma licença para a implantação da obra, executada pela CBC.
44- Idem (Relatório da AGB-ES, 2004).

45- Aracruz Celulose, Relatório Anual 2004. 59- In: Anais do XI Simpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada – 05 a 09 de setembro
de 2005 – USP.
46- Conforme Cepemar, Relatório de Impacto Ambiental (Rima) Fiberline C – Relatório
técnico, 1999. 60- Seca sazonal: período do ano no qual não ocorrem precipitações pluviométricas
significativas.
47- Cf. em: www.aracruz.com.br - “Resultados do 4º. Trimestre de 2007”.
61- Cf. Relatório da AGB-ES (2004).
48- Barra do Riacho é um povoado pertencente ao município de Aracruz e abriga o
complexo fabril chamado Unidade Barra do Riacho. 62- Os Tupiniquim de Comboios nos acompanharam no período da pesquisa de campo
pela AGB-ES em 2004.
49- Cf. Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 7.274 e 7.275.
63- Cf.: AGB-ES. (2004)
50- O Rio Doce nasce em Minas Gerais e deságua no litoral do Espírito Santo, município
de Linhares, próximo à aldeia Tupiniquim Comboios. “A Bacia Hidrográfica do Rio Doce 64- A Aracruz Celulose recebeu o Prêmio CNI de Ecologia 2000, na categoria Proteção
está localizada na região Sudeste do Brasil entre os estados de Minas Gerais e Espírito dos Recursos Hídricos pela construção do Canal Caboclo Bernardo. Fonte: Site da Aracruz
Santo, nos paralelos 17°45' e 21°15' de latitude sul e os meridianos 39°55' e 43°45' de Celulose (seção “Últimas Notícias”) – Projeto de Captação de Água do Rio Doce conquista
longitude oeste. Possui uma extensão total de 853 km e uma área de drenagem com Prêmio CNI de Ecologia 2000. [www.aracruz.com.br - acesso em dezembro de 2006]
cerca de 83.400 km², dos quais 86% pertencem ao estado de Minas Gerais e o restante
(14%) ao estado do Espírito Santo sendo, portanto, uma bacia de domínio federal 65- Jornal A Gazeta, Vitória (ES), 12 de junho de 2000.
(ANA, 2001). Limita-se ao norte pela Serra Negra e pela Serra dos Aimorés, a oeste pela
Serra do Espinhaço, a sudoeste e sul pela Serra da Mantiqueira, a sudeste pela Serra do 66- Depoimento de Herval Nogueira, na época, presidente da Associação Comunitária de
Caparaó e leste pelo Oceano Atlântico.” [Coelho, André Luiz Nascentes. Situação Hídrico- Barra do Riacho, colhido em janeiro de 2004.
Geomorfológica da Bacia do Rio Doce com Base nos Dados da Série Histórica de Vazões
da Estação De Colatina (ES) – In: Caminhos de Geografia - revista on line - http://www. 67- Relatório da AGB-ES, 2004.
ig.ufu.br/revista/caminhos.html - ISSN 1678-6343]
68- Estas informações, obtidas em pesquisas de campo, também são encontradas nas
51- O Departamento Nacional de Obras de Saneamento foi criado em 1940 e extinto em seguintes publicações: Cf.: Relatórios DESC-A (2001 e 2002), relatório da AGB-ES (2004),
1990. Autos da CPI da Aracruz (2002), GOMES, H. (2002).

52- O Canal do Riacho é uma canalização do Rio Riacho realizada pelo antigo DNOS. Foi, 69- Informações obtidas em trabalho de campo colhidas em diversas visitas à Barra do
portanto, construído antes do Canal Caboclo Bernardo, recuperado, apropriado e re- Riacho durante os anos de 2003 e 2004, 2005, 2006, 2007.
utilizado pela empresa em seu complexo de captação de água.
70- Cf. Relatório da AGB-ES, 2004.
53- Os principais afluentes da bacia do Rio Riacho são: Rio Piraquê-açu, Rio Piraquê-
mirim, Rio Sahi, Rio Araraquara, Rio Francês e Rio do Norte. Possui uma área de drenagem 71- Cf. Parecer geográfico nos anexos do Relatório da AGB-ES, 2004, s/n.
aproximada de 1.692 km2. [Fonte: http://www.iema.es.gov.br]
72- Drenagem Exorréica: quando a drenagem dirige-se ao oceano.
54- O Rio Comboios pertence à bacia do Rio Riacho. Nasce no município de Linhares,
no alagado da Reserva de Comboios (Área de Preservação criada em 1984, mantida pelo 73- Relatório da AGB-ES, 2004.
104
74- Cf. Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 2.029. 91- Fonte: Fase-ES (2006), p. 67

75- Cf. Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 2.029. 92- Relatório da AGB-ES, 2004.

76- Cf. Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 2.030. 93- Idem.

77- Em 11 de maio de 1999, a Seama recebeu por fac-símile, um parecer técnico do 94- Idem.
engenheiro agrônomo Antônio Eduardo Lana – consultor contratado pelo município de
Aracruz, encaminhado em 11 de maio de 1999 à Seama. 95- Relatório da AGB-ES, 2004.

78- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 2.031. 96- Idem

79- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 2.031. 97- “Núcleo Habitacional Bairro Coqueiral: no bairro Coqueiral, cujas obras foram a cargo
da subsidiária Santa Cruz Urbanizadora S/A, foram concluídas 671 unidades residenciais,
80- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 2.032. das 835 previstas. As obras de infraestrutura: pavimentação, água, energia, iluminação e
telefone, foram totalmente executadas. Os equipamentos comunitários como hotel, escola
81- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 2.033. ativa, clube da orla, centro comercial (primeiro bloco), ambulatório e central telefônica,
no final do exercício findo, achavam-se prontos e em pleno funcionamento.” (Relatório
82- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 2.034-5 – Para acessar maiores detalhamentos administrativo da Aracruz Celulose S/A, de 1978, Apud Fase, 2006, p. 73)
sobre essa discussão jurídica, consulte o documento Considerações sobre O Licenciamento
da Canalização de Água do Rio Doce para o Município de Aracruz – ES, anexo nos Autos da 98- “(...) o movimento de justiça ambiental estruturou suas estratégias de resistência
referida CPI. recorrendo de forma inovadora à produção de conhecimento próprio sobre os indicadores
de desigualdade ambiental. Momento crucial desta experiência foi a pesquisa mandada
83- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 7.274-5. realizar em 1987 pela Comissão de Justiça Racial da United Church of Christ, que
mostrou que ‘a composição racial de uma comunidade é a variável mais apta a explicar
84- Fonte: Fase, 2006, p. 67. a existência ou inexistência de depósitos de rejeitos perigosos de origem comercial em
uma área’. Evidenciou-se, então, que a proporção de residentes que pertencem a minorias
85- O referido TAC, um acordo entre a Aracruz Celulose e os Tupiniquim e os Guarani étnicas em comunidades que abrigam depósitos de resíduos perigosos é o dobro da
e desde a demarcação de 1998, foi o instrumento utilizado pela empresa para uso dos proporção de minorias nas comunidades desprovidas de tais instalações. (...) Foi a partir
territórios indígenas desde a demarcação de 1998. Em 1995, foram reconhecidos 13,5 desta pesquisa que o reverendo Benjamin Chavis difundiu a expressão ‘racismo ambiental’
mil hectares como território indígena. Somados à demarcação anterior, totalizavam 18 para designar “a imposição desproporcional - intencional ou não - de rejeitos perigosos às
mil hectares. No entanto, o ministro da Justiça da época, Íris Rezende, assinou a portaria comunidades de cor.”(Acselrad, 1998, p.10)
homologando apenas 2,5 mil hectares, restando os 11 mil para serem demarcados.
Como forma de compensar a não totalidade da demarcação e amenizar o conflito, 99- “Se o selvagem é, por excelência, o lugar da inferioridade, a natureza é, por
foi estabelecido um acordo entre Ministério da Justiça, a Aracruz Celulose, Funai e os excelência, o lugar da exterioridade. Mas como o que é exterior não pertence e o que
índios. No acordo (TAC), a empresa continuaria explorando os 11 mil hectares e pagaria não pertence não é reconhecido como igual, o lugar de exterioridade é também um lugar
uma indenização em forma de dinheiro e projetos. Com a decisão dos Tupiniquim e dos de inferioridade. Tal como o selvagem, a natureza é simultaneamente uma ameaça e um
Guarani em reiniciar a luta, a auto-demarcação feita em maio de 2005 e o referido recurso.” (Souza Santos, 1999)
acordo foi rompido.

86- “A vinda da empresa e de seus trabalhadores atraíram também diversos comerciantes


e todo o tipo de serviço, inchando a área urbana em pouco tempo. Com a chegada Referências Bibliográficas
da Aracruz Celulose, a população da sede do município cresceu 63%, em apenas 7 Acselrad, Henri (1998). Seca, Queimadas e Capitais Voláteis. In: Políticas Ambientais, Ano
anos, passando de 6.746 habitantes em 1970, para 10.998 em 1977, um ano antes da 6, n. 18, outubro de 1998, p10-11, Ibase, RJ.
inauguração da fábrica.” [Coleção “Faça-se Aracruz!” (subsídios para estudos sobre o
município) nº 2 – Setembro/97. – Apud: Fase-ES (2006), p.72]. Associação dos Geógrafos Brasileiros/seção Vitória/ES (2004). Impactos da Apropriação
dos Recursos Hídricos pela Aracruz Celulose nas Terras Indígenas Guarani e Tupiniquim –
87- Cf. Relatório da AGB-ES, 2004. ES.

88- No dia 21 de janeiro de 2003, durante reunião na fábrica da Aracruz com a presença Andrade, Alexandre A. (2006). Redução do consumo de água na etapa de branqueamento
das lideranças Tupiniquim e Guarani, Funai, Ministério Público, Cimi e diretores da da celulose via reutilização de efluentes industriais. Dissertação de Mestrado em
empresa, a AGB-ES apresentou seu parecer, que foi defendido também pelas lideranças Engenharia Química. Universidade Estadual de Campinas.
indígenas e acatado pelas demais partes. A empresa pediu um novo prazo para refazer
sua proposta, o qual foi aceito pelas lideranças indígenas. O novo documento intitulado Cepemar (1999), Relatório de Impacto Ambiental – Rima Fiberline C – Relatório técnico,
“Termo de Referência para a Elaboração de Estudo de Recuperação dos Rios Guaxindiba 1999.
e Sahy no Município de Aracruz – ES” foi entregue à AITG em 13 de março de 2003 e
posteriormente repassado à AGB-ES para nova análise e parecer. (Relatório da AGB-ES, Coelho, André Luiz Nascentes. (2005) A Evolução e a Dinâmica Fluviomarinha
2004) Recente na Planície Costeira do Rio Doce: Identificando e Discutindo as Principais
Transformações. In: Anais do XI Simpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada – 05 a
89- Relatório da AGB entregue em março de 2004 aos Tupiniquim e Guarani, sob o título 09 de setembro de 2005 – USP
Impactos da Apropriação dos Recursos Hídricos pela Aracruz Celulose nas Terras Indígenas
Tupiniquim e Guarani – ES. Coelho, André Luiz Nascentes (2005). Situação Hídrico-Geomorfológica da Bacia do Rio
Doce com base nos dados da série histórica de vazões da estação de Colatina – ES – In:
90- A Lei 4.771 de 15 de setembro de 1965, alterada pela Lei 7.803/89 no Artigo 2 .,
o
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considera de preservação permanente as florestas e demais formas de vegetação natural
situadas ao longo dos rios ou qualquer curso d’água desde o seu nível mais alto em faixa Dalcomuni, Sonia Maria (1990). A implantação da Aracruz Celulose no Espírito Santo –
marginal cuja mínima seja de trinta metros para os cursos de dez metros de largura. O principais interesses em jogo. 285p. Dissertação (Mestrado em Economia) – Programa
Rio Sahy enquadra-se neste respectivo artigo, pois apresenta uma largura de menos de de Pós- Graduação em Desenvolvimento Agrícola, Universidade Federal Rural do Rio de
dez metros. Janeiro, Rio de Janeiro, 1990.
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106 E a rica floresta virou um deserto homogêneo e triste...


4
braçal, mal remunerado e, geralmente terceirizado, como
paradoxo do progresso técnico-científico; inclui setores
como a indústria, onde se situa a classe operária, e servi-
ços. Desta forma, a concentração de renda e as desigual-
dades entre as categorias de trabalhadores com e sem

Promessas
direitos garantidos aumentam proporcionalmente. Essa
situação é percebida não apenas na Aracruz Celulose,
mas em todas as empresas do setor.
de emprego Tal questão merece um estudo aprofundado, sobretu-
do para desconstruir o discurso empresarial que utiliza
e destruição a geração de empregos como justificativa para ampliar a
plantação de árvores no Brasil para 11 milhões de hecta-
de trabalho
1
res até 2013, o que significa aumentar a capacidade pro-
dutiva de celulose. As promessas de emprego se repetem
em outros países do Sul, como Equador, Chile, África do
Alacir De´Nadai, Luiz Alberto Soares Sul e Indonésia, onde as grandes empresas do setor que-
e Winnie Overbeek
rem se instalar ou se expandir para plantar árvores de
rápido crescimento na intenção de produzir celulose para
exportação. Onde quer que se instalem, os grandes mo-
Este artigo apresenta e analisa dados sobre emprego e nopólios das plantações de eucalipto e fábricas de celu-
trabalho nas plantações de eucalipto e produção de ce- lose no Espírito Santo destroem a agricultura campesina,
lulose para exportação no Espírito Santo, mais especifi- substituem a produção de alimentos e impedem a reali-
camente na empresa Aracruz Celulose, a maior do setor zação da reforma agrária e a devolução e demarcação de
no mundo. Sem a pretensão de se apresentar como um terras quilombolas e indígenas. Esperamos que o estudo
estudo acadêmico, este texto é, na verdade, o relatório de seja útil a todos que enfrentam esses problemas.
uma pesquisa em que se ouviram trabalhadores e traba-
lhadoras da Aracruz Celulose e moradores e moradoras I – Emprego e a Aracruz
das comunidades vizinhas à empresa. Essa metodologia
ajudou também a revelar a situação dessas comunidades, 1 - As promessas de emprego
cujas formas tradicionais de trabalho sofreram altera- e os instrumentos de divulgação
ções ou foram inviabilizadas em função da implantação “Forestry activities offer job opportunities even in remo-
das grandes extensões da monocultura do eucalipto no te areas of the country” (“Atividades florestais oferecem
estado. Os nomes de trabalhadores e ex-trabalhadores oportunidades de emprego, mesmo nas áreas mais remo-
e sindicalistas entrevistados foram omitidos de modo a tas do País”).
preservar a segurança dos mesmos.
A conjuntura atual torna este trabalho ainda mais re- Esta é apenas uma das muitas frases de propaganda
levante se levarmos em conta a recente crise financeira que a Aracruz Celulose divulga através de textos e proje-
mundial e as ameaças aos trabalhadores que ela repre- tos na Internet, e que integra uma mensagem geral que as
senta, já que estes são os primeiros a sentir na pele e no empresas do setor querem “vender”: o plantio de eucalip-
bolso os seus impactos. Em 2008, por exemplo, a Aracruz to e a produção de celulose como geradores de empregos,
demitiu cerca de 1.500 trabalhadores. até em regiões onde não existiam outras oportunidades.
O setor de eucalipto/celulose utiliza sistematicamen- No afã de divulgar mensagens positivas, os dados nem
te a geração de empregos como arma para ‘vender’ seu sempre correspondem à realidade, outras vezes são ma-
projeto às comunidades locais e regionais, ao Estado e à nipulados para parecerem verdadeiros. Vejamos, como
opinião pública. Mas, na verdade, os números que o se- exemplo, a seguinte frase da Aracruz Celulose, num pro-
tor apresenta ao fazer sua propaganda não se confirmam jeto em inglês, que circulou na Internet em busca de fi-
nem nas suas próprias fontes. nanciamento: “On average, each hectare of eucalyptus
De acordo com o pesquisador Francisco de Oliveira plantation generates four directly related jobs, an indica-
(Ibase, 2004), o capitalismo contemporâneo produz dois tion of the economic and social importance of these plan-
tipos opostos de emprego. O primeiro é o emprego de alta tations,...” (“Em média, cada hectare de uma plantação de
performance, bem remunerado e com todos os direitos eucalipto gera quatro empregos diretos, uma indicação da
trabalhistas garantidos; são empregos dedicados a pes- importância econômica e social destas plantações”).
quisas científicas e programas para o progresso técnico, Esta afirmação significa que, no caso da Aracruz, com
por exemplo. O segundo é o emprego mais banalizado, 247.000 hectares de eucalipto em 2004, a empresa estaria 107
gerando 988.000 empregos diretos somente nas plantações
de eucalipto. Mas, na realidade, a Aracruz gerava, direta-
mente, apenas 2.031 empregos (BVQI, 2004).
Além da sua própria publicidade, empresas como
a Aracruz Celulose têm muitos parceiros que contri-
buem para passar a idéia de grande geradora de em-
pregos e renda. Assim como existe o “greenwashing”
das empresas para criar uma imagem verde, há tam-
bém o “jobwashing”:

Publicidade
A Aracruz faz massivos investimentos em campanhas
publicitárias com o objetivo de influenciar a opinião pú-
blica, além de fazer pronunciamentos específicos para
responder às críticas que recebe. Essas campanhas são
realizadas através de diferentes meios de divulgação,
como outdoors e cartazes localizados em pontos de gran-
de fluxo de pessoas, nos ônibus e seus pontos de parada,
principalmente na região da Grande Vitória, onde a maio-
ria da população do estado se concentra. Além disso, são
divulgados anúncios nos jornais, rádios e televisão.
Uma campanha publicitária recente da Aracruz abor-
dou a questão do emprego, mostrando à população que a
empresa “está presente no seu dia-a-dia” através dos inú-
meros empregos indiretos gerados a partir da sua pre-
sença no estado. Mas a campanha não apresenta dados
específicos, como o número exato de empregos diretos e
indiretos que gera, por exemplo. Ela simplesmente bus-
ca convencer a população de que, de alguma forma, está
presente no seu cotidiano, ou seja, que ela é responsável
por empregos que não são ligados diretamente às suas
atividades, e isso “você pode nem perceber”, conforme fi-
naliza a mensagem divulgada.
Mesmo quando a Aracruz apresenta os números dos
empregos diretos, estes nunca são específicos, como re-
vela a resposta a uma matéria do Jornal do Brasil, que
fazia críticas à empresa:
Aracruz tenta passar a falsa idéia de que gera muitos empregos

“A Aracruz gera atualmente 4.800 empregos diretos e cerca de


50 mil indiretos, ...” esse investimento deve influenciar nas opiniões que são
(resposta da Aracruz à matéria O conflito ambiental da Aracruz , publicadas no jornal. O resultado é uma verdadeira mani-
do JB, de 14 de abril de 2002) pulação da opinião pública, através de todos os meios de
comunicação ligados à Rede Gazeta, que inclui, além do
Mídia jornal, a TV e o rádio. Todas as tentativas de divulgação
A Gazeta2 é o principal jornal de circulação diária no de atividades e ações da Rede Alerta contra o Deserto Ver-
Espírito Santo. Neste veículo, a Aracruz encontrou seu de ou sobre os impactos negativos causados pela Aracruz
mais fiel parceiro na imprensa estadual. A Gazeta só di- Celulose não são bem sucedidos.
vulga notícias positivas da empresa e sempre minimiza os Vejamos alguns trechos transcritos do jornal A Gazeta:
protestos ou críticas. O compromisso deste jornal com a
Aracruz parece se basear na convicção de que os grandes - “O setor [de celulose no Espírito Santo] gera 60 mil empre-
projetos econômicos são fundamentais para o desenvol- gos diretos e indiretos e movimenta R$ 2,5 bilhões [US$ 0,9
vimento do estado. A empresa, por sua vez, veicula cons- bilhão] por ano.” (11 de junho de 2002)
tantemente uma grande quantidade de anúncios publici- - “Expectativa com a liberação do plantio de eucalipto: mais 25
108 tários, incluindo cadernos especiais. Provavelmente, todo mil empregos”. (manchete de 11 de junho de 2002)
- “As obras da terceira fábrica foram iniciadas em fevereiro de Parlamentares
2001 e quando ela estiver em operação vai gerar 420 empre- A empresa Aracruz influencia de todas as formas os
gos diretos e 2,4 mil indiretos...” (24 de fevereiro de 2002) parlamentares brasileiros. Primeiramente, ela faz ma-
- “O plantio de mais 174 mil hectares de florestas no estado, ciças contribuições nas campanhas eleitorais de candi-
dos quais 70% com eucalipto e pinus (...), vai permitir a gera- datos de direita, do centro e de esquerda, uma prática
ção adicional de US$ 1 bilhão de renda e cerca de 50 mil em- comum no País. Uma vez que o parlamentar é eleito, a
pregos, entre diretos e indiretos, para a economia capixaba.” empresa financiadora espera dele um tratamento espe-
(dezembro de 1998) cial, além de apoio para suas atividades, mesmo quando
- “... a estimativa é o plantio de cerca de 8 mil hectares, com a estas provocam graves impactos ambientais e sociais. Foi
geração de mais de 300 empregos no campo.” (15 de janeiro assim que surgiu na Câmara dos Deputados a “Bancada
de 2004) da Silvicultura”, um grupo de parlamentares que defende
- “Assim, a Aracruz foi responsável pela criação da maioria de a expansão das plantações de árvores no Brasil. Um dos
seus prestadores de serviço, que hoje somam 152 empresas, membros desta bancada disse:
envolvendo um efetivo de 9 mil empregos, entre permanen-
tes (...) e temporários.” (Caderno Especial de 05 de agosto “Não há como ignorar a importância que o setor florestal
de 2003) brasileiro tem na economia. (...) Dois milhões de empregos
diretos...”
Governos federal, estadual e municipal (A Gazeta, Coluna do Leitor: Renato Casagrande, deputado federal e
O setor de exportação de celulose é estratégico para o engenheiro florestal, 07 de agosto de 2003)
Brasil, já que o País optou pela adoção de uma política
econômica que estimula prioritariamente as exportações. Representantes da silvicultura
O governo federal, por exemplo, havia lançado como meta A silvicultura no Brasil cresceu enormemente nas dé-
ampliar a área de plantações de árvores no Brasil em 40% cadas de 1960 e 1970, quando as empresas do setor con-
até 2007. Portanto, não surpreende que os governos, em seguiram incentivos fiscais suficientes para o fomento
todos os níveis, demonstrem uma grande disposição em de grandes plantios de eucalipto e pinus. Desde então,
colaborar com a divulgação do setor de celulose. O ex-Mi- os engenheiros florestais e suas associações, com raras
nistro de Trabalho e Emprego, atual governador da Bahia, exceções, se tornaram talvez os maiores defensores das
Jaques Wagner, disse, durante visita à empresa Veracel empresas de eucalipto e celulose. A Sociedade Brasileira
Celulose, em janeiro de 2004, que “A Veracel tem a cara de Silvicultura (SBS) divulga notícias em seu site na in-
do Lula [presidente do Brasil]”, afirmação que ganhou ternet, organiza seminários, orienta associados, divulgan-
nada menos que manchete no sítio eletrônico da Veracel do os benefícios das plantações de árvores, inclusive para
na internet. Segundo Wagner, “aqui, está a síntese do que a geração de empregos. Um exemplo:
acredita o presidente Lula”.
Um outro exemplo vem de um representante do ban- “Com as políticas públicas instituídas nas décadas de 1960
co público federal BNDES: “O chefe de departamento e 1970 objetivando diminuir a exploração indiscriminada dos
da área industrial do BNDES destaca que o projeto [da recursos florestais naturais e de implantar florestas de rápi-
Veracel] vai gerar dois mil empregos diretos e oito mil do crescimento, o setor passou a contribuir com uma parcela
indiretos pelo efeito multiplicador de suas atividades. importante para a economia brasileira através da geração de
Segundo ele, cerca de 12 mil empregos serão gerados na produtos para consumo direto ou para exportação, gerando
fase de pico das obras.” (Gazeta Mercantil, 17 de dezem- impostos e empregos e atuando na conservação e preserva-
bro de 2003) ção dos recursos naturais renováveis”.
Nos municípios, os prefeitos não ficam atrás. Cita- (Rede SBS de 16 de agosto de 2004)
mos, a seguir, o ex-prefeito de Cachoeira de Itapemirim,
Theodorico Ferraço, na inauguração de um escritório da Secretarias de agricultura, empresas estatais
Aracruz Celulose neste município, no sul do Espírito San- de extensão rural e fiscalização
to: “Esse é o grande passo para que a Aracruz traga em- Órgãos de governo, que atuam na agricultura, fazem
prego e geração de renda à nossa região. A instalação do propaganda do eucalipto, convencendo produtores ru-
escritório do programa do Produtor Florestal da Aracruz rais a aderirem ao programa de Fomento Florestal (atu-
tem o significado de uma nova fábrica de Itapuã ou de almente chamado de Programa Produtor Florestal) das
uma Viação Itapemirim3” (Produtor Florestal, Ano I, no 4, empresas. No Espírito Santo, o programa da empresa
julho de 2004, Aracruz Celulose) Aracruz convence produtores rurais a plantar eucalipto
Vale lembrar que só a Viação Itapemirim gera em tor- para fins de produção de celulose. No seu trabalho de di-
no de 16.000 empregos diretos no País, um número bem vulgação, os órgãos públicos também utilizam a geração
maior do que os pouco mais de 2.000 da Aracruz. de emprego através do plantio de eucalipto como instru- 109
mento de convencimento. tes da internet, que impressionam em termos de quan-
Um exemplo disso é o convênio firmado em 07 de ju- tidade – milhões de empregos - mas, ao mesmo tempo,
nho de 2004 entre a Aracruz, a Secretaria de Agricultura chamam a atenção pelas enormes diferenças entre eles.
do Espírito Santo (Seag) e o Instituto Capixaba de Pes- As fontes não dão maiores detalhes sobre a metodologia
quisa e Extensão Rural (Incaper). O convênio prevê que utilizada para se chegar a estes números, nem esclarecem
os órgãos estaduais têm como meta promover o plantio as categorias de empregos a que se referem para montar
de eucalipto nas propriedades rurais e, segundo o ex- os números. Vejamos alguns exemplos:
secretário estadual da Agricultura, Ricardo Ferraço, esta - Segundo José Carlos Mendes, gerente florestal da
seria “uma extraordinária oportunidade para o agrone- empresa Klabin, em palestra proferida na Alemanha,
gócio”. Apesar de o programa se chamar Reflorestamento em setembro de 2004, contando com 5 milhões de hec-
de imóveis rurais, serão disponibilizadas apenas 60 mil tares de plantações, o setor “florestal” gera no Brasil
mudas de árvores nativas para os produtores rurais no 1,5 milhão de empregos diretos e 5,2 milhões de em-
estado, bem menos que as 1,3 milhão de mudas de eu- pregos indiretos.
calipto previstas no programa. Durante a assinatura do - O deputado federal Renato Casagrande, em artigo
convênio, no sul do estado, o gerente florestal da Ara- no jornal A Gazeta, de 2003, afirmou que a geração de
cruz, Tadeu Mussi de Andrade, prometeu gerar cerca empregos [do setor “florestal”] é de 2 milhões de em-
de 500 empregos diretos e 2 mil indiretos numa área de pregos diretos.
plantio proposto de 5 mil hectares de eucalipto naquela - Para Antônio Claret, presidente da Associação Mi-
região (Produtor Florestal, Ano I no4, julho de 2004, Ara- neira de Silvicultura, o setor “florestal” cria 2,5 milhões
cruz Celulose). de empregos diretos e indiretos, conforme entrevista
concedida ao Jornal do Brasil, em 7 de outubro de 2004.
Escolas - O jornal Estado de Minas, em editorial no dia 18 de
Outro grupo que a Aracruz prioriza para tentar in- dezembro, prevê que “Um programa sustentado de re-
fluenciar é o de alunos e professores. Segundo o dire- florestamento pode gerar 2 milhões de empregos diretos
tor de Meio Ambiente da Aracruz Celulose, Carlos Al- [no Brasil]”.
berto Roxo, “a política social da empresa prioriza a área Algumas perguntas foram enviadas, por correio eletrô-
educacional, principalmente”. É nesse sentido que ela nico, à Associação Brasileira de Produtores de Celulose
se esforça para receber visitas de escolas à fábrica e, (Bracelpa) com o objetivo de esclarecer as diferenças
posteriormente, manter os vínculos para que o traba- nos números de empregos apresentados e as categorias
lho de convencimento das crianças continue. Na prin- de trabalhadores incluídos. Apesar de ter respondido,
cipal feira de meio ambiente do estado, a “Feira do Ver- a Bracelpa não esclareceu as dúvidas enviadas pela
de”, que acontece anualmente em Vitória, com mais de Rede Alerta contra o Deserto Verde, limitando-se a afir-
70.000 visitantes, a Aracruz garante sempre os melhores mar que “acompanha somente a mão-de-obra do setor
e maiores espaços, bem na entrada do evento. O público de celulose e papel”. A entidade informa ainda que no
é composto, principalmente, de grupos escolares de todo Espírito Santo esse setor gera 5.524 empregos diretos
o estado. e indiretos. No entanto, em seu site, a Bracelpa afirma
que, incluindo plantações e indústria, o setor “florestal”
2 - A geração de empregos para celulose gera 100.000 empregos diretos no País.
(www.bracelpa.com.br). Vale lembrar que a maior par-
2.1 - Dados do setor de plantações te da produção de madeira nas plantações destina-se
e celulose no Brasil à produção de celulose. Onde se encontram, então, os
No Brasil existem muitos números disponíveis sobre milhões de trabalhadores?
o setor de plantações e sua capacidade de geração de O site da Sociedade Brasileira de Silvicultura (www.sbs.
emprego. Os dados são divulgados em sites das empre- org.br), informa apenas a geração de 31.004 empregos na
sas, em palestras e em artigos de jornais. Vale acrescen- “atividade florestal” no Brasil. A fonte citada nesse site
tar que, nesses sites e em outros informes publicitários, é novamente a Bracelpa, que – como mencionado ante-
o setor de plantações é sempre chamado de “setor flo- riormente – afirma dispor apenas de dados do setor de
restal”. É bom deixar claro que em uma monocultura de celulose e papel.
árvores de eucalipto ou pinus, além da presença das ár- Conclui-se, portanto, que os dados divulgados não
vores, nada mais tem a ver com uma floresta de verda- estão baseados em fontes seguras. Quando as fontes
de. O setor insiste com o termo “florestal” porque é um das informações são questionadas, como foi o caso da
termo positivo, que soa melhor para a opinião pública, Bracelpa, não se obtém respostas com exatidão. Ao
do que “plantação”. que parece, o principal interesse das empresas é mes-
110 Apresentamos alguns dados, obtidos de jornais e de si- mo o “jobwashing”.
2.2 – Dados da Aracruz Celulose - entre os dados de 1989 a 1996, não foram encontradas
A tabela abaixo, apresenta dados sobre empregos diretos informações sobre o número de trabalhadores indiretos.
e indiretos gerados pela Aracruz Celulose desde 1989. Tal fato merece uma investigação mais profunda;
- a partir de 1997, a empresa começa a apresentar os
Tabela 1: Trabalhadores diretos e indiretos na Aracruz Celulose números de trabalhadores indiretos, provavelmente por
causa do grande processo de terceirização implantado no
País na década de 1990, que reduziu significativamente os
Trabalhadores Trabalhadores postos de trabalhos diretos;
Ano Total - houve um grande aumento do número de trabalhado-
diretos indiretos
res indiretos entre 2001 e 2003, o que não pode ser explica-
do apenas com a compra da empresa Riocell. Também fo-
ram solicitadas à Aracruz Celulose, por correio eletrônico,
1989 6.058 (1) Sem dados 6.058
informações sobre o que teria gerado esse aumento, mas
1991 7.095 Sem dados 7.095 nenhuma resposta foi obtida;
1992 6.677 Sem dados 6.677 - os números de 2007 mostram um aumento signifi-
cativo de trabalhadores diretos e indiretos; de acordo
1993 5.125 Sem dados 5.125 com a Aracruz, o aumento do número de trabalhadores
1994 3.275 Sem dados 3.275 diretos deve-se ao fato de que estão incluídos os fun-
cionários do Portocel e de subsidiários internacionais;
1995 2.907 Sem dados 2.907
no entanto, o aumento dos trabalhadores indiretos fica
1996 2.652 Sem dados 2.652 sem explicação;
1997 2.393 3.706 7.099 - para se ter uma avaliação mais precisa sobre a criação
de empregos de cada setor é sempre importante relacio-
2001 1.794 (2)
3.037 4.831 nar o número de trabalhadores a outros parâmetros.
2003 2.281 7.546 9.827 Provavelmente por estar preocupada com seu baixo
desempenho em termos de geração de emprego – fato
2004 2.031 6.776 8.807 (3)
que será demonstrado com mais ênfase mais adiante -,
2007 2.495 9.515 12.010 a empresa contratou a Fundação Getúlio Vargas (FGV)
(Fontes: informações corporativas, Aracruz Celulose: 1989-2003; para fazer um estudo sobre geração de emprego. Este
Rima, 1989; BVQI, 2004, Aracruz Celulose, Fatos e Números, 2007) estudo chega a afirmar que “considerando os empregos
diretos e os indiretos, as atividades da Aracruz susten-
taram 95,8 mil empregos em 2003. Estes postos foram
(1)
4.729 trabalhadores diretos na área florestal, com previsão de cria- gerados, em sua maioria, em quatro setores de ativida-
ção de mais 2.201 empregos (projeto de ampliação); 1.329 empregos di- de econômica: florestal, comércio, transportes e serviços
retos na área industrial, com previsão de criação de mais 341 empregos prestados à empresa.4”
(projeto de ampliação) (Rima, 1989); A FGV realizou um estudo semelhante na empresa
de porte menor, a Veracel Celulose, resultando na afir-
(2)
106 trabalhadores diretos no Portocel (porto de exportação da celu- mação de que a mesma sustentaria “29,6 mil empregos”.
lose); 146 trabalhadores diretos na Aracruz Produtos de Madeira e 1.542 Em um seminário na Suécia, em abril de 2007, ao ser
trabalhadores diretos na Aracruz Celulose e subsidiárias internacionais; questionado sobre quais postos de emprego eram exa-
tamente esses “29,6 mil empregos”, o presidente da Sto-
(3)
Conforme os dados da BVQI [Bureau Veritas Quality International é uma ra-Enso América Latina, Otávio Pontes, afirmou que se
empresa privada que realiza certificações, como ISO 9001 e ISO 14001], a tratavam de empregos que atendiam de alguma forma à
Aracruz possui 6.056 empregados (645 próprios e 5.411 terceirizados) na empresa Veracel Celulose. Isso significa dizer que, por
área das plantações e 1.751 empregados na área industrial. exemplo, os funcionários dos bancos, dos restaurantes,
das oficinas, da locação de veículos, enfim, de todo tipo
de serviço prestado para a empresa na região, acabam
sendo contabilizados como empregados sustentados
Alguns aspectos chamam a atenção quando observa- pela Veracel, sendo que muitas dessas empresas e insti-
mos a tabela: tuições prestam também serviços para inúmeras outras
- desde 1991, o número de trabalhadores diretos tem empresas e cidadãos. Ou seja, a partir dessa lógica é pos-
diminuído constantemente; o crescimento registrado en- sível afirmar que a maioria dos integrantes da sociedade
tre 2001 e 2003 deve-se à compra, pela Aracruz, da em- sustenta inúmeros empregos, mesmo que não tenha ne-
presa Riocell; nhum trabalhador contratado. 111
2.3 - Geração de emprego x outros parâmetros Tabela 2: Investimento por emprego criado na produção de
celulose, comparado com outros setores
Investimento
Uma característica das monoculturas de eucalipto para Custo por
produção de celulose é a necessidade de grandes investi- Setor emprego gerado
mentos. Isso se deve à complexidade tecnológica que re- (em US$)
quer automatização em alta escala e utilização de máqui-
nário e tecnologia importadas da Europa. Nesse sentido, Assentamentos rurais 2.900
vale comparar os empregos gerados com os valores in- Indústria (programa Pró-Trabalho) 8.400
vestidos (tabela 2). Acompanhemos esses três exemplos:
a - José Koopmans, ativista de direitos humanos, num Serviços (programa Pró-Trabalho) 12.700
estudo sobre os impactos da monocultura no extremo Comércio (programa Pró-Trabalho) 32.100
sul da Bahia, indica que o custo da construção da fábri- Indústria de celulose
ca da Bahia-Sul Celulose, inaugurada em 1992, foi de 619.808
(Bahia Sul – 1992)
US$ 970 milhões, com uma expectativa de geração de
1.565 empregos. Assim, o custo de cada emprego gerado Indústria de celulose
3.323.699
chegou a US$ 619.808. (Aracruz – 2002)
b - A fábrica C da Aracruz Celulose, inaugurada em Indústria de celulose
2002, custou US$ 575 milhões, e geraria 173 empregos 3.750.000
(Veracel – 2005)
diretos e terceirizados, na planta industrial. Este cálculo
leva a um custo de US$ 3.323.699 por emprego gerado. Fontes: Cepedes, 1992; Cepemar, 1999; Veracel Celulose, 2003; Ibase, 2004
c - A nova fábrica da Veracel, inaugurada em 2005,
conta com um investimento de US$ 1,5 bilhão e prome-
te criar cerca de 400 empregos, o que significa um custo emprego criado. Os custos da criação de um emprego
de US$ 3.750.000 por emprego gerado. na indústria, no setor de serviços e no comércio, através
Os três exemplos demonstram que o emprego numa fá- do programa Pro-Trabalho. do governo federal, são res-
brica de celulose é extremamente caro e que o custo deste pectivamente R$ 23.000, R$ 35.000 e R$ 88.300.
emprego ainda tem aumentado nesses últimos anos. Para
termos uma melhor noção destes valores, recorremos a Extensão territorial
outros exemplos (tabela 2). A Aracruz Celulose, proprietária - em 2005 - de um
Segundo Sérgio Leite (Ibase, 2004), professor em De- total de 375.000 hectares de terras no Brasil, é a em-
senvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universi- presa que ocupa a maior quantidade de terras no Es-
dade Rural do Rio de Janeiro, o assentamento de um pírito Santo: são 154.500 hectares. Considerando que
milhão de famílias no campo poderia criar 3 milhões o plantio de eucalipto e a produção de celulose são
de empregos com um custo de cerca de R$ 8.000 por atividades interligadas, pretende-se avaliar o núme-
ro de empregos que a Aracruz gera na indústria e no
A Aracruz é a empresa que mais detém terras no Espírito Santo
campo, comparado com a quantidade de terras que
concentra (tabela 3).
Com 375.000 hectares de terras e 2.031 empregados
diretos, a Aracruz gera um emprego direto por cada 185
hectares de terras. Mesmo que se considere apenas as
áreas para o plantio de eucalipto – 247.000 hectares – a
geração de emprego não passa de um emprego direto
por cada 122 hectares de eucalipto.
No entanto, se considerarmos o cálculo mais fa-
vorável para a Aracruz, que inclui também o núme-
ro oficial de 6.776 trabalhadores terceirizados (em
2005), dos quais uma parcela atua na área das plan-
tações, chegamos a um número de um emprego dire-
to e indireto por cada 28 hectares de eucalipto.
No caso da Veracel, segundo um documento da em-
presa, com data de 16 de dezembro de 2003, ela possuía
73.000 hectares e 400 empregados diretos, o que gera
112 um emprego direto por cada 183 hectares. Com a fábri-
ca em funcionamento, atuariam cerca de 2.000 empre- zação. O folder mostra que cada máquina para a colhei-
gados diretos e indiretos no campo e na fábrica. Nesse ta corta 140 árvores por hora, enquanto um trabalhador
caso, estima-se um emprego direto e indireto por cada consegue cortar ‘apenas’ dez árvores por hora.
37 hectares de eucalipto. Contrariando estes dados da Aracruz, ex-motoserris-
Observando o caso da monocultura agrícola mais sig- tas falam em “milhares de motoserristas” demitidos. Um
nificante no Espírito Santo, o café, é fácil concluir que a cálculo simples, utilizando os dados da empresa de que
cultura de eucalipto gera poucos empregos. Conforme uma máquina de colheita consegue substituir quatorze
dados do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), trabalhadores, e um outro fornecido por um operador de
um hectare de café bem cuidado é capaz de criar um em- máquina de corte, de que a empresa dispõe de cerca de
prego direto. Na época da colheita, entre os meses abril setenta máquinas, confirmam as declarações de demis-
a julho, cada hectare garante trabalho para mais uma a sões em massa de trabalhadores. Se considerarmos ainda
duas pessoas. a prática de três turnos diários, concluímos que a Aracruz
demitiu 2.940 trabalhadores. Este número coincide com a
Tabela 3: # hectares necessários para gerar um emprego direto afirmação de um ex-dirigente do Sintral, o sindicato que
em monoculturas de eucalipto e café representa os motoserristas: “... me lembro que, uma épo-
ca, aderiram a uma greve da Aracruz Florestal na faixa de
# terra para gerar # terra para gerar 3.000 funcionários...”.
Monocultura 1 emprego direto 1 emprego direto e O emprego de operador de máquina parece ser um
(ha) indireto (ha) bom emprego, o trabalhador senta em cadeiras con-
fortáveis e cabinas com ar condicionado. No entanto,
Eucalipto este grupo de trabalhadores também tem enfrentado
(Aracruz 122 28 problemas, conforme o relato de um operador entre-
Celulose) vistado, que atua na empresa desde 1992: “numa certa
época, houve uma máquina que exigiu um controle total e
Eucalipto continuado do trabalhador, causando muito estresse nos
(Veracel 183 37 operadores”, e “algumas pessoas têm dificuldade com o
Celulose) ‘isolamento’ do trabalho, passando 8 horas por dia sozi-
nho numa cabina”.
No I Encontro Sul-Americano dos Atingidos pelos
Café 1 <1 Projetos Financiados pelo BNDES, realizado em novem-
bro de 2009, no Rio de Janeiro, operadores de máquina
Fontes: Aracruz Celulose, 2004; Veracruz Celulose, 2003; MPA, 2004 lesionados da Fibria (ex-Aracruz) denunciaram os pro-
blemas de saúde que enfrentam e o descaso da empresa
3 - Mecanização com a situação deles.

3.1 - Plantações 3.2 - Indústria


Nos anos de 1970, a produção de mudas, o plantio, a ca- Na indústria de celulose da Aracruz, o processo produ-
pina e o corte do eucalipto eram feitos de forma manual. tivo é muito mecanizado, desde a inauguração da primei-
Nessa época, as plantações de eucalipto geravam muito ra fábrica em 1978. E a exigência de produtividade por
mais empregos, principalmente para as comunidades lo- trabalhador direto tem crescido de forma constante com o
cais. A partir dos anos de 1980, iniciou-se a mecanização processo de modernização e terceirização, que se intensi-
no campo, primeiramente com a chegada das máquinas de ficou a partir da década de 1990. Em 1989, 1.329 trabalha-
corte. Já em 1984, 30% da colheita era feita de forma meca- dores da indústria produziam 502.000 toneladas de celu-
nizada. Hoje, praticamente nenhum corte mais é feito por lose, ou seja, cada trabalhador produzia 378 toneladas de
motoserristas nos plantios da Aracruz. O trabalho de mo- celulose. Doze anos depois, 1.543 trabalhadores (a grande
toserrista só permanece nas áreas de fomento florestal. maioria ativa na indústria) produziam 1.240 000 tonela-
A demissão dos motoserristas aumentou enormemente das de celulose, o que quer dizer que cada trabalhador
o desemprego em cidades como São Mateus, Conceição produzia 804 toneladas de celulose em 2001. A inaugura-
da Barra e Aracruz, onde boa parte desses trabalhadores ção da nova fábrica C, em 2002, elevou a produtividade:
reside, sendo que a grande maioria continua desempre- cada trabalhador passou a produzir 1.052 toneladas de
gada. Dados contidos em um folder publicado pela em- celulose em 2003.
presa naquela época revelam que o grupo de trabalhado- Um gráfico de 1998 da própria Aracruz, demonstra o
res envolvidos na colheita caiu de 1.100 para 350, ou seja, aumento da produtividade e redução dos empregados, ao
750 trabalhadores perderam o emprego devido à mecani- longo dos anos. 113
obtiveram ganho salarial significativo decorrente do au-
mento da produtividade.
Além disso, os entrevistados revelam que foi inten-
sificado o controle interno para que os trabalhadores
dediquem-se ao máximo à sua tarefa específica no pro-
cesso de produção. Hoje, o acesso do trabalhador de um
a outro departamento da área industrial, por exemplo,
que anteriormente era permitido, só acontece com au-
torização prévia, e fica registrado no seu crachá. Esse
sistema eletrônico de controle permite que a empresa
vigie, por completo, cada trabalhador e seus desloca-
mentos dentro da área industrial. Isso significa também
que fica mais difícil para os trabalhadores socializarem
os problemas enfrentados.

4 - Terceirização = degradação das condições


de trabalho

4.1 - O processo de terceirização


A terceirização é o mecanismo pelo qual uma em-
presa transfere para outra as atividades não essenciais
aos seus objetivos empresariais. Significa que a empre-
sa não pode transferir atividades que fazem parte do
A terceira fábrica (C) gerou apenas 173 empregos dire- seu contrato social, ou seja, ela pode terceirizar apenas
tos e indiretos. Mas nem isso impediu uma nova onda de ‘atividades-meio’ e não as ‘atividades-fim’ (MPT-Minas
demissões, em dezembro de 2002, após ter sido firmado Gerais, 2002).
o acordo coletivo entre a empresa e o Sinticel, o sindica- O principal motivo da terceirização é possibilitar que a
to dos trabalhadores na indústria de celulose. Numa nota empresa se especialize na realização da sua própria ativi-
publicada no jornal A Gazeta, o Sinticel declara que “vem dade. A terceirização se efetua quando se realiza o contra-
repudiar o processo de demissão que a Aracruz Celulose to entre duas empresas, em que uma prestará um serviço
desencadeou após o fechamento do acordo coletivo, no (de atividade-meio) para a outra. Em nenhum momento
início de dezembro. Vários trabalhadores foram demiti- este contrato pode servir como mecanismo para reduzir
dos nas áreas de secagem, digestor e caldeira”. salários e/ou direitos dos trabalhadores. Se isso aconte-
O Sinticel mostra que a empresa passou a produzir mais cer, “está-se diante da terceirização fraudulenta, em que
com menos trabalhadores: “Apesar do aumento da produ- o instituto negocial busca substituir, pela maquiagem da
ção e das exportações e da garantia de lucro com a alta forma, o conteúdo trabalhista da relação existente entre o
do dólar, a política da empresa tem sido reduzir os postos empregado e o empregador, com a interposta prestando,
de trabalho. Setores como a manutenção, limpeza, vigilân- de fato, o serviço de biombo da ilegalidade” (MPT-Minas
cia, transporte e algumas áreas administrativas são alvo de Gerais, 2002).
um violento processo de terceirização, sem a garantia de Mesmo assim, muitos acham que a terceirização é um
absorção da mão-de-obra dispensada pela fábrica. Os que fenômeno tipicamente econômico, do qual a Justiça do
conseguem ser aproveitados pelas empreiteiras ficam su- Trabalho deve se manter distante. Conforme o Ministé-
jeitos a péssimas condições de trabalho e salário reduzido” rio Público do Trabalho em Minas Gerais, “... o próprio
(A Gazeta, 2002). Judiciário entende de outra forma, o que se observa das
Os trabalhadores que “sobrevivem” a esse processo de várias decisões preferidas em situações específicas de
modernização entram em estado de “pânico”, temendo terceirização ilegal.”
perder também seus empregos, conforme declara um Em Minas Gerais, mais de quarenta empresas que plan-
trabalhador que desde 1980 atua na fábrica da Aracruz. tam eucalipto estão sendo processadas desde 2002 pelo
Segundo ele, a frase “se não estiver satisfeito, tem um Ministério Público do Trabalho por estarem praticando a
monte querendo seu lugar” era e é constantemente usada terceirização ilegal, já que o plantio de eucalipto, tercei-
por supervisores e coordenadores das áreas. A redução rizado por essas empresas, é claramente uma ‘atividade-
dos postos de trabalho é justificada com a seguinte afir- fim’ e não uma ‘atividade-meio’. O fato de não existir uma
mação: “ele sozinho dava conta do serviço”. Vale destacar atuação semelhante no Espírito Santo mostra o quão con-
114 também que, nos últimos doze anos, os trabalhadores não troversa é essa questão no meio judicial.
4.2 - Terceirização na Aracruz Celulose Um ex-dirigente do Sintral afirma: “Eu me lembro muito
Conforme o depoimento de um trabalhador da Aracruz, bem do processo de terceirização da Aracruz Florestal; na
que desde 1980 atua no setor de manutenção mecânica, época, foram jogados para a rua esta quantidade de traba-
a empresa possuía naquela época cerca de 9.000 traba- lhadores porque não existia máquina de cortar eucalipto,
lhadores diretos, entre as plantações e a fábrica. Ele afir- era tudo através de motoserristas e, aí, com esta terceiri-
ma que até o início da década de 1990, o tempo era de zação colocou empreiteiras e as máquinas de corte, e nas
crescimento profissional e de ganhos econômicos para os terceiras eles não pagam um salário atuante.”
trabalhadores. Segundo ele, os trabalhadores tinham or- Parte dos demitidos com problemas de saúde recor-
gulho de “vestir a camisa” da Aracruz. reram ao sindicato para que uma intervenção fosse
A partir de 1991, quando a segunda fábrica (B) entrou em feita junto à empresa. De acordo com as declarações
operação, começaram as mudanças radicais que visavam a de um ex-sindicalista, na maioria dos casos, a empresa
adequação da empresa aos novos modelos de produção. Os não se sensibilizava e se limitava a estender a assistên-
resultados foram demissão e terceirização em massa, além cia médica por um breve período, que variava de dois a
da fusão entre a Aracruz Celulose e a Aracruz Florestal. quatro meses.
Cerca de 6.000 postos de trabalho foram eliminados, o que
causou um sério impacto social, sentido profundamente 5 - Sindicatos: organização e desmantelamento
por muitos ex-trabalhadores e suas famílias. São muitos os sindicatos que representam as diversas
As áreas terceirizadas foram as de manutenção civil (pe- categorias de trabalhadores que atuam na Aracruz Celulo-
dreiros, carpinteiros, pintores, armadores, jatistas e seus se ou nas suas empreiteiras. Ouvimos alguns ex-dirigentes
ajudantes), administração, vigilância patrimonial, manu- de dois dos principais sindicatos: o Sinticel e o Sintral.
tenção elétrica e instrumental e empilhamento. Também
as plantações foram terceirizadas (brigadas de plantio, ca- 5.1 - Sinticel
pina química, incêndio e trabalhadores no viveiro). O principal sindicato, que sempre atuou na indústria de
Os funcionários que conseguiram ser recontratados per- celulose da Aracruz, é o Sinticel. Em 1978, foi lançado o
deram o plano de saúde, o transporte piorou e a carga ho- embrião da Associação que passou a representar os traba-
rária aumentou. Após alguns anos, o salário era, em média, lhadores na indústria. O diretor industrial da empresa na
apenas um terço daquilo que recebiam inicialmente. Algu- época estimulava a organização dos trabalhadores, pois
mas empreiteiras usavam como referência o piso salarial entendia que isso era importante, além de ser parte da
dos trabalhadores da manutenção mecânica, que desde o cultura do seu país de origem, a Grã-Bretanha, onde exis-
início eram terceirizados. tiam sindicatos bem estruturados. Já nessa época, vários

O processo de construção de uma fábrica de celulose: o caso Veracel

Uma fábrica de celulose altera profundamente a Em 2003, teve início a construção da nova fábri-
micro-região onde ela é instalada. Apesar da afirma- ca da Veracel Celulose em Eunápolis, na Bahia. Em
ção de que gera “milhares” de empregos, o processo 2004, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) se-
de construção causa uma série de problemas que diada no extremo sul da Bahia apresentou à empre-
afetam principalmente as populações tradicionais. sa uma lista de reivindicações dos trabalhadores do
As fábricas da Aracruz Celulose, construídas em ter- canteiro de obras. A lista continha doze exigências,
ritório da aldeia indígena de Macacos, atraíram uma dentre elas: reajuste salarial de 20%, fim das contra-
grande quantidade de trabalhadores de outras regi- tações temporárias - que livra as empresas de obri-
ões e estados. Isso acarretou muitos transtornos para gações trabalhistas - e alimentação gratuita e de
o bairro vizinho chamado Barra do Riacho, que era qualidade. Não tendo as reivindicações atendidas,
basicamente um bairro de pescadores, e se situa a um os trabalhadores entraram em greve e, após vários
quilômetro da fábrica. Este bairro passou de 900 para dias cercados e vigiados por centenas de policiais
10.000 habitantes. Até hoje, Barra do Riacho sofre as chamados pela Veracel, entraram em acordo com as
consequências: altos índices de desemprego, prosti- empresas envolvidas na construção.
tuição infantil e tráfico de drogas.

115
gerentes de áreas específicas apoiaram os trabalhadores, históricas da classe trabalhadora, o que ocorreu em todas
enquanto outros, incluindo Carlos Augusto de Aguiar, o as categorias de trabalhadores. Entre essas perdas está
atual diretor-presidente da empresa, não os apoiaram. a redução de 50% para 20% da remuneração extra pelas
O Sinticel foi criado em 1979 como Sindicato dos Tra- primeiras duas horas dadas além da jornada de trabalho
balhadores nas Indústrias de Papel, Celulose, Pasta de e restrições na assistência médica e odontológica.
Madeira para Papel, Papelão e Cortiça de Aracruz. Mas O trabalho de desmobilização do sindicato coincide com
só em 1983 o Ministério do Trabalho assinou a carta sin- o processo de demissão em massa na década de 1990, o
dical. Nessa época, os trabalhadores confiavam no sindi- que fragilizou a base de sustentação do sindicato. Em al-
cato e questões relacionadas à insalubridade, periculo- guns casos de trabalhadores com problemas grave de saú-
sidade e jornada de trabalho estavam sempre na pauta de, o sindicato, através de ações judiciais, conseguiu rein-
do dia. Algumas conquistas do primeiro período de luta tegrar o trabalhador aos quadros da empresa com todos os
deste sindicato foram: (i) transporte para os trabalhado- seus direitos restabelecidos. Mas foram poucos os casos,
res vindos da Grande-Vitória; (ii) redução da jornada de se comparados ao montante de demissões. Nesse período,
trabalho para quarenta horas; (iii) ampliação da assis- aconteceram algumas paralisações nas portas da empresa.
tência médica e odontológica; (iv) pagamento de horas Apesar da desmobilização, o sindicato conseguiu ampliar
extras acima do que a lei determinava. sua base para outras categorias afins, e passou a ser cha-
Em 1985 houve a primeira tentativa frustrada de greve mado de Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de
e, ao mesmo tempo, o início da articulação da empresa Celulose, Pasta de Madeira para Papel, Papelão, Cortiça,
contra o sindicato, conforme depoimento de um ex-sindi- Químicas, Eletroquímicas, Farmacêuticas e Similares no
calista. No mesmo ano, os primeiros processos de insalu- Estado do Espírito Santo.
bridade e periculosidade foram protocolados na justiça. A A grande mudança veio em 2003, quando uma nova di-
empresa se negava a discutir a questão por entender que retoria assumiu o sindicato, após um processo eleitoral
o trabalho não oferecia riscos à saúde do trabalhador. Um que foi contestado na justiça. Aquela diretoria, segundo
dos primeiros processos foi concluído somente em janei- declarações de um ex-sindicalista, se caracterizou pela
ro de 2001, quando 656 trabalhadores foram beneficiados. parceria com a empresa. Ele afirma que o sindicato não
Em 1986 foi deflagrada a primeira greve, a maior mani- adota mais a estratégia de mover processos judiciais con-
festação até hoje feita pelos trabalhadores, que ficaram tra a empresa, e a Aracruz se livrou de um dos processos
por nove dias acampados em frente à fábrica. coletivos de insalubridade que estava em curso há muitos
As principais conquistas dos trabalhadores acontece- anos. Em vez da justiça, buscava-se a via de negociação,
ram até o início dos anos de 1990. A partir de então só uma opção muito mais frágil de garantir os direitos dos
foi possível repor as perdas salariais e garantir eventuais trabalhadores.5
abonos salariais. Após 1994, por força de lei, a empresa Vale lembrar ainda que foram demitidos, posterior-
começou a negociar a participação nos lucros e resulta- mente, cinco ex-diretores do Sinticel: Jorge de Olivei-
dos. Mas já em 1998 foram retiradas várias conquistas ra, Manoel Carlos Gomes, Orlando Monteiro, Silvério
Scarpatti e Luiz Alberto Soares Loureiro. A perseguição
de diretores sindicais sempre foi uma prática da Ara-
Projeto Conexão Sul

cruz. Mas se até as eleições de 2003, o próprio sindicato


buscava garantir a reintegração dos seus (ex-)dirigen-
tes, entre 2003 e 2009 ele não ofereceu mais apoio para
seus associados.

5.2 - Sintral
O sindicato para os trabalhadores ativos na área de
plantações no norte do Espírito Santo é o Sintral, fundado
em 1988, com o apoio de várias entidades, principalmente
da Fase-ES e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), além
da Igreja Católica. A partir daí aconteceram “... sucessi-
vas greves, em 1991, nas Florestas Rio Doce, na Aracruz
em 92...”, conforme declara um ex-diretor do sindicato.
A principal reivindicação era salarial e os trabalhadores
é que decidiam entrar ou não em greve. Os diretores do
sindicato não tinham muita experiência, mas estavam “...
com muita vontade de lutar. Foi muito bom”. Nos primeiros
116 O movimento de carretas transportando eucalipto é grande nas estradas anos do Sintral, houve uma relação forte entre o traba-
lhador e o sindicato. Um ex-diretor do Sintral afirma que A partir da análise dos casos de 33 ex-trabalhadores, cujas
“a confiança era construída no dia a dia”. histórias foram registradas num dossiê elaborado pelo Mo-
A situação mudou completamente com a terceirização vimento dos Mutilados da Aracruz Celulose6, consegue-se
que fragilizou o sindicato e os trabalhadores. Quando ter uma noção dos tipos de acidentes e doenças ocupacio-
conseguiam algum benefício com uma greve, “a empresa nais comuns naquela época, entre os trabalhadores:
reagia de forma a abafar aquilo, ela tirava o benefício atra-
vés da terceirização”. Ao mesmo tempo, a empresa come- - acidentes/doenças em função do transporte: o trans-
çou a propor parcerias, “... e alguns diretores começaram a porte na década de 1980 era feito por caminhões, que
achar interessante...”, diz um ex-diretor. tinham tábuas de madeira como assentos; as estradas
O resultado desse processo foi a redução do número de tinham muitos buracos e os constantes solavancos causa-
associados do sindicato. Mas, ao mesmo tempo, foi cria- ram problemas de coluna nos trabalhadores;
da a ‘taxa administrativa’ em que o empregado já entra
numa empresa terceirizada como associado do sindicato, - acidentes de trabalho em função do plantio de euca-
e é descontado um percentual do salário. Um trabalhador lipto e capina: os trabalhos de plantio, adubação e capina
terceirizado da Plantar com dois anos de contrato afirmou: eram manuais e as pessoas tinham que carregar caixas
“nunca vi um diretor do Sintral”, apesar do desconto mensal com mudas e produtos químicos pesando mais de 40 qui-
da ‘taxa administrativa’. Afirmou também não saber nem los, o que causava problemas na coluna cervical;
“onde fica a sede do sindicato; há um médico para os traba-
lhadores, mas não sei dizer se este foi contratado pelo sindi- - acidentes/doenças em função da aplicação de agro-
cato ou pela empresa.” tóxicos: a monocultura do eucalipto exige a aplicação
Há um distanciamento grande entre o Sintral e os traba- frequente de agrotóxicos, sobretudo herbicidas e formi-
lhadores a ele associados. Um trabalhador da Plantar diz: cidas. A bomba utilizada para aplicação desses produtos
“a gente contribui, mas eu não conheço o sindicato, e eles não pesa, em média, 20 quilos e é carregada pelo trabalhador
estão nem aí para nossa situação”. Um ex-diretor do sindi- nas costas, causando também problemas na coluna. Além
cato denuncia que “... hoje, a Aracruz é quem manda e banca disso, a exposição prolongada ao agrotóxico causa dores
o sindicato, e a categoria está abandonada”. Ele, inclusive, de cabeça, vômitos, dores na boca e no estômago, unhas
levanta suspeitas sobre um processo coletivo, no qual o sin- fofas e risco de cegueira, dentre outros males. Naqueles
dicato descontou 10% do valor que cada trabalhador ia re- anos, era usada apenas uma máscara para proteger o tra-
ceber e quando os trabalhadores questionaram o desconto, balhador. Não havia ainda o Equipamento de Proteção
a direção do sindicato alegou que era determinação da Jus- Individual (EPI), obrigatório hoje, e não tinha nenhum
tiça do Trabalho e que não poderia fazer nada. Segundo um tipo de treinamento para lidar com o veneno;
ex-diretor, hoje não existem mais novos processos coleti-
vos, apenas os individuais, porque nesses casos o sindicato - acidentes com o corte de eucalipto: aconteciam que-
é obrigado a agir. Um ex-diretor resume que “o sindicato das de árvores em cima dos trabalhadores, além de aci-
não vai mais ao campo falar alguma coisa, acabou”. E assim dentes por causa do manuseio da motoserra como perdas
acabou-se também a relação de confiança que existia antes de dedos, de pé, além de cortes no corpo e rosto;
entre os trabalhadores e os dirigentes sindicais.
- doenças em função da manutenção de equipamen-
6. Ex-trabalhadores: acidentes e tos e máquinas: a manutenção e reabastecimento da
doenças de trabalho nas plantações motoserra, realizada por cada motoserrista sem nenhu-
ma proteção, causava irritação nos olhos e até cegueira,
6.1 - Os mutilados demitidos e também uma doença chamada leucopenia – a diminui-
Nos anos de 1980, a Aracruz Celulose ainda mantinha ção da taxa de glóbulos brancos no sangue. Essa doença
cerca de 9 mil empregados, conforme esclarece um ex- ocorre também nas pessoas que aplicam agrotóxicos sem
sindicalista entrevistado. A maior parte desses traba- proteção ou que manuseiam lubrificantes na manutenção
lhadores atuava nas plantações e a maioria foi demitida de máquinas florestais;
pelos processos de terceirização e modernização. No gru-
po dos demitidos, que não foram contratados pelas em- - acidentes/doenças por causa da limpeza do terreno:
preiteiras, estavam trabalhadores que sofreram acidentes o recolhimento dos troncos de eucalipto tanto podia pro-
de trabalho e/ou que contraíram doenças ocupacionais. vocar acidentes como problemas na coluna;
Na realidade, o processo de demissão foi a oportunidade
para a Aracruz se livrar daqueles trabalhadores que já Ao analisarmos os 33 casos, chama a atenção que:
não conseguiam mais alcançar uma produtividade dese- - o registro dos acidentes de trabalho não fosse prática
jada pela empresa. comum; 117
Tamra Gilbertson
6.2 – Situação atual dos trabalhadores
nas plantações
Atualmente, as doenças e acidentes de trabalho ocorrem
com menor intensidade, já que várias atividades manuais,
principalmente o trabalho de motoserrista, são cada vez
mais escassas. O principal problema de saúde dos traba-
lhadores no campo continua sendo a aplicação de agrotó-
xicos, apesar das afirmações das empresas terceirizadas
de que, utilizando-se os equipamentos de proteção indi-
vidual, não há perigos para a saúde do trabalhador.
Na prática, os problemas continuam, conforme alerta
um trabalhador da Plantar que, mesmo doente, continua
prestando serviços para a Bahia-Sul Celulose:
“Eles forneciam um macacão de pano, luva de borracha,
botina e máscara, mas ninguém aguentava usar as másca-
ras, pois com o calor o trabalhador tinha sensação de sufoca-
mento e era, então, orientado a portar a máscara pendurada
no pescoço e colocar no rosto assim que chegasse um fiscal
[da Bahia-Sul] mesmo que depois, lá dentro do eucalipto, o
trabalhador tirasse”.
Impressiona o fato de que o encarregado não exigis-
As famílias saíram de uma condição de fartura para uma situação de escassez:
destruição da relação família/terra/trabalho se o uso constante do equipamento: “Ele só reclamava
quando o trabalhador não estava com a máscara pendu-
rada no pescoço, para que na hora que a chefia chegasse
- os laudos de médicos especialistas comprovando a exis- a gente deveria usar rapidinho”. Outro problema que este
tência de doenças ocupacionais não fossem aceitos pelo trabalhador comenta é que as bombas com agrotóxicos
serviço médico da Aracruz Celulose; vazavam nas costas. Mas o encarregado dizia que os tra-
- os trabalhadores mutilados por acidentes de trabalho balhadores tinham que usar, mesmo que não oferecesse
fossem todos demitidos e, hoje, a grande maioria tenta so- proteção. O trabalhador reclama também que as botas
breviver desempregada e sem aposentadoria. de couro, que eram comuns até há pouco tempo, e as
Esses trabalhadores enfrentam muitas dificuldades luvas de borracha não protegiam suficientemente.
para buscar seus direitos através da justiça. Primeiro, o Um ex-trabalhador de 59 anos trabalhou na empresa
Sintral, não lhes deu apoio nem orientação quando os terceirizada Plantar durante quatorze meses entre 2000 e
mesmos começaram a reivindicar seus direitos, em mea- 2001, aplicando agrotóxicos. Apesar de utilizar um equi-
dos dos anos de 1990. Em segundo lugar, a partir de uma pamento individual de proteção com máscara, roupa,
análise dos processos judiciais civis e trabalhistas contra luvas e botas, ele sofreu o primeiro desmaio no campo
a Aracruz Celulose nos fóruns dos municípios de Concei- após quatro meses. “Aí, meu amigo me puxou pra sombra,
ção da Barra e São Mateus, conclui-se que: pegou um chapéu, ficou me abanando até que uns dez mi-
nutos depois eu recuperei outra vez. Aí trabalhei a tarde
“A Aracruz Celulose (...) utiliza-se de todos os recursos toda. Passaram uns dois, três meses e outra vez eu dei outro
judiciais disponíveis para procrastinar os processos judiciais desmaio...” (entrevista em 27 de outubro de 2002, Concei-
movidos contra ela, o que está a demonstrar a sua total ção da Barra). A partir daí, ele começou a ficar doente
falta de comprometimento com os direitos (sociais e civis) e, ao reclamar com o encarregado, foi demitido. “Porque
de seus funcionários”. eu mesmo reclamei a um que comandava o campo, que eu
(Relatório sobre os processo judiciais civis e trabalhistas contra o grupo estava doente. Eu reclamei a ele hoje, no outro dia, o aviso
Aracruz Celulose no Estado do Espírito Santo, Fase: 2003) veio e está acabado. Só que eu não assinei. Mas só que o
Jânio quem assinou. Bateu o carimbo e ele mesmo assinou”.
Conforme declara um ex-sindicalista, “a Aracruz nunca Esse trabalhador foi demitido mesmo contra sua vontade.
se interessou por seus ex-trabalhadores”. Mas nestes ca- Até hoje, ele luta por seus direitos na justiça.
sos se trataria, antes de tudo, de um dever que tem uma Este ex-trabalhador conta também o caso de um colega
empresa do porte da Aracruz Celulose de indenizar todos que morreu no campo:“Junio trabalhava no mesmo setor
aqueles que foram mutilados enquanto davam sua força que eu trabalhava e reclamou com os amigos que estava
de trabalho para a implantação da empresa, e que hoje passando mal. Na hora de almoço ele não quis almoçar, não
118 vivem numa situação de total miséria e abandono. almoçou. Deu hora de pegar o trabalho. Pegaram no traba-
lho e foram trabalhar. Aí eles usam botar o nome da pessoa precarização das condições de trabalho. Quem se livra
na carreira que pega. Quando deu 4h40, que é o horário que dos processos e da responsabilidade é a Aracruz Celu-
pára lá no campo, pararam, guardaram as bombas. Quando lose e, enquanto os trabalhadores continuam colocando
saíram na estrada, o amigo que viajava com ele deu falta e em risco a saúde e a própria vida sem garantia de seus
disse: ‘Cadê Junio? Junio não está aqui’. Isso já ia dar umas direitos, os eucaliptais estão crescendo.
5 horas. Voltaram, quando entraram na carreira, chegaram
lá e ele estava caído, com a bomba nas costas”. 7 - Os impactos da Crise Financeira Global
Ao que parece, alguns trabalhadores têm mais resistên-
cia contra a aplicação de agrotóxicos que outros. O ex-tra- Em 2008, a crise financeira global afetou profundamen-
balhador afirma o seguinte: “Porque alguns suporta o vene- te o setor de celulose para exportação, principalmente a
no, mas nem todo mundo.” E ao mesmo tempo, faz um alerta: Aracruz. Esta empresa perdeu R$ 2,13 bilhões7 devido a
“Agora, ninguém sabe mais tarde, né? Nem todo mundo su- transações especulativas no mercado financeiro com ven-
porta. Porque tem pessoas lá que no primeiro dia de serviço das futuras, os chamados derivativos. Além disso, as em-
deu dois desmaios. Quer dizer que se deu dois desmaios no presas de celulose tiveram que reduzir a produção e rever
primeiro dia pode esquecer, não adianta insistir, né?” seus projetos de expansão devido ao desaquecimento glo-
A ocorrência de mortes de trabalhadores da Plantar bal da demanda por commodities por parte dos mercados
nas plantações da Aracruz Celulose levou, em 2002, o consumidores no Norte. A Aracruz adiou a ampliação da
Ministério Público Federal do Trabalho (MPT) no Es- unidade Guaíba (posteriormente vendida) e a constru-
pírito Santo a instaurar um inquérito sob sigilo. O in- ção, em parceria com a Stora Enso, da segunda fábrica da
quérito levou a um Termo de Ajustamento de Conduta, Veracel Celulose na Bahia. Enquanto, em 2007, a Aracruz
assinado pelo MPT e pela Plantar, obrigando a empresa obteve um lucro de R$ 1 bilhão, em 2008, a mesma teve um
a seguir vários procedimentos para assegurar a saúde e prejuízo de R$ 4,2 bilhões8.
a segurança dos trabalhadores. Como se o processo de mecanização e terceirização
Um trabalhador da Plantar, que atualmente trabalha na realizado nos anos de 1990, gerando o desemprego de
empresa e aparentemente não sofre de problemas de saú- milhares de trabalhadores, não bastasse, a recente crise
de, afirma o seguinte: “Prefiro trabalhar na enxada do que financeira se constitui em mais um impacto negativo im-
bater agrotóxico”. Ele diz que o trabalho com agrotóxicos portante sobre a geração de emprego das atividades da
nas chamadas ‘grotas’ é mais perigoso. Também gostaria empresa, comprovando outra vez que os trabalhadores
de ter um outro serviço, mas ao mesmo tempo sente medo sempre foram e continuam sendo os primeiros a pagar
de perder o emprego atual, porque sabe o quão difícil é pelas crises do grande capital.
encontrar emprego. Trabalha numa turma com quarenta Os primeiros a serem demitidos foram os trabalhadores
trabalhadores, mas doze não aguentaram o serviço. Alguns terceirizados da Aracruz. Até março de 2009, na unidade
pediram demissão e outros foram demitidos pela Plantar. de Guaíba, 1,2 mil trabalhadores terceirizados perderam
Dois outros trabalhadores foram intoxicados em 2003, seu trabalho. Conforme um levantamento do Sindicato
em São Gabriel da Palha, trabalhando para uma empresa dos Trabalhadores de Indústria de Papel, Papelão e Cor-
terceirizada, a Emflora. Os dois trabalharam dez dias sem tiça, só no mês de janeiro, 600 trabalhadores foram de-
nenhuma proteção, apenas luvas – ainda assim esburaca- mitidos.9 Em março de 2009, a Aracruz também começou
das –, batendo uma mistura de três agrotóxicos num novo a demitir trabalhadores diretos no Espírito Santo e na
plantio de eucalipto da Aracruz Celulose de 78 hectares. Bahia, num total de 140 empregados.10
Cada trabalhador ganharia 280 reais para o serviço. De- Essa crise, além de revelar o caráter especulativo de
pois de alguns dias começaram a sentir dor de cabeça, empresas aparentemente produtivas como a Aracruz,
tonteiras, tremedeiras e dor de barriga. Quando denun- explicita que o discurso empresarial da geração de em-
ciaram o caso na imprensa, a empresa legalizou imediata- pregos é realmente frágil. Os trabalhadores sofrem mais
mente a situação trabalhista, assinando a carteira desses que ninguém os impactos das crises que, inevitavelmente,
trabalhadores. Eles foram levados ao médico da empresa, causam desemprego e levam ao desespero milhares de
que pediu que voltassem imediatamente ao trabalho, afir- trabalhadores e suas famílias.
mando que estavam bem e que iriam se acostumar ao tra-
balho com agrotóxicos. Na verdade, os dois estavam com II - Emprego e trabalho nas comunidades
leucopenia, o que foi constatado por exames realizados vizinhas da Aracruz
na capital do estado, Vitória.
Um ano depois do ocorrido, esses trabalhadores con- 1 - Destruição do trabalho
tinuam sentindo dores de cabeça. Um deles está proces- Na década de 1970, a expansão demográfica foi maior
sando a Emflora por danos corporais. O caso mostra, mais no município de Aracruz do que em outras regiões do
uma vez, como, na prática, a terceirização pode levar à estado, apresentando o índice de 36,3%. Muita gente foi 119
atraída pela promessa da Aracruz Celulose de gerar uma quilombolas. A maioria das famílias dessas populações,
grande quantidade de empregos. Segundo o Relatório assim como os pequenos agricultores, foram literalmente
de Impacto Ambiental (Rima) produzido em 1989 para o expulsas e acabaram perdendo seu sustento, como acon-
projeto de ampliação da Aracruz Celulose, essa expansão teceu na comunidade da Vila do Riacho, em Aracruz.
se deu porque “o processo de reflorestamento abriu pos-
sibilidade de fixação, em sua origem, de mão-de-obra na Comunidades indígenas
região, além de atrair trabalhadores de outras, à procu- Quando a Aracruz Celulose chegou no município de
ra da expressiva quantidade de empregos permanentes Aracruz, Antônio dos Santos, 65 anos, índio Tupiniquim e
proporcionados pela silvicultura”. ex-cacique da aldeia de Pau-Brasil, morava na aldeia de
O relatório, porém, não explicita o que viria a ser essa Cantagalo, uma dentre as mais de trinta aldeias indígenas
“expressiva quantidade”. Além disso, o que o Rima e ou- que foram extintas com a chegada da empresa. Na épo-
tros documentos oficiais omitem é que, na chegada da ca, sua comunidade tinha cerca de vinte famílias. Antô-
Aracruz Celulose ao norte do Espírito Santo, a empresa nio conta que todos os homens e mulheres em Cantagalo
invadiu terras de duas populações tradicionais: os po- trabalhavam, ainda que ninguém tivesse emprego formal.
vos indígenas Tupiniquim e Guarani e as comunidades As principais formas de trabalho na comunidade eram as
atividades da roça, o trabalho doméstico, os mutirões en-
tre famílias para a colheita e a construção de casas, a caça,
a pesca e a fabricação e confecção de artesanatos como
gamelas, remos e peneiras.
Motoserristas continuam
Depois da chegada da Aracruz, Antônio trabalhou du-
no Fomento Florestal
rante nove anos para a empresa plantando eucalipto, mas
saiu, segundo ele “porque eu quis”. Foi morar na aldeia de
Em todo o estado do Espírito Santo, a Aracruz
Pau Brasil e se juntou a outros índios Tupiniquim na luta
Celulose incentiva o fomento florestal, isto é, o
pela recuperação de suas terras, invadidas pela Aracruz.
plantio de eucalipto em propriedades de tercei-
Mais tarde, muitos índios foram demitidos no processo de
ros, geralmente produtores rurais. A partir de
mecanização e terceirização.
um contrato com a empresa, eles reservam uma
Diversas atividades tradicionais de trabalho foram in-
parte, ou toda sua propriedade, para o plantio do
viabilizadas com a chegada da Aracruz que destruiu, di-
eucalipto. Esse recurso permite o aumento da
reta e indiretamente, os recursos naturais que possibilita-
produção de matéria-prima sem que a empre-
vam a realização dessas atividades, como a Mata Atlântica,
sa precise adquirir mais terras. Além de livrar a
os rios e os córregos. Hoje, apenas as roças e as próprias
Aracruz de arcar com as obrigações trabalhistas,
plantações de eucalipto são as principais fornecedoras
essa “terceirização” garante a expansão da mo-
de trabalho dentro das áreas indígenas. No entanto, esses
nocultura de eucalipto em áreas que a empresa
empregos são insuficientes para a quantidade de índios.
jamais se arriscaria por causa das condições e/
Por esse motivo, o desemprego é apontado como um dos
ou declividade do solo.
principais problemas das comunidades indígenas.
Essa prática estende-se sobretudo à região
serrana capixaba, onde os agricultores plantam
Comunidades quilombolas
eucalipto em áreas de alta declividade e difícil
Antes da chegada da Aracruz Celulose em São Mateus e
acesso, nas quais é muito complicada a utiliza-
Conceição da Barra, cerca de 10.000 famílias de comuni-
ção de recursos agrícolas alternativos. O corte de
dades remanescentes de quilombos viviam nas áreas ru-
eucalipto e a árdua tarefa de retirada das ár-
rais desses municípios. Viviam de forma semelhante aos
vores são feitos por motoserristas contratados
índios Tupiniquim e Guarani. Segundo Cloves dos San-
pelos agricultores.
tos, 65 anos, morador nascido em Córrego do Santana, “o
No ano de 2003, a CPT de Minas Gerais de-
sustento era tirado da roça; farinha, banana, de tudo dava
nunciou que trabalhadores, iludidos por falsas
(...) passava fome nada, se a gente se via com fome ‘poca-
promessas, estavam sendo recrutados no estado
va’ pro mato e todo mundo tinha comida, pescava, trocava
para áreas de Fomento Florestal da Aracruz em
mercadorias”. Na época, o dinheiro era pouco, mas a troca
Marechal Floriano, município serrano do Espí-
de produtos era constante. Segundo Cloves,“Sim, trocava
rito Santo. Uma fiscalização da Delegacia Regio-
muito, um ajudava o outro a trabalhar...”
nal do Trabalho (DRT) do Espírito Santo, ainda
O produto mais tradicional e, também o principal, era a
em 2003, comprovou as condições degradantes
farinha de mandioca, utilizada para preparar o tradicional
de trabalho.
“biju”, um alimento à base de farinha e coco. Humberto,
120 outro morador antigo da região, comenta que “Tinha um
Nesta fazenda, dois trabalhadores da Emflora, empresa terceirizada da Aracruz, foram intoxicados ao trabalhar com agrotóxicos: sem proteção

comprador de farinha que chegava, jogava farinha assim a de saúde, vistas, colunas, mutilações”.
granel. Quando chegava o caminhão era 1.000, 3.000 sacos Distribuídas em 35 comunidades, há 1.500 famílias re-
de farinha. Agora vem tudo empacotado. Antigamente, saía manescentes de quilombolas que sobrevivem hoje em
daqui para Vitória, agora está vindo de lá para cá”. meio aos eucaliptais. Para centenas dessas famílias, cuja
Ainda segundo Cloves, a Aracruz dava muito empre- pequena porção de terra que têm já não produz como an-
go quando chegou, “mas depois que o eucalipto se fez, ela tes, a única forma de trabalho possível é a fabricação e a
mandou o pessoal todo embora. Eu trabalhei 15 anos na venda de madeira e carvão dos restos dos eucaliptos cole-
Aracruz Florestal.”. Enquanto trabalhou na Aracruz, de tados nas extensas áreas de plantio da Aracruz.
1979 a 1994, Cloves aplicava veneno nas plantações, o que Essas famílias sofrem ainda com a perseguição da em-
lhe causou os problemas de saúde que enfrenta até hoje. presa Visel, que, com sua milícia armada, cuida da segu-
Por causa do veneno que respingou em seu olho, ele so- rança das plantações da Aracruz. Tal perseguição é pra-
fre com problemas de vista e, além disso, tem problemas ticada também pela Polícia Militar que, em vez de estar
na coluna cervical, em função de ter carregado nas costas, a serviço da população, defende, na verdade, os interes-
durante os 15 anos, a bomba cheia de agrotóxico, que che- ses da empresa. Em 2003, seis quilombolas foram presos
gava a pesar mais de vinte quilos. quando catavam resíduos de uma plantação da Aracruz,
Hoje em dia, Cloves vive da sua terra, plantando feijão, numa ação conjunta da Polícia Militar com a Visel. Pos-
milho e mandioca para fazer farinha, apesar dos proble- teriormente, foi fundada uma associação de quilombolas
mas nos olhos e na coluna cervical. Ele avalia a chegada catadores de resíduos que conseguiu firmar um acordo
da Aracruz na região:“Melhorou por um lado, tinha em- com a Aracruz no sentido de garantir a coleta. Mesmo
prego perto, muita gente trabalhou. Mas piorou para outro, contra a vontade da empresa, os quilombolas continuam
acabou com a terra, expulsou as famílias para as cidades, catando os resíduos e enfrentando incidentes, que ainda
que hoje vivem em favelas (...) Eles prometiam empregos acontecem de tempos em tempos, entre a população local,
para todos e seus descendentes. Eles trabalharam, perde- a Visel e a Polícia Militar. Organizados, eles estão dispos-
ram sua saúde e foram para rua, com diversos problemas tos a continuar enfrentando a empresa para garantir essa 121
fonte de sobrevivência que, para muitos, foi a única que de artesanato, como peneiras, por exemplo, enquanto os
restou, enquanto continuam lutando, sobretudo, pela re- homens faziam gamelas e remos. Junto com os homens,
cuperação das suas terras. elas trabalhavam na roça, plantando e capinando, e tam-
bém pescavam. As mulheres quilombolas, por exemplo,
A comunidade de Vila do Riacho produziam o bijú para alimentar suas famílias e também
Vila do Riacho é uma comunidade centenária do muni- para ser comercializado e gerar renda.
cípio de Aracruz e tem cerca de 5.000 habitantes. Segundo Com a chegada das plantações de eucalipto, as mulhe-
o depoimento de um de seus mais antigos moradores, Luís res, como os demais moradores da região, vivenciaram as
Lopes Vieira, de 71 anos, antes da chegada da Aracruz Ce- mudanças na organização de seu território e de seu lugar
lulose, a região era bem habitada onde “todo mundo tinha na comunidade, no que se produzia e como se produzia.
trabalho, plantava mandioca, feijão, café, cana-de-açúcar, O seu papel socioeconômico dentro da família e da comu-
muitas frutas: banana prata, banana da terra, (...) muitos nidade sofreu alterações e várias dessas mulheres, depois
criavam gado e pescavam (...) ainda que “dinheiro a gente de perderem suas terras, se viram obrigadas a buscar um
não tinha, mas comida e trabalho não faltavam (...) a gente outro espaço para morar e trabalhar. Migraram com seus
comia capivara, paca e peixe - nem se fala”. Também fa- filhos e parentes para regiões urbanas, próximas ao local
ziam artesanato, como cestas, balaios e esteiras. onde viviam, como é o caso de muitas famílias que se des-
Quando a Aracruz Celulose chegou, muita gente vendeu locaram para as cidades de São Mateus e Aracruz. Outras
suas terras, como foi o caso do pai de Nilton Amâncio Al- buscaram a região metropolitana do estado, engrossando
meida, 59 anos. Ele costumava caçar e pescar na região, as favelas e, para continuar trazendo renda para as suas
mas depois que vendeu suas terras foi para a cidade de casas e suas famílias, trocaram as atividades rurais pelas
Aracruz. “Lá, ele ficou todo ‘jururu’, nunca mais voltou a ser de empregadas domésticas, faxineiras ou lavadeiras de
o mesmo; ele morreu aos 62 anos”. famílias de classe média urbanas.
Luís, por outro lado, com a chegada da Aracruz, conse- As mulheres que até hoje resistem no meio das plantações
guiu emprego. Inicialmente como tratorista na constru- de eucalipto também continuam cuidando das suas casas,
ção da primeira fábrica de celulose e depois no campo, da sua família, mas, ao mesmo tempo, enfrentam mais difi-
trabalhando na derrubada da floresta nativa: “era um tra- culdades do que antes. Os rios e córregos que eram utiliza-
balho muito sofrido, não tinha sol ou chuva”. Assim como dos para lavar a roupa, de onde se tirava a água para beber
ele, muitos moradores de Vila do Riacho trabalharam na e no qual se pescava estão, em sua maioria, contaminados.
Aracruz. Segundo “Dona” Glória, de 52 anos, “a Aracruz Doralim Serafim dos Santos, quilombola, conta que “aqui
Florestal tirava quatro caminhões de peões daqui”. ninguém lava roupa neste córrego, pois a roupa fica amarela
Hoje, a Vila do Riacho é uma comunidade cercada pelo e encardida. No tempo que me criei, a gente ia ‘fachiar’ peixe
eucalipto, onde, segundo Luís, “não se pode pegar um fechi- no córrego e a água estava limpinha”.
nho de lenha, porque a gente é chamada de ladrão”. Ele se Outro problema é a falta da mata nativa, fonte da ma-
refere à decisão da Aracruz Celulose de proibir a popula- téria-prima necessária para a fabricação do artesanato.
ção de recolher resíduos das plantações, da mesma forma Além disso, a contaminação do solo e da água pelo uso
que fez com as comunidades indígenas e quilombolas. Em de agrotóxicos nas plantações compromete o plantio de
meados de 2004, moradores tiveram seus fornos para fa- ervas medicinais, tradicionalmente realizado pelas mu-
zer o carvão destruídos, numa ação conjunta entre Visel, lheres. As ervas medicinais são muito utilizadas pelas po-
Polícia Militar e Polícia Ambiental. Outros foram presos ou pulações locais para prevenir e combater doenças. A falta
tiveram seus instrumentos de trabalho apreendidos. de terra boa e suficiente complica também a articulação
Tudo isso significa que muitas famílias em Vila do Ria- entre as tarefas domésticas e a produção agrícola. Hoje,
cho perderam sua principal fonte de sobrevivência. Se- as mulheres têm que percorrer longos caminhos para tra-
gundo Luís, “quase ninguém trabalha mais na empresa”. balhar em plantações de terceiros, na lavoura de café e
Além disso, ele afirma que “a empresa boicota os mora- cana-de-açúcar, por exemplo, ficando mais sujeitas a aci-
dores de Vila do Riacho, não deixa trabalhar lá e persegue dentes de trabalho.
quem quer trabalhar”. Vale acrescentar ainda que 26% das famílias no Espíri-
to Santo, ou seja 800.000 domicílios, têm mulheres como
2 - As mulheres e o eucalipto chefe de família. Isso significa que o Espírito Santo é um
As mulheres indígenas, quilombolas e camponesas, dos estados brasileiros que conta, proporcionalmente,
que viviam junto a suas famílias e comunidades nos lu- com o maior número de domicílios chefiados por mulhe-
gares tomados pela eucaliptocultura, tinham seu papel res. Esse dado indica que o trabalho remunerado para as
socioeconômico bem definido. Conforme relata Antônio mulheres deixou de ser apenas uma forma de aumento
dos Santos, da aldeia Pau Brasil, as mulheres indígenas da renda familiar e passou a ser fundamental para a sub-
122 tinham tarefas específicas. Elas produziam certos tipos sistência da própria família.
As condições de trabalho nas carvoarias são extremamente precárias, quase desumanas

Tamra Gilbertson
A exploração pelo carvão

A fabricação do carvão no Espírito Santo destina-se, com empresas de eucalipto, dentre elas a Aracruz, para
sobretudo, a abastecer as siderúrgicas que existem no terceirizar a limpeza das plantações após o corte. As con-
estado. Antes mesmo da chegada do eucalipto essa já dições de trabalho dos carvoeiros são precárias e a explo-
era uma prática corrente, quando se usava a mata nativa ração do trabalho infantil é bastante comum. Tudo isso
como matéria-prima. Com a implantação em larga escala resulta na crescente degradação das relações e condições
da monocultura do eucalipto no Espírito Santo surge uma de trabalho.
nova e abundante fonte de matéria-prima, já que a mata Muitas vezes, a única alternativa de sobrevivência para
nativa estava ficando cada vez mais escassa. as famílias vizinhas das plantações de eucalipto é a cole-
As famílias que trabalham na fabricação de carvão de ta dos resíduos e a fabricação de carvão. Essas famílias
eucalipto sempre foram exploradas pelos chamados “ga- têm buscado se organizar, de modo que não dependam
tos”, que vêm a ser pequenas empresas que fazem acordo mais dos “gatos”. 123
Há também a experiência das mulheres indígenas que setor familiar. O mesmo pesquisador sustenta que o setor
buscaram formas alternativas de contribuir financeira- de assentamentos rurais, onde se pratica geralmente a pe-
mente com a família. Algumas se tornaram empregadas quena agricultura, constitui hoje um campo especial para
domésticas dos chefes da empresa Aracruz. Entretanto, em uma política consistente de manutenção e geração de no-
1998, após o processo de auto-demarcação das terras indí- vos empregos. Mas é exatamente este setor que encontra
genas, foram demitidas em represália. Tiveram que buscar dificuldades para se reproduzir e garantir sua permanên-
outros tipos de trabalho fora das aldeias. Contudo, algumas cia, além de estar ameaçado pela expansão de pastagens,
deram mais sorte e conseguiram trabalho como educado- pela grilagem de terras e pelo plantio de eucalipto e pinus,
ras e agentes de saúde nas próprias aldeias. Todo esse es- assim como pelo incremento de outras monoculturas em
forço das mulheres para contribuir com a renda familiar larga escala, como a cana-de-açúcar e a soja.
gerou mudanças no seu papel tradicional o que, de alguma No Espírito Santo, a partir da construção da fábrica C
forma, vem afetando toda a comunidade. Por outro lado, da Aracruz Celulose no período entre 2000 e 2002, ini-
a empresa busca estar sempre próxima dessa população, ciou-se um novo ciclo de expansão de eucalipto no nor-
promovendo ações de caráter assistencial. Um exemplo é te do estado. Em artigo, no jornal A Tribuna, em 2001, o
a promoção de cursos profissionalizantes para as mulhe- vice-prefeito de Sooretama, Clarindo Manthaya, afirmou
res, buscando torná-las manicures, pedicures e garçonetes, que “cerca de 400 pessoas já perderam o emprego” em
profissões estranhas a essa população e sua cultura. Sooretama devido à compra de terras pela Aracruz. Por
Outra situação que merece destaque é a de um núme- esse motivo, a prefeitura começou a elaborar um projeto
ro reduzido de mulheres de comunidades vizinhas que de lei para impedir a venda de terras para a empresa. No
trabalham dentro da empresa Aracruz. Não surpreende mesmo artigo, Jaceir Alves Fernandes, da Federação de
que nos anos de 1998, apenas 6,8% dos empregados da Trabalhadores na Agricultura do Espírito Santo (Fetaes),
empresa fossem do sexo feminino, de acordo com dados declara que 15 hectares de eucalipto geram apenas um
da época. Ainda assim, a maior parte das mulheres que emprego, enquanto cada hectare de lavoura de café pode
trabalhava na Aracruz fazia serviços de limpeza, traba- dar emprego para até dois trabalhadores.
lhava no setor administrativo da fábrica, ou no viveiro e A Veracel Celulose fez um estudo por conta própria so-
na atividade do plantio de mudas, talvez por se acreditar bre a geração de emprego nas suas áreas, na Bahia, que
que as mulheres são mais aptas para esse tipo de ativida- totalizam 146.927 hectares (73 mil hectares de monocul-
de que requer um trabalho manual cuidadoso. No entan- tura de eucalipto), comparando o número de moradores,
to, essa atividade já está quase totalmente mecanizada e a trabalhadores e empregados nas propriedades compra-
maioria desses serviços foi terceirizada. das, antes e depois da sua chegada. (tabela 12.1).
No trabalho de campo, as mulheres também sofreram aci- Baseada na tabela 4, a Veracel conclui, de forma positiva,
dentes de trabalho. Em 1986, por exemplo, uma ex-trabalha- que o número de trabalhadores (442) e empregados (297)
dora da Aracruz Celulose desceu uma ‘grota’ com uma caixa na área aumentou de 739, antes da sua chegada, para 944,
de 30 mudas de eucalipto, pesando 45 quilos. Ela caiu, fra- depois que ela chegou. A empresa pretende assim demons-
turando a coluna. Depois de ser transferida para um serviço trar que está gerando mais empregos do que eram criados
de limpeza de escritório, foi demitida porque não conseguia antes, quando havia principalmente fazendas de gado.
mais ficar de pé. Hoje, com 53 anos de idade, ela não aguen- Na verdade, o que se pode concluir a partir desses
ta carregar uma cadeira e precisa controlar a dor na coluna dados é que a Veracel, ao substituir 73.000 hectares de
com remédios. Nunca mais conseguiu outro emprego. pastagens para a criação de gado, por 73.000 hectares
Muitas vezes, porém, as mulheres, invisíveis, tiveram de monocultura de eucalipto, está substituindo uma
que cuidar dos seus maridos, doentes e acidentados pelo atividade que gerava um emprego em cada 99 hectares
trabalho realizado nas plantações. Doralina conta que “ti- (criação de gado), por outra atividade que gera apenas
nha dias que ele chegava aqui com as vistas doendo e quase um emprego por cada 78 hectares (plantio de euca-
não podia dormir de noite. Depois ele ficou com as vistas lipto). E se considerarmos a área total da Veracel de
ruins mesmo, não estava enxergando direito. Aí, ele fez uns 146.927 hectares (Veracel Celulose, 2003), o plantio de
exames”. Há inclusive mulheres viúvas de ex-trabalhado- eucalipto gera apenas um emprego em cada 156 hec-
res da empresa Aracruz e de empresas terceirizadas que tares. Isso significa que mesmo se aceitarmos os dados
precisam sustentar a casa sozinha, sem qualquer apoio. da própria empresa, que obviamente geram algumas
dúvidas e interrogações, o certo é que, em termos de
3 - Alternativas de geração de trabalho no campo geração de empregos, a Veracel mostra que seu projeto
De acordo com Sérgio Leite (Ibase, 2004), em 1995 e é um desastre total: um emprego em cada 156 hectares
1996, cerca de 18 milhões de pessoas trabalhavam no cam- das terras que possui.
po no Brasil, em atividades relacionadas à agricultura. No Ao mesmo tempo, a pesquisa mostra um dado preocu-
124 entanto, mais de 75% desses postos concentravam-se no pante que é a quase ausência de moradores no meio das
plantações de eucalipto: 71 moradores em 146.927 hecta- rural do que a criação de gado extensiva - referência
res. Segundo os dados apresentados na tabela 4, mais de para o estudo realizado pela Veracel. Busca-se mostrar
800 moradores tiveram que sair de suas casas quando a também qual é a capacidade de geração de trabalho e
Veracel chegou. Isso significa que as pessoas que moram renda da pequena propriedade dentro da lógica da agri-
nas propriedades do entorno ficaram ainda mais isola- cultura campesina, defendida pelo Movimento dos Pe-
das, sem vizinhos. Esse isolamento, conforme depoimen- quenos Agricultores (MPA).
tos coletados, torna-se uma nova causa do êxodo rural.
A ausência de moradores acaba aumentando também a Informações gerais
insegurança nessas regiões de eucalipto. O município de Vila Valério fica na região norte do Es-
É importante observar também que os números da Ta- pírito Santo, abrangendo 42.270 hectares. Conta com uma
bela 4 deixam algumas interrogações. Na Tabela 5, sim- população estimada em 13.899 habitantes, sendo 4.099
plificamos os dados da Tabela 4 para mostrar isso mais habitantes da área urbana (29%), e 9.800 habitantes da
claramente. Em primeiro lugar, chama a atenção o au- área rural (71%).
mento do número de trabalhadores e empregados no mu- O município vive basicamente da produção agrícola,
nicípio de Eunápolis, o que permitiria à Veracel afirmar principalmente das lavouras de café conillon, que ocu-
que realmente está gerando muito mais empregos do que pam 22.800 hectares (IBGE, 2002), ou seja, 54% do mu-
existiam antes. Vale ressaltar, entretanto, que o aumento nicípio. A segunda maior lavoura é o plantio de coco que
no número de empregos pode ser facilmente explicado ocupa 986 hectares. Em terceiro lugar está o plantio de
pela presença, nesse município, do viveiro da empresa, eucalipto, que ocupa cerca de 700 hectares. Outros plan-
no qual são produzidas as mudas para todas as áreas de tios, em menor escala, são o milho, o feijão, a banana, a
plantio. Além disso, Eunápolis abriga ainda a sede admi- pimenta do reino, frutas e seringueira. Além das planta-
nistrativa da empresa. Dessa forma o aumento do núme- ções, cerca de 10.850 hectares do município são ocupa-
ro de empregos em Eunápolis contrasta claramente com dos por pastagens.
a diminuição do número de empregos na maioria dos ou- Outro dado relevante é o grande número de proprie-
tros municípios, nos quais só existem as plantações. Isso dades, 1.590. Dessas, 29% são propriedades de 0 a 10
coincide com a enorme diminuição de “moradores” nes- hectares e 58,2% de 10 a 50 hectares. O que significa que
sas áreas. a grande maioria das propriedades é de pequeno por-
Além disso, os dados gerais apresentados não dizem te. Apenas 4,5% das propriedades são grandes, acima de
nada sobre as situações concretas. Os números da própria 100 hectares.
empresa mostram que para os moradores do município Na área urbana, vive-se basicamente da produção de
de Santa Cruz de Cabrália, a chegada da Veracel foi uma café. Segundo o vereador Moacir Olidonio, existem sete
tragédia de enormes proporções, dado que dos 193 tra- armazéns de café na sede do município e cada um tem em
balhadores e empregados que existiam, restaram apenas torno de vinte a trinta empregados. Há armazéns também
56, e dos 240 moradores sobraram apenas quatorze. Pior em alguns vilarejos na área rural do município.
ainda é a situação em Porto Seguro, onde o número de Em 1993, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana de
trabalhadores passou de 88 para dois e o de moradores Vila Valério e Vila Pavão criou o projeto “Denes”, com a
passou de 138 para nove. Em Itagimirim, dos 26 trabalha- proposta de investir na agricultura familiar. O projeto tem
dores sobrou apenas um. Apenas Itapebí, por algum mo- apostado na fruticultura, uma atividade capaz de produ-
tivo não conhecido, parece ter se beneficiado com um real zir até dez empregos diretos por hectare, conforme afirma
aumento (48) dos postos de trabalho, enquanto nos outros Decimar Schultz, assessor-técnico da Fundação Luterana
municípios esse número ficou mais ou menos estável, ou Sementes. Segundo o pastor luterano Christian: “Nos-
teve alguma perda. sa intenção maior é diversificar o plantio de culturas na
região, dentro de um conceito ecológico consistente e com
Estudo de caso: Vila Valério uma preocupação de ampliar o mercado para a venda da
No âmbito do presente estudo, buscou-se fazer um produção”. Além de questionar o impacto ambiental da
levantamento no município de Vila Valério, Espírito monocultura de eucalipto, o pastor Christian diz que ela
Santo, onde recentemente foi plantado eucalipto, pela provoca o êxodo rural, porque tanto o plantio quanto a
Aracruz Celulose, em função do novo ciclo de expansão colheita da lavoura são mecanizados, deixando os produ-
da empresa. As áreas ocupadas eram anteriormente uti- tores rurais desempregados.
lizadas, sobretudo, para o plantio de café. A partir des- O plantio comercial de eucalipto e a compra de terras
ses dados, busca-se comparar a geração de emprego em pela Aracruz Celulose em Vila Valério começaram em
áreas de eucalipto com áreas de produção de café, sen- 2001. Três anos depois, fez-se uma avaliação do plantio
do essa última muito mais significativa em termos de de eucalipto em um município que vive basicamente da
geração de emprego, trabalho e renda para a população agricultura do café. 125
Tabela 4: Ocupação de terra, antes e depois da compra de terras pela Veracel

Antes da chegada da Veracel1 Depois da chegada da Veracel2


Tamanho médio
Município Propriedade (ha) Moradores Trabalhadores Empregados Moradores 3
Trabalhadores Empregados

Belmonte 101 249 213 130 89 2 206


Canavieiras 5 447 7 3 3 0 1
Encruzilhada 1 98 0 0 0 0 1
Eunápolis 78 511 167 72 57 17 553
Guaratinga 5 400 8 4 2 4 Todos 1
incluídos
Itabela 17 487 60 24 20 15 43
na coluna à
Itagimirim 14 235 32 17 9 4 direita 1
Itapebi 20 186 31 15 13 6 76
Porto Seguro 46 478 136 50 38 9 2
S.C.Cabrália 120 336 240 127 66 14 56
Soma 407 3427 894 442 297 71 944
(fonte: Veracel Celulose, 2003)

1- Todos os trabalhadores estavam morando nas propriedades. Apenas uma parte deles estava formalmente empregada.
2- A partir de julho de 2003
3- 17 empregados e 54 dependentes. Empregados são incluídos na coluna “empregados”

Situação de emprego nas áreas da Aracruz, antes Tabela 5: Ocupação de terra, antes e depois da compra de terras
do plantio de eucalipto pela Veracel (simplificada)
Foram feitas algumas visitas e entrevistas com pessoas
que trabalhavam nas maiores áreas compradas pela Ara- Antes da Depois da Depois da
cruz Celulose: a Fazenda Breda com 473,44 hectares e a chegada da chegada da chegada da
Fazenda de Luiz Meniguelli com 68,60 hectares.
Veracel1 Veracel2 Veracel
Na Fazenda Breda, cerca de quarenta pessoas estavam Município
vivendo e trabalhando permanentemente como empre-
gados do fazendeiro, conforme depoimento de uma ex- Trabalhadores Trabalhadores Aumento ou
empregada, dona Teresa. Na época da safra do café, o e Empregados e Empregados diminuição
número de trabalhadores aumentava para 1.300 pessoas
que vinham de outros municípios, inclusive de outros es- Belmonte 219 206 -13
tados, como a Bahia. Quando a fazenda foi comprada pela Canavieiras 6 1 -5
Aracruz, o dono sentou com as famílias e falou que todo
Encruzilhada 0 1 +1
mundo teria que ir embora. Desde então, a vila de Ara-
ribóia, que vivia basicamente do movimento de pessoas Eunápolis 129 553 +424
e mercadorias em torno da Fazenda Breda, entrou em Guaratinga 6 1 -5
decadência. Hoje, isso pode ser constatado por qualquer
um que visita a Vila, onde algumas famílias que perma- Itabela 44 43 -1
neceram sofrem com a falta de emprego e de perspecti- Itagimirim 26 1 -25
va. “Seu” Martim, morador antigo do local afirma que é
Itapebi 28 76 +48
“... contra invasão de terras, mas esta fazenda deveria ter
sido invadida para evitar este plantio de eucalipto”. Outro Porto Seguro 88 2 -86
morador local afirma que o “...problema é que uma vez S. C. Cabrália 193 56 -137
ocupada pelo eucalipto, nunca mais volta para agricultura”.
Foi entrevistada também uma família de ex-moradores Soma 739 940 201
126
da Fazenda dos Meringueli. Essa família mudou-se recen- do homem no campo, lutando pela garantia da seguran-
temente para a sede do município, depois de ter trabalha- ça alimentar dos agricultores e, ao mesmo tempo, con-
do numa outra fazenda, após ser expulsa pela Aracruz da tra o fortalecimento do modelo agroindustrial do Brasil,
Fazenda dos Meringueli. Disseram que moravam naquela que expulsa famílias inteiras do campo, defende a mo-
fazenda com cinco outras famílias, antes da chegada da nocultura, a introdução de transgênicos e a aplicação
Aracruz. Sua família era composta de quatro membros de adubos químicos e agrotóxicos. No Espírito Santo,
que trabalhavam diretamente com uma área de cerca de cerca de 10.000 famílias de pequenos agricultores de
12 hectares com 25.000 pés de café, como meeiros, o que um total de 55.000 já participam do MPA, de alguma
significa que a metade da safra era para o patrão. Ganha- maneira. Em Vila Valério, existe um núcleo municipal
vam cerca de 10.000 a 12.000 reais ao ano com o café, e deste movimento.
ainda tinham pequenos animais, uma horta, lenha e água Houve visitas, com membros do MPA, a vários agri-
à vontade e haviam iniciado um plantio de pimenta-do- cultores que trabalham concretamente na implementa-
reino. Na época da colheita, cerca de trinta a quarenta ção da proposta do MPA, a agricultura camponesa. O que
pessoas trabalhavam na fazenda. Quando a Aracruz a chama a atenção é que em poucos hectares (a maioria
comprou, a família da “dona” Teresa conseguiu negociar dos pequenos agricultores tem até 20 hectares de ter-
a colheita do café ainda por duas vezes. Eles reclamam ras), os agricultores são capazes de plantar uma grande
da dor de ter deixado aquela propriedade e admitem que diversidade de culturas que praticamente garante a sua
prevêem muitas dificuldades na nova etapa da sua vida segurança alimentar. Nas propriedades há, em média,
na cidade, já que não têm costume de viver na cidade e quatro pessoas trabalhando, considerando ainda que
não têm nenhuma perspectiva de emprego. Com a com- nas épocas de safra, principalmente do café, esse nú-
pra da propriedade pela Aracruz, a casa de “dona” Teresa mero pode dobrar ou até triplicar. Não são usados agro-
e as casas dos outros meeiros, com os quais sempre se tóxicos, o que diminui o custo de produção e garante a
relacionavam e trabalhavam, foram destruídas. saúde do trabalhador e dos alimentos que ele e sua fa-
De acordo com os depoimentos, conclui-se que havia mília consomem.
entre sessenta a 100 pessoas trabalhando permanente- O MPA ainda defende o plantio de café, mesmo sen-
mente nas áreas compradas pela Aracruz em Vila Valério, do uma monocultura, como base de sustentação dos
áreas que juntas abrangem em torno de 1.000 hectares agricultores, nunca como única cultura. Cerca de 3.000
(cerca de 700 hectares de terra agricultável e hoje ocu- pés de café (cerca de 1,5 hectare) bem cuidados podem
pada por eucalipto). Essas áreas, conforme diversos de- garantir anualmente cerca de 150 sacos de café pilado.
poimentos, são quase todas planas e consideradas as me- Com o preço atual, esta quantidade de café pode ren-
lhores do município para fins de agricultura. A principal der para o agricultor cerca de R$ 18.000 ao ano, ou seja,
cultura nessas áreas era o café. R$ 1.500 ao mês. Há alguns anos que em Vila Valério foi
registrada a maior produtividade de café do Brasil na
Situação de emprego nas áreas da Aracruz, propriedade de Ozílio Paterlli: mais de 208 sacas de 60
depois do plantio de eucalipto quilos por hectare.
Com a entrada da empresa Aracruz em Vila Valério, a O MPA defende uma reforma agrária que garanta que
empreiteira Plantar conseguiu firmar contrato com a em- mais pessoas possam viver da pequena agricultura. Con-
presa para fazer o plantio de eucalipto e a aplicação de sidera o latifúndio um dos maiores atrasos no campo,
agrotóxicos nas áreas adquiridas. Inicialmente, a Plan- a exemplo das grandes fazendas com pastagens e mo-
tar contratou quarenta pessoas. Hoje apenas 28 pessoas nocultura de eucalipto. De acordo com o MPA, a mono-
trabalham diariamente. Ainda assim, conforme um deles, cultura mecanizada em larga escala, gera pouquíssimos
esse grupo trabalha parcialmente no município de Vila empregos e causa impactos ambientais negativos, além
Valério, e também em municípios próximos como Soore- de concentrar renda nas mãos de poucos.
tama, Jaguaré e São Mateus. O motivo é que já não há ser-
viço suficiente para os 28 trabalhadores nos 700 hectares Conclusão
de eucalipto já plantados em Vila Valério. O trabalhador É possível comparar, com base apenas em dados quan-
da Plantar afirma ainda que o trabalho é árduo e o salário titativos, a geração de emprego no plantio de eucalipto e
bastante baixo. Ele gostaria de ter um outro emprego, de outras atividades no campo, como a Veracel Celulose fez
melhor qualidade, e um salário maior. na Tabela 4. No entanto, verificou-se que a conclusão da
Veracel, aparentemente positiva – aumento do emprego
A proposta do Movimento com o plantio de eucalipto –, é uma conclusão precipitada
dos Pequenos Agricultores porque o tema “trabalho e emprego” nas áreas rurais é
O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) sur- algo muito mais complexo.
giu no Espírito Santo em 1998 e defende a permanência Neste estudo de caso, baseado nos dados coletados em 127
na Aracruz Celulose, nos últimos 20 anos, demitiram mi-
lhares de trabalhadores, além de terem estimulado a pre-
carização das condições de trabalho e a fragilização dos
sindicatos, que deveriam ser um ponto de apoio para o
trabalhador, e não para a empresa. Nesse sentido, o drama
dos ex-trabalhadores do setor, além da situação daqueles
que continuam, por exemplo, aplicando os agrotóxicos ou
operando as máquinas no campo, é muito preocupante.
Os direitos violados dos ex-trabalhadores ainda esperam
por reparações dignas por parte da Aracruz Celulose.
Talvez um dos aspectos mais importantes que este estu-
do mostre é que o projeto de expansão das plantações de
A Aracruz Celulose nunca respeitou os povos tradicionais da região
monoculturas de árvores e produção de celulose, ao gerar
um certo número de empregos, destrói outras oportuni-
Vila Valério, considera-se que é mais correto comparar, dades de trabalho, mais difíceis de serem quantificadas.
não um só, mas diversos aspectos quantitativos e quali- Exemplos disso são as diversas atividades tradicionais
tativos relacionados ao tema ‘emprego e trabalho’ para das comunidades indígenas e quilombolas, além da pro-
que se possa avaliar as vantagens e desvantagens de cada dução de café por produtores rurais em Vila Valério. Ficou
alternativa, comparando as monoculturas do eucalipto e claro, também, que as mulheres são as principais vítimas
do café com a proposta de agricultura camponesa do MPA do projeto dominador da Aracruz. Não há lugar para elas
(Tabela 6). nos planos dos gerentes e estrategistas da empresa.
A perda de “trabalho” não parece ter relevância no
III - CONSIDERAÇÕES FINAIS mundo moderno de hoje que apenas fala em “emprego”.
Uma afirmação da Aracruz mostra como ela mesma é de-
Mais do que apresentar dados específicos sobre a gera- fensora dessa visão, para a empresa: “Atividades flores-
ção de emprego, o estudo pretende oferecer alguns ele- tais oferecem oportunidades de emprego, mesmo nas áre-
mentos para reflexão sobre um tema complexo. Esta re- as mais remotas do País”. O que significa que para ela, a
flexão é fundamental para que as pessoas, comunidades diversidade de atividades tradicionais de trabalho, uma
e movimentos, que enfrentam nas suas regiões projetos característica das comunidades indígenas, quilombolas e
de plantio de eucalipto em larga escala para produção campesinas, simplesmente não existe.
de celulose - símbolos de “modernização” e “progresso” É preciso revalorizar o trabalho humano que muitas
-, possam elaborar uma visão mais abrangente e crítica vezes não se traduz num emprego formal, com salário e
da realidade de emprego e trabalho em torno desse tipo carteira assinada, como, por exemplo, a situação dos que
de projeto. hoje trabalham na plantação de eucalipto, totalmente de-
Constata-se que há uma enorme distância entre a “pro- pendentes de uma empresa, com salários baixos e altos
messa” de uma empresa como a Aracruz Celulose e a re- riscos para sua saúde. Ao se pensar na importância do
alidade. A empresa está preocupada em apresentar sem- trabalho para as pessoas, é preciso reafirmar a importân-
pre números que soam favoráveis aos ouvidos do público cia da autonomia das comunidades tradicionais e cam-
em geral. No entanto, um olhar mais cuidadoso coloca pesinas, que tendem a perder seus recursos e atividades
em cheque boa parte desses números, sobretudo quando tradicionais por causa da “fome” de empresas que con-
se avalia o volume de investimentos e a extensão terri- tinuam se apropriando de suas terras, prometendo, em
torial da empresa. A “promessa” se repete para todo um troca, alguns empregos.
setor, erroneamente chamado de setor “florestal”. Este se-
tor procura expandir as plantações no Brasil para onde
puder, em busca de mais lucros para os acionistas das
empresas envolvidas. Nessa empreitada, conta com uma
série de parceiros, sobretudo o Estado, que infelizmente
parece ainda mais otimista do que as próprias empresas
em relação às “promessas” de emprego.
O estudo demonstra também a contradição que é se
investir tanto no plantio de eucalipto e na produção de
celulose, que tendem a necessitar cada vez menos de tra-
balhadores, numa sociedade que necessita tanto de mais
128 empregos. A mecanização e a terceirização promovidas
Tabela 6: Aspectos relacionados a trabalho e emprego nas monoculturas do eucalipto e do café e na agricultura campesina

Monocultura do Monocultura
Agricultura campesina
eucalipto do café

Baixa Alta
Capacidade de (1 emprego direto (até 1 emprego/ha; Alta
geração de emprego e indireto/28-37 na safra, até 2 a 3 (até 1 emprego/1-2 ha; na safra, até 4 a 5 empregos/ha)
hectares) empregos/ha)

Baixa
Capacidade de Média-alta Média-alta
(1a 1,5 salário
(até 1.000 reais por (até 1.000 reais, ou mais, por ha; café com outras
geração de renda mínimo para o
hectare) culturas)
trabalhador)

Alta Médio-Alta
Baixo
(cultura com (cultura com,
Riscos à saúde (não usa agrotóxicos; os próprios alimentos, são
aplicação de geralmente, aplicação
saudáveis)
agrotóxicos) de agrotóxicos)

Baixa Baixa
Alta
(precisam comprar (precisam comprar
Segurança alimentar (produzem seus alimentos básicos: feijão, arroz, milho,
alimentos para a alimentos para a
hortaliças, etc.)
família) família)

Risco de perder Médio-baixo


Médio-Alto (risco médio no caso Baixo
emprego
de diaristas)

Alta
Conta de água, gás, Média
(trabalhador precisa Média
(sempre tem acesso à
energia pagar água, gás e (sempre tem acesso à água e lenha na roça)
água e lenha na roça)
energia)

Circulação da Geralmente baixa. Sai Alta.


do município para Circula no município, Alta.
produção no
fábricas de celulose gerando impostos e Circula no município, gerando impostos e trabalho
município da Aracruz trabalho

Transporte para o Rápido


Demorado. Rápido
(geralmente, a roça é
trabalho Com ônibus (geralmente, a roça é próxima da casa)
próxima da casa)

129
Referências Referências Bibliográficas
1- Este texto é uma adaptação, redigida por Winnie Overbeek, do texto original Aracruz Celulose S.A. Home page: http://www.aracruz.com.br
Plantações de eucalipto e produção de celulose: promessas de emprego e destruição de
trabalho: o caso Aracruz Celulose no Brasil, escrito por Alacir De´Nadai, Luiz Alberto Aracruz Celulose S.A. Relatório Social e Ambiental. 2003. www.aracruz.com.br
Soares e Winnie Overbeek, publicado pelo Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais
(WRM, sigla em inglês), Coleção Plantações, nº 2, Uruguai, 2005. Aracruz News, no 4 – year 2, 1996.

2- O jornal A Gazeta faz parte da principal rede de comunicação do Brasil, a Rede BVQI, Comunicado sobre a certificação Cerflor da Aracruz Celulose no Espírito Santo. São
Globo, em mãos da família Marinho, que possui jornais e emissoras de rádio e televisão Paulo, novembro de 2004.
em todos os estados.
Calazans, Marcelo e Overbeek, Winnie. O caso Aracruz Celulose no Brasil: ECAs exportando
3- Itapuã é uma rede nacional de lojas de roupas, calçados e outros produtos. A Viação insustentabilidade. Espírito Santo, Brasil: 2003.
Itapemirim é uma das maiores empresas de transportes do Brasil.
Cepemar. Relatório de Impacto Ambiental – Rima. Fiberline C. Relatório Técnico COM RT
4- Das árvores aos lares: a geração de renda, emprego, divisas e impostos da cadeia 079/99. Dezembro 1999.
produtiva da Aracruz Celulose. Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, dezembro 2006.
Cepedes. Eucalipto: uma contradição. Impactos ambientais, sociais e econômicos do
5- A então diretoria que deixou o Sindicato em 2003, conseguiu ganhar novamente a eucalipto e da celulose no Extremo Sul da Bahia. Cepedes/CDDH. Eunápolis, 1992.
diretoria do sindicato nas eleições de março de 2009.
Fase-ES. Relatório I da Violação dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e
6- Este Movimento surgiu em 2004 quando dezenas de ex-trabalhadores da Aracruz Ambientas (Dhesca I) pelo Estado do Espírito Santo e Aracruz Celulose. Vitória, agosto de 2002.
Celulose em São Mateus, com graves problemas de saúde, se mobilizaram em torno
de um companheiro que estava sendo processado pela Aracruz. Ele tinha chamado a Fase-ES: Relatório II da Violação dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e
empresa de “assassina” durante a Audiência Pública na Comissão de Direitos Humanos da Ambientais (Dhesca II) pelo Estado do Espírito Santo e Aracruz Celulose. Vitória, dezembro
Câmara Federal, em Brasília, no mês de maio de 2003, depois que ele viu vários colegas de 2003.
morrerem em função de problemas de saúde contraídos quando trabalhavam na Aracruz
Fase-ES. Cruzando o Deserto Verde. Filme-denúncia. 2002
Celulose. Até hoje, a grande maioria desses ex-trabalhadores não recebeu nenhum tipo
de indenização. O Movimento inclui também viúvas de ex-trabalhadores da Aracruz.
Fase-ES. Relatório sobre os processos judiciais civis e trabalhistas contra o grupo Aracruz
Todas essas pessoas que estão em busca dos seus direitos, violados pela Aracruz Celulose,
Celulose no Estado do Espírito Santo, 2003.
reclamam também da omissão do Estado.
Ibase. Democracia Viva 21: Especial Mercado de Trabalho. Rio de Janeiro, abril/maio 2004.
7- Barbieri, Cristiane, Fundos: Aracruz não chega a acordo com os bancos, Jornal Folha de
São Paulo,03 de dezembro de 2008. IBGE. Informações do levantamento sistemático da produção agrícola no município de Vila
Valério. 2002.
8- Valenti, Grazielli, Auditoria discorda do registro das dívidas da Aracruz, Jornal Valor
Econômico, 01 de abril de 2009. Jornal A Gazeta: Aracruz incentiva plantio de eucalipto: muita gente critica o projeto
florestal, acusando-o de ser um dos principais fatores de desertificação do norte do Estado.
9- Chasque Agência de Notícias, Terceirizadas da Aracruz registram 1,2 mil demissões em 01 de abril de 1999.
Guaíba (RS), 03 de março de 2009.
Jornal A Gazeta: Caderno Especial - Aracruz Celulose: investimento social. 17 de abril de
10- Redação Gazeta Online, Aracruz Celulose demite funcionários para enfrentar a crise, 2002.
www.gazetaonline.com.br, 18 de março de 2009.
Jornal A Gazeta: No último ‘quilombo’, a força da resistência: a comunidade negra de Espírito
Santo, em São Mateus, já teve 80 famílias. Hoje são apenas 40. 11 de abril de 1999.

Jornal A Gazeta: Preço da celulose preocupa a Aracruz: empresa admite que lucro será
menor por causa da redução no valor da celulose. 11 de abril de 1999.

Jornal A Gazeta: Sinticel exige o fim das demissões na Aracruz Celulose. 14 de dezembro
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Veracel Celulose. Homepage: www.veracel.com.br

130 Veracel Celulose. Documento: Questions and Answers on Veracel, 16 de dezembro de 2003.
Ao se pensar na importância
do trabalho para as pessoas, é
preciso reafirmar a autonomia
das comunidades, que tendem a
perder seus recursos e atividades
tradicionais por causa da “fome”
das empresas
132
PARTE 3
• A implementação • Fraudes e ilegalidades
• A construção do simbólico pela mídia

133
Tamra Gilbertson

É bastante alto o número de casos de intoxicação


e doenças de trabalho nas plantações e fábricas
da Aracruz: descaso com o trabalhador

134
1
Bahia, e detém o controle da unidade industrial de Gua-
íba, no Rio Grande do Sul1. Juntamente com Minas Ge-
rais, esses são os estados que também abrigam as maiores
plantações de eucalipto em sua área de abrangência, seja
em terras próprias da Aracruz Celulose, atingindo um
total de 286 mil hectares de área plantada, seja em terras
de outras grandes empresas e nas pequenas glebas.
Este capítulo procura apresentar alguns elementos
sobre o processo de constituição e evolução da produção
A viabilização de celulose em terras capixabas, com especial atenção
às relações do Grupo Aracruz com o Estado brasilei-
da Aracruz Celulose ro em suas mais variadas dimensões. Parte-se da pre-
missa de que as intervenções públicas, tanto no âmbito

pelo Estado brasileiro federal quanto regional, foram imprescindíveis para a


viabilização dos projetos agroindustriais da Aracruz Ce-
lulose: além dos incentivos fiscais e linhas de financia-
Helder Gomes mento, houve também a participação direta no capital
social dos empreendimentos, bem como na liberação de
terras e na construção da infraestrutura de transportes
(porto) e energia.
A produção de celulose de eucalipto no estado do Espí- Desse modo, são apresentados os mecanismos institu-
rito Santo tem sua origem na formação da empresa Ara- cionais de viabilização dos projetos da Aracruz Celulose
cruz Florestal S.A. em 1967. O projeto inicial focou na nas suas três fases de evolução. São sugeridas algumas
plantação das árvores. Somente em 1978 entrou em ope- indicações sobre o negócio da celulose e as perspectivas
ração a primeira unidade industrial, Fábrica A, vincula- de expansão e diversificação da produção, dentro dos pro-
da ao processamento químico de madeira, em Barra do pósitos de adequação do País à nova divisão internacional
Riacho, município de Aracruz, com capacidade de produ- do trabalho. Os desdobramentos dessa opção brasileira
zir 475 mil toneladas de celulose por ano. Para viabilizar a apontam para uma especialização em commodities, estan-
produção dessa primeira fábrica foi constituída a holding do a celulose entre os produtos prioritários das agências
Aracruz Celulose S. A., que incorporaria a empresa origi- oficias de fomento e a hidrólise de eucalipto no centro da
nal, entre outros empreendimentos associados que foram fronteira de ampliação e viabilização dos projetos fede-
criados ao longo dos anos. No início da década de 1990, rais de produção de agrocombustíveis.
ocorreu a primeira ampliação industrial, com a constru-
ção da Fábrica B, elevando o potencial de produção para O contexto das antigas articulações
1,1 milhão de toneladas/ano. A última grande ampliação pró indústria no Espírito Santo
do parque industrial da Aracruz Celulose em terras capi- Até o início dos anos de 1960, a produção industrial no
xabas ocorreu no início dos anos de 2000, com a matura- Espírito Santo se restringia ao beneficiamento do café
ção do projeto da Fábrica C, o que significou a elevação da e a algumas iniciativas isoladas mais próximas do ar-
capacidade nominal para cerca de 2,3 milhões de tonela- tesanato. Essa realidade começou a sofrer grandes al-
das de celulose ao ano. terações devido à crise internacional do café e com a
Paralelo aos processos de ampliação do parque indus- montagem de pequenas plantas siderúrgicas e de pelo-
trial ocorreu também a agregação de áreas territoriais tização de minério de ferro na micro-região de Vitória,
voltadas para a plantação de eucalipto. Se no início as ao mesmo tempo em que se intensificavam os investi-
plantações se resumiam ao município de Aracruz, a par- mentos infraestruturais e o processo de urbanização ga-
tir do projeto industrial de celulose a monocultura de ár- nhava um grande vulto. Era o momento da combinação
vores exóticas se espalhou em dois sentidos: a produção de vários movimentos internos e externos, envolvendo
em larga escala, em latifúndios, concentrada nos municí- intervenções do governo federal e iniciativas locais num
pios do litoral norte; e, o plantio em pequenas glebas, em esforço extremamente tardio de industrialização re-
vários municípios de norte a sul do estado, a partir dos gional. Isto é, estava em gestação naquele período uma
programas de fomento florestal, envolvendo inclusive as abordagem de integração mais definitiva da região capi-
pequenas propriedades. xaba às relações mercantis capitalistas de abrangência
Além da produção no Espírito Santo, a Aracruz Celulose nacional, em consonância com o padrão de acumulação
S.A. possui outros investimentos na produção de celulose. e de consumo que se difundia em nível internacional há
O Grupo Aracruz participa do capital social da Veracel, na algumas décadas. 135
“A construção da infraestrutura de transportes, de energia problemas regionais equacionando-os e funcionando,
e de comunicação, promovida a partir do governo federal, também, como órgão auxiliar dos poderes públicos, no que
sem dúvida, provocou impactos no sentido de estimular a tange aos problemas industriais”
implantação de algumas unidades industriais nas regiões (Silva, 1995, p. 359)
que estavam à margem do processo de industrialização até
então. Mas, esses esforços ainda não foram suficientes para Dos estudos e eventos desse Conselho Técnico da Fin-
deslocar uma grande massa de investimentos industriais do des resultou uma recomendação ao governo estadual para
centro hegemônico (Eixo Rio - São Paulo) para as regiões a elaboração de um plano de ação voltado para uma arti-
industrialmente mais atrasadas.” culação política junto ao governo federal, visando: obras
(Gomes, 1998, p. 33) de infraestrutura (energia elétrica, estradas), diversifica-
ção industrial - a partir da realização de um antigo sonho
No entanto, pequenos progressos foram sendo alcan- de implantação de uma siderurgia na Grande Vitória - e
çados, potencializando mecanismos de integração inter- a diversificação agrícola - a partir de incentivos fiscais e a
regional a partir da instalação de unidades industriais criação de linhas de crédito rural.
nas regiões ainda não integradas e focadas no beneficia- Com essas articulações, também obteve sucesso a in-
mento de produtos primários. Estes eram voltados para vestida junto ao governo federal para a transferência da
a substituição de importações e para atender à crescente sede da Cia. Vale do Rio Doce (CVRD) para Vitória. Além
demanda provocada pela rápida urbanização dos centros da inauguração da nova sede da CVRD na capital capi-
dinâmicos da economia nacional. xaba em abril de 1961, conseguiu-se também a nomea-
Nesse contexto de alterações na dinâmica de integra- ção do então superintendente da Companhia no Espírito
ção inter-regional, as oportunidades de industrialização Santo para sua presidência: o engenheiro Eliezer Batis-
foram articuladas no Espírito Santo, a partir da Grande ta (Silva, 1995, p. 359).
Vitória. Mas esse processo esbarrava em grandes dificul- Esse era também o período de uma significativa inter-
dades estruturais. venção federal sobre a monocultura cafeeira na região
capixaba. A erradicação dos pés de café tidos como “an-
“Para as perspectivas capitalistas, o modelo resultante tieconômicos” destruiu aproximadamente 53,8% dos cafe-
do atrasado processo de colonização capixaba estava eiros plantados no estado, sob o argumento de sua baixa
assentado em bases bastante precárias. A principal produtividade e reduzida qualidade (Rocha, Morandi,
característica da região eram as relações produtivas de 1991, p. 45-55).
base familiar, com insignificantes manifestações de trabalho
assalariado. Além disso, as unidades agrícolas eram quase Tabela 1 – Percentual da população cafeeira e da área cultivada
todas auto-suficientes, pois a cultura de subsistência com café atingidas pela erradicação
atendia razoavelmente a um padrão de consumo ainda
bastante rudimentar.” Cafeeiros
Estados Área liberada
(Gomes, 1998, p. 34) destruídos

Os investimentos do governo federal se destacavam no São Paulo 26,0 20,5


processo de urbanização regional, com destaque para Paraná 28,4 19,8
a sub-região da Grande Vitória, mesmo que cerca de
72% da população capixaba ainda se encontrasse na Minas Gerais 33,0 41,2
área rural, sofrendo os reflexos de mais uma crise da Espírito Santo 53,8 71,0
monocultura cafeeira.
Nesse rompante modernizador, alguns grupos Outros 29,4 29,9
de interesses locais passaram a se articular Média Brasil 32,0 30,5
institucionalmente. Fundaram a Federação do Comércio,
em outubro de 1954, e logo depois a Federação das Fonte: Rocha, Morandi (1991), p. 55
Indústrias do Espírito Santo (Findes), em fevereiro de 1958.
As duas sob o comando do tradicional comerciante Américo Na verdade, estava sendo operado naquele momento o
Buaiz. Em maio de 1959, foi criado o Conselho Técnico da primeiro grande movimento de destruição da produção
Federação das Indústrias, contando com as presenças de agrícola baseada na pequena propriedade familiar.
“... Eliezer Batista, Alberto Stange, Arthur Carlos Gerhardt
Santos, Humberto Pinheiro Vasconcelos, Aloísio Simões, “A erradicação de cafeeiros acabou gerando dois
Jorge Faria Santos e Bolivar Abreu” (Silva, 1995, p. 360). movimentos interessantes no sentido de acelerar o processo
136 O objetivo desse conselho seria “... apreciar os mais sérios de urbanização, principalmente da Grande Vitória. Ao
O golpe militar de 1964 foi determinante para a implantação da Aracruz no Espírito Santo: atendimento dos interesses das elites locais

mesmo tempo, foi possível observar a transformação de antagônicos: campo versus cidade, grande indústria na
ativos antes imobilizados nos cafezais em ativos monetários, capital versus agroindústrias no interior, organização do
através das indenizações aos cafeicultores que tiveram trabalho em base familiar versus pressão pelo assalaria-
de queimar a plantação sob sua responsabilidade. Mas, mento, entre tantos outros. Assim, a vitória dos interes-
também, o Programa Federal acabou destruindo as chances ses industrializantes só começou a se consolidar após o
de permanência no campo de muitos pequenos agricultores golpe militar de 1964, com as fortes intervenções da di-
que, endividados, perdiam ali o crédito necessário à rolagem mensão federal do Estado, determinando “pelo alto” como
de seus compromissos com os comerciantes financiadores se daria a localização dos pesados investimentos da des-
das seguidas plantações de baixa produtividade. Muitas das centralização da indústria de base no Brasil, incluindo a
famílias que constituíam a leva de pequenos proprietários região do Espírito Santo.
não tiveram alternativas a não ser a migração para centros Esse foi, portanto, o contexto em que se iniciaram os
urbanos em busca de novas oportunidades.” primeiros investimentos na implantação da monocultu-
(Gomes, 1998, p. 42). ra de eucalipto na região capixaba. Como se vê adiante,
a acomodação dos interesses das elites locais e a repres-
Todos esses movimentos se combinavam naquele pe- são às comunidades tradicionais, às famílias camponesas
ríodo. Eram os sinais objetivos que permitiam a adequa- e aos movimentos populares formaram a arena propícia à
ção das condições estruturais da região capixaba ao novo implantação, de fora para dentro, dos chamados grandes
impulso de urbanização-industrialização que se preten- projetos de intervenção no Espírito Santo.
dia realizar, ainda que num processo bastante embrioná-
rio e gradual, extremamente tardio em comparação com A montagem das condições
os demais estados do Sudeste brasileiro. Neste contexto para a monocultura no norte capixaba
de intervenções de nível federal e de esforços locais pela Não é de se espantar que empresários ligados à produ-
integração aos mercados em plena expansão, começam ção de celulose procurem negar todo o processo de arti-
a se estruturar no Espírito Santo as condições econômi- culação política que resultou nos programas de incentivos
cas e sociais, mas, também, aquelas de caráter político e fiscais e nos arranjos para a definição da localização in-
ideológico, para a realização dos grandes investimentos dustrial das plantas planejadas.
externos voltados para a produção em larga escala de se-
mi-elaborados para exportação. “A localização do Projeto no estado do Espírito Santo foi
Cabe destacar, contudo, que esse não foi um processo espontânea, tomada pela Ecotec, Economia e Engenharia
tranquilo. Especialmente no campo político, foram ne- Industrial S.A., em 1966, e resultou de estudos realizados
cessárias fortes doses de intervenção e de ação repres- sob a liderança do Prof. Antônio Dias Leite Júnior.”2
sora do Estado, para colocar em execução os planos dos
grupos de interesse pela industrialização da Grande Vi- Mas, de fato, muitas negociações foram realizadas até a
tória, pois tratava-se de um grande rearranjo geopolíti- formulação dos esquemas de viabilidade da produção de
co interno, envolvendo interesses bastante distintos e até celulose de eucalipto para exportação a partir dos por- 137
tos capixabas. Na visão do ex-governador Arthur Carlos empresários. Dez do Rio de janeiro e um de São Paulo,
Gerhardt Santos: os quais assinaram contrato de imediato com a Ecotec;
eram eles: Antônio Dias Leite Jr., Erling S. Lorentzen,
“O projeto da Aracruz começou no governo do Christiano. A Otávio Cavalcanti Lacombi, Oliva Fontenelle de Araújo,
gente começou a ajudá-los lá, [a partir da] legislação que foi Fernando Machado Portella, Eliezer Batista, João Maciel
criada no governo Médici, de incentivo ao reflorestamento. Foi de Moura, Álvaro Soares, Afonso Soares, José Chaldas e
formulada pelo ministro Antônio Dias Leite. Então, com essa Renato Grajiollo”.
política, um grupo de empresários brasileiros, empresários (Dalcomuni, 1990, p. 188)
grandes, o grupo Orax, o grupo Unibanco, (...) vários grupos
usaram esse tipo de investimento para construir as florestas As condições endafo-climáticas, o baixo preço das ter-
que depois propiciaram a criação da indústria de celulose.” ras e a topografia plana adequada à mecanização agrícola
(Gomes, 1998, p. 69-70) foram os principais fatores apontados nos estudos técni-
cos como favoráveis à localização das plantações de eu-
Relações empresariais, políticas e até pessoais forma- calipto na Zona dos Tabuleiros, situada no litoral norte do
vam um conjunto de articulações envolvendo personali- Espírito Santo.
dades locais e internacionais. Um estudo divulgado pela A articulação política desse grupo de empresários tor-
FAO (agência da Organização das Nações Unidas voltada nou-se definitiva quando conseguiram do governo federal
para alimentação e agricultura), em meados dos anos de várias oportunidades de financiamento do novo negócio.
1960, apontava para o crescimento da demanda por ce- Além dos benefícios fiscais para as plantações de euca-
lulose em nível mundial bem acima da capacidade insta- lipto definidos pela Lei nº 5.106/66, ainda existiam na-
lada, especialmente no que se refere à oferta de madeira quele momento as linhas de financiamento vinculadas ao
pelos países tradicionalmente produtores. De posse desse Instituto Brasileiro do Café (IBC)/Gerca, do Ministério da
documento, várias articulações empresariais e iniciativas Agricultura, voltadas para a diversificação agrícola e in-
governamentais se combinavam na busca de novas opor- dustrial nos estados atingidos pelos programas de erradi-
tunidades para a celulose de mercado no Brasil e, com cação de cafezais, como foi o caso do Espírito Santo.
isso, o Espírito Santo acabou ficando no centro das priori- Mas, nas palavras da diretoria da Aracruz:
dades para a expansão da oferta de madeira, a partir dos
estudos encomendados pela Cia. Vale do Rio Doce (com “A justificativa básica da localização do Projeto Aracruz,
sede neste estado naquele momento). neste estado, foi confirmada na prática, e consolidada pela
cordialidade, flexibilidade, inteligência e capacidade de
“A empresa de consultoria Ecotec, com sede no Rio de progredir no trabalho, características positivas da população
Janeiro, já vinha realizando trabalhos para a Companhia do Espírito Santo.”
Vale do Rio Doce, na busca de projetos para a estratégia (Brandão, 1975)
de diversificação dessa empresa, em que uma das linhas
de estudo dizia respeito à exploração de reflorestamentos O senso de oportunidade e a capacidade de articula-
comerciais com eucalipto.” ção desses empresários ficaram nítidos pelo curto prazo
(Pereira, 1998, p. 147) com que conseguiram viabilizar todas as condições fa-
voráveis aos investimentos pretendidos. Imediatamente
Técnicos da Ecotec foram designados a realizar estu- após a confirmação dos primeiros resultados dos estudos
dos sobre o mercado mundial de celulose com o objetivo da Ecotec, em setembro de 1966, foram articuladas as for-
de avaliar a oportunidade de sua produção em larga esca- mas de financiamento, via incentivos fiscais. Também de
la internamente. Esses técnicos recuperaram estudos, re- imediato, foram viabilizadas as formas para a aquisição
alizados por pesquisadores brasileiros em consórcio com de terras e, uma vez constituída a empresa Aracruz Flo-
centros de pesquisa dos Estados Unidos, que apontavam restal S.A., em janeiro de 1967, iniciaram-se a captação
a monocultura de eucalipto em terras tropicais como a de recursos e, já em 1º de setembro de 1967, iniciaram-se
solução para o problema da oferta inelástica de madeira os primeiros plantios de eucalipto pelo grupo econômi-
pelos países de terras frias. A combinação de interesses co emergente.
envolvidos naquele momento resultou numa articulação
inicial de onze empresários, que se moveram em torno “Definida a localização, os sócios iniciam a aquisição de
dos serviços da Ecotec, naquela oportunidade, para via- terras. A primeira gleba de terras foi adquirida junto à
bilizar estudos de localização dos projetos de refloresta- Companhia Ferro e Aço de Vitória (Cofavi) – num total de 8
mento com eucalipto para a produção de celulose. mil ha, a partir da qual passaram a adquirir mais terras em
seu entorno, desencadeando um processo de especulação
138 “Os resultados da pesquisa foram apresentados a onze com o preço da terra em Aracruz. Os municípios de
Conceição da Barra e São Mateus foram os escolhidos para dicado pelos militares como sucessor de Christiano Dias
o prosseguimento das aquisições até que se regularizassem Lopes. Com essa nova personalidade jurídica, o Bandes
os preços da terra em Aracruz. Retornaram, posteriormente, passou a orientar as linhas de financiamento ao plantio
e prosseguiram as aquisições naquele município.” de eucalipto no território capixaba, criando, assim, novas
(Dalcomuni, 1990, p. 188-9) oportunidades para captação de recursos pelas empresas
interessadas(Dalcomuni, 1990, p. 190).
Naquele contexto de euforia, o governo do Espírito Santo Outro esforço do governador Dias Lopes em sua arti-
tratou de adequar a institucionalidade interna de financia- culação com o governo federal resultou no Decreto Lei
mento aos plantios de eucalipto, radiante com a possibilida- nº 880 instituindo o Fundo de Recuperação Econômica
de de novos investimentos externos na região capixaba. Era do Espírito Santo (Funres), baseado na renúncia fiscal de
o momento em que se iniciavam as nomeações federais dos 33,3% do Imposto de Renda e de 5% do ICMS, o qual pas-
governadores estaduais após o golpe militar de 1964. Com saria a financiar projetos industriais em nível regional.
a posse do governador Christiano Dias Lopes, as condições
internas para a implantação dos projetos de monocultura de “Ao mesmo tempo, também foram operadas negociações
eucalipto se consolidavam em meio aos demais programas com o governo federal para a superação do mais grave
de industrialização proposto pelo novo governo: “o governa- entrave à industrialização: a baixa oferta de energia no
dor Christiano Dias Lopes Filho, informado do Projeto as- Espírito Santo. Resultou daí, a fusão das empresas Cia.
segurou, durante todo o seu governo, o apoio necessário ao Central Brasileira de Força Elétrica (CCBFE) e Espírito Santo
seu desenvolvimento” (Brandão, 1975). O governo estadual, Centrais Elétricas S.A. (Escelsa), subsidiária da Eletrobrás, o
inclusive, também contratou a Ecotec para a elaboração de que propiciou investimentos em hidroelétricas e em redes de
estudos de viabilização de seus programas de fomento à sil- transmissão e de distribuição de energia.”
vicultura capixaba (Dalcomuni, 1990, p. 190). (Silva, 1993, p. 198-9)
Cabe aqui também destacar o papel da Federação das
Indústrias do Estado do Espírito Santo (Findes). Esta fe- Estava, assim, montado boa parte do aparato institucio-
deração encomendou à empresa Instituto de Estudos nal que operaria o sistema de incentivos fiscais no Espí-
para o Desenvolvimento Social e Econômico (Ined) um rito Santo, cujas facilidades contribuíam, mesmo que de
Diagnóstico para o Planejamento Econômico do Estado forma marginal, para o financiamento das novas planta-
do Espírito Santo, o qual serviu de base para o plano de ções de eucalipto, preparando o caminho para a viabilida-
governo de Christiano Dias Lopes. Este documento, por de dos investimentos industriais, que teriam ainda várias
exemplo, foi citado em boa parte no discurso de posse do outras contribuições de maior peso por parte do gover-
governador. O estudo do Ined apontava que as atividades no federal.
da agricultura tradicional capixaba (café, cana de açúcar,
extração de madeira, cacau) não apresentavam grandes Os anos de chumbo
perspectivas, exigindo uma reorientação das políticas do Na virada para os anos de 1970, o povo brasileiro expe-
governo estadual para o setor (Silva, 1993, p. 111). As arti- rimentou o período mais duro do autoritarismo instalado
culações da Findes também resultaram na intensificação desde o golpe militar de 1964. Foi o momento de exacer-
de incentivos fiscais com base no Imposto sobre Circula- bação do rigor do Ato Institucional n° 5 (AI-5), impos-
ção de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), um to desde 1968, quando ocorreu a suspensão de vários dos
tributo estadual. direitos individuais e coletivos, ao mesmo tempo em que
os militares concentravam rigidamente a arrecadação tri-
“Esses incentivos fiscais foram readequados pela Lei nº butária e as decisões sobre políticas de desenvolvimento
2.469, de 23 de dezembro de 1969, que determinava uma no governo federal, subordinando as iniciativas regionais
bonificação de até 80% do ICMS devido para instalações de de fomento.
novas plantas industriais e projetos agropecuários. Decreto Desde a posse do presidente Emílio Garrastazu Mé-
posterior ampliaria esses benefícios fiscais para a aquisição dici, em outubro de 1969, a economia brasileira vivia
de máquinas e equipamentos, através de conversão das as expectativas de promoção de investimentos priva-
compras em créditos compensáveis no ICMS devido.” dos, no que convencionou-se chamar de “Milagre Bra-
(Gomes, 1998, p 51-2) sileiro”. Num contexto internacional de excesso de
dólares para investimentos, o governo federal traçou
Por outro lado, em dezembro de 1969, também ocor- uma política de promoção de empréstimos externos
reu a conversão definitiva da antiga Companhia de De- pelas empresas nacionais e multinacionais estrangei-
senvolvimento do Espírito Santo (Codes) em Banco de ras, numa perspectiva de ampliação das exportações
Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes), tendo na brasileiras, dentro do I Programa Nacional de Desen-
presidência Arthur Carlos Gerhardt Santos, depois in- volvimento (I PND). 139
“Num ambiente de instabilidade para ampliação dos celulose de mercado. No início dos anos de 1970 toma-
parques industriais nas economias ditas centrais, a estratégia va posse no governo estadual o, até então, presidente do
dos grandes conglomerados multinacionais foi redirecionada Bandes, Arthur Carlos Gerhardt Santos, o qual teve seu
para a busca de controle de novos mercados nas economias governo marcado pela tecnocracia no controle das deci-
de capitalismo tardio. Por outro lado, as condições favoráveis sões sobre as políticas públicas. A postura política adota-
à tomada de empréstimos no ‘euromercado’ passou a atrair da pelo novo governo tornava a administração regional
interesses por essa opção de financiamento de políticas como uma extensão das agências federais de fomento, em
econômicas, justamente naqueles países escolhidos como cada área de intervenção e de promoção do crescimento
refúgio para as estratégias competitivas dos grandes econômico, dando uma roupagem aparentemente técnica
conglomerados econômicos. à sua própria administração (Gomes, 1998, p. 66).
Assim, a economia brasileira experimentava o auge do No campo político, o cerceamento da cidadania e a di-
crescimento econômico no início dos anos de 1970. fusão da ideologia do “este é um país que vai pra frente”
Alimentada por um novo ciclo de investimentos estrangeiros, também contribuíam para a implantação dos projetos de
foi sendo ultrapassada a fase de crescimento baseada na expansão das plantações de eucalipto com vistas à sua
utilização de capacidade ociosa. A taxa de crescimento transformação industrial em celulose. Após alguns acor-
anual média situava-se em torno de 11%, considerada dos internos entre as representações dominantes, partiu-
bastante elevada.” se para a legitimação social, aproveitando-se as restrições
(Gomes, 1998, p. 58) autoritárias às manifestações contestatórias, especialmen-
te no que tange aos efeitos sobre a devastação ecológica e
Aquele contexto de expansão econômica com base na pro- à poluição ambiental. Assim, vários eram os argumentos
moção das exportações, no investimento direto estrangeiro e favoráveis à instalação dos chamados Grandes Projetos
na captação de financiamentos externos, acabou estimulan- no Espírito Santo: “A posição do governo autoritário assu-
do a indústria de celulose de mercado no Brasil. Atenden- mida na Conferência Mundial de Meio-Ambiente, em Es-
do aos apelos das empresas interessadas na ampliação dos tocolmo, 1972, foi a de que a pior poluição era a miséria.
benefícios fiscais ao plantio de eucalipto, o governo federal Ou seja, defendia-se o crescimento econômico a qualquer
baixou o Decreto Lei n° 1.134/70, criando uma modalida- custo” (Rodrigues, Simões, 1988, p. 51).
de de financiamento diferenciada em relação àquela em- Em terras capixabas essa perspectiva se traduzia de
pregada a partir da Lei n° 5.106/66. Se antes os empresários forma bastante semelhante, como se verifica em docu-
precisavam realizar os investimentos nas plantações de eu- mentos oficiais:
calipto com recursos próprios, para somente depois serem
beneficiados pelos incentivos fiscais, com o novo Decreto “Os problemas de poluição e qualidade de vida,
Lei as empresas passaram a ser financiadas desde o início como todos os riscos acarretados como decorrência
do projeto, a partir de um fundo criado no Banco do Brasil, dos Grandes Projetos, emergem do despreparo
cuja base de capitalização era a renúncia fiscal de 50% do do subdesenvolvimento para o choque com o
Imposto de Renda recolhido por optantes pelo fundo. superdesenvolvido. Da incapacidade local para assimilar
Por outro lado, a política de abertura de participação de o choque, reorientá-lo, complementá-lo. A organização
blocos de capital estrangeiro na ampliação do parque in- social de uma área subdesenvolvida funciona como fator
dustrial de celulose e papel no Brasil potencializava as de resistência a qualquer mudança efetiva. Adicionar
oportunidades de novos investimentos, mesmo que ainda simplesmente um enclave isolado não exige a iniciativa de
aquém da escala pretendida pelos projetos de produção mudança. Associar-se para o desenvolvimento, sim.
de celulose para a exportação. No choque do superdesenvolvido com o subdesenvolvido,
ou nos ajustamos rápido para uma associação de iguais ou a
“A política de atração de investimentos externos implementada comunidade capixaba entrava o processo e se marginaliza, e
no período, por exemplo, carreou para o setor de celulose, se subordina, e se desmantela.”
papel e papelão 2,1% do total dos investimentos diretos (Bandes, 1973, p. 69-70)
estrangeiros do triênio 1971-73, representado um montante
de US$ 40.830.000,00 (...), volume de recursos 2,33 vezes Os arranjos para o projeto industrial
superior aos efetuados durante o Plano de Metas.” de celulose
(Dalcomuni, 1990, p. 66) Uma vez preparadas as condições objetivas e subjeti-
vas, o grupo de empresários mencionado anteriormente
Com as experiências de sucesso na expansão da produ- avançou na consolidação do projeto industrial de celulo-
ção de celulose de mercado no Brasil, propiciou-se gran- se no Espírito Santo. Foi contratada a Sandwell, empresa
des expectativas em avançar na ampliação do plantio de canadense, vinculada ao Grupo Billerud, da Suécia, para
140 eucalipto no território capixaba com vistas à produção de iniciar os estudos de viabilidade da planta industrial, em-
presa essa que mais tarde viria a compor o capital acioná- joint ventures se apresentavam como o modelo oportu-
rio do Grupo Aracruz. Resulta desses estudos, concluídos no à constituição das empresas produtoras de celulose
em 1971, apontamentos sobre a necessidade de adapta- de mercado para exportação naquele período. Imediata-
ção das plantações de eucaliptos a uma estrutura de ma- mente após o lançamento do II PND, o governo federal
nejo adequada aos propósitos da produção de celulose atendeu aos reclames empresariais, divulgando o I Pro-
em larga escala. Na sequência de evolução dos estudos de grama Nacional de Papel e Celulose, instituindo o mo-
viabilidade econômica, foi contratada a empresa Jaakko delo de Distritos Florestais, com o objetivo de promover
Pöyri, da Finlândia, cujos estudos reafirmaram a viabi- um zoneamento florestal, o qual seria a base para a con-
lidade econômica do projeto, desde que se elevasse a es- cessão dos incentivos fiscais em vigor.
cala mínima de produção de 750 t/dia para 1.300 t/dia.
Com isso, em abril de 1972, foi criada a empresa Aracruz “Esses distritos florestais abrangiam áreas dos estados do
Celulose S.A., que se constituiria a partir daí como uma Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de
holding, convertendo-se a Aracruz Florestal numa subsi- Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Pará. Além disto, o governo
diária do Grupo Aracruz (Dalcomuni, 1990, p. 189). instituiu o Fiset (Fundo de Investimentos Setoriais – pesca,
Porém, o grande salto para a consolidação dos projetos turismo e reflorestamento) (Decreto Lei n° 1.376). Constituiu-
de produção de celulose de mercado em larga escala viria se, também nesse período, uma Comissão de Política
a partir de 1974. Um novo contexto internacional, com o Florestal composta por membros de vários ministérios,
impacto do “1° Choque do Petróleo”, provocou uma drás- representantes do setor, do Estado Maior das Forças
tica redução nas taxas de crescimento. Mas isso parecia Armadas, sendo presidida pelo IBDF [Instituto Brasileiro
não convencer os militares instalados no poder central, de Desenvolvimento Florestal]. Em complementação
os quais propunham naquele momento uma avalanche a essas medidas institucionais, a canalização de
de investimentos diretos estatais no Brasil, com base no vultuosos financiamentos via BNDE [Banco Nacional de
endividamento externo. Desenvolvimento Econômico], a participação societária
do Estado brasileiro através do BNDE e de estatais e a
“Em dezembro de 1974, o General Ernesto Geisel (recém concessão de incentivos e subsídios à exportação conferiram
empossado presidente) e seu ministro Mário Henrique ao Estado brasileiro um papel fundamental na evolução
Simonsen lançaram o II Plano Nacional de Desenvolvimento, da indústria de celulose no Brasil.(...) A opção, através do
mais conhecido como II PND. Baseado no ufanismo de Sistema BNDE e de estatais (CVRD), pelo ‘crescimento com
que o País seria uma ilha de tranquilidade num mar revolto, endividamento’ e a priorização da produção de celulose no
o Estado brasileiro iniciou uma série de investimentos II PND possibilitou o carreamento de US$ 466.846.200,00
produtivos, ao mesmo tempo em que ampliou o leque de (...), para o setor celulósico-papeleiro, sob a forma de
linhas de financiamento subsidiado, cujos objetivos básicos empréstimos, no período 1974-80.”
seriam: i) a internalização da transformação de diversos (Dalcomuni, 1990, p. 85-6)
insumos industriais, antes exportados (minério de ferro, p.
ex.); ii) ampliação da produção interna de alguns produtos, Nesse novo contexto, o Grupo Aracruz iniciava o proces-
nos quais o Brasil apresentasse vantagens comparativas, so de consolidação de sua primeira grande planta indus-
como a dotação de recursos naturais; iii) redução da trial. Nas palavras de um de seus dirigentes na época:
dependência energética em relação ao petróleo importado,
através da ampliação dos investimentos na prospecção “A fábrica da Aracruz Celulose S.A. produzirá, por ano,
desse mineral e do apoio à produção de álcool a partir da 400.000 toneladas de celulose branqueada, fibra curta, 92°
cana-de-açúcar (Pró-Alcool); iv) crescimento da exportação de brancura, podendo competir, em qualidade, no merca-
de manufaturados, visando reduzir os desequilíbrios na do internacional. Entrará em funcionamento no segundo se-
Balança de Pagamentos; v) orientação dos investimentos mestre de 1977. Será usado o processo sulfato, contínuo e
estatais na área de insumos básicos para a periferia regional automático. A área industrial total é de 2.000.000 m². O con-
brasileira. O financiamento do Plano estava assentado em sumo de madeira será de 4.500 a 5.000 m³ sólidos por dia ou
empréstimos externos diretamente tomados pelas agências 1.500.000 a 1.700.000 m³ por ano, com casca.”
e empresas estatais e na atração de investimentos diretos (Brandão, 1975, p. 6)
estrangeiros para a formação de joint ventures.”
(Gomes, 1998, p. 60) O malogro dos primeiros contatos, com vistas ao finan-
ciamento junto às agências multilaterais, como o Banco
Nessa perspectiva de reversão das baixas taxas de Mundial (BIRD), levou a uma investida mais direta às li-
crescimento da economia brasileira no governo Gei- nhas de crédito subsidiado do BNDE. Dessas negocia-
sel, procedeu-se pesados investimentos estatais em as- ções com o governo federal resultou, em 21 de agosto de
sociação com blocos de capital estrangeiro. Assim, as 1975, o acordo fundamental para a consolidação da joint 141
venture para a produção de celulose de mercado no Espí- para os efeitos imediatos relativos aos financiamentos estatais
rito Santo, o que significava a montagem de um orçamen- dirigidos à construção infraestrutural. O governo articulava um
to global de aproximadamente US$ 536 milhões: empréstimo externo de US$ 10 milhões para a realização do
programa rodoviário estadual. Por outro lado, a Findes procurava
“No que se refere ao financiamento, o Sistema BNDE defender seus interesses sobre o aparato local de controle da
promoveu 45% do total (32% em financiamento do arrecadação e dos gastos públicos, mas, mesmo pressionando
BNDE e 13% da Finame); o restante do financiamento politicamente o Poder Executivo, não conseguiu barrar a
do projeto foi composto por 36% de capital próprio e 19% concessão de financiamentos via Funres à Cofavi e à Aracruz
de financiamentos externos, constituindo-se no maior Celulose S.A..”
financiamento concedido até então a uma empresa privada. (Gomes, 1998, p. 73)
Esse aporte de recursos pelo BNDE (...) constituía-se dos
seguintes elementos: 8.222.494 ORTNs com recursos do Mesmo que pouco significativo, em relação aos apor-
Fundo de Reaparelhamento Econômico; 3.599.396 ORTNs tes de recursos do BNDE, o Grupo Aracruz forçou um
para subscrição de ações da Aracruz; 950.784 ORTNs embate com as elites industriais locais e obteve, em
para participação societária da Fibase (ações sem direito a junho de 1977, uma linha de financiamento junto ao
voto). Além disso, foi concedido à empresa um aval de US$ Geres, a partir do Funres, num volume total de Cr$ 140
44 milhões a financiamentos externos para aquisição de milhões (Dalcomuni, 1990, p. 201).
máquinas e equipamentos. E a Finame financiou, ainda, US$ A prioridade do governo Élcio Álvares aos grandes pro-
60 milhões, o que representava 80% do total das compras jetos se revelava, também, no veto ao Projeto de Lei nº 93,
de equipamentos nacionais (cf. A Gazeta, 31 de outubro de de 20 de dezembro de 1977, de iniciativa do Poder Legis-
1978). (...) taxas de juros de 3% ao ano e correção monetária lativo, o qual previa a proibição do avanço das plantações
inicial de no máximo 20% ao ano, sendo que qualquer de eucalipto em áreas propícias à mecanização agríco-
excesso eventual seria abatido do imposto de renda.” la. Além disso, o governo estadual isentou de impostos a
(Dalcomuni, 1990, p. 200)3 transmissão de bens imóveis para os casos de terrenos
destinados ao reflorestamento (Silva, 1993, p. 303-4).
O governo estadual também contribuiu nesse ar- Durante essa fase de implantação do projeto industrial
ranjo para o financiamento ao Grupo Aracruz. Em março de celulose no território capixaba ampliaram-se as planta-
de 1975, o advogado Élcio Álvares foi nomeado para o go- ções de eucalipto. A tabela a seguir demonstra a expansão
verno estadual pelos militares, em substituição a Arthur das plantações tidas como reflorestamento pelos órgãos
Carlos Gerhardt Santos. Demonstrando certa reversão oficiais. Pode-se afirmar que quase a totalidade dessas
nos critérios de indicações, ele abandonou a linha técnica novas áreas foram ocupadas com eucalipto para celulose.
e adotou uma perspectiva mais favorável aos políticos lo-
cais. Enquanto isso, o ex-governador partia em direção à Tabela 2 – Evolução do Plantio de Árvores Exóticas no Espírito
presidência da Aracruz Celulose: Santo – 1968-79 • (Em ha)

“Com a formalização do acordo de financiamento da unidade Ano Área plantada


de celulose com o BNDE, no segundo semestre de 1975, 1968 3.252,55
Arthur Carlos Gerhardt Santos assumia a presidência da
1969 8.649,18
Aracruz Celulose S.A., base da joint venture que reunia
ações de propriedade estatal federal, associadas às ações 1970 13.713,43
de propriedade de empresários nacionais e de unidades de 1971 22.955,78
capital estrangeiras.”
(Gomes, 1998, p. 72) 1972 40.567,96
1973 50.499,57
O novo governo facilitava a recuperação do poder da
1974 67.780,74
Findes na tomada de decisões sobre políticas públicas,
mas a federação praticava uma posição dúbia em relação 1975 89.642,60
aos grandes projetos. 1976 106.104,54

“Em sua ação institucional mais global, a Findes continuava 1977 121.781,26
vacilante em seu apoio à implantação efetiva dos grandes 1978 129.827,61
projetos. Mesmo mantendo a expectativa quanto aos futuros
1979 131.356,61
efeitos multiplicadores dos novos empreendimentos, as atenções
142 dos proprietários de unidades de capital local estavam voltadas Fonte: Dalcomuni, 1990, p. 193
O setor de papel e celulose é o terceiro em emissão de gases de efeito estufa: grande responsável pelo aquecimento climático do planeta

Com a consolidação do projeto industrial, a participa- Tabela 4 – Apoio do BNDE à Aracruz Celulose – 1974/88
ção acionária na Aracruz Celulose passou por grandes
alterações. Uma vez resolvido o problema do financia- Ano Desembolsos e avais
mento, com grande peso do BNDE nas operações de
crédito, a joint venture se consolidava com a seguinte 1974 US$ 44 Milhões
composição acionária: 1974 Cr$ 867 Milhões

Tabela 3 – Participação acionária na Aracruz Celulose S. A. 1975 Cr$ 429 Milhões


na implantação da Fábrica A 1975 Cr$ 110 Milhões

Acionista Participação 1976 Cr$ 85 Milhões


1976 US$ 90 Milhões
BNDE 25,90%
1977 Cr$ 31 Milhões
Cia. Souza Cruz 25,90%
1977 Cr$ 11 Milhões
Fibase 14,72% 1977 US$ 20 Milhões
1977 US$ 40 Milhões
Grupo Billerud 6,07%
1978 Cr$ 457 Milhões
Grupo Lorentzen 5,08% 1978 Cr$ 280 Milhões

Vera Cruz Agroflorestal 3,37% 1978 Cr$ 186 Milhões


1978 US$ 10 Mil
Grupo Moreira Salles 2,63%
1978 US$ 15 Mil

391 acionistas minoritários 16,94% 1979 Cr$ 88 Milhões


1980 US$ 25 Milhões
Fonte: Dalcomuni, 1990, p. 201
1980 US$ 10 Milhões
Verifica-se, pelos dados acima, que o Grupo Aracruz 1988 Cr$ 27.965 Mil
passou por um processo de grande centralização de ca-
pital, à medida que a joint venture foi se consolidando Fonte: Dalcomuni, 1990, p. 201
com peso significativo do BNDE e de empresas estran-
geiras em sua composição acionária. Durante o período A associação ao capital estrangeiro foi fundamental para
de maturação dos investimentos e dos primeiros anos o acesso à tecnologia e aos canais de comercialização. A con-
de operação, o BNDE apoiou os empreendimentos do tratação da empresa finlandesa de consultoria Jaakko Pöyry
Grupo Aracruz com desembolsos e avais, distribuídos facilitou os contatos internacionais, em especial com a Celbi,
conforme a tabela seguinte. de Portugal, que já possuía experiência na produção de ce- 143
se ao DNPVN a colaboração da Aracruz e da CVRD, com
apoio decisivo do BNDE.”
(Brandão, 1975, p. 9-10)

A consolidação dos projetos do Grupo Aracruz no Espírito


Santo e os primeiros resultados operacionais contribuíram
significativamente para o desempenho das exportações de
celulose pelo Brasil. Quase toda a produção da Aracruz Ce-
lulose esteve voltada para a exportação. Com isso, a empre-
sa chega a participar com 50,29% das exportações brasileiras
de pasta de eucalipto, em 1979, e em 1987 alcança aproxi-
madamente 60% do total da celulose exportada pelo País.
Nesse período, a estrutura organizacional do grupo consti-
tuía-se de cinco empresas com unidades produtivas, de pes-
A mecanização é um dos insumos largamente utilizados pela Aracruz
quisa, de comercialização e de seguros:

lulose a partir do eucalipto e que, inclusive, passou a compor “1) Aracruz Celulose S.A. – Responsável pelo processo
a diretoria da Aracruz Celulose, com a presença do senhor industrial. É composta por três unidades:
News Palls. Além disso, foi contratada a empresa Krebs, da a) Unidade de produção de celulose fibra curta branqueada –
França, para o repasse de know how sobre as instalações tipo Kraft, com capacidade instalada de 475.000 t/ano;
eletroquímicas. Os canais de comercialização foram sendo b) Unidade de produção de cloreto de sódio – utilizado no
abertos à medida que se consolidavam os acordos com o branqueamento da madeira, com capacidade instalada de
Grupo Billerud, tradicional produtor de celulose em nível 15.170 t/ano;
internacional (Dalcomuni, 1990, p. 205-6). c) Unidade de produção de cloro soda – utilizada no
Coube ao Estado brasileiro o suporte à viabilidade da cozimento da madeira, com capacidade instalada de 12.250
logística de transportes. Além de toda a infraestrutura t/ano de cloro e 13.800 t/ano de soda cáustica.
ferroviária do corredor Vitória-Minas, a Cia. Vale do Rio 2) Aracruz Florestal S.A. – Empresa subsidiária
Doce (CVRD) teve um papel fundamental na construção responsável pela produção de madeira e desenvolvimento
do Porto de Barra do Riacho, o Portocel. A CVRD detinha de pesquisa florestal.
estudos de viabilidade portuária no litoral capixaba, que 3) Aracruz Trading e Aracruz Internacional – Sediadas no
já nos anos de 1950 apontavam para o município de Ara- exterior, responsáveis pelo apoio aos negócios externos e
cruz como possível local para a instalação de terminais desenvolvimento de novos mercados.
portuários para o minério de ferro, para o desembarque 4) Portocel – Encarregada da administração do terminal
de carvão, bem como para seus projetos de diversifica- portuário de Barra do Riacho.
ção logística. Uma vez abandonado o projeto para o trans- 5) Aracruz Corretora de Seguros – Presta serviços às
porte de minério e carvão, após a opção pela Ponta de demais empresas do grupo agenciando seguros.”
Tubarão, em Vitória, a CVRD repassou seu aporte para o (Dalcomuni, 1990, p. 202-3)
projeto celulósico.
Além de mais de 100 mil hectares de terras distribuí-
“Como exemplo, citamos o porto. Inicialmente, obtivemos das entre os municípios de Aracruz, São Mateus e Con-
a concessão para construir e operar um terminal portuário ceição da Barra, compunha ainda o patrimônio do Grupo
privativo da Aracruz Celulose S.A. Aracruz, naquele período, um bairro residencial (Bairro
Atualmente, está sendo concluída uma negociação, para a Coqueiral), construído para abrigar parte do pessoal em-
transformação do terminal portuário em porto, principalmente pregado e familiares, com estrutura para 850 habitações
para exportação de celulose branqueada, sob o controle numa área de aproximadamente 1,6 milhão de m² (Dalco-
do DNPVN [Departamento Nacional de Portos e Vias muni, 1990, p. 203-4).
Navegáveis] e com participação da Aracruz e da CVRD, que
fará, ainda, chegar até o local a sua ferrovia. A primeira grande ampliação da produção de
Será um porto com 14,5 m de calado, podendo receber celulose pela Aracruz
navios de até 66.000 tdw [unidade de tonelagem dos Em meados dos anos de 1980 processava-se o fim do re-
navios] e com possibilidade de expansões e construção de gime militar no Brasil. Entretanto, a transição “pelo alto”
vários cais. Abre-se, assim, mais uma porta do progresso para os primeiros governos civis não alterou significati-
rápido do Espírito Santo. vamente as formas autoritárias como se decidiam a am-
144 Chegou-se a uma solução de interesse nacional, somando- pliação dos grandes projetos no Espírito Santo. Na virada
para os anos de 1990, emergia o processo de privatizações Naquele momento, da primeira grande expansão das
de empresas em nível nacional, num contexto de acirra- unidades industriais do Grupo Aracruz no Espírito Santo,
mento da crise fiscal do Estado brasileiro, mergulhado em quase todas as áreas ocupadas com plantações de árvores
dificuldades de administração do endividamento externo, exóticas no território capixaba se destinavam à produção
exatamente quando a baixa capacidade dos países deve- de celulose de fibra curta branqueada.
dores de honrar seus compromissos ameaçava os merca-
dos internacionais de crédito. Tabela 6 – Área de plantações de árvores exóticas por empresa e
Foi nesse novo contexto de crise fiscal e de privatiza- objetivo, Espírito Santo – 1989
ções que ocorreu a primeira grande alteração da parti-
cipação do Estado brasileiro na composição acionária do Empresa Objetivo Área %
Grupo Aracruz, quando o BNDE iniciou o processo de
alienação em bolsa de sua participação societária, cujas Aracruz
Celulose 76.817 58,17
ações foram adquiridas pelo Banco Safra, que passou a Florestal S.A.
controlar 25,90% do capital social do grupo. Florestas Rio Doce Carvão e
Apesar da desastrosa política industrial na virada para 35.190 26,42
S.A. Celulose
os anos de 1990, o BNDES (agora com o “S” de social)
mantinha suas linhas de financiamento concentradas nos Florestas Acesita
Carvão 7.470 9,70
mesmos grupos econômicos, como sempre foi sua tradi- S.A.
ção (Najberg, 1989). Os constantes desequilíbrios no Ba- Cia. Brasileira de
lanço de Pagamentos brasileiro, devido ao agravamento Carvão 4363 3,50
Ferro – CBF
da crise da dívida externa, determinavam as justificati-
vas para a seleção de prioridades, colocando a produção Cia. Siderúrgica
Carvão 2542 1,90
de semi-elaborados para exportação como alvo de exce- Belgo Mineira
lência para os financiamentos públicos subsidiados. Com
isso, mais uma vez, o Grupo Aracruz contou com a apro- Cia. Siderúrgica
Carvão 407 0,32
vação de linhas de financiamento e de participação do Barbará
BNDES, na ordem de U$ 1.040.280.000,00 (Dalcomuni,
Inonibrás S.A. Carvão 1.904 1,65
1990, p. 240), para promover a primeira grande expan-
são das unidades industriais, que passaria a produção de Mucuri
celulose de 491.000 t/ano para 1.100.000 t/ano, na virada Celulose 380 0,03
Agroflorestal Ltda.
para a década de 1990.
Os arranjos para o financiamento dessa primeira ex- Outros Não definido 3.120 2,31
pansão das unidades industriais de Barra do Riacho, com
a construção da Fábrica B, exigiram uma nova centraliza- Fonte: Ibama. Apud. Dalcomuni, 1990, p. 195
ção de capital e uma alteração significativa na composição
acionária do Grupo Aracruz, trazendo de volta inclusive a A expansão das plantações de eucalipto logo resultou
BNDES-Par a uma importante participação no capital so- na elevação dos preços das terras, requerendo a abertura
cial da empresa. de novas fronteiras. Além da aquisição de terras nos es-
tados vizinhos (somente na Bahia foram adquiridos mais
Tabela 5 – Participação acionária na Aracruz Celulose S. A. de 100 mil ha), a estratégia da empresa Aracruz foi pro-
na implantação da Fábrica B mover programas de fomento florestal, a partir da utiliza-
ção de terras de terceiros para a plantação de eucalipto,
Acionista Participação alcançando inclusive a pequena propriedade de base
produtiva familiar.
Grupo Lorentzen 28,0% Todo esse processo de expansão industrial e de novas
plantações de eucalipto obedeceu a uma rigorosa incor-
Banco Safra 28,0% poração tecnológica. As exigências internacionais, por
elevação do nível de produtividade, qualidade, eficiência
Cia. Souza Cruz 28,0% e menor preço, exigiram um profundo regime de padro-
nização e de redução do tempo de maturação das árvores
BNDES 12,5% para o corte. Tais exigências foram satisfeitas com pesa-
dos investimentos em pesquisas biotecnológicas e com a
Outros 3,5% utilização de mudas clonais e de novas formas de manejo
e mecanização dos viveiros e das plantações. 145
Diversificação da produção transferência das ações, ocorrerá no dia 1º de novembro
e novos financiamentos de 2001, quando a VCP, através de sua subsidiária no
Em 20 de agosto de 1999 entrou em operação uma nova exterior e em substituição à Mondi, formalmente aderirá
unidade integral do Grupo Aracruz: a Aracruz Produtos ao Acordo de Acionistas da Aracruz, formando o grupo de
de Madeira S.A., voltada para a produção de madeira para controle com os Grupos Lorentzen e Safra e com o BNDES
uso em móveis e design de interiores. O principal pro- Participações S.A.”
duto dessa nova unidade, localizada em Nova Viçosa, no (Aracruz Celulose, 2001)
sul da Bahia, está registrado sob a marca Lyptus. Os in-
vestimentos estimados, inicialmente, para essa nova uni- Os demonstrativos de resultados dos últimos anos re-
dade representavam cerca de US$ 50 milhões, com mais velam o desempenho do Grupo Aracruz na captação de
R$ 12 milhões para uma segunda linha de serragem. O linhas de financiamentos internas e externas:
projeto continha capacidade de produção total de 100.000
m³ anuais de madeira. Sua produção está voltada para o “(a) Moeda estrangeira
mercado interno (96%), mas, também o exterior (França, Em janeiro de 1994, a Companhia lançou no mercado
Itália, Espanha, Estados Unidos, Canadá, entre outros) internacional US$ 120 milhões em Euronotes, sem
(Aracruz Celulose, 1999, p. 24). garantia, com juros de 10,375% a.a. e vencimento
Ainda em meados de 1999, o Grupo Aracruz iniciou do principal em 2002. Os recursos foram usados,
uma operação casada de oportunidade de captação de re- principalmente, para o pagamento de parcelas vincendas
cursos nos mercados financeiros internacionais e de alie- de financiamentos de longo prazo. Em janeiro de 1997,
nação da unidade eletroquímica: esses Euronotes foram renegociados contando com a
intermediação de agentes financeiros, sendo comprados a
“Em 27 de setembro de 1999 foi constituída a Aracruz 94,527% do seu valor de face e revendidos com um ágio
Eletroquímica Ltda., subsidiária integral da Aracruz Celulose de 4,75% do seu valor de face na mesma data (...).
S.A., a qual recebeu, a título de aporte de capital, os ativos Em novembro de 1994, a Aracruz Trading S.A. estabeleceu
da planta eletroquímica da Aracruz, com valor residual um programa de emissão de títulos (Euro-Commercial
contábil de R$ 118.880. Paper) no valor original de US$ 100 milhões, garantidos
Em 17 de dezembro de 1999, a Aracruz Eletroquímica Ltda pela Aracruz Celulose S.A. (...). Em 02 de setembro de
realizou um lançamento de títulos de dívida no mercado 1998, este programa teve sua continuidade aprovada por
internacional (Fixed Rate Notes), no montante de R$ 105,6 mais três anos, juntamente com um aumento para US$ 200
milhões. Nesta mesma data, uma parcela (R$ 99,8 milhões) milhões, junto ao Banco Central do Brasil, inexistindo saldo
dos ativos monetários (caixa) da Aracruz Eletroquímica Ltda remanescente utilizado deste programa relativo ao exercício
foi transferida, através de uma operação de cisão parcial, findo em 31 de dezembro de 1999 (...).
para Aracruz Empreendimentos S/C Ltda, subsidiária integral A Aracruz Trading S.A. efetuou (...) um Programa de
da companhia, constituída em 6 de dezembro de 1999.” Securitização de Recebíveis de Exportação, garantidos
(Aracruz Celulose, 1999, p. 27) pela Aracruz Celulose S.A., no valor total de US$ 200
milhões (...). Em agosto de 1995, a Aracruz Trading S.A.
A partir de 17 de dezembro de 1999, a Aracruz Celulose utilizou os recursos oriundos deste programa para adquirir
S.A. alienou sua unidade eletroquímica para a Canadia- integralmente US$ 150 milhões em títulos (...), emitidos por
noxy Chemicals Holdings Ltd., por R$ 11.065 mil, deixan- sua controladora, Aracruz Celulose S.A. (...).
do, assim, de operar na produção química. Os acordos Em dezembro de 1998, a Aracruz Trading S.A. efetuou uma
dessa transação selaram compromissos mútuos de com- captação no montante de US$ 56,9 milhões (...), garantidos
pra e venda para garantir a demanda e o abastecimento por Notas do Tesouro Nacional disponibilizadas pela Aracruz
durante os 25 anos seguintes à assinatura dos contratos Celulose S.A.. Esta operação foi integralmente liquidada em
(Aracruz Celulose, 2002, p. 31). dezembro de 1999.”
Em outubro de 2001, a acionista Mondi Brazil Limited
(“Mondi”) celebrou contrato de compra e venda de ações (b) Moeda nacional
com a Votorantim Celulose e Papel S.A. (VCP): Em 31 de dezembro de 1999, a Aracruz Celulose S.A.
(...) mantinha empréstimos (...) de R$ 280.657 (mil)
“... através de uma subsidiária no exterior, (a VCP) [1998 – R$ 316.742 (mil)], substancialmente contratados
adquirirá da Mondi 127.506.457 ações ordinárias junto a seu acionista BNDES (...), nas modalidades
nominativas representativas de 28% do capital votante ou Financiamento a Empresas (Finem), Infra Estrutura
12,3% do capital total da Aracruz, excluindo as ações em Social (IES) e repasses de financiamentos do BID [Banco
tesouraria, pelo valor de US$ 370 milhões. Interamericano de Desenvolvimento] e do BIRD [Banco
146 A consumação da aquisição, com a consequente Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento],
sujeitos a juros variando entre 5,5% e 11,50% a.a., a “Em leilão promovido hoje (5 de junho de 2001) pela
serem amortizados no período de 2000 a 2006. Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) em sua sede, no Rio de
Os financiamentos estão garantidos por hipoteca, Janeiro, a Aracruz Celulose e a Votorantim Celulose e Papel
em vários graus, da unidade industrial e das terras e (VCP), por intermédio da Sociedade de Propósito Específico
florestas, e pela alienação fiduciária de máquinas e (SPE) por elas constituída, apresentaram oferta de US$ 670,5
equipamentos financiados.” milhões, que foi declarada vencedora para a aquisição do
(Aracruz Celulose, 2000, p. 33) controle compartilhado (51.48% do capital total) da Celulose
Nipo Brasileira - Cenibra.
A Fábrica C e aquisições no início dos anos 2000 Conforme previamente anunciado, a CVRD colocou à venda
Com as novas oportunidades e com a pressão dos mer- sua posição no controle compartilhado da Cenibra em leilão
cados pela necessidade de expansão dos parques indus- privado. A SPE da Aracruz e VCP foi declarada vencedora
triais, sob o risco de perderem a corrida concorrencial, com a melhor oferta.
a expansão do parque industrial brasileiro de celulo- A Aracruz e a VCP resolveram unir-se para participar
se estava projetada desde a virada para a nova década, do leilão da Cenibra, dada a qualidade e importância
aguardando apenas as condições de captação de recursos estratégica do ativo para ambas as empresas.
externos e das linhas de financiamento do BNDES. O fechamento e conclusão da aquisição ainda estão sujeitos
Oficialmente, a decisão definitiva para os novos inves- à decisão da outra acionista da Cenibra, a Japan Brazil
timentos da segunda ampliação da produção industrial Paper and Pulp Resources Development Co. Ltd. (JBP), de
do Grupo Aracruz ocorreu numa reunião do Conselho exercer ou não seu direito de preferência.”
de Administração realizada em 5 de junho de 2000. As (www.aracruz.com.br, 2001)
obras foram iniciadas ainda no ano de 2000, a partir de
um projeto que previu a elevação da produção de 1,3 mi- Entretanto, em 6 de julho de 2001, a Japan Brazil Paper
lhão de t/ano para 2 milhões de t/ano. Após os primei- and Pulp Resources Development Co. Ltd., exercendo o
ros testes, iniciou-se a fase de operação da Fábrica C, em direito de preferência pela compra destas ações, assu-
maio de 2002, num processo de integração da nova uni- miu o controle total da Cenibra a partir de 14 de setembro
dade à infraestrutura das linhas de produção A e B. O de 2001. Outra investida do Grupo Aracruz, em sua estra-
produto dessa nova unidade passa a ser celulose bran- tégia de expansão, foi a compra da empresa Florestas Rio
queada do tipo ECF, sem cloro elementar (Aracruz Celu- Doce S.A., controlada, até então, pela CVRD.
lose, 2002, p. 31). Os demonstrativos de resultados do Grupo Aracruz re-
O investimento total dessa segunda grande expansão lativos ao exercício de 2001 apresentam relatórios afir-
das unidades do Grupo Aracruz no território capixaba mando que, em 31 de dezembro, o saldo remanescente
alcançaria aproximadamente US$ 825 milhões: US$ 575 dos títulos emitidos à Aracruz Trading, pela controlado-
milhões para a área industrial, US$ 220 milhões para a ra, situava-se em R$ 13,2 milhões. Segundo esses mesmos
área florestal e US$ 30 milhões para infraestrutura logís- demonstrativos, os empréstimos da controladora Aracruz
tica e outros investimentos. Celulose S.A. com o BNDES, a serem amortizados entre
O novo projeto de expansão industrial previa a neces- 2002 e 2009, atingiram em 2001 cerca de R$ 620 milhões,
sidade de ampliação do suprimento de madeira, exigin- quando os mesmos estiveram em torno de R$ 209 milhões,
do um incremento de mais 72 mil hectares às reservas de no exercício de 2000 (Aracruz Celulose, 2002, p. 35).
eucalipto de propriedade do Grupo Aracruz. Além disso, Os financiamentos para a Fábrica C do Grupo Aracruz
para atender seus planos de expansão, o Grupo Aracruz foram os responsáveis pela elevação dos empréstimos
comprou, em 2000, 45% da participação do grupo Odebre- junto ao BNDES em 2001, em relação ao ano anterior. Dos
cht na empresa Veracel, por US$ 81 milhões, tornando-se cerca de R$ 666,3 milhões aprovados em junho de 2001,
sócia igualitária no empreendimento com a sueco-fin- via a linha de financiamento especial Finem, o BNDES
landesa Stora Enso. Além dos acordos com a Veracel, o liberou cerca de R$ 417,8 milhões, com juros variando
Grupo Aracruz ainda aprovou a construção de um termi- entre 7,8% e 11,65% a.a., a serem amortizados entre 2002 e
nal portuário, no município de Caravelas, na Bahia, bem 2009, com as mesmas garantias dos empréstimos anterio-
como a ampliação do Portocel, em Barra do Riacho, para res. A Aracruz Trading S.A. também obteve uma linha de
o transporte de madeira do sul da Bahia, com investimen- financiamento de longo prazo, em torno de US$ 100 mi-
tos previstos em torno de US$ 20 milhões (Aracruz Celu- lhões, com taxas de juros de 3,5% a.a. e vencimento entre
lose, 2002, p. 31). maio e junho de 2004, garantida por exportações futuras
Numa outra linha de política agressiva nos mercados da Aracruz Celulose S.A. (Aracruz Celulose, 2002, p. 35).
de celulose, a Aracruz partiu para adquirir cotas de parti-
cipação da CVRD na Cenibra, num consórcio com a Voto- “A diretoria do BNDES assinou contrato de financiamento
rantim Celulose e Papel S.A. no valor de R$ 666,3 milhões com a Aracruz Celulose 147
S.A., que aplicará os recursos em um projeto de expansão que esses investimentos têm causado nos últimos anos, o
da capacidade de produção de celulose branqueada de que tem elevado as demandas por grandes investimen-
eucalipto, de 1,3 milhão de toneladas/ano para 2 milhões tos públicos na infraestrutura econômica e também so-
de toneladas/ano em sua unidade industrial localizada em cial. Essa abordagem requer a consideração dos regimes
Aracruz, Espírito Santo. Os recursos serão também aplicados de tributação nos vários níveis da administração pública
no plantio – até 2002 – de cerca de 129 mil hectares de que, muito mais que trazer vantagens do ponto de vista fis-
florestas de eucalipto em diversas áreas situadas no Espírito cal, facilitam em muito as condições de competitividade de
Santo e na Bahia. O investimento total no empreendimento determinados segmentos industriais. Assim, vale a pena
é de R$ 1,66 bilhão. O projeto vai criar 200 empregos diretos tratar dessa questão, em suas diversas dimensões, para
na área industrial e 2.100 na florestal.” compreender as várias oportunidades que a Legislação
(BNDES, 2002) Tributária tem oferecido ao Grupo Aracruz, considerando
que se trata de um grupo econômico que se favoreceu de
Além dessas linhas de financiamento, via BNDES, entre grandes benefícios fiscais, desde o período das primeiras
fevereiro e junho de 2001, a Aracruz Celulose S.A. captou plantações de eucalipto no território capixaba.
recursos com bancos, a partir de financiamentos via pré- Para desvendar algumas dessas indagações é interes-
pagamento de exportação, no montante de US$ 180 mi- sante observar os demonstrativos contábeis do Grupo
lhões, com juros variando entre 3,5213% e 6,71% a.a., que Aracruz referentes aos exercícios de 1999 e 2001. Esses
seriam amortizados entre maio de 2003 e abril de 2004 demonstrativos apresentam a evolução dos créditos tri-
(Aracruz Celulose, 2002, p. 35). butários e suas origens, o que permite vinculá-los aos
efeitos da Legislação Tributária.
Tabela 7 – Participação acionária na Aracruz Celulose S. A.
após implantação da Fábrica C e novas aquisições “Em 31 de dezembro de 1999, a Companhia possuía R$
224.783 (1998 – R$ 391.029) de prejuízos fiscais e despesas
Acionista Participação de depreciação, amortização e exaustão relativos aos efeitos
BNDE 25,90% da Lei n° 8.200/91 a compensar com lucros tributários
futuros, sobre os quais foi constituído crédito tributário no
Cia. Souza Cruz 25,90% montante de R$ 45.647, representado por prejuízos fiscais
Fibase 14,72% apurados em 1992 e 1998, nos montantes de R$ 17.738
e R$ 8.299, respectivamente, os quais são imprescritíveis,
Grupo Billerud 6,07% bem como créditos tributários no montante de R$ 19.610
Grupo Lorentzen 5,08% (montantes em milhares de reais), oriundos da aplicabilidade
da Lei n° 8.200/91.”
Vera Cruz Agroflorestal 3,37% (Aracruz Celulose, 2000, p. 27)
Grupo Moreira Salles 2,63%
Se no caso do imposto de renda e contribuição social, a
391 acionistas minoritários 16,94% origem dos créditos tributários se dá pela eficiência con-
tábil ou pela chamada administração tributária, no caso
Aspectos Tributários do ICMS, imposto de competência estadual, os créditos
O crescimento da arrecadação tributária dos municí- apontados acima tem origem na aplicação da Lei Com-
pios abrangidos pelos grandes projetos instalados no plementar Federal n° 87, a famosa Lei Kandir, e suas re-
litoral norte capixaba sempre foi colocado entre as ar- visões. A Lei Kandir estabelece que estão imunes da
gumentações apologéticas do Grupo Aracruz. Mesmo incidência do ICMS todas as operações com mercadorias
que se possa questionar a magnitude dessas taxas de voltadas para o mercado externo, ou seja, para a expor-
crescimento da arrecadação municipal, bem como sua tação. As revisões da legislação federal, além de propi-
relação direta com o Grupo Aracruz, não deve haver dú- ciar alguma compensação por perdas de receitas, mas
vidas sobre os impactos que investimentos de tão gran- que não chegam aos patamares dos potenciais de receitas
de monta têm sobre as finanças de municípios que, até que adviriam da tributação direta das exportações, ainda
então, mantinham atividades econômicas vinculadas à permitiu que as empresas registrassem como créditos tri-
pequena produção familiar e algumas iniciativas no pro- butários o ICMS pago na compra de insumos para proces-
cessamento da madeira para fins tradicionais. samento industrial. E mais, a legislação em vigor permite
Cabe observar, entretanto, a relação entre os potenciais que esses créditos sejam compensados em operações in-
de arrecadação tributária e as riquezas geradas pelas ope- ternas futuras, ou mesmo transferidos a terceiros, desde
rações do Grupo Aracruz no litoral norte capixaba, conside- que reconhecidos e autorizados pelo Poder Executivo Re-
148 rando os graves impactos econômicos, sociais e ambientais gional. Com isso, as empresas que operam com exporta-
ção estão acumulando esses créditos e, no caso específico empregos.  A empresa é responsável pela geração de 4.022
do Grupo Aracruz, existem inclusive ações judiciais im- empregos diretos na região, entre colaboradores próprios e
petradas visando a devolução de seus créditos de ICMS parceiros permanentes.”
imediatamente. O relatório anual do Grupo Aracruz in- (Aracruz Celulose, 18 de março de 2009)
forma o acumulado de aproximadamente R$ 369,5 mi-
lhões em créditos de ICMS no final de 2008. De outro lado, a empresa se viu forçada a reduzir o ritmo
da produção fabril, provocando a dispensa de emprega-
A crise econômica mundial e a Aracruz dos das empresas subcontratadas e, também, de trabalha-
Entre 2007 e 2008, o Grupo Aracruz sentiu fortemente o dores contratados diretamente.
impacto da crise mundial e tomou uma série de medidas,
com a ajuda sempre presente do BNDES. Num primeiro “A Aracruz Celulose está promovendo ajustes no seu
momento, a empresa teve que suspender temporariamen- quadro de pessoal próprio, tendo em vista fazer face aos
te o processo de fusão e/ou aquisição que negociava com efeitos da crise global que vem afetando fortemente a
o grupo Votorantim, devido às turbulências causadas pelo empresa, com redução nas vendas e, consequentemente,
prejuízo resultante de apostas mal sucedidas/especulação no ritmo das atividades produtivas.
no mercado de derivativos cambiais. A empresa perdeu Desde o início da crise, a companhia já adotou uma série
mais de R$ 2 bilhões de uma só vez. Com o acirramento de medidas para reduzir custos e preservar seu fluxo de
da crise econômica internacional, houve uma queda subs- caixa, incluindo a suspensão temporária de investimentos
tancial nos contratos de exportação de celulose, levando a em expansão - projeto Guaíba II (RS), compra de terras
Aracruz a rever seus planos de produção e de novos inves- e formação de florestas dos projetos Veracel II (BA) e de
timentos. Com isso, de um lado, ficou comprometido o pro- Minas Gerais, além do investimento para modernizar uma
cesso de atualização tecnológica da Fábrica A, que estava de suas linhas de produção em Barra do Riacho (ES) - e o
em curso, com um volume de investimentos calculado em cancelamento do pagamento de dividendos e juros sobre
R$ 240 milhões, boa parte financiada pelos BNDES. Outros capital próprio, entre outras.
investimentos também foram revistos. Também foram revistos contratos com fornecedores e
prestadores de serviços, e desmobilizados profissionais
“Em comunicado ao mercado divulgado hoje (18 de março), terceirizados alocados a projetos de expansão e a outras
a Aracruz e sua sócia Stora Enso anunciaram a decisão iniciativas que foram descontinuadas.
de adiar os planos de expansão da Veracel, na Bahia, por A persistência do quadro adverso na economia mundial,
pelo menos um ano. Serão cancelados os investimentos entretanto, vem exigindo novos ajustes. Entre desligamentos
programados para 2009 em compra de terras, formação de já realizados e em andamento, a redução do quadro alcança
florestas e estudo de viabilidade, sendo a parte que cabia à cerca de 140 empregados das áreas administrativa e
Aracruz orçada em R$ 75 milhões. operacional que atuam em diversas localidades da Unidade
Segundo o comunicado, os sócios acreditam que essa Barra do Riacho, no Espírito Santo e Bahia. A Unidade
é uma ação prudente, tendo em vista o atual cenário de Guaíba também passa por ajustes, com redução de 37
mercado. O projeto Veracel II prevê a construção de uma pessoas em seu quadro próprio.”
segunda linha de produção, com capacidade de cerca de (Aracruz Celulose, 19 de março de 2009)
1,4 milhão de toneladas anuais.
A Veracel, uma joint-venture da Aracruz (50%) e da sueco- Passado o susto inicial das perdas com a especulação com
finlandesa Stora Enso (50%), está localizada no município derivativos, a Aracruz Celulose retomou as conversações
de Eunápolis, no sul da Bahia, e tem capacidade de com a Votorantim sobre o processo de fusão/aquisição.
produção anual de 1 milhão de toneladas de celulose
branqueada de eucalipto.  “Em comunicado divulgado hoje (20/1) ao mercado, o Grupo
A empresa possui 211 mil hectares de terras, sendo 90 mil Votorantim, através da Votorantim Celulose e Papel (VCP),
hectares de plantio e cerca de 104 mil hectares de reservas informou ter concluído negociações com os integrantes das
nativas, incluindo a Estação Veracel e áreas de Preservação famílias Lorentzen, Moreira Salles e Almeida Braga (Grupo
Permanente e Reserva Legal. Arapar) para aquisição de aproximadamente 28% do capital
A Veracel entrou em operação em maio de 2005 e é votante da Aracruz Celulose pelo valor de R$ 2,71 bilhões.”
mundialmente reconhecida pela excelência operacional, (Aracruz Celulose, 20 de janeiro de 2009)
que lhe confere o mais baixo custo de produção na indústria
global. A atividade da empresa incentiva o crescimento social “Em comunicado divulgado ao mercado ontem, dia 5 de
e econômico da comunidade local, por meio de projetos março, a Votorantim Celulose e Papel (VCP) informou ter
e atendimento às demandas nas áreas de geração de adquirido da Família Safra 28% do capital votante da Aracruz
renda, saúde e educação, além de geração de impostos e Celulose. Com a aquisição, a VCP passa a deter o controle 149
acionário da Aracruz, abrindo caminho para a criação de uma Desenvolvimento Econômico (BNDE), criada com o intuito da participação direta do
banco no capital social dos novos projetos industriais voltados para a produção de
líder global brasileira no setor de celulose e papel.
insumos básicos, e que, mais tarde, fundida a outras instituições do banco formaram a
A empresa que resultará da união entre a Aracruz e a VCP BNDES-Par. A Finame é também uma agência subsidiária do BNDES e está voltada para
vai responder por uma capacidade produtiva de quase 6 o financiamento de máquinas e equipamentos industriais.
milhões de toneladas anuais de celulose, somando mais de
1 milhão de hectares de áreas florestais - dos quais quase
a metade destinada à preservação permanente - em seis Referências Bibliográficas
diferentes estados (ES, BA, MG, RS, SP e MS) do País. A Gazeta, 22/05/59, p. 6, apud. Silva, M. Z. Espírito Santo: Estado, interesses e poder.
Vitória: FCAA/SPDC, 1995, p. 360.
Serão cerca de 15 mil empregos (próprios e terceirizados) e
receita líquida anual da ordem de R$ 7 bilhões. Com escala e Aracruz Celulose S.A. Notícias: Aracruz anuncia mudança na sua composição acionária.
presença globais, 37% do mercado de celulose de eucalipto, <www.aracruz.com.br>. Acessado em 04/out./2001.
22% do mercado de fibra curta e 12% do mercado mundial
___. Notícias: SPE de Aracruz e VCP vencem leilão da Cenibra. <www.aracruz.com.br>.
de celulose, a empresa planeja duplicar de tamanho até Acessado em 04/jun./2001.
2020, com foco em projetos de alto retorno alinhados com as
melhores práticas em responsabilidade socioambiental. ___. Resultado Consolidado de 1999. In: Diário Oficial do Estado do Espírito Santo,
01/fev./2000.
Por ora, as duas empresas continuarão a operar de
forma independente. ___. Resultado Consolidado de 2001. In: Diário Oficial do Estado do Espírito Santo,
Este anúncio não constitui uma oferta de valores mobiliários, 15/jan./2002.
ou uma oferta de compra de valores mobiliários, nos EUA.
___. Notas explicativas da administração às demonstrações financeiras em 31 de dezembro
Quaisquer transações envolvendo ofertas de valores de 1999. In: Diário Oficial do Estado do Espírito Santo, 01/fev./2000. p. 27.
mobiliários, ou ofertas de compra de valores mobiliários,
referidas neste anúncio não serão realizadas nos EUA sem ___. Quem somos, 2008. Disponível em: <www.aracruz.com.br>
Acessado em 04/out./2008.
serem registradas ou sem que haja uma isenção de registro
para as mesmas.” ___. Relatório Anual 2008. Disponível em: <www.aracruz.com.br> Acessado em 04/
(Aracruz Celulose, 6 de março de 2009) mai./2009.

___. Notícias. Disponível em: <www.aracruz.com.br> Acessado em 04/mai./2009.


Com o novo processo de centralização financeira, o ca-
pital social da Aracruz passou a ser composto da seguin- Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo. Perspectivas de desenvolvimento
te forma: integrado do Espírito Santo, no próximo decênio, a partir do crescimento econômico
assegurado pelos grandes projetos. 1973, p. 69-70. Apud. Rodrigues, Antonio Celso D.,
Simões, Roberto Garcia. Os grandes diretores do processo de transformação no Espírito
Tabela 8 – Participação acionária na Aracruz Celulose S. A. após fusão Santo – ES século XXI, Vitória, 1988. p. 53.
Acionista Participação BNDES. BNDES apóia expansão da Aracruz com R$ 666 milhões. 2002. Disponível em:
<www.bndes.gov.br>.
Grupo Lorentzen 28,0%
Banco Safra 28,0% Brandão, Leopoldo Garcia. Complexo paraquímico do Estado do Espírito Santo. In: Fórum
Nacional de Oportunidades Industriais de Espírito Santo (anais). Vitória, 06/mar/1975.
Cia. Souza Cruz 28,0%
Dalcomuni, Sonia Maria. A implantação da Aracruz Celulose no Espírito Santo – principais
BNDES 12,5% interesses em jogo. Itaguaí (RJ): UFRRJ. Dissertação (Mestrado), 1990.
Outros 3,5% Gomes, Helder. Potencial e limites às políticas regionais de desenvolvimento no Estado do
Espírito Santo: o apego às formas tradicionais de intermediação de interesses. Vitória (ES):
UFES. Dissertação (Mestrado), 1998.

Referências Najberg, S. Privatização de recursos públicos: os empréstimos do Sistema BNDES ao setor


1- Em 2009, o Grupo Votorantim comprou as ações de outras duas acionistas privado nacional com correção monetária parcial. Dissertação (mestrado). Rio de Janeiro:
principais, o Grupo Lorentzen e Banco Safra, para se tornar dono da empresa ao lado PUC/RJ, 1989.
do BNDES. O novo grupo que se constituiu assim ganhou um novo nome: a Fibria.
Também em 2009, a empresa vendeu a unidade Guaíba para o grupo chileno CMPC. Pereira, Guilherme Henrique. Política industrial e localização de investimentos: e o caso do
Espírito Santo. Vitória: EDUFES, 1998. 293 p.
2- Trecho da Palestra “Complexo paraquímico do Estado do Espírito Santo”, proferida
por Leopoldo Garcia Brandão, do Grupo Aracruz, no “Fórum Nacional de Oportunidades Rocha, Haroldo Corrêa, Morandi, Ângela Maria. Cafeicultura e grande indústria: a
Industriais de Espírito Santo”, realizado em Vitória, em 06 de março de 1975. p.1. transição no Espírito Santo – 1955/1985. Vitória: FCAA, 1991.
Antônio Dias Leite, um dos sócios da ECOTEC, chegou a ser ministro das Minas e
Energia e Leopoldo Garcia Brandão, de técnico da ECOTEC, passou mais tarde a Silva, Justo Corrêa da. Espírito Santo: a influência do processo de industrialização na
pertencer a uma das diretorias do Grupo Aracruz Celulose. formação da estrutura do poder Executivo – 1967-1983. Belo Horizonte: UFMG/FACE.
Dissertação (Mestrado), 1993.
3- As ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional) eram títulos públicos da
época. A Fibase foi uma das instituições subsidiárias do antigo Banco Nacional de Silva, Marta Zorzal e. Espírito Santo: Estado, interesses e poder. Vitória: FCAA/SPDC, 1995. 498 p.
150
2
sociedade espera. Em nome do interesse coletivo, como
maior beneficiária do meio ambiente ecologicamente
equilibrado, conforme preconizado no capítulo de Meio
Ambiente da Constituição Federal, considerado um dos
mais avançados do mundo, era de se esperar que a Justi-
ça tivesse uma outra postura. Outras estão em instâncias
governamentais, no âmbito administrativo, também sem
nenhuma resposta concreta pela morosa tramitação nos
meandros burocráticos dos órgãos governamentais, espe-
cialmente os do governo do Espírito Santo.
Em boa hora a Rede Brasil sobre Instituições Financei-
ras Multilaterais e a Rede Alerta contra o Deserto Verde se
Fraudes e juntam para garantir a publicação dessa obra, com tex-
tos sobre diversos aspectos da implantação e atuação da
Ilegalidades Aracruz Celulose, que muito pouco - e na imensa maioria
das vezes nenhum - espaço tem nos periódicos de maior
Sebastião Ribeiro Filho circulação no estado, bem como nas mídias de rádio e TV
do Espírito Santo.

“Aqui, entre a proteção do patrimônio ecológico nacional, I- A destruição da Mata Atlântica


permitam-me a alegoria, e os respeitáveis interesses e a concentração fundiária
privados, aventados na inicial, em termos de medida liminar,
não tenho dúvida, fico com o primeiro”. Embora a destruição da Mata Atlântica para a implan-
tação dos plantios de eucalipto da Aracruz Celulose no
(Ministro Sepúlveda Pertence, ADIN 487 – DF – município de Aracruz, no final da década de 1960, a prin-
Medida Liminar, 09 de maio de 1991) cípio não se caracterize como ato ilegal, é fundamental
que fique registrado que a empresa foi responsável pela
destruição de cerca de 40 mil hectares desse Patrimônio
Aracruz, Espírito Santo, Brasil, 1967. Em plena ditadura Ecológico Nacional somente naquele município (um cri-
militar, o governo decide implantar neste município uma me contra a biodiversidade no estado e no País). Tal des-
indústria de produção de celulose de fibra curta (produto truição foi constatada na análise dos Estudos de Impacto
semi-elaborado, destinado à exportação para outras indús- Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental
trias de celulose, principalmente de países da Europa, que (EIA/Rima) da primeira expansão da produção da em-
fabricam papel higiênico e fraldas). presa – feita pelo Instituto de Tecnologia da Universidade
Espírito Santo – Brasil, 2007, após quatro décadas de Federal do Espírito Santo (Itufes), no processo de licen-
atividades da Aracruz Celulose, a empresa faz uma cam- ciamento ambiental a cargo da Secretaria de Estado da
panha publicitária com o mote: “Há 40 anos cumprindo Saúde, em 1987/1988 – quando a produção industrial pas-
um bonito papel”. No entanto, não é bem assim. Ao lon- sou de 450 mil para 1 milhão de toneladas/ano.
go desse período, uma sucessão de fraudes e ilegalidades
marcou a trajetória da empresa, demonstrando claramen- O Rima, na sua página 6, registra que:
te que o “papel da Aracruz” nesse período “não é tão belo”
quanto o “quadro pintado” pelos profissionais que fazem o “Através da análise de fotos aéreas obtidas em 1970/71,
marketing da empresa. Na verdade, está bem longe de ser verificou-se que pelo menos 30% da superfície do município
como a empresa afirma. de Aracruz era coberta por floresta nativa no início da década
Este texto não é uma provocação à Aracruz Celulose de 1970, que foram substituídas por florestas homogêneas
S.A., nem aos governos e integrantes dos governos, que de eucalipto1 para a Arflo (Aracruz Florestal)”.
em diversas instâncias, ao longo destes 40 anos, atua-
ram beneficiando de forma ilegal a empresa. Trata-se de Duas dessas fotos aéreas foram anexadas às paginas
um relato e análise fundamentados em documentos ofi- 1.381 e 1.382 dos autos da Comissão Parlamentar de In-
cias, que comprovam o cometimento de muitas fraudes quérito (CPI) da Aracruz juntamente com o depoimento
e ilegalidades ao longo dessas décadas. Muitas já estão de Fábio Martins Villas, comprovando os dados dos le-
em fase de judicialização, porém, algumas estão há vá- vantamentos feitos durante a realização dos estudos de
rios anos, sem que o Poder Judiciário tenha ainda, nem impacto ambiental da ampliação de 1988. Esta CPI foi
mesmo em primeira instância, dado as respostas que a criada pela Resolução n° 2.028/2002 da Assembléia Le- 151
gislativa e teve como objetivo investigar possíveis irregu- Gazeta, em 22 de agosto de 1999. Posteriormente, esse
laridades nos licenciamentos das atividades da Aracruz recorde foi suplantado por uma área também de Mata
Celulose S.A.. Atlântica no sul da Bahia. E esses remanescentes, devi-
O município de Aracruz tem 1.435 km2. Pelo menos 430 do à sua importância foram erguidos à condição de Pa-
km2 (cerca de 43 mil hectares) de florestas nativas de trimônio Nacional (art. 225 da CF) e também da Huma-
Mata Atlântica foram derrubados, só no município, para nidade (conforme reconhecimento da Unesco – institui-
substituição desse ecossistema de riquíssima biodiversi- ção da Organização das Nações Unidas para a Educação,
dade pela monocultura de eucalipto. Para se ter uma idéia Ciência e Cultura), em face não apenas da importância
do significado dessa destruição, a Reserva Biológica de da Mata Atlântica para o Brasil e para o planeta, como
Sooretama, maior área protegida no estado, que tem em também por fazer parte dos ecossistemas mais ameaça-
seu entorno inúmeros plantios da empresa, tem uma área dos do mundo.
de 24 mil hectares. A compreensão do significado do “grande impacto”
Essa destruição foi confirmada pelo depoimento e tes- citado no Rima da ampliação de 1988 foi pesquisada e
temunho de Antônio dos Santos, cacique Tupiniquim - constatada no Rima de outra empresa, a Bragussa, for-
então com 66 anos -, perante a CPI da Aracruz Celulose necedora de água oxigenada para a Aracruz Celulose,
em 21 de maio de 2002: que data de setembro de 1994 e foi elaborado pela Cepe-
mar, empresa que presta serviços à Aracruz. Os estudos
“... nesse tempo em que passei trabalhando, vi muitas destacam quatro quadros, com dados comparativos so-
coisas erradas que a Aracruz está fazendo: derrubava bre espécies da fauna em áreas de vegetação natural de
a mata com os correntões, juntava com as máquinas restinga em Barra do Riacho (RR), Barra do Sahy (RS) e
pesadas, botava fogo, queimava e destruía tudo as em áreas de eucaliptos da Arcel (EU). Conforme os da-
madeiras de lei. Vi muitos bichos queimados no meio da dos abaixo, não há dúvidas sobre o quanto a substituição
terra arada, da terra destocada pelas máquinas e assim dos remanescentes de Mata Atlântica pelos plantios da
por diante. Vi muitas coisas erradas sem saber e sem empresa no município de Aracruz contribuiu significati-
ter conhecimento”. vamente para a redução da diversidade da fauna nativa
da região:
Os “correntões” a que se refere o cacique Antônio
eram correntes de enormes dimensões e grande peso, 1) Anfíbios
atadas em suas pontas a dois tratores que arrastavam as RR – 15 registros (3 sapos, 10 pererecas e 2 rãs)
árvores (muitas delas com mais de 30 metros de altura) RS – 13 registros (2 sapos, 9 pererecas e 2 rãs)
em amplas áreas. EU – 4 registros (2 sapos e 2 pererecas)
As consequências dessa destruição e a substituição da
flora da Mata Atlântica pela monocultura extensiva de 2) Répteis (Lagartos e serpentes)
eucalipto não poderiam ter outros desdobramentos se- RR – 17 registros (9 lagartos e 8 serpentes)
não a perda irreparável da biodiversidade, que também RS – 15 registros (6 lagartos e 9 serpentes)
foi abordada no Rima da primeira ampliação da produção EU – 6 registros (3 lagartos e 3 serpentes)
da Aracruz Celulose:
3) Aves
“A substituição de florestas nativas heterogêneas por RR – 27 registros
florestas homogêneas de eucalipto representou um grande RS – 32 registros
impacto ambiental em diversas fases de implantação da EU – 6 registros
Arflo, reduzindo a diversidade biológica e comprometendo a
sobrevivência de muitas populações de espécies da flora e 4) Mamíferos
da fauna nativas”. RR – 15 registros
RS – 17 registros
Biodiversidade que, no Espírito Santo, foi reconhe- EU – 3 registros
cida em 1999 como a mais rica do planeta, em matéria
de espécies florestais. Essa foi a conclusão da bióloga Esses quadros demonstram aspectos de impactos
Luciana Dias Thomaz, após três anos de pesquisas re- ambientais das atividades da Aracruz Celulose especi-
alizadas na Estação Biológica de Santa Lúcia, em Santa ficamente sobre a fauna das áreas de Mata Atlântica.
Teresa. Aquela área de Mata Atlântica defendida vee- No entanto, aspectos ainda mais perversos - analisa-
mentemente pelo legendário cientista capixaba Augusto dos nesta publicação por outros técnicos e cientistas
Ruschi tinha “a maior diversidade do planeta, com cerca - atingiram e continuam atingindo os recursos hídricos,
152 de 476 espécies por hectare”, o que foi noticiado por A o solo e, notadamente, as comunidades indígenas, qui-
lombolas, os pescadores e os pequenos agricultores nos Arcel ocupa 17,89% desta fatia nobre”.
municípios onde a Aracruz Celulose faz seus plantios. Os impactos provocados pela concentração fundiária
Daí a importância dessa publicação, que possibilitará dos plantios da Aracruz Celulose foram traduzidos em
uma maior visibilidade do imenso passivo social, cul- números no depoimento da geógrafa Simone Ferreira na
tural, econômico e ambiental dessa empresa, não só no CPI que apurou irregularidades nas atividades da em-
Espírito Santo – que é tema específico dos textos deste presa, quando apresentou um quadro preocupante, prin-
livro – como em todos os estados onde ela atua. cipalmente no município de Conceição da Barra, onde a
Em relação à concentração fundiária, a análise pelo Itu- produção agrícola praticamente já não existe:
fes do Rima da expansão de 1988 também destacou im-
pactos socioeconômicos, alertando que: “Segundo dados da Secretaria de Agricultura de Conceição
da Barra, 68% das terras são das empresas de celulose.
“a ocupação de grande superfície territorial (direcionada A Bahia Sul e a Suzano têm uma pequena parte quase na
para uma única cultura), o desequilíbrio já promovido divisa do município em Mucuri; e desses 68% tirando os 20%
na estrutura fundiária e a própria dimensão do de reserva legal, 48% são destinados ao plantio de eucalipto
empreendimento, levaram a mudanças sensíveis no para produção de celulose”.
sistema de produção agropecuária e condições de vida da
população estabelecida no entorno do empreendimento. A preocupação com relação à concentração fundiária
Tais fatos devem ser levados em consideração, quando se foi uma das matérias debatidas no processo de elabora-
sabe que a concentração de terras em empreendimentos ção da Constituição Estadual, promulgada em 1989, fruto
de grande porte tem sido preocupação do poder público, também do processo de ampliação da Aracruz Celulose
que almeja melhorias na estrutura fundiária atual, no ano anterior. O art. 247, § 2° estabelece que:
diversificação agrícola, aumento de emprego e reversão
do êxodo rural, conforme expresso em documento recente “Para a concessão de licença de localização, instalação,
do governo do estado do Espírito Santo (Ofício 482/86) operação e expansão de empreendimentos de grande
anexado a esta análise”. porte ou unidades de produção isoladas integrantes
(pág. 34) de programas especiais pertencentes às atividades
mencionadas no parágrafo anterior, o Poder Público
O Ofício 482/86 em referência foi encaminhado pelo estabelecerá, no que couber, condições que evitem a
então governador do estado do Espírito Santo, Gerson intensificação do processo de concentração fundiária e de
Camata à presidência da Aracruz Celulose, que desta- formação de grandes extensões de áreas cultivadas com
cou ainda: monoculturas. (§ 2° - No planejamento da política agrícola
do estado incluem-se as atividades agro-industriais,
“Esse processo de aquisição de áreas, particularmente agropecuária, pesqueira e florestal)”.
no norte do estado, vem trazendo grande apreensão
junto a lideranças políticas (prefeitos e vereadores), rurais No entanto, tanto a Seama (órgão ambiental estadu-
(patronais e trabalhadores) e comunitárias, tendo em vista o al) como o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal
seu efeito negativo no que diz respeito ao agravamento da (Idaf, órgão licenciador das atividades de plantio da Ara-
concentração fundiária em nosso estado”. cruz Celulose) desconsideraram essas normas nos licen-
ciamentos feitos a partir da promulgação da Constituição
Tal situação levou o governador a solicitar à empresa: Estadual, o que contribuiu para que uma série de impac-
“Paralisar a aquisição de novas áreas em nosso estado”; e tos ambientais, sociais, econômicos e culturais permane-
ainda a “destinar parte de áreas já adquiridas a projetos cesse sem mitigação ou compensação, conforme prevê a
de reforma agrária dentro do PNRA [Plano Nacional de legislação ambiental.
Reforma Agrária] aprovado pelo presidente José Sarney No processo de licenciamento da ampliação que ocor-
para o Espírito Santo.” reu em 1988 deve ser destacado que o estado, ao tomar a
Os impactos dessa concentração fundiária no norte do decisão restritiva aos plantios, atuou em duas questões
estado também foram objeto de análise em outra CPI, a de modo bastante incisivo, com consequências que, em-
da Poluição, criada em 1995, perante a qual um repre- bora contrariassem os interesses da Aracruz Celulose -
sentante da Aracruz Celulose S.A. prestou depoimento. interesse privado em adquirir mais terras para plantio
Na ocasião, os plantios da empresa totalizavam 83 mil no Espírito Santo -, estavam voltados para a defesa do
hectares e ocupavam 1,8% do território estadual. A equi- interesse público de evitar a ampliação da concentração
pe técnica da CPI ressaltou que “a área agricultável no- fundiária da empresa, bem como preservar as áreas pla-
bre do estado, que são os terrenos mecanizáveis, repre- nas do norte do Espírito Santo, as melhores terras para a
sentam cerca de 33% do território do Espírito Santo, e a agricultura no estado. 153
II- As Fraudes nas Legitimações Com a suspensão dos trabalhos da CPI por força de
de Terras Devolutas uma decisão do Supremo Tribunal Federal, diversas
entidades que integram a Rede Alerta contra o Deserto
a- O Que são Terras Devolutas? Verde, com base nas provas das fraudes existentes nos
Segundo a definição do art. 5o do Decreto-Lei No. 9.760, autos dos processos da CPI, fizeram requerimento jun-
de 05 de setembro de 1946: to à Procuradoria Geral do Estado (PGE) - Protocolo
N° 28212827, de 17 de agosto de 2004 - para anulação
“São devolutas, na faixa da fronteira, nos territórios federais das legitimações, visando reaver as referidas terras
e no Distrito Federal, as terras que, não sendo próprias nem para devolvê-las a seus legítimos donos, os quilombo-
aplicadas a algum uso público federal, estadual territorial ou las do Sapê no Norte. O pedido teve uma análise prévia
municipal, não se incorporaram ao domínio privado: a) por por parte da PGE e foi encaminhado ao Idaf, em 28 de
força da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, Decreto novembro de 2005, para levantamento quanto às frau-
nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854, e outras leis e decretos des denunciadas. Porém, até o início de 2009 o órgão
gerais, federais e estaduais; b) em virtude de alienação, não havia informado o andamento da apuração, mes-
concessão ou reconhecimento por parte da União ou dos mo instado a fazê-lo mediante pedido da Assembléia
estados; c) em virtude de lei ou concessão emanada de Legislativa feito no início de 2008.
governo estrangeiro e ratificada ou reconhecida, expressa A comprovação da fraude foi constatada no depoimen-
ou implicitamente, pelo Brasil, em tratado ou convenção to de funcionários e ex-funcionários da empresa. Ivan de
de limites; d) em virtude de sentença judicial com força Andrade Amorim, por exemplo, assumiu perante a CPI
de coisa julgada; e) por se acharem em posse contínua e a prática de “crime de falsidade ideológica” no processo
incontestada com justo título e boa fé, por termo superior de requerimento das terras (crime que, em tese, já pres-
a 20 (vinte) anos; f) por se acharem em posse pacífica e creveu). Junto ao órgão estadual, obteve a legitimação de
ininterrupta, por 30 (trinta) anos, independentemente de duas áreas de terras devolutas nos municípios de São
justo título e boa fé; g) por força de sentença declaratória Mateus (480 hectares) e Conceição da Barra (44 hecta-
proferida nos termos do art. 148 da Constituição Federal, de res), totalizando 524 hectares.
10 de novembro de 1937”. Em seu depoimento, perguntado se detinha posse de
propriedade rural ou se exercia atividade de cultivo ou
b- As primeiras fraudes afim, respondeu: “Nessa época, não, nada!” (fls. 4.494 dos
Os primeiros plantios de eucalipto para a produção de autos da CPI). Afirmou ainda que, após adquirir as terras,
celulose pela Aracruz tiveram início em 1967, quando ain- as titulou para as empresas Brasil Leste, Vera Cruz e Ara-
da existia a Aracruz Florestal. Dessa época, os documen- cruz Celulose, garantindo:
tos que demonstram o início das fraudes cometidas pela
empresa vieram à tona através de cópias entregues à CPI “Fiz isso por liberalidade. A empresa me pediu e não hesitei
estabelecida em 2002, bem como de depoimentos presta- porque era um pedido da empresa. E por ter sido bem
dos por funcionários e ex-funcionários da empresa. tratado, sempre tive bom relacionamento, titulei, mas nada
Um dos documentos entregues à CPI contém uma lis- recebi (...). Na época, assinei o requerimento, depois que a
tagem com sessenta e cinco áreas, requeridas por mais de escritura foi liberada, não sei em que período, outorguei a
trinta desses empregados e ex-empregados da empresa escritura para a empresa.”
– que, após “legitimarem” as terras em seus nomes, repas- (fls. 4.496)
saram essas terras para a Aracruz Celulose. Foram mais
de 13 mil hectares de “legitimação” de terras, “transferi- Orlindo Antônio Bertolini também fez requerimento de
das” para a empresa, que as incorporou a seu patrimônio. três áreas de terras devolutas em São Mateus (com 201,
“Terras públicas”, muitas delas em locais considerados 395 e 201 hectares cada), totalizando 797 ha. No processo
como os melhores no estado para a agricultura, consegui- de legitimação dessas terras apareceu o nome do então
das de modo fraudulento. presidente do Conselho de Administração da Aracruz
Essas áreas de terras estão concentradas nos municí- Celulose S.A., Erling Sven Lorentzen, que firmou procu-
pios de São Mateus e Conceição da Barra, na região de- ração – presente em outros processos de “legitimação”,
nominada Sapê do Norte, tradicionalmente ocupada de em nome de empregados e ex-empregados da empresa
forma comunal pelos escravos libertos a partir de 1888, – onde nomeava um dos procuradores que atuou junto a
do Quilombo de Santana (Conceição da Barra). Hoje, órgãos do estado, para proceder a “transferência” das ter-
os quilombolas estão dispersos em várias comunidades ras legitimadas pelos empregados e ex-empregados para
“ilhadas” pelos plantios de eucalipto da Aracruz Celulose, Arcel, numa atitude que “em tese” corroborava as irre-
sofrendo todo tipo de pressão e efeitos dos impactos pro- gularidades cometidas nos processos de “legitimações” e
154 vocados por esses plantios. “transferência” das terras.
No depoimento perante a CPI, o ex-funcionário da favorece o interesse privado, em detrimento do interesse
empresa fez as seguintes afirmações: “Trabalhei para a público e coletivo de toda a sociedade.
Aracruz Celulose no período de 1968 a 1998”. Pergunta-
do se exerceu alguma outra atividade nesse período, res- III - Normas Constitucionais e Legais
pondeu negativamente. Ele afirmou que tinha um sítio no
município de Aracruz e perguntado se teve outras áreas, a- Da Constituição Federal
respondeu: “Tive outras e passei para a empresa, depois As normas da Constituição de 1988 que tratam da pro-
de legitimada” e que “tinha consciência de que iriam ser re- teção ambiental colocaram o Brasil em posição de desta-
queridas em meu nome para passar posteriormente, depois que no cenário mundial. O art. 225 estabelece que “todos
de legalizadas, para a empresa Aracruz Celulose” e ainda têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
que “foi de imediato, assim que as adquiri, passei para a bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualida-
Aracruz”. Afirmou também que “essas terras foram só lega- de de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade
lizadas em meu nome para que eu passasse para Aracruz o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
depois, para uso de reflorestamento de eucalipto”, que não futuras gerações”. O parágrafo primeiro, inciso IV deste
recebeu nada por isto e que “achei que era um modo de artigo prevê:
estar ajudando a Aracruz”.
Na legislação que regulava a legitimação de terras de- “§ 1°. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe
volutas do estado à época estavam a Lei Estadual 617/51, ao Poder Público: IV – exigir, na forma da lei, para a
a Lei Delegada 16/67 e o Decreto 2688/68. E entre os re- instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de
quisitos para se obter a legitimação dessas terras estava significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de
a de comprovação de que o requerente fosse “lavrador impacto ambiental, ao que se dará publicidade”.
ou criador, ou se dedicar a atividades agropecuárias”,
sendo que a Lei Delegada Estadual 16/67 impunha ain- A “defesa do meio ambiente” também está entre as medi-
da, para a legitimação de posse: “a existência de cultura das que as atividades econômicas devem adotar, conforme
efetiva, moradia habitual do posseiro no prazo mínimo prevê o inciso VI, como um dos princípios elencados no art.
de três anos e manter, pelo menos, uma quinta parte de 170, que trata da “ordem econômica e a livre iniciativa”.
terreno em exploração”.
Tendo em conta as normas que regulavam a legitima- b- Da Constituição Estadual
ção de terras e o teor de seus depoimentos, é evidente que A Constituição do estado do Espírito Santo, acompa-
houve fraude nos processos de requerimento das áreas nhando as diretrizes da Constituição Federal, estabeleceu
legitimadas em nome de Ivan de Andrade Amorim e de em seu art. 186 que “Todos têm o direito ao meio ambiente
Orlindo Antônio Bertolini (e, provavelmente, de outros ecologicamente saudável, impondo-se-lhes e, em espe-
empregados e ex-empregados da Aracruz Celulose, cuja cial, ao estado e aos municípios, o dever de zelar por sua
comprovação e providência foi requerida à Procuradoria preservação, conservação, e recuperação em benefício das
Geral do Estado). Essas terras deveriam ter sido destina- gerações atuais e futuras”, e no art. 187 “para a localiza-
das para a agricultura, como determinava a legislação, e ção, instalação, operação e ampliação de obra ou atividade
há mais de 40 anos estão sendo cultivadas com eucaliptos potencialmente causadora de significativa degradação do
destinados à produção de polpa de celulose. Essa situação meio ambiente, será exigido relatório de impacto ambien-
não será revertida, ou seja, os eucaliptos permanecerão lá tal, na forma da lei que assegurará a participação da comu-
por muitas outras dezenas de anos, caso o estado do Es- nidade em todas as fases de sua discussão”. O parágrafo
pírito Santo não adote medidas para retomar essas terras primeiro complementa “ao estudo prévio do relatório de
com a finalidade de destiná-las para sua verdadeira fina- impacto ambiental será dada ampla publicidade”.
lidade – a prática de agricultura, por agricultores e pelas
comunidades tradicionais dos quilombolas. c- O Princípio da Legalidade
E ao que parece, essas providências não têm perspec- Segundo Hely Lopes Meirelles (em Direito Administra-
tivas de brevidade quanto à sua concretização. Como já tivo Brasileiro, Editora Revista dos Tribunais, SP), “a efi-
mencionado, o requerimento protocolado na PGE pelas cácia de toda atividade administrativa está condicionada
entidades da Rede Alerta contra o Deserto Verde foi enca- ao atendimento da lei”.
minhado ao Idaf em 28 de novembro de 2005, mas ain- As lições deste reconhecido mestre elucidam de modo
da permanece sem um posicionamento do órgão. Nessas cabal as irregularidades pela não observância de normas
ocasiões, pouco ou nada valem as lutas das entidades da legais nos licenciamentos:
sociedade civil, pois prevalece o poder econômico que
move os interesses envolvidos. Mesmo diante da compro- “Na Administração Pública, não há liberdade nem vontade
vação de fraude, acaba prevalecendo a ilegalidade que pessoal. Enquanto na Administração Particular é lícito fazer 155
tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é A contratação do consultor foi recomendada, em 06 de
permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular maio de 1999, por técnicos da Seama que atuaram no li-
significa ‘pode fazer assim’, para o administrador público cenciamento para que fossem “executados serviços de
significa ‘deve fazer assim’”. consultoria externa nas áreas de recursos hídricos e le-
gislação”. Eles solicitaram à prefeitura de Aracruz “con-
Não é outra senão esta a exigência constitucional do art. tratação de técnicos eminentes na área de recursos hídri-
37, caput da CF, ao incluir o princípio da legalidade entre cos para análise do aspecto jurídico e técnico da matéria
aqueles que a Administração Pública deve obedecer em a prover subsídios e garantir maior agilidade para o pro-
todos os seus atos. Nas palavras de Meirelles: “se para o cesso de licenciamento”.
particular o poder de agir é uma faculdade, para o admi- A agilidade realmente aconteceu – a despeito de haver
nistrador público é uma obrigação de atuar, desde que se técnicos habilitados no estado e o engenheiro agrônomo
apresente o ensejo de exercitá-lo em benefício da comu- contratado ser do Rio Grande do Sul – Antônio Eduardo
nidade”. (p. 76) Lana enviou por fac-símile, em 11 de maio de 1999, o pare-
cer técnico com algumas afirmações a seguir transcritas:
d- Impacto Ambiental
O conceito legal de impacto ambiental está estabeleci- “1 . Trata-se de projeto de aproveitamento das vazões do
do no art. 1° da Resolução 01/86 do Conama: Rio Doce em sua própria bacia, mais especificamente no
leito maior deste curso de água e que é localizado na região
“Art. 1° - Considera-se impacto ambiental qualquer alteração deltaica da sua foz;”
das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio “2 . A utilização da água derivada do Rio Doce será para
ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou atender o Parque Industrial da Aracruz Celulose S. A. já
energia resultante das atividades humanas que direta ou existindo outorga neste sentido, concedida pelo Ministério
indiretamente afetam: das Minas e Energias; em situações de emergência, poderá
I) a saúde, a segurança e o bem estar da população; associar-se com a prefeitura de Aracruz para realizar
II) as atividades sociais e econômicas; abastecimento público da região, tendo em vista a utilização
III) a biota; prioritária para esta finalidade.”
IV) as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente;
V) a qualidade dos recursos ambientais”. Desde o início havia um entendimento na Seama de que
o licenciamento ambiental seria para “derivação” das águas
IV- Ilegalidades no licenciamento do Rio Doce e não transposição de bacia, o que foi ratifica-
do Rio Doce do pelo consultor técnico. Com base nesse entendimento, o
órgão repassou à prefeitura um Termo de Referência para
a- Da Tramitação do Processo Administrativo a elaboração de uma Declaração de Impacto Ambiental
O licenciamento ambiental para “adução de água do Rio (DIA), ao invés do EIA/Rima, o que - em si - constitui-se
Doce e limpeza dos antigos canais do Departamento Na- em irregularidade, com algumas graves consequências.
cional de Obras de Saneamento (DNOS) para aumento A norma do art. 37 do Decreto N° 4.344-N, de 07 de ou-
da disponibilidade hídrica nas várzeas do Rio Riacho nos tubro de 1998, que então regulamentava o Sistema Es-
município de Linhares e Aracruz”, foi requerido pelo mu- tadual de Licenciamento de Atividades Poluidoras ou
nicípio de Aracruz à Secretaria de Estado para Assuntos Degradadoras do Meio Ambiente, Seama, estabelecia que
do Meio Ambiente (Seama), em 27 de abril de 1999. Declaração de Impacto Ambiental:
A partir de um ponto de captação distante 16 km da foz
do rio houve desmatamento em área de preservação per- “é um estudo ambiental obrigatório a todos os casos de
manente (com autorização do órgão florestal estadual) licenciamento para empreendimentos ou atividades que
para construção de um dique de 2 km, com uma comporta possam causar degradação ambiental, não abrangidas pela
para regular a passagem das águas até os canais do DNOS. exigência do EIA/Rima, mas de relevante interesse público,
As águas percorrem os canais por 7 km até outro dique, exigível a critério técnico a ser estabelecido pelo órgão
também de 2 km, que regula sua passagem para os rios estadual competente e aprovado pelo Conselho Estadual do
Comboios e Riacho. Toda essa obra foi feita “para atender Meio Ambiente.”
o Parque Industrial da Aracruz Celulose S. A.”, conforme
registrado em parecer do engenheiro agrônomo Antônio A irregularidade, neste caso, é que não há obrigatorie-
Eduardo Lana, consultor técnico contratado pela prefeitura dade de realização de audiência pública para licencia-
de Aracruz para atuar no licenciamento. De fato, a melhoria mentos com a DIA, ao contrário dos licenciamentos com
do abastecimento de Barra do Riacho não ocorreu, pois as EIA/Rima (a Seama chegou a realizar reuniões públicas
156 águas não chegam até o local de captação do distrito. em Aracruz e Linhares, porém, o rito de audiência públi-
ca é distinto). Desse modo, o processo pôde tramitar com jurídico enviado à Seama por fac-símile no dia 12 de maio
maior rapidez no órgão ambiental, sob pretexto de aten- de 1999 com transmissão iniciada às 17h04 e concluída às
dimento de abastecimento público – melhoria no abaste- 17h23, manifestando-se favoravelmente ao licenciamento
cimento dos distritos de Vila do Riacho e Barra do Riacho com a DIA, uma vez que o entendimento técnico era de que
(este último, porém, não foi atendido) – e de algumas pro- tratava-se de “derivação” e não “transposição de bacia”.
priedades rurais nos dois municípios. Importante atentar para o horário, de modo a ressaltar
O licenciamento com o EIA implicaria também em pro- que no mesmo dia 12 de maio a tramitação do processo
videnciar sua publicação em grandes jornais e disponibi- incluiu: 1) Despacho para o Setor de Licenciamento, para
lizar os estudos para consulta pública pelo órgão ambien- análise do parecer do consultor técnico, com procedimen-
tal pelo prazo de pelo menos 45 dias e dar publicidade a to da análise e devolução do processo ao Gabinete; 2) re-
essa disponibilização, findo o qual seria realizada audiên- cebimento e juntada aos autos de cópia de parecer e au-
cia pública. Deste modo, além de desconsiderar que téc- torização do Idaf para desmatamento na área de implan-
nica e legalmente tratava-se de ‘transposição de bacia’, a tação de dique, às margens do Rio Doce; 3) recebimento
decisão do órgão impediu a participação da população de e juntada aos autos do parecer do consultor jurídico, no
modo mais efetivo no licenciamento. horário destacado; 4) encaminhamento e análise do pro-
Outra situação não menos grave foi o fato de o licen- cesso pela Assessoria Técnica da Seama; 5) devolução do
ciamento ter sido requerido pelo município de Aracruz, processo ao secretário da pasta, que determinou ao Setor
tendo como principal premissa o interesse público para de Licenciamento a emissão das licenças; 6) emissão das
melhoria do abastecimento. Porém, o interesse privado licenças de Localização (LL), n° 012/99, e de Instalação
da Aracruz Celulose em assegurar o abastecimento de (LI), n° 016/99; 7) recebimento das licenças pelo repre-
seu parque industrial foi o maior beneficiário do licen- sentante da prefeitura de Aracruz.
ciamento, em face de um iminente problema de escassez Entretanto, o consultor jurídico ignorou a norma do
de água que estava prestes a ocorrer com um período de art. 6º da legislação estadual de recursos hídricos - Lei
seca no final do ano de 1998 e início de 1999. Esse fato Estadual 5.818, de 30 de dezembro de 1998 - que dispõe
está confirmado no parecer do consultor técnico Antônio sobre a Política Estadual de Recursos Hídricos e esta-
Eduardo Lana. belece o conceito legal de bacia hidrográfica como “área
José Cláudio Pimenta, quando atuava como Coorde- drenada por um curso d’água ou por uma série de cursos
nador das Curadorias de Meio Ambiente do Ministério d’água, de tal forma que toda a vazão efluente seja des-
Público Estadual, manifestou-se sobre esse processo de carregada através de uma só saída, na porção mais baixa
licenciamento no OF/CAAB/N° 292/2001, de 27 de agos- do seu contorno”.
to de 2001, que foi encaminhado ao Procurador Geral: Desse modo, a conclusão manifestada pelo consultor
técnico Antônio Eduardo Lanna de que o aproveitamento
“No tocante aos licenciamentos ambientais relacionados com de águas do Rio Doce em sua própria bacia, na qual se
a empresa Aracruz Celulose, que tramitam junto à Seama, baseou o consultor jurídico, era equivocada, pois a foz do
constamos que há uma licença requerida pela Prefeitura Rio Doce e dos rios Riacho e Comboios são distintas e,
Municipal de Aracruz para adução de água do Rio Doce, legalmente, como visto, pertencem a bacias hidrográficas
mediante um sistema de canais e comportas de controle diferentes. Logo, o licenciamento foi para transposição de
de vazão e transferência d’água até o Rio Riacho, tendo bacia e não derivação de curso d’água como a Seama e os
como beneficiária principal a empresa, com direcionamento consultores entenderam.
do fluxo d’água para o sistema de captação do complexo Portanto, trata-se de licenciamento que exigiria análise
industrial da fábrica de celulose. Releva salientar que esse e aprovação prévia de EIA/Rima, conforme a norma do
licenciamento foi requerido pelo poder público municipal, sob Inciso VII, Art. 2° da Resolução n° 01/86 do Conama, que
os auspícios de critérios privilegiados, em face ao interesse exige a elaboração de EIA/Rima para:
público subjacente. Nesse caso, de forma inusitada, na fase
de acompanhamento e cumprimento das condicionantes “obras hidráulicas para exploração de recursos hídricos,
impostas, a Seama passou a tratar o assunto diretamente tais como: barragens para fins hidrelétricos, acima de 10
com a empresa Aracruz Celulose que assumiu as obrigações MW, de saneamento ou irrigação, abertura de canais para
antes pactuadas pela municipalidade”. navegação, drenagem e irrigação, retificação de curso
d’água, abertura de barras e embocaduras, transposição de
O parecer do consultor técnico foi utilizado por Cid To- bacias, diques.”
manik Pompeu – consultor jurídico (de São Paulo, apesar
de o órgão dispor na época de um assessor jurídico que Norma idêntica foi adotada pela Lei Estadual 4.701, de
estava concluindo mestrado em direito ambiental) – con- 01 de dezembro de 1992, em seu Art. 75, Inc. VII.
tratado pelo município de Aracruz, para elaborar parecer Está claro que a concessão das licenças pela Seama ao 157
Em detrimento dos modos de
vida das populações tradicionais
locais, a Aracruz tentou “civilizar”
caçadores, agricultores, erveiras
e artesãos: relação moderna de
trabalho e afastamento da terra
158 e da natureza
Tamra Gilbertson

159
município de Aracruz e a autorização pelo Idaf para su- projeto a garantia de idoneidade de um ato lícito e perfeito,
pressão da vegetação considerada como de preservação capaz de gerar efeitos insuprimíveis”.
permanente ferem frontalmente o princípio da legali-
dade , previsto no Art. 37, caput da Constituição Federal, Mais adiante, os autores concluem que ”presente o
que estabelece: “A administração pública direta, indireta pressuposto da ‘importância do impacto’, a atividade da
ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Administração, na exigência do EIA, passa a ser vincu-
estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá ladamente direcionada, não lhe cabendo fazer, in casu,
aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, apreciação de conveniência e oportunidade, pois carece
publicidade...”. A legalidade, neste caso, deveria ser a exi- de liberdade de abstenção” [grifo do autor].
gência da elaboração de Epia/Rima, e não a dispensa des- E destacam ainda que (ob. cit. p. 118), “é bom salientar que,
te, como fez o órgão estadual e ainda, a prévia autorização em sede ambiental, aquilo que denominamos “participação
do Ibama para a supressão da vegetação à margem do Rio pública” nada mais é que um contrapeso a fenômeno co-
Doce, a despeito da discussão da ilegalidade da Medida mum na Administração Pública: a “participação econômica”.
Provisória 1.736-36/99. Em outras palavras, os diversos agentes econômicos sempre
Nos dizeres de Edis Milaré e Antônio Herman V. Ben- tiveram – e continuam tendo – acesso direto aos agentes do
jamim (Estudo Prévio de Impacto Ambiental, Editora Re- poder de decisão, fazendo com isso prevalecer seus pontos
vista dos Tribunais, 1993, p. 76): de vista, nem sempre coincidentes com o mandato conferido
ao administrador pela cidadania como um todo. É difícil não
“o EIA não é um instrumento casuístico. Tem uma aceitar a tese de que a participação pública produz um pro-
destinação a cumprir. Diversos são seus objetivos”. E entre cesso decisório mais racional, já que permite a consideração
esses objetivos os autores destacam: “a) identificação de uma “multiplicidade de pontos de vista e prova ”.
das implicações negativas do projeto e suas alternativas; Para José Afonso da Silva (Direito Ambiental Constitu-
b) avaliar os benefícios e custos ambientais; c) sugerir cional, Malheiros, p. 206) “A Constituição vai além, quer
medidas mitigadoras; d) informar os setores interessados; que o próprio estudo de impacto ambiental tenha publi-
e) informar o público de uma maneira geral; e f) influenciar cidade, o que é mais do que a simples publicação do pe-
o processo decisório administrativo com o suprimento de dido de licenciamento da atividade”. E, para a apreciação
informações úteis”. dos Estudos Prévios de Impacto Ambiental, é indispensá-
vel a ampla publicidade do processo administrativo para
Paulo de Bessa Antunes assim se pronuncia sobre a oportunizar à população o acesso ao Relatório de Impacto
exigência de Epia/Rima em sua obra Direito Ambiental Ambiental (Rima), bem como à possibilidade concreta de
(Lumen Juris, p. 161): realização de Audiência Pública, onde deverão ser leva-
das em conta as sugestões e manifestações dos partici-
“A moderna jus-ambientalista vem se orientando no pantes, bem como a manifestação do Conselho Estadual
sentido de entender ser inafastável a exigência de estudos do Meio Ambiente (Consema), que tem poder de decisão
de impacto ambiental, sempre que presentes as condições quanto à aprovação do EIA/Rima.
tratadas no inciso IV do parágrafo 1° do artigo 225 da Conforme ensina Paulo de Bessa Antunes (obra citada,
Constituição da República Federativa do Brasil. Em primeiro p. 180), a Audiência Pública:
lugar, trago à colação o pensamento do professor Paulo
Affonso Leme Machado, pioneiro e maior autoridade nacional “é um ato oficial e que, nesta condição, deve ter os seus
em nossa matéria: O estudos de impacto ambiental devem resultados levados em consideração. Cabe, no entanto,
ser exigidos pelo poder público”. observar que o artigo 5° da Resolução n° 009/87 vem sendo
pouco explorado. Determina o artigo mencionado que: ‘art. 5°
Em Estudo Prévio de Impacto Ambiental, Editora Re- - A ata da (s) audiência (s) pública (s) e seus anexos, servirão
vista dos Tribunais, SP, 1993, p. 92, Édis Milaré e Antônio de base, juntamente com o Rima, para a análise e o parecer
Herman V. Benjamin declaram que: final do licenciador quanto à aprovação ou não do projeto’.
Qual o alcance desta norma? Penso que, aqui, se estabeleceu
“... manifestado o pressuposto da significância, o EIA um dever de levar em conta a manifestação pública. Este
se transforma em ato que foge à discricionariedade do dever se materializa na obrigação jurídica de que o órgão
administrador, não podendo ele dispensá-lo, não tendo o licenciante realize um reexame, em profundidade, de todos
administrado, ademais, direito à licença sem o devido EIA. os aspectos do empreendimento que tenham sido criticados,
Sendo o EIA, presente o requisito legal, ato obrigatório, se o fundamentalmente, na audiência pública”.
administrador, de maneira consciente, afasta sua aplicação,
pode praticar crime de prevaricação. A licença ambiental No entanto, a não exigência de elaboração de EIA/
160 expedida sem o necessário EIA não dá ao proponente do Rima no licenciamento do projeto de derivação de
águas do Rio Doce propiciou ao órgão ambiental não ência do canal, que não traz benefício às características
realizar audiência pública para o debate do projeto, ne- físico-químicas da água captada”. Como já foi explicita-
gando, deste modo, à população, um de seus direitos, do, a captação do abastecimento desse distrito é feita no
que é o da participação, previsto e recomendado inter- Rio Riacho em um ponto anterior à derivação das águas
nacionalmente. para as represas de abastecimento da Aracruz Celulose.
Ou seja, é inegável que o interesse privado da Aracruz foi
Essa participação comunitária foi definida como um dos sobreposto ao interesse público dos moradores de Barra
princípios da Declaração do Rio, assinada pela maioria dos do Riacho.
países que participaram da ECO 92 (Conferência das Na-
ções Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento). b- Da Ilegalidade do Procedimento Administrativo
Trata-se do Princípio n° 10, que tem enorme relevância para e Suas Consequências
a tutela do meio ambiente e afirma que:
b.1- Da Ilegalidade do Procedimento
“O melhor modo de tratar as questões ambientais é com a Administrativo na Seama e no Idaf
participação de todos os cidadãos interessados, em vários O Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf),
níveis. No plano nacional, toda pessoa deverá ter acesso órgão estatal que licenciou o desmatamento ocorrido às
adequado à informação sobre o ambiente de que dispõem margens do Rio Doce para a construção do dique, levou
as autoridades públicas, incluída a informação sobre os em consideração para autorizar a “supressão da vegeta-
materiais e as atividades que oferecem perigo em suas ção localizada na faixa de 50 metros de largura por 2.000
comunidades, assim como a oportunidade de participar dos metros de comprimento”, apenas a legislação florestal
processos de adoção de decisões. Os estados deverão estadual, a despeito de a Constituição Federal estabele-
facilitar e fomentar a sensibilização e a participação do cer expressamente em seu art. 24, e §§, a prevalência das
público, colocando a informação à disposição de todos. normas gerais da União sobre as normas dos estados, o
Deverá ser proporcionado acesso efetivo aos procedimentos que foi ignorado pelos técnicos do Idaf.
judiciais e administrativos, entre os quais o ressarcimento Segundo Paulo Affonso Leme Machado, “o Código Flo-
dos danos e os recursos pertinentes”. restal de 1965 institui dois tipos de florestas de preser-
vação permanente criadas pelo ‘só efeito desta lei’ (art.
Para Édis Milaré: 2°) e as florestas de preservação permanente instituídas
por ato do Poder Executivo (art. 3°). Ambas as florestas
“o direito à participação pressupõe o direito de informação estão inseridas em um espaço, que passou a ser modi-
e está intimamente ligado ao mesmo. É que os cidadãos ficável somente por uma lei. Assim, o art. 3° parágrafo
com acesso à informação têm melhores condições de único do Código Florestal está implicitamente revogado
atuar sobre a sociedade, de articular mais eficazmente pela Constituição Federal, pois diz a nova redação desse
desejos e idéias de tomar parte ativa nas decisões que lhes parágrafo: ‘A supressão total ou parcial de florestas e de-
interessam diretamente” mais formas de vegetação permanente de que trata esta
(Direito do Ambiente, Editora Revista dos Tribunais, SP, 2000, p. 99). lei, devidamente caracterizada em procedimento admi-
nistrativo próprio e com prévia autorização do órgão fe-
Assim, a dispensa da elaboração dos Estudos Prévios de deral de meio ambiente, somente será admitida quando
Impacto Ambiental no caso em exame, por não ter respal- necessária à execução de obras, planos, atividades ou
do legal, é um ato que contraria o princípio da legalidade projetos de utilidade pública ou interesse social, sem
previsto no Art. 37 da CF, motivo pelo qual foi requerida prejuízo do licenciamento a ser procedido pelo órgão
a anulação das licenças por entidades da sociedade civil ambiental competente’ (Medida Provisória n° 1.736-36
e pelo Ministério Público em ação judicial. No entanto, o de maio de 1999)”. (O Direito Ambiental e a Proteção das
Poder Judiciário não procedeu a anulação. Florestas no Século XXI – Anais do 3° Congresso Interna-
Isso ocorreu apesar da comprovação de que a Prefeitu- cional de Direito Ambiental, 1999, p. 7).
ra Municipal de Aracruz sequer se preocupou em assegu- Sérgio Turra Sobrane, na conferência A Lei de Improbi-
rar que a “canalização”, que seria para melhorar o abas- dade Administrativa e sua Utilização na Proteção das Flo-
tecimento público de Barra do Riacho e Vila do Riacho restas Brasileiras: Um Caso Concreto (A Proteção Jurídica
(distritos do município), atendesse ao primeiro distrito das Florestas Tropicais, Anais do 3° Congresso Interna-
pois, quando questionado sobre essa melhoria, o Serviço cional de Direito Ambiental, 1999 – p. 401), assevera que
Autônomo de Água e Esgoto de Aracruz, através do Of. “descurando-se da observância dos princípios que regem
201-02/SAAE-ARA, de 18/ de junho de 2002 – fls. 8.25 dos a Administração Pública, dolosamente ou não, estará o
autos da CPI – informou que “a captação de água de Barra agente público incorrendo na prática de atos de improbi-
do Riacho é feita na lagoa Santa Joana, local já sem influ- dade administrativa”. E mais adiante conclui “verificada 161
a inobservância, pela autoridade pública de uma regra Entretanto, no licenciamento ambiental da ampliação
normativa que deveria ser aplicada e observada, seu ato da empresa em 2000, quando a produção passou de 1,2
estará dissociado do princípio da legalidade, impondo-se milhão para 2 milhões de toneladas/anos, o governo es-
a nulificação e responsabilização do agente” (p. 405). tadual, adotando uma posição diametralmente oposta à
de 1988, revogou a condicionante da licença de 1988. A
Deve se ressaltar que entre os atos que implicam em Seama desonerou a empresa da restrição através da “con-
improbidade administrativa previstos na Lei 8.429, de 02 dicionante” n° 24 da Licença de Instalação – LI n° 09/2000
de junho de 1992, estão não apenas os que determinam o (de 16 de março de 2000):
enriquecimento ilícito (art. 9°), ou os que causam prejuízo
ao patrimônio público (art. 10), como também os atos que “Para fins de esclarecimentos, fica deliberado que não existe
atentem contra os princípios da administração pública qualquer tipo de proibição no estado do Espírito Santo
(art. 11) que é o dispositivo legal aplicável aos agentes pú- para o plantio de eucalipto e compra de terras pela Aracruz
blicos que atuaram nos Processos Administrativos, tanto Celulose S.A., dirimindo quaisquer dúvidas decorrentes da
da Seama como do Idaf. Diz o Art. 11 da Lei 8.429/92: interpretação da condicionante 15, imposta pela licença
ambiental da Fábrica “B” em 1988, desde que, seguidos os
“Constitui ato de improbidade administrativa que atenta critérios ambientais”.
contra os princípios da administração pública qualquer
ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, Esta “deliberação” não foi apenas equivocada – por
imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, e ignorar as preocupações com questões como aumento
notadamente: I – praticar ato visando fim proibido em lei da concentração fundiária e garantia de preservação de
ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de áreas agricultáveis – como também ilegal, uma vez que
competência”. o licenciamento ambiental era da ampliação da produ-
ção de celulose, sem previsão nos estudos ambientais, de
Houve concreta infringência à legalidade com a prática plantios no território do Espírito Santo, caracterizando,
dos atos que levaram ao licenciamento ambiental e à au- claramente, desvio de finalidade, a inclusão dos plantios
torização da supressão da vegetação de preservação per- no licenciamento do empreendimento.
manente, e a prática desses atos sujeita os agentes por eles Afirmações de técnicos da Seama de que o licenciamen-
responsáveis às penas previstas no art. 12 da referida lei. to ambiental resumia-se à ampliação da produção indus-
trial, sem qualquer relação com os plantios de eucalipto da
No entanto, apesar de várias irregularidades cometidas, Aracruz Celulose, demonstraram de modo cabal o desvio
tanto por técnicos como por dirigentes do órgão ambien- de finalidade, que foi a inclusão dos plantios na licença:
tal e florestal do estado, o Ministério Público capixaba
não adotou nenhuma medida visando a responsabiliza- I – “O empreendimento que está sendo licenciado não
ção dos mesmos. é referente à plantação de eucalipto” - declaração do
Coordenador de Controle Ambiental do órgão - João Carlos
V- Das Ilegalidades nos Licenciamentos A. Vianna, em reunião prévia ao licenciamento da ampliação,
dos Novos Plantios realizada em 01 de janeiro de 2000 no distrito de Barra do
Riacho, município de Aracruz;
a- Ilegalidades nos Plantios da Própria Empresa II – “Observa-se, no entanto, que o empreendimento em
análise não visa ampliação da área plantada de eucalipto no
Além das críticas feitas por diversos grupos da socie- estado do Espírito Santo, tendo em vista que o incremento de
dade civil à primeira ampliação da produção da Aracruz eucalipto necessário para a alimentação da Fiberline “C” será
Celulose, em 1988, que passou de 550 mil para 1 milhão todo adquirido no sul do estado da Bahia e, se necessário,
de toneladas/ano, o governo do Espírito Santo manifestou importado de países do Mercosul, como o Uruguai” - Parecer
oficialmente junto à empresa preocupação com a concen- Técnico do engenheiro agrônomo Fabrício Meneguelli
tração de terras, bem como a ocupação de terras agricul- Barros, da Seama, referente à análise do Meio Biótico - Área
táveis com o plantio de eucalipto destinado à produção Florestal, relativo à Expansão da Aracruz Celulose.
industrial de celulose. Essa preocupação teve como maior
resultado a condicionante n° 15 da Licença de Instala- “Exonerada” da restrição da LI n° 01/88, irregularida-
ção – LI n° 01/88: “A Aracruz Celulose S.A. e a Aracruz des ainda mais graves ocorreram nos licenciamentos dos
Florestal S.A. ou empresas das quais estas participem só novos plantios da Aracruz Celulose pelo Idaf. O órgão
poderão adquirir, para o seu projeto de ampliação, áreas simplesmente licenciou plantios em vários municípios,
de propriedade (ou posse) de pessoas jurídicas e que já em processos repletos de ilegalidades, entre elas a de
162 estejam reflorestadas.” “exonerar” a empresa da elaboração de EIA/Rima para
plantios em áreas superiores a cem hectares (uma vez competente, e o licenciamento de atividades modificadoras
que os licenciamentos foram feitos mediante a elabora- do meio ambiente, tais como: XIV – Exploração econômica
ção de estudos ambientais simplificados ou Declaração de recurso florestal, em áreas acima de cem hectares, ou
de Impacto Ambiental) e a de incorporar o licenciamento menores, quando atingir áreas significativas em termos
de cada nova área – independente de sua localização – percentuais ou de importância do ponto de vista ambiental”.
Linhares, Jaguaré, Sooretama ou outro município, a uma
única licença (LO 03/99). Sem a exigência de EIA/Rima na fase do licenciamento
O Idaf não poderia licenciar esses novos plantios senão prévio (LP) e a incorporação de cada nova área licenciada
seguindo as normas do Decreto N° 4.344-N/98, que à épo- à LO 03/99, os licenciamentos se limitaram aos “gabine-
ca era a norma reguladora do Sistema Estadual de Licen- tes” do Idaf, feitos apenas com a participação de técnicos
ciamento de Atividades Poluidoras (SLAP), com a expedi- do órgão e da Aracruz Celulose, sem que fosse assegura-
ção das seguintes licenças: Licença Prévia (LP) - expedida do o “direito de participação” da sociedade, privada deste
quando não há impedimento para a atividade no local da direito pelo estado e impedida de discutir nos processos
instalação; Licença de Instalação (LI) - expedida após o de licenciamento os impactos dos plantios de eucalipto,
cumprimento das condições da LP; e Licença de Operação em flagrante contrariedade com as normas da Carta Mag-
(LO) - expedida após o cumprimento da LI, conforme es- na e da legislação federal e estadual.
tabelecia o art. 14, Inc. I, II e III, do Decreto. Em ampliações O engenheiro agrônomo Fabrício Meneguelli Barros,
de atividades, também deve ser levada em consideração, também registrou em seu parecer técnico que:
primeiramente, a localização pretendida para expedição
da LP. Somente após a expedição desta podem ser libera- “... os plantios de eucalipto têm sido reconhecidos
das as das demais licenças (LI e LO). O órgão deveria abrir como atividade impactante, já que os setores técnico e
um processo para a nova área licenciada. ambientalista demonstram preocupação com relação a
No entanto, todos os novos plantios licenciados pelo seus efeitos sobre o meio ambiente. Deste modo, pode-
Idaf, após a revogação da condicionante restritiva da am- se compreender a necessidade de direcionar esforços
pliação da Aracruz em 1988, conforme apurado pela CPI para melhor entendimento das alterações ambientais
que investigou irregularidades nos licenciamentos da promovidas pelos plantios florestais, com o objetivo de
empresa, foram “incorporados” à Licença de Operação - compor a base científica que tratará da minimização e da
LO n° 039/99, e essa ilegalidade permaneceu sem que sua potencialização dos seus impactos ambientais negativos e
revisão tenha sido feita pela própria Administração ou positivos, respectivamente”.
pelo Judiciário. Além da ilegalidade da dispensa da ela-
boração de EIA/Rima para o licenciamento. Nos dizeres de Aristides Almeida Rocha in Curso Inten-
E essa dispensa irregular quanto à elaboração do EIA sivo Sobre Avaliação de Impacto Ambiental e Saúde Pú-
para o licenciamento dos novos plantios fere não apenas blica (Aspectos Hidrobiológicos na Avaliação de Impactos
as normas do art. 2°, inc. XIV da Resolução 01/86 do Co- Ambientais), publicação da Faculdade de Saúde Pública
nama, que elenca o rol de atividades sujeitas à elabora- – Departamento de Saúde Ambiental/USP, SP, p. 1, “ne-
ção do referido instrumento da Política Nacional do Meio nhum empreendimento, por mais benéfico que seja, deixa
Ambiente, como também a norma que foi inserida na Lei de apresentar algum impacto negativo. Cabe à autoridade
Estadual 4.701/92, em seu art. 75, XIV: ambiental decidir sobre a importância deste em face dos
benefícios alcançados”.
“Art. 2°. Dependerá da elaboração de Estudo Prévio de Deve ser destacado, que quando se fala em impactos
Impacto Ambiental (Epia) e respectivo Relatório de Impacto ambientais, estes abrangem não apenas os componentes
Ambiental (Rima), a serem submetidos à aprovação do órgão naturais do meio ambiente, como também efeitos dele-
estadual competente, e do Ibama em caráter supletivo, o térios sobre as atividades sociais e econômicas nas áre-
licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, as de influência das atividades objeto de licenciamento,
tais como: XIV – Exploração econômica de madeira ou lenha, exigindo, desse modo, para plantios em áreas com deter-
em área acima de cem hectares ou menores, quando atingir minadas dimensões (notadamente as que têm área su-
áreas significativas em termos percentuais ou de importância perior a cem hectares), a elaboração e análise de Epia/
do ponto de vista ambiental”. Rima, bem como a garantia do direito da sociedade de
requerer a realização de audiência pública para discus-
O art. 75, XIV da Lei 4.701/92 estabelece que: são dos licenciamentos.
Esses impactos foram motivo de preocupação dos pro-
“Dependerá da elaboração de Estudo Prévio de Impacto dutores rurais de Sooretama, município do norte do esta-
Ambiental (Epia) e respectivo Relatório de Impacto ambiental do, quanto ao desemprego no campo que os plantios de
(Rima), a serem submetidos à apreciação do órgão estadual eucalipto estavam provocando. Na fazenda que pertencia 163
à família de Luiz Meneghelli, em Vila Valério, conforme o ferida ADI, ressaltou que:
depoimento de João Batista Marré à CPI da Aracruz Ce-
lulose, cerca de 11 famílias de meeiros tiveram que deixar “a atividade de florestamento ou reflorestamento, ao
as casas (que foram derrubadas) e os empregos, depois contrário do que se poderia supor, não pode deixar de ser
que a mesma foi adquirida para plantios de eucalipto da tida como eventualmente lesiva ao meio ambiente, quando,
empresa. A propriedade, que produzia café, passou a pro- por exemplo, implique em substituir determinada espécie
duzir madeira destinada à produção. da flora nativa, com suas próprias especificidades, por
Além disso, a compra de terras pela empresa para os outra, as mais das vezes, sem qualquer identidade com o
novos plantios provocou outro impacto significativo, já ecossistema local e escolhidas apenas em função de sua
que houve uma elevação dos preços das terras. Este as- utilidade econômica, com ruptura, portanto, do equilíbrio e
sunto foi objeto de matéria publicada pelo jornal A Ga- da diversidade da flora local”.
zeta, em 27 de outubro de 2002 (Preço da terra dificulta
assentamentos no norte). Conforme registrou o jornal, a Portanto, ficam patentes as irregularidades nos li-
elevação dos preços da terra estava “inviabilizando a im- cenciamentos feitos pela Seama e pelo Idaf, que inclu-
plantação do Projeto de Crédito Fundiário e Combate à sive desconsiderou a decisão do STF cujo resumo foi
Pobreza na região”, dentro de um programa do governo aqui transcrito.
federal de apoio a assentamentos de agricultores, provo-
cando ainda mais impactos sociais e econômicos sobre o b- Ilegalidade pela falta de compensação
setor agrícola no estado. Como forma de compensar os impactos ambientais
Apesar de todos os impactos descritos em diversos do- previstos nas cinco modalidades elencadas na Resolu-
cumentos oficiais, estudos, pareceres, matérias de jornais ção 01/86, dos quais pelo menos quatro podem ser cons-
e até em decisão do Supremo Tribunal Federal em uma tatados nas atividades da Aracruz Celulose, o Conama
ação que julgou inconstitucional e suspendeu uma norma baixou a Resolução 02/96 (revogada com a vigência de
da Constituição do estado de Santa Catarina que deso- Lei 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema
nerava as empresas de elaborar EIA/Rima para plantios Nacional de Unidades de Conservação - SNUC), que em
como os da Arcel, o Idaf não exigiu a elaboração desses seu art. 1º e 2° estabelecia:
estudos e, consequentemente, afastou a possibilidade de
participação da população nos processos de licenciamen- “Art. 1°. Para fazer face à reparação dos danos
to dos plantios da empresa. ambientais causados pela destruição de florestas e outros
A decisão do STF mencionada acima foi na Ação Di- ecossistemas, o licenciamento de empreendimentos de
reta de Inconstitucionalidade n° 1086-7, requerida pela relevante impacto ambiental, assim considerado pelo
Procuradoria Geral da República em face da Assembléia órgão ambiental competente com fundamento no EIA/
Legislativa de Santa Catarina. A ação foi julgada em 1° Rima, terá como um dos requisitos a serem atendidos
de agosto de 1994 e na Ementa do Acórdão é a seguinte: pela entidade licenciada, a implantação de uma unidade
“Constitucional, Ação Direta, Obra ou Atividade Poten- de conservação de domínio público e uso indireto,
cialmente Lesiva ao Meio Ambiente, Estudo Prévio de preferencialmente uma Estação Ecológica, a critério do
Impacto Ambiental”. E especifica que: órgão licenciador, ouvido o empreendedor”.

“... diante dos amplos termos do inc. IV do § 1° art. 225 da O art. 2° da Resolução estabelecia:
Carta Federal, revela-se juridicamente relevante a tese de
inconstitucionalidade da norma estadual que dispensa o “o montante dos recursos a serem empregados na área
estudo prévio de impacto ambiental no caso de áreas de a ser utilizada, bem como o valor dos serviços e das
florestamento ou reflorestamento para fins empresariais. obras de infraestrutura necessárias ao cumprimento do
Mesmo que se admitisse a possibilidade de tal restrição, a disposto no artigo 1°, será proporcional à alteração e ao
lei que poderia viabilizá-la estaria inserida na competência dano ambiental a ressarcir e não poderá ser inferior a
do legislador federal, já que a este cabe disciplinar, através 0,5% (meio por cento) dos custos totais previstos para
de normas gerais, a conservação da natureza e a proteção implantação do empreendimento.”
do meio ambiente art. 24, inc. VI, da CF, não sendo
possível, ademais, cogitar-se da competência legislativa Como já mencionado, Édis Milaré e Antônio Herman V.
a que se refere o § 3° do art. 24 da Carta Federal, já que Benjamin afirmam que:
esta busca suprir lacunas normativas para atender a
peculiaridades locais, ausentes na espécie.” “... sendo o EIA, presente o requisito legal, ato obrigatório, se
o administrador, de maneira consciente, afasta sua aplicação,
164 Destaque-se que o Ministro Ilmar Galvão, relator da re- pode praticar crime de prevaricação”. Eles também entendem
que ”presente o pressuposto da ‘importância do impacto’, a dando aos produtores opção contratual para exploração
atividade da Administração, na exigência do EIA, passa a ser visando, além da celulose, a produção de sólidos de
vinculadamente direcionada, não lhe cabendo fazer, in casu, madeira, propiciando dessa forma condição básica para
apreciação de conveniência e oportunidade, pois carece de a implantação no estado de pelo menos uma Unidade
liberdade de abstenção”. de Sólidos de Madeira (Serraria) de grande porte. Prazo:
(p. 109) noventa dias para junto à Seama e SEAG estabelecer as
base do referido programa.”
A Seama, à época do licenciamento da Arcel em 2000,
deliberadamente desonerou a empresa da obrigação de O licenciamento desses plantios, que constituíram o
repassar 0,5% do montante aplicado na ampliação para Programa Fomento Florestal II, foi mais um processo que
ações de conservação, conforme as normas citadas. A em- violou de modo flagrante o princípio da legalidade do art.
presa informou à CPI que o custo da ampliação foi de R$ 37 da Constituição Federal. Além disso, desconsiderou o
2 bilhões de reais, ou seja, o órgão deixou, de forma ilegal, Termo de Ajustamento de Conduta firmado tanto pelo
de exigir da Aracruz Celulose R$ 10 milhões de reais para Idaf como pela Seama em uma ação civil pública movida
tal finalidade. E esta foi mais uma irregularidade que fi- pela Procuradoria da República no Espírito Santo pela
cou sem resposta das autoridades, inclusive do Ministério falta de exigência de EIA/Rima no licenciamento do Fo-
Público, cabendo à sociedade civil a sua cobrança, confor- mento Florestal I pelo órgão ambiental, em 1988. Esses
me feito pela Federação de Órgãos Para Assistência Social programas são uma forma da empresa garantir uma “re-
e Educacional (Fase/ES), em ação civil pública perante a serva” de estoque de matéria-prima (madeira), mediante
Justiça Federal de Vitória, em 2005. contratos de plantios que firma com proprietários rurais,
Deve se destacar também que a Cepemar, empresa con- em praticamente todos os municípios do estado.
tratada pela Aracruz Celulose para elaborar o Epia/Rima Mesmo após obrigar-se a elaborar o EIA do primeiro
da expansão industrial neste processo de licenciamen- programa, o Idaf licenciou o Programa Fomento Flores-
to de ampliação, ainda que já tivesse contratado toda a tal II em exatos vinte e dois dias entre o requerimento de
equipe que atuou nos levantamentos em 30 de novembro licenciamento, com a abertura do Processo Administrati-
de 1999, data do início do processo de licenciamento na vo n° 18053432, em 22 de maio de 2000, e a concessão da
Seama, não teria como realizar as avaliações e estudos do Licença de Operação 001/2000, em 12 de junho de 2000,
Epia/Rima até o dia 23 de dezembro de 1999, prazo regis- assinada pelo diretor técnico do órgão florestal, Antônio
trado pela Seama como tendo sido o de recebimento do Francisco Possati. O Idaf não exigiu para este licencia-
Rima, e por conseguinte, também dos Estudos de Impacto mento a elaboração de novo EIA – o que deveria ter sido
Ambiental (EIA), conforme consta da CI/Seama/CCA n° feito, uma vez que se tratava de um novo licenciamento,
023/99 (juntado aos autos da CPI). Um Estudo Prévio de em áreas distintas das que foram objeto do licenciamen-
Impacto Ambiental de tamanha complexidade (da maior to do primeiro programa.
indústria de celulose de fibra curta do mundo) - por mais Os técnicos do Idaf, além de defenderem que os plan-
dados que a Cepemar e a própria Arcel tenham em seus tios não provocam impactos significativos (justificativa
arquivos sobre os monitoramentos das atividades da em- técnica, que não se comprova na prática), argumenta-
presa - não tem como ser elaborado em apenas vinte e ram no mesmo sentido do ex-secretário de Estado da
três dias. Esta é mais uma das situações incongruentes Agricultura, Pedro de Faria Burnier, à época do licen-
que cercam os licenciamentos das atividades da Aracruz ciamento, em depoimento perante a CPI em 18 de junho
Celulose que permanece sem esclarecimento, apesar dos de 2002:
esforços da sociedade civil organizada na busca destes
esclarecimentos, tanto junto à Administração, como junto “O processo de licença da SEAG é específico do Fomento
ao Judiciário. Florestal II. Quer dizer, o Idaf emitiu uma licença do
Programa Florestal II, e nesse caso específico o que se
c- Ilegalidades no Licenciamento dos Plantios do licenciou foi um programa e não um projeto”; e ainda
Fomento Florestal II “devo adiantar que com relação ao programa – não o
Na condicionante 10 do licenciamento da ampliação projeto – de Fomento Florestal II foi seguido o mesmo
(Licença de Instalação – LI n° 009/2000) da Aracruz Celu- conceito técnico do Programa Fomento Florestal I. Foi
lose para implantação da chamada “Fábrica C”, a Seama exatamente o mesmo conceito”.
estabeleceu que a empresa deveria: (pág. 7553 e 7554)

“... implantar em sete anos, a partir de 2001, programa em Inquirido sobre o porquê não foi exigida pelo Idaf da
parceria com produtores rurais, para produção de madeira Aracruz Celulose S/A a elaboração prévia do licencia-
de eucalipto, com área de pelo menos 30 mil hectares, mento de EIA/Rima para o licenciamento do Programa 165
Fomento Florestal II, em cumprimento ao art. 75, XVI da ao deputado Cláudio Vereza, a constatação de “incon-
Lei 4.701/92 que exige os estudos, o ex-secretário respon- gruências técnicas entre o EIA/Rima e o licenciamento
deu que (pág. 7556): ambiental”, entre elas, a que “impõe como condicionante
à Licença de Instalação n° 009/2000, que o empreende-
“O aspecto de nós analisarmos isso é exatamente o dor promova no prazo de sete anos a implantação de 30
aspecto de entendermos a silvicultura e, especificamente, mil hectares de plantio de eucalipto para celulose e ma-
o plantio de eucalipto como um cultivo de uma espécie deira”, concluindo:
arbórea, como é o caso de um laranjal, como é o caso
da cafeicultura. Por isso, o governo faz programas e para “Ora, se essa atividade específica de florestamento de
esses programas não se faz pelo menos necessário, para per si necessita de EIA/Rima, como pode se transmutar
nenhum deles, estudo de impacto ambiental, EIA/Rima, em condicionante ambiental?” e ainda “a inserção de
porque são apenas programas”. tal requisito, além de violar a essência do procedimento
de licenciamento ambiental, constitui-se em desvio de
Questionado acerca da existência ou não de parecer ju- finalidade e promove de forma clandestina a supressão do
rídico que desse respaldo à decisão do Idaf em não exigir debate técnico e social de parcela significativa de aspectos
a elaboração prévia de EIA/Rima para o licenciamento do relevantes do projeto de expansão”. O promotor afirma
Programa Fomento Florestal II, desconsiderando a norma “assim agindo, o órgão ambiental passa a exercer uma
do art. 75, XIV da Lei 4.701/92, o ex-secretário da Seag atividade de promoção industrial, tal como uma agência de
respondeu: “não tem” (pag. 7557). desenvolvimento” e, “nessa condição, o estado passa da
Enquanto o discurso dos técnicos do Idaf e da direção condição de regulador a de promovedor e parceiro de uma
superior do órgão e da Seag justificavam a não exigência atividade impactante”.
de EIA/Rima para os plantios, com o argumento de que
não seria possível a priori definir as áreas de plantio e, Em outro expediente – o OF/CAAB n° 592/2002, de 23 de
desse modo, os estudos não poderiam ser exigidos pre- dezembro de 2002 –, o promotor destaca também que “em
viamente ao licenciamento por tratar-se de “programa” e hipótese alguma, poderia a autoridade ambiental criar
não de “projeto”, os plantios, conforme informações le- uma obrigação desvinculada de tal finalidade, sobretu-
vantadas pela CPI (fls. 4.560), já haviam alcançado uma do quando se aparta de seu foco e se projeta a atender
área superior a quatro mil hectares. interesses logísticos e econômicos da empresa e não ao
Além dos impactos já descritos, há ainda os impactos interesse geral”.
do transporte da madeira nas estradas, vilas e cidades
do interior do estado; da presença dos plantios e como d- Ilegalidades no Licenciamento da Agropecuária
eles podem interferir nos ecossistemas de Mata Atlânti- Riacho Ltda – Agril (um caso à parte)
ca dos municípios da região montanhosa, por exemplo; Através dos Processos Administrativos n° 18549390 e
de plantios em áreas de preservação permanente (com 18442269/2000, o Idaf licenciou o plantio de eucalipto fei-
casos comprovados em auditoria realizada pelo próprio to em nome da empresa Agropecuária Riacho Ltda (Agril),
Idaf), dentre outros. no distrito de Vila do Riacho, em Aracruz, cuja destinatá-
Uma ação popular foi ajuizada em 2001 com requeri- ria da madeira foi a Aracruz Celulose S.A. para a produ-
mento da anulação da LO 001/2000 do Idaf, que autori- ção de sua fábrica. Em função das dimensões do plantio, o
zou o início do Fomento Florestal II. Apesar de ter obtido órgão encaminhou Termo de Referência à empresa, para
liminar suspendendo os plantios, a liminar foi cassada elaboração de Estudo de Impacto Ambiental e respectivo
pelo Tribunal de Justiça. E passados quase 10 anos de Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima).
tramitação da ação, não há, ainda, previsão de decisão No entanto, em 18 de julho de 2000, com requerimen-
em primeira instância. Quando ocorrer a decisão, ain- to pela empresa Rhea – Estudos e Projetos Ltda e as-
da há possibilidades de recurso ao Tribunal de Justiça sinado pelo engenheiro Álvaro Garcia, procurador da
no estado e ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Agril, a área, que inicialmente era de 5.400 hectares,
Ou seja, poderão se passar algumas décadas sem uma passou a ser de 6.678 hectares, nas fazendas Bacia do
decisão final de uma demanda que grupos da sociedade Riacho e Retiro Grande, abrangendo parte dos territó-
civil apresentaram ao Judiciário, ante os atos omissos e rios dos municípios de Linhares e Aracruz.
comissivos dos órgãos licenciadores e a omissão do Mi- Entre as irregularidades verificadas no trâmite do pro-
nistério Público. cesso de licenciamento do plantio da Agril está o fato de
Essa omissão ocorreu a despeito do Coordenador do parte da área ser constituída de terra devoluta. O art. 250
CAAB – Ministério Público Estadual, responsável pelas da Constituição Estadual determina: “É vedado ao Esta-
Curadorias de Meio Ambiente, José Cláudio Rodrigues do: II – promover a legitimação ou alienação de terras
166 Pimenta, ter manifestado, em expediente encaminhado públicas ou devolutas para fins de reflorestamento com
espécies exóticas”. E para dar uma solução para a norma comprovadamente, não tenham sido satisfatórios, nos
constitucional, o Idaf se baseou em um parecer jurídico termos da lei e deste Decreto;
do advogado Rodrigo Loureiro Martins (contratado pela V - audiência pública, quando couber, de acordo com a lei e
empresa Rhea, procuradora da Agril) e um dos advogados com este Decreto;
que a Aracruz Celulose S.A. contratou para acompanhar VI - solicitação de esclarecimentos e complementações
os trabalhos da CPI. pelo órgão competente, decorrentes de audiências públicas,
Em depoimento prestado à CPI, em 18 de junho de quando couber, podendo haver reiteração da solicitação
2002, o procurador do Idaf, advogado Sérgio Moraes quando os esclarecimentos e complementações não tenham
Neto, declarou o seguinte acerca do licenciamento da sido comprovadamente satisfatórios, nos termos da Lei e
área da Agril: deste Decreto;
VII - emissão de parecer técnico conclusivo e, quando
“Outro caso importante que deve ser dito aqui é o seguinte: couber, parecer jurídico;
a empresa nesse licenciamento aqui vai plantar eucalipto VIII - deferimento ou indeferimento do pedido de licença,
em terra devoluta. Acho que isso não é correto. A questão dando-se a devida publicidade.”
fundiária dessa área foi um assunto que citei na reunião de
Santa Cruz e que não fui bem ouvido, e na qual a empresa O Idaf conduziu o processo mediante a exigência prévia
requereu um parecer de um outro advogado falando que a de EIA/Rima e, em 09 de agosto de 2000, publicou edital
comissão tinha competência para tal e que não tínhamos que colocando o Rima do empreendimento à disposição dos
nos meter na vida da empresa. Nesse ponto já fiquei com interessados no prazo de 45 dias, prazo que terminaria
a ‘orelha em pé’ e falei assim: ‘temos uma lei estadual que no dia 23 de setembro. Entretanto, o órgão concedeu a
regula a questão da regularização e da legitimação fundiária’. Licença Prévia – LP 001/2000 - à Agril em 12 de setem-
Como essa empresa pode querer plantar eucalipto numa bro de 2000, 12 dias antes do término do prazo em que o
terra que está com a situação fundiária irregular? Essa terra Rima deveria ficar à disposição da população para con-
é devoluta”. sulta e solicitação de audiência pública. Esta condução do
processo, abreviando o trâmite legal do licenciamento é
Mas não apenas o plantio em terra devoluta, como tam- - sem controvérsia - ilegal. A audiência foi requerida e
bém o procedimento para o licenciamento foi conduzido realizada em 4 de dezembro de 2000, depois do Idaf já
de modo irregular, ao não cumprir as etapas de licencia- ter concedido a licença prévia à Agril, o que demonstra o
mento estabelecidas no § 1º art. 10 do Dec. n° 4.344/98 descaso do órgão no que tange ao cumprimento da legali-
(SLAP) a saber: dade nos processos de licenciamento.
Na mesma data da expedição da LO 001/2001 para o
“O procedimento para o licenciamento ambiental obedecerá plantio feito pela Agril, em 15 de janeiro de 2001, a Seama
às seguintes etapas: forneceu certidão negativa de débito ambiental atestando
I - definição fundamentada pelo órgão ambiental competente que “nenhum débito ou irregularidade quanto às ques-
dos documentos, projetos e estudos ambientais e de saúde tões ambientais foi encontrado em nome da Agril – Agro-
pública necessários ao início do processo de licenciamento pecuária Riacho Ltda”.
correspondente à licença a ser requerida, com a participação No mesmo sentido, a Coordenação de Controle Am-
do empreendedor. biental da Seama em atendimento a pedido do Ministério
II - requerimento da licença ambiental pelo empreendedor, Público informou:
acompanhado dos documentos, projetos e estudos
ambientais pertinentes, dando-se a devida publicidade; “Quanto à solicitação de informações de pendências
III - análise pelo órgão estadual competente, integrante ambientais da empresa Agril – Agropecuária Riacho Ltda
do Sisnama [Sistema Nacional de Meio Ambiente], dos - em outros processos que se encontram nessa Seama,
documentos, projetos e estudos ambientais apresentados e vimos informar que nenhuma irregularidade quanto às
a realização de vistorias técnicas, quando necessárias; questões ambientais foi encontrada nos processos 1052/92
IV - solicitação de esclarecimentos e complementações e 1283/89, referentes à Licenciamento de Entreposto de
pelo órgão competente, integrante do Sisnama, Pescado e Obstrução de Lagoa, respectivamente, ambos
uma única vez, quando couber, e com base em em nome da Agril”.
norma legal ou em sua inexistência em parecer
técnico fundamentado, em decorrência da análise No entanto, houve omissão quanto ao Processo 1283/89,
dos documentos, projetos e estudos ambientais que havia sido arquivado e posteriormente reaberto, cul-
apresentados, podendo haver a reiteração minando com a aplicação de penalidade – Auto de Multa
da mesma solicitação apenas nos casos em 2507, de 07 de fevereiro de 1996 – no valor de 2.000 uni-
que os esclarecimentos e complementações, dades padrão fiscal do estado. 167
VI- Da Representação Criminal feita em princípio da supremacia do interesse público ou princípio
Face das Ilegalidades da finalidade pública. De fato, a Administração Pública,
ao cumprir seus deveres constitucionais e legais, busca
Inconformadas com a omissão das autoridades quanto incessantemente o interesse público, verdadeira síntese
à adoção de medidas tanto a nível administrativo, como dos poderes a ela atribuídos pelo sistema jurídico positivo,
cível – neste campo foram ajuizadas as ações citadas desequilibrando forçosamente a relação administração-
anteriormente, uma popular contra o licenciamento do administrado. Ausentes os poderes administrativos, não
Fomento Florestal II, e duas ações civis públicas, uma seria possível realizar uma série de competências e deveres
contra as ilegalidades nos processos de licenciamento da institucionais (os sacrifícios a direitos, as intervenções,
ampliação da Arcel e dos novos plantios, e outra contra as desapropriações, autorizações, concessões, poder de polícia,
ilegalidades no licenciamento da transposição das águas serviços públicos, etc.). Contudo, forçoso reconhecer que
do Rio Doce –, 12 entidades que integram a Rede Alerta a atividade administrativa não é senhora dos interesses
Contra do Deserto Verde deram entrada, em abril de 2004, públicos, no sentido de poder dispor dos mesmos a seu
junto à Procuradoria Geral de Justiça e à Delegacia Esta- talante e alvedrio. Age de acordo com a ‘finalidade da lei’,
dual de Investigação de Crime contra o Meio Ambiente com os princípios retores do ordenamento, expressos e
(com cópia para autoridades e órgãos como o governador implícitos. A administração atua, age, como instrumento de
e o Ibama), em uma Notícia Criminal narrando os fatos realização do ideário constitucional, norma jurídica superior
que, em tese, configuravam crimes cometidos por técni- do sistema jurídico brasileiro”.
cos que atuaram em processos, bem como por diretores,
chefes e secretários dos órgãos que licenciaram as ativi- Também noticiariam que, em tese, houve o cometimen-
dades da Aracruz Celulose. As entidades juntaram à de- to de “crime contra a administração ambiental”, previs-
núncia diversos documentos reproduzidos dos autos da tos nos artigos 66 e 67 da Lei 6.905/98 (Lei de Crimes
CPI e de outros processos, como forma de comprovação Ambientais),conforme transcrito:
das denúncias.
Entre as modalidades de crimes que foram objeto da “Art. 66 - Fazer o funcionário público afirmação falsa ou
denúncia, estava o de improbidade administrativa previs- enganosa, omitir a verdade, sonegar informações ou dados
ta no art. 11 da Lei 8.429/92, que estabelece: técnico-científicos em procedimentos de autorização ou de
licenciamento ambiental. Pena: reclusão, de um a três anos,
“Constitui ato de improbidade administrativa, que atenta e multa”.
contra os princípios da Administração Pública, qualquer “Art. 67 - Conceder o funcionário público licença, autorização
ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para
imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições e, as atividades, obras ou serviços cuja realização depende de
notadamente: I – praticar ato visando fim proibido em lei ato autorizativo do Poder Público. Pena: detenção, de um a
ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de três anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a
competência”. pena é de três meses a um ano de detenção, sem prejuízo
da multa”.
Para Pazzaglini Filho, Elias Rosa e Fazzio Júnior:
“Na situação indicada, o agente público pratica ato nulo, Com relação à modalidade de conduta prevista no art.
por ilicitude do objeto ou por incompetência. É o desvio de 66, foram denunciados técnicos que prestaram infor-
finalidade, seja porque atua com fito pessoal (por exemplo, mações em processos de licenciamento das atividades
vingança, protecionismo, etc.), seja porque tem em mira da Aracruz Celulose que não condizem com a verdade,
finalidade administrativa diversa da determinada pela lei, omitindo o conhecimento de normas legais que exigiam
e para que se configure o disposto no inciso, basta que o licenciamento a ser feito mediante EIA/Rima (com pos-
o ato inquinado vise fim ilícito ou extrapole a esfera de sibilidade negligenciada à população para requerer au-
competência do agente público”. diência pública para discussão dos licenciamentos), bem
(Improbidade Administrativa – Aspectos Jurídicos da Defesa do como omitindo e mesmo negando a constatação de que
Patrimônio Público, p. 113/114, Atlas) os plantios de eucalipto são causadores de impacto am-
biental (incluindo os impactos socais, econômicos e cul-
Por sua vez, segundo Marcelo Figueiredo (Probidade turais). Quando subscreveram pareceres (que deram pra-
Administrativa – Comentários à Lei 8.429/92 e legislação zo à posterior expedição de licenças para a implantação
complementar, p. 61 Malheiros Editores): dos plantios), os técnicos afirmaram que “o projeto não é
impactante ambiental e socio-economicamente”, e “pelas
“O princípio da legalidade é, sem dúvida, um dos pilares suas características, o empreendimento proposto não ne-
168 do Estado Democrático de Direito. Ao lado dele convive o cessita de Declaração de Impacto Ambiental (DIA)”.
Edis Milaré e Paulo José da Costa Júnior, na obra Direito

Projeto Conexão Sul


Ambiental Penal, editora Milennium analisam o dispositi-
vo da seguinte forma, o art. 66 da Lei 9.605/98:

“O tipo penal presente mantém semelhança com os


crimes contidos nos arts. 299 (falsidade ideológica) e 319
(prevaricação), embora esteja especificamente voltado para
a administração ambiental”. Sujeito ativo é o funcionário
público (crime próprio)”. “Conduta – a conduta típica é
fazer o funcionário público: 1) uma afirmação falsa ou
enganosa, que é diversa da verdade; 2) omitir a verdade,
equivalente à falsidade negativa; 3) sonegar informações ou
dados técnico-científicos, consistente no não fornecimento
de elementos de natureza, necessários à concessão da
autorização ou licenciamento ambiental. A afirmação ou
sonegação deverão ser relevantes, para configurar-se o
crime”. “Consumação – apresenta-se com a mera ação ou
omissão, independentemente do resultado. Basta o perigo
de dano ao meio ambiente, para aperfeiçoar-se o crime”.

Os autores citados anteriormente analisam da seguinte


forma o art. 67:

“Sujeitos – o crime é próprio. Sujeito agente haverá de ser o O deserto verde não permite a existência de outras espécies
funcionário público”. “Conduta – acha-se representada pela
concessão irregular da licença, autorização ou permissão. poderia se realizar nos bastidores e gabinetes dos órgãos
O tipo encerra elemento normativo, o qual exige que a envolvidos. No entanto, pelo que se infere dos Autos, a
licença, autorização ou permissão sejam concedidas em empresa passou pelas fases habituais do licenciamento
desacordo com as normas ambientais que disciplinam a ambiental, não se evidenciando nenhuma irregularidade”.
matéria”. “Consumação – aperfeiçoa-se o crime com a efetiva “Há entidades que buscam, num esforço de ‘politização’,
concessão, por parte do funcionário público, da autorização, levar a discussão sobre a outorga de licença ambiental
licenças ou permissão, independentemente de vir a ser do campo técnico para o político, do procedimento
executada, ou de causar danos ao meio ambiente”. administrativo de licenciamento para a sala de assessores
‘politizados’. Com que direito? Com que critério? Com isso,
Ou seja, a conduta independe da intenção do cometi- todo o avanço alcançado na legislação ambiental corre o
mento do crime, pois é indissociável da repercussão no risco de perder credibilidade. O objeto legítimo e legal de um
licenciamento, se houve omissão da verdade ou sone- empreendimento goza de presunção de boa-fé e dos favores
gação de informação ou dados técnico-científicos. Se no do direito. O empreendedor legítimo e bem orientado conta
processo de licenciamento esse tipo de conduta leva à ex- com o amparo do art. 170 da Constituição Federal”.
pedição de licença, em descumprimento da legislação, a “Por fim, convém recordar que o abuso de poder,
conduta está configurada como criminosa, ainda que não a demora injustificada ou de má-fé nos procedimentos
fosse esta a intenção do servidor, pois neste caso, não há licenciatórios, por atentarem ao direito e ao bom
modalidade culposa. senso, devem ser configurados, também, como atos de
Após ouvir os denunciados e também representantes improbidade administrativa”.
da entidades que deram entrada na notícia criminal, “Analisando os Autos, não subsistem elementos para
o delegado que respondia pela Delegacia de Proteção indiciamento criminal dos acusados. Com estas considerações,
ao Meio Ambiente e ao Patrimônio Cultural concluiu o após este relatório final, remeto o presente feito ao douto
Inquérito Policial 087/2004 em 11 de janeiro de 2006 e representante do Ministério Público para análise”.
no seu relatório fez as seguintes afirmações:
VII - Conclusões
“Os funcionários denunciados, é bom lembrar, são técnicos
e não burocratas, estando adaptados ao trabalho de campo. Foram muitas as fraudes e ilegalidades descritas neste
Seria incongruente responsabilizá-los por uma vasta texto. Todas elas estão comprovadas nos documentos dos
‘conspiração’, visando beneficiar a Aracruz Celulose, que só processos de licenciamentos das atividades da Aracruz 169
Celulose pelos órgãos florestal e ambiental do estado do
Espírito Santo, bem como em documentos outros, como os Referências
1- Registro aqui a discordância quanto ao conceito de “florestas homogêneas”
depoimentos perante a Comissão Parlamentar de Inqué- quando se fala de plantios de eucalipto ou outra qualquer monocultura de árvores,
rito, que investigou as irregularidades nos licenciamen- por entender que o termo floresta só deveria se aplicar para as áreas onde há
tos, e outros juntados aos autos da CPI. biodiversidade de espécies florestais, notadamente de Mata Atlântica, nas regiões de
seu domínio geográfico, que abriga em seu interior outra biodiversidade que os plantios
É lastimável que os órgãos, instados a adotarem medi- monoculturais não abrigam, a da fauna de animais vertebrados e invertebrados.
das para correção dessas fraudes e ilegalidades, tenham
ou se omitido ou protelado as apurações e respostas às
demandas das entidades da sociedade civil (como no caso
das fraudes nas legitimações de terras, conforme o capí- Referências Bibliográficas
Meirelles, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, Editora Revista dos Tribunais, SP.
tulo que tratou deste assunto); ou simplesmente fazem
dessas demandas, verdadeiro escárnio, como o Relatório Milaré, Edis e Antônio Herman V. Benjamim, Estudo Prévio de Impacto Ambiental, Editora
cujos trechos foram transcritos no tópico anterior, o que Revista dos Tribunais, 1993.
deixa nas entidades e seus representantes a sensação de Antunes, Paulo de Bessa, Direito Ambiental, Lumen Júris.
que os direitos coletivos destinatários de ações em prol
da garantia do interesse público pelos órgãos, dirigentes e da Silva, José Afonso, Direito Ambiental Constitucional, Malheiros.
técnicos da Administração Pública, seguirá sendo relega-
Édis Milaré, Direito do Ambiente, Editora Revista dos Tribunais, SP, 2000
do ao plano inferior, quando se confrontam com o interes-
se privado onde esteja em jogo o poder econômico do qual Leme Machado, Paulo Affonso, O Direito Ambiental e a Proteção das Florestas no Século
falam Édis Milaré e Antonio Herman Benjamin. XXI – Anais do 3° Congresso Internacional de Direito Ambiental, 1999.
Por este motivo, repetimos o seguinte trecho: Sobrane, Sérgio Turra, A Lei de Improbidade Administrativa e sua Utilização na Proteção
das Florestas Brasileiras: Um Caso Concreto, Anais do 3° Congresso Internacional de
É bom salientar que, em sede ambiental, aquilo que Direito Ambiental, 1999.
denominamos ‘participação pública’ nada mais é que um
Pazzaglini Filho, Elias Rosa e Fazzio Júnior, Improbidade Administrativa – Aspectos
contrapeso a fenômeno comum na Administração Pública: Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público, Atlas.
a ‘participação econômica’. Em outras palavras, os diversos
agentes econômicos sempre tiveram – e continuam tendo Figueiredo, Marcelo, Probidade Administrativa – Comentários à Lei 8.429/92 e legislação
complementar, Malheiros Editores
– acesso direto aos agentes do poder de decisão, fazendo
com isso prevalecer seus pontos de vista, nem sempre Milaré, Edis e Paulo José da Costa Júnior, Direito Ambiental Penal, Milennium.
coincidentes com o mandato conferido ao administrador pela
cidadania como um todo”. Outras fontes de consulta:
- Rima da ampliação da Aracruz Celulose de 1988 e respectiva análise feita pelo Instituto
Tecnológico da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Há ainda duas instâncias que não estão totalmente
exauridas neste processo. O Ministério Público, quanto - Rima da ampliação da Aracruz Celulose de 2000.
à possibilidade de discordância quanto ao Relatório do - Cópias de processos administrativos relativos aos licenciamentos da Aracruz Celulose
Inquérito Policial transcrito acima, bem como sua atua- pela Secretaria de Estado Para Assuntos do Meio Ambiente, Instituto Estadual do Meio
ção em processos contra os licenciamentos das atividades Ambiente e Instituo de Defesa Agropecuária e Florestal.
da Aracruz Celulose, em andamento na Justiça Estadual
- Cópias de documentos dos Autos da CPI da Aracruz Celulose.
e Federal e, o Poder Judiciário, última instância quanto
à decisão final dessas demandas das entidades. Porém,
como todos sabem, a Justiça em nosso País é morosa,
devido a vários fatores, entre eles a enorme possibilida-
de de recursos - notadamente quando estão em disputa
interesses que envolvem grandes empresas, que podem
contratar os mais renomados escritórios de advocacia do
Brasil. Assim, essas soluções embora sejam plausíveis,
podem demorar mais de uma década para se tornarem
realidade, talvez décadas e, com isso, o prejuízo é de toda
a coletividade, detentora do direito ao meio ambiente eco-
logicamente equilibrado, preconizado pela nossa Consti-
tuição Federal, mas negado aos cidadãos, como tem sido,
até então, nos casos das fraudes e ilegalidades cometidas
nos licenciamentos das atividades da Aracruz Celulose
170 no Espírito Santo.
3
Por isso, neste artigo, pretende-se refletir sobre o papel
dos meios de comunicação na mediação das informações,
a fim de aprofundar a temática da construção de sentidos
e do imaginário social a partir da mídia, enfocando nos

A construção estudos dos discursos a respeito da empresa Aracruz Ce-


lulose no Espírito Santo e sobre as lutas dos movimentos

simbólica da sociais, em especial dos índios Tupiniquim e Guarani de


Aracruz; das comunidades quilombolas do Sapê do Norte;

Aracruz Celulose
dos Sem Terra, organizados no Movimento dos Trabalha-
dores Rurais Sem Terra (MST) e dos camponeses organi-
zados pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA),
e dos movimentos contra o chamado deserto verde.
Inicialmente, será feito um estudo sobre a atuação dos
sociais pela mídia meios de comunicação de massa, sua constituição em-
presarial e simbólica. Posteriormente, serão apontados
Luciana Silvestre Girelli alguns enfoques pelos quais a mídia trata a questão do
deserto verde no Espírito Santo, relacionando o discurso
sobre a empresa Aracruz Celulose ao discurso sobre (ou
Atualmente, ao se observar os diversos fatores que con- contra) as lutas sociais. Por fim, apontam-se algumas ne-
tribuem para a expansão da monocultura do eucalipto cessidades de alternativas para os movimentos sociais a
por empresas como a Aracruz Celulose no Espírito San- fim de que a informação sobre esse tema consiga, de fato,
to, nota-se, além dos investimentos financeiros nesse se- ultrapassar as barreiras do monopólio midiático, tanto no
tor do agronegócio e do apoio político de órgãos dos mais Espírito Santo quanto no Brasil.
diferentes níveis do Estado, que existe um outro tipo de
apoio muito mais sutil, porém essencial para a manu- A mídia e a construção do imaginário social
tenção desse tipo de empreendimento no estado: o apoio Para compreender a postura protetora adotada pelos
dos meios de comunicação de massa, principalmente por meios de comunicação em relação às empresas de celulo-
meio da informação jornalística veiculada na televisão, no se e a maneira hostil como são abordados os movimentos
rádio e em jornais; ou seja, o apoio ideológico. sociais, é necessário conhecer, em primeiro lugar, as duas
Nesse sentido, a atuação dos meios de comunicação lógicas de funcionamento da mídia: a lógica econômica e
costuma ocorrer de forma combinada: ao mesmo tempo a lógica simbólica, assim explicadas:
em que cria-se um discurso e uma imagem das empre-
sas de celulose, supervalorizando suas “ações sociais”, “[...] uma lógica econômica que faz com que todo organismo
seus índices de faturamento, os “benefícios” de ordens de informação aja como uma empresa, tendo por finalidade
diversas em prol do Espírito Santo - e ocultando, eviden- fabricar um produto que se define pelo lugar que ocupa
temente, os impactos socioambientais dessas empresas no mercado de troca dos bens de consumo (os meios
-, é realizado um trabalho de distorção do sentido das tecnológicos acionados para fabricá-lo fazendo parte dessa
lutas sociais que questionam esse tipo de empreendi- lógica); e uma lógica simbólica que faz com que todo
mento, apresentando-as como desnecessárias, deslegíti- organismo de informação tenha por vocação participar da
mas ou como uma perturbação à ordem estabelecida. construção da opinião pública.”1
Tendo em vista esse cenário e considerando que, atu-
almente, a maior parte das informações chega à popula- Pela lógica econômica, os meios de comunicação atuam
ção através dos meios de comunicação, é necessário cons- como empresas na produção e comercialização de bens
truir uma reflexão profunda sobre o que é difundido pela simbólicos. Sendo assim, as informações jornalísticas tam-
mídia e como isso influencia a opinião pública. A dispu- bém são fruto dessa dinâmica, conforme explica Berger:
ta entre o projeto do agronegócio e o projeto dos movi-
mentos sociais também se dá em âmbito ideológico, pela “Neste enunciado encontram-se os indicadores para a
construção simbólica e de sentidos das lutas e da própria compreensão do jornalismo: os vínculos com o mercado –
concepção do que é desenvolvimento para cada uma das dos patrocinadores e dos consumidores – e a equação do
partes antagônicas. Isso significa que a formação da opi- vivido num espaço editável. Alguns jornais tendem a uma
nião pública sobre o tema do deserto verde passa primor- postura mais independente e, assim, menos submetidos
dialmente pelas informações que a população tem ou não à intenção de lucro e ao comprometimento com o
acesso e que são mediadas e selecionadas pelos grandes poder. Porém, a tendência predominante e que veio se
meios de comunicação. acentuando ao longo do desenvolvimento do capitalismo 171
é sua função mercadológica e o estreitamento de seus – Coletivo Brasil de Comunicação – a partir de dados da
vínculos com o poder econômico e político.”2 Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), revela
que seis redes privadas nacionais de televisão aberta e
Ao se aproximar essa lógica de funcionamento ao es- seus 138 grupos regionais afiliados detêm a propriedade
tudo da relação midiática com as empresas de celulose, de 667 veículos de comunicação, entre emissoras de TV,
nota-se que essas empresas do agronegócio mantêm re- rádios e jornais. Somente as organizações Globo detêm
lações estreitas com os meios de comunicação, como por 32 concessões de TV e possuem 113 afiliadas no País, ob-
exemplo, por meio de anúncios de publicidade, fato ob- tendo 54% da audiência.
servável entre o jornal A Gazeta, principal meio de comu- Partindo dessas informações, constata-se que há um
nicação do estado, e a Aracruz Celulose. Existe, portanto, problema estrutural nos meios de comunicação no Brasil,
uma relação de sustentação econômica entre as empresas tendo em vista que existe uma grande concentração na
do agronegócio da celulose e as empresas de comunica- propriedade desses meios. Isso irá influir diretamente no
ção, o que começa a justificar a atuação desses meios em tipo de informação que circula na sociedade, que tende a
relação às lutas sociais. ser unilateral, conforme a linha política dos proprietários
Essa ligação é tão evidente que a Rede Globo, principal dos veículos. O apontamento dos benefícios do plantio da
emissora de comunicação de cadeia nacional e da qual a monocultura do eucalipto e a não divulgação de seus im-
Rede Gazeta no Espírito Santo é afiliada, integra a As- pactos socioambientais deve-se, em grande parte, a isso,
sociação Brasileira do Agronegócio (ABAG), mesmo sem por exemplo.
ser diretamente desse ramo. Nesse sentido, percebe-se A lógica econômica do funcionamento da mídia apon-
que a mediação da comunicação a partir dos grandes ta algumas explicações para que esses meios ajam des-
meios está sob o controle de empresários/proprietários sa forma em se tratando das empresas de celulose e dos
que possuem relações econômicas bastantes explícitas movimentos sociais, mas a ela precisam ser acrescenta-
no mercado com essas empresas. dos outros determinantes. Existem elementos “anôni-
Além da manutenção desse tipo de relação econômi- mos”, “invisíveis”, que compõem a lógica simbólica des-
ca com os grupos financeiros do agronegócio, o que, de ses meios, sobretudo no âmbito jornalístico, que também
certa forma, está na ordem do dia do funcionamento das precisam ser apreciados.
empresas capitalistas, que vivem sob a lógica da concor- A produção jornalística das notícias e informações não
rência, há uma problemática ainda maior envolvendo es- é apenas fruto das influências econômicas e políticas ex-
sas emissoras de comunicação: o monopólio midiático. ternas a essa prática. Ocorre, de certa forma, uma inter-
Um número reduzido de famílias detém o controle dos nalização da lógica da concorrência entre os próprios jor-
meios de comunicação, logo, das informações que circu- nalistas, como explica Bordieu:
lam em todo o País. Sendo assim, não há espaço nesses
meios para opiniões que sejam divergentes de sua linha “A concorrência econômica entre as emissoras ou jornais
editorial, que, como já foi apontado, é baseada, na maio- pelos leitores e pelos ouvintes, ou, como se diz, pelas fatias
ria das vezes, nas relações econômicas e políticas que os de mercado realiza-se concretamente sob a forma de uma
proprietários dos veículos têm. concorrência entre os jornalistas, concorrência que tem seus
Os dados a seguir dão uma boa demonstração de como desafios próprios, específicos, o furo, a informação exclusiva,
ocorre a concentração midiática no Brasil: a reputação na profissão etc., e que não vive nem se pensa
como uma luta puramente econômica por ganhos financeiros,
“Verificou-se que em 19 estados da federação os sistemas enquanto permanece sujeita às restrições ligadas à posição
regionais de comunicação são constituídos por duas do órgão de imprensa considerado nas relações de força
“redes” principais: econômicas e simbólicas.”4
(a) um canal de televisão, largamente majoritário, quase
sempre integrante da Rede Globo; (b) e dois jornais Essa percepção é importante a fim de se compreender
diários, sendo que o de maior circulação está sempre um outro nível da produção da informação, a que passa
ligado a um canal de TV, e quase sempre ao canal de pelo próprio jornalista a partir da sua relação com o ve-
televisão afiliado à Rede Globo; e, sempre paralelamente, ículo de comunicação em que trabalha e com os outros
ligado a uma rede de emissoras de rádio, com canais AM e campos sociais. Nesse sentido, nota-se que o jornalista,
FM. Cada um desses jornais, em quase todas as capitais, sujeito que produz concretamente a informação, recebe
reproduz as principais seções de O Globo e seu noticiário uma consideração social muito grande, por parte, inclu-
é alimentado, predominantemente, pelos serviços da sive, daqueles que têm um conhecimento mais especiali-
Agência de Notícias Globo.”3 zado sobre certos assuntos, como a categoria dos intelec-
tuais, ou daqueles que exercem, por direito, cargos de au-
172 Uma pesquisa mais recente realizada pelo Intervozes toridade pública. Esse “assédio” é um fator que influi na
Antes da chegada da Aracruz, as pessoas se dedicavam à agricultura,

Tamra Gilbertson
caça, pesca, artesanato: hoje, são desempregados ou mão de obra barata

173
produção noticiosa, bem como a própria concorrência en- a notícia apresentada não contivesse o ponto de vista de
tre jornalistas de veículos diferentes, como já citado ante- quem a produziu. Assim é caracterizada essa prática:
riormente por Bordieu.
Em se tratando especificamente da profissão jornalís- “O jornalismo vale-se, portanto, desta máscara. Muito
tica na produção de sentidos, percebe-se que ela exerce diferente disto, na prática, jornalismo é uma forma de
“uma forma raríssima de dominação: tem o poder sobre se realizar a luta pela poder. A imprensa instrumentaliza
os meios de se exprimir publicamente, de existir publica- as informações que colhe, recebe ou mesmo fabrica-as,
mente, de ser conhecido, de ter acesso à notoriedade pú- transformando-as em notícias para usá-las no jogo político-
blica”5. Logo, o jornalista pode “impor ao conjunto da so- ideológico, em uma palavra, no jogo do poder.”7
ciedade seus princípios de visão do mundo, sua problemá-
tica, seu ponto de vista”.6 Nesse sentido, a percepção de que o que é veiculado pe-
Tendo em vista, então, que existe uma série de fato- los jornais é a pura verdade é um poderoso instrumento
res que influem na produção da notícia, faz-se necessária para legitimar o discurso produzido pelos meios de comu-
uma reflexão maior sobre o caráter do jornalismo, ampla- nicação e uma forma de apresentar uma visão da socieda-
mente difundido como uma prática que busca acima de de (a visão das grandes empresas e de seus aliados) como
tudo a neutralidade, a objetividade e a imparcialidade na a única e verdadeira visão da sociedade.
produção da informação. No entanto, a prática jornalísti- Ainda sobre a suposta objetividade jornalística, dois
ca demonstra que o enunciar desses “méritos” contribui elementos precisam ser considerados como centrais no
apenas para tornar a opinião do jornal a (única) opinião seu questionamento: a seleção que existe durante todo o
verdadeira para o conjunto da sociedade. processo de produção de notícias e a recriação dos fatos,
Sendo assim, será feito a seguir o estudo de como o jor- convertidos em notícias no mundo midiático.
nalismo se auto-constrói como um instrumento de ver- O processo de seleção no campo jornalístico não acon-
dade coletiva. Isso é primordial para a compreensão da tece apenas na escolha das pautas, do que é de “interes-
grande influência que essa atividade possui no conjunto se público” conforme o ponto de vista do jornalista e da
da população, ou seja, que faz com que a sociedade acre- linha editorial do veículo, mas também nas escolhas que
dite, de fato, no que é veiculado nesses meios. Para isso, se faz a fim de produzir determinado sentido, como elu-
serão trabalhados – e desmistificados – os discursos da cida Charaudeau:
objetividade e da credibilidade jornalística.
O jornalismo difunde o discurso do seu importante pa- “Comunicar, informar, tudo é escolha. Não somente escolha
pel de informar, de levar a síntese do que ocorre na so- de conteúdos a transmitir, não somente escolha das formas
ciedade para as casas das pessoas. Essa “função”, assim adequadas para estar de acordo com as normas do bem
alardeada, apresenta-se de modo muito natural, como se falar e ter clareza, mas escolha de efeitos de sentido para
não houvesse um processo de seleção, de recorte do que influenciar o outro, isto é, no fim das contas, escolha de
acontece no mundo pelos jornalistas ou mesmo como se estratégias discursivas.”8

Nesse sentido, é importante frisar que o que se publi-


ca ou não sobre a empresa Aracruz Celulose nos meios de
comunicação, por exemplo, faz parte de uma intenciona-
lidade concreta do veículo, conforme o que se deseja ou
que se tenha que divulgar naquele momento.
O outro elemento questionador da objetividade jorna-
lística é a recriação do fato a partir da sua conversão em
notícia. Pode-se dizer que o “fato” existe independente
da imprensa, apesar de muitos estudiosos considerarem
que, cada vez mais, os fatos são “provocados pela própria
imprensa ou construídos para que a imprensa os utilize”.9
Porém, o sentido apresentado ao fato, muitas vezes che-
ga a recriá-lo, a torná-lo irreconhecível inclusive para os
que participaram concretamente do acontecido.
Isso é muito comum, sobretudo, em cobertura de mani-
festações de movimentos sociais, como no caso dos indí-
genas nas atividades de enfrentamento à empresa Ara-
cruz Celulose. O sentido atribuído a essas manifestações
174 A Aracruz conta com os veículos de mídia para mascarar sua real imagem chega a ser irreconhecível àqueles que participam ativa-
mente delas, criando uma nova caracterização e roupa- cos com empresas como a Aracruz Celulose. Esse arti-
gem aos personagens dessa notícia, ou seja, desse fato re- fício construído historicamente pela imprensa é um dos
criado. Para exemplificar a não neutralidade da impren- fatores para se compreender como esses meios conse-
sa diante das manifestações sociais, por formas diversas, guem tamanha credibilidade junto à população apesar
Christa Berger faz a seguinte consideração: do que publicam.
Partindo dessas considerações, serão apresentadas a
“Todo leitor que acompanhou a cobertura de alguma seguir as visões sobre a Aracruz Celulose e sobre os mo-
reivindicação social na qual esteve envolvido - seja um vimentos sociais difundidas por esses meios de comuni-
professor em greve, um colono sem terra, um funcionário cação e que são consideradas verdades socialmente reco-
público de instituição em vias de privatização - sabe por nhecidas. Tais “imagens” foram extraídas a partir da aná-
experiência que o jornal não foi isento. Pode até ter trazido lise de discursos veiculados no jornal A Gazeta e são im-
as duas versões, mas a legenda na foto, o número de portantes para se ter um termômetro de como a questão
manifestantes, a palavra que designa o movimento, a edição do deserto verde circula pela opinião pública.
da página, tomam posição. E a posição negada em nome
do princípio liberal do jornalismo - a imparcialidade - é que A Aracruz Celulose representada na mídia
confirma a função que a história reservou à imprensa. A Ao se observar o discurso sobre a Aracruz Celulose nos
ela cabe, em última instância, organizar discursivamente o meios de comunicação do estado, percebe-se uma movi-
mundo como convém a quem o domina.”10 mentação em dois sentidos: uma, no sentido de publicar
constantemente matérias que tratem de todos os aspec-
Apesar de a mídia organizar discursivamente “o mun- tos que tornam positiva a atuação da empresa no Espírito
do que convém a quem o domina”, isso não é facilmen- Santo, como a suposta geração de empregos ou parcerias
te percebido pelos “dominados”, uma vez que ela utiliza sociais que ela tem com órgãos do estado ou diretamente
vários mecanismos para encobrir essa percepção. Desse com comunidades locais; e, a outra, no sentido de justifi-
modo, ela adquire uma credibilidade por parte da popu- car a atuação da empresa nos casos em que aparece con-
lação, que acaba vendo na imprensa um canal de expres- flito com as comunidades tradicionais, numa tentativa de
são coletiva para suas aspirações e insatisfações. Assim “absolvição”, ao mesmo tempo em que há uma deslegiti-
exemplifica Ciro Marcondes Filho: mação dos movimentos sociais em luta.
Dentre os aspectos considerados positivos relacionados
“O poder de falar alto não é só dos empresários. O à empresa, destacam-se as parcerias que ela estabelece e
governo pode impor seu discurso nas falas oficiais que trazem alguns benefícios à população, que na verda-
de rádio, na requisição de rede de emissoras de TV, de, são direitos sociais que deveriam ser assegurados pelo
nos diários oficiais. A Igreja pode fazer um trabalho Estado, mas que são transferidos para a iniciativa priva-
de doutrinação com fiéis através de seus boletins; a da como, por exemplo, investimentos em educação e ge-
universidade, pelo seu jornal interno; o partido, pelo seu ração de empregos para a juventude. Os programas assis-
tablóide; o sindicato, pelo seu serviço noticioso. Só o tencialistas da empresa são amplamente divulgados pelos
primeiro tipo – o do empresário – é um falar genuinamente meios de comunicação, como um papel importante que a
jornalístico. Todos os demais são veículos oficiais de empresa vem cumprindo no estado. Nesse sentido, é im-
transmissão de opiniões particularistas.”11 portante destacar que nem sempre o reconhecimento so-
cial da Aracruz Celulose se dá pelo que ela produz (celu-
É importante ressaltar exatamente isto: o falar jorna- lose), mas pela contribuição que se diz que ela tem no de-
lístico não é identificado como uma transmissão de infor- senvolvimento do estado. Isso ocorre no caso do programa
mações particulares, mas sim informações “gerais”, “neu- Produtor Florestal:
tras” e “objetivas”. Daí a criação da credibilidade jornalís-
tica, apesar de as informações serem construídas a par- “Em 2005 o programa movimentou quase R$ 70 milhões,
tir de visões de mundo. Justamente por isso, as informa- abrangendo cerca de 80 mil hectares. Foram três mil
ções veiculadas no jornal A Gazeta, por exemplo, transpa- contratos com pequenos, médios e grandes produtores
recem como sendo imparciais e não vinculadas à própria rurais, em 150 municípios dos estados do Espírito Santo,
Aracruz Celulose. Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Esse talvez seja o ponto central do jornalismo e da mí- O programa, segundo a Aracruz, responde atualmente
dia: a população acredita que o falar verdadeiro e neu- pela geração de mais de cinco mil empregos no campo. Os
tro é o falar dos jornais. No entanto, não existe a percep- contratos prevêem o fornecimento de mudas de eucalipto e
ção de que esse falar mediado possui também uma opi- de árvores nativas (para recomposição ambiental), insumos,
nião, que, a propósito, é a opinião dos empresários da co- assistência técnica, além da garantia de compra da madeira
municação que possuem vínculos políticos e econômi- pela Aracruz.”12 175
176 O site da Aracruz contém mensagens extremamente positivas sobre sua atuação social, ambiental, trabalhista, econômica: construção simbólica
Vale ressaltar ainda que a geração de empregos – e de vo ambiental enorme, ela é representada midiaticamente
supostos bons empregos – é um ponto bastante explora- como um empreendimento grandioso, que traz inúmeros
do pela mídia. Mesmo que a empresa gere menos de dois benefícios para a população. Nesse sentido, o que não é
mil empregos diretos no estado atualmente, há uma am- explicitado, o que não é dito na mídia também possui uma
pla divulgação de que ela emprega bem e com expectati- ampla significação nos textos jornalísticos.
va de ampliação no número dos postos de trabalho. Existe O não-dito na mídia, nesse caso, tem um peso igual ou
uma analogia entre modernização tecnológica e geração até superior ao que é dito sobre o agronegócio, ou seja,
de empregos e a Aracruz Celulose figura como uma das “ao longo do dizer, há toda uma margem de não-ditos que
empresas que se enquadram nessa equação, o que contri- também significam”16. É o que se caracteriza como “silên-
bui para o fortalecimento de sua imagem positiva junto à cios” do discurso, como explica Orlandi:
opinião pública. Isso é comprovado no seguinte trecho:
“Este (o silêncio) pode ser pensado como a respiração da
“Entre as empresas que atuam no estado e que significação, lugar de recuo necessário para que se possa
aparecem no Guia 2006, a Arcelor ficou em sexto lugar, significar, para que o sentido se faça. [...]. Esta é uma das
e a Aracruz Celulose figurou entre as 150 melhores formas de silêncio, a que chamamos silêncio fundador:
empresas para trabalhar no País pelo terceiro ano silêncio que indica que o sentido pode sempre ser outro. Mas
consecutivo. A escolha teve como base questionários há outras formas de silêncio que atravessam as palavras,
respondidos pelos próprios trabalhadores.” 13 que ‘falam’ por elas, que as calam.”17

Um elemento também a se considerar é a idéia de gran- Entre essas outras formas de silêncio está a que rela-
diosidade do empreendimento da Aracruz Celulose veicu- ciona o silêncio ao que não pode ser dito por conta de uma
lada pelos meios de comunicação: algo em que se investe determinada conjuntura, como a que envolveu a empre-
muito dinheiro (o próprio Estado investe; logo, parece que sa Aracruz na demarcação das terras indígenas. Sobretu-
é algo que traz grande retorno à sociedade); um empreen- do no período em que houve um acirramento da luta in-
dimento que investe em muita tecnologia constantemente dígena pela demarcação, nos anos de 2006 e 2007, houve
(o que cria a ilusão de muitas novas oportunidades de tra- um comportamento silencioso dos meios de comunicação
balho); um negócio que gera muitos empregos (muitos e no sentido de não expor todos os problemas citados que
supostamente bons empregos); um empreendimento que possuem relação direta com a empresa, como multas am-
coloca o “nosso” estado no cenário mundial da economia bientais que ela recebeu, a fim de preservar sua boa ima-
(sensação de se sentir representado, por ser uma empresa gem. Esse tipo de censura textual é assim esclarecido:
da “nossa” terra, embora seja uma transnacional).
Toda essa grandiosidade por meio de cifras, números, “As relações de poder em uma sociedade como a nossa
quantidades, faz parte do discurso atual do agronegócio produzem sempre a censura, de tal modo que há sempre
para “tentar mudar a imagem latifundista da agricultura silêncio acompanhando as palavras. Daí que, na análise,
brasileira”14, como explica Bernardo Mançano: devemos observar o que não está sendo dito, o que não pode
ser dito, etc.”18
“O latifúndio carrega em si a imagem da exploração, do
trabalho escravo, da extrema concentração da terra, do Vinculada à idéia de grandiosidade do agronegócio en-
coronelismo, do clientelismo, da subserviência, do atraso contra-se a idéia de que todo esse empreendimento es-
político e econômico. É, portanto, um espaço que pode ser tende seu benefício para todos, é distribuído, comparti-
ocupado para o desenvolvimento do País. Latifúndio está lhado com a sociedade, por diversas maneiras, tais como
associado com terra que não produz, que pode ser utilizada pelo investimento em educação, geração de emprego para
para reforma agrária. [...]. A imagem do agronegócio foi jovens urbanos e geração de emprego e renda para pro-
construída para renovar a imagem da agricultura capitalista, dutores rurais. Isso é bastante explorado pela mídia, em-
para “modernizá-la”. É uma tentativa de ocultar o caráter bora os lucros da Aracruz Celulose beneficiem unicamen-
concentrador, predador, expropriatório e excludente te os seus proprietários e o capital financeiro internacio-
para dar relevância somente ao caráter produtivista, nal, e não a população do estado.
destacando o aumento da produção, da riqueza e das A ampla divulgação dessas ações fortalece a propa-
novas tecnologias”.15 ganda da própria empresa de que “ela está no cotidia-
no dos capixabas”. Logo, é algo que se torna importante,
Isso é tão evidente no caso da Aracruz Celulose que, constante, que supre necessidades concretas da popula-
mesmo não gerando a quantidade de empregos condizen- ção – educação, emprego, renda -, ou seja, direitos sociais,
tes com seu porte, concentrando muitas terras, expulsan- que deveriam ser assegurados integralmente pelo Esta-
do as comunidades tradicionais e provocando um passi- do, mas não são. 177
produção de celulose, o que pouco “dialoga” com o co-
tidiano da população, mas pelas ações que ela reali-
za junto a outros setores sociais e que a torna apa-
rentemente presente na vida das pessoas; ações mui-
tas vezes reforçadas ou criadas pelo discurso da mí-
dia. A isso se soma a imagem de progresso da empre-
sa, de avanço tecnológico, que torna a economia capi-
xaba um destaque internacional, aliado a uma blinda-
gem legal, que é assegurada pelo discurso da legali-
dade, de agir conforme as normas.
O discurso midiático sobre a Aracruz Celulose, portan-
to, se sustenta numa agenda de ações positivas, publica-
das constantemente, que criam uma pré-concepção da
empresa no imaginário social coletivo, a qual terá uma
relação direta com a empresa que é “atacada” pelos mo-
vimentos sociais. Um discurso midiático se inter-relacio-
na com outro, ou seja, uma boa construção diária da ima-
gem da empresa é essencial para tornar menos legítimas
as lutas dos movimentos, pois seu enfrentamento não se
dá contra qualquer empresa, mas contra a Aracruz Celu-
lose construída simbólica e midiaticamente.
Empresa se “vende” como a salvadora das regiões onde se instala
Os movimentos sociais representados na mídia
Como já foram levantadas as imagens e principais cons-
A Aracruz Celulose, de certa forma, aparece midiatica- truções discursivas envolvendo a empresa Aracruz Celu-
mente fornecendo “respostas” a algumas necessidades da lose, serão também apontados os discursos midiáticos en-
população capixaba, ou seja, ela aparece como uma das volvendo os movimentos sociais em luta contra a empre-
possibilidades de solução para esses problemas, embora, sa, tendo em vista os diversos impactos que a monocultu-
na realidade concreta, não seja. Mas, no plano imaginário, ra do eucalipto lhes causou e ainda causa.
simbólico, de construção de sentidos, transparece como Nesse sentido, é preciso dizer que se percebe um com-
sendo. Esse é um dos grandes papéis da mídia: construir portamento geral da mídia em relação aos movimentos
sentidos simbólicos, por meio do discurso, embora nem sociais, mas também um tratamento de modo específico
sempre isso tenha equivalência no plano real. Isso pode conforme a conjuntura de cada luta. Neste artigo, se bus-
ser facilmente identificado no exemplo abaixo. cará apontar o discurso geral sobre os movimentos, mas
Uma passagem da coluna “Economia Capixaba”, do jor- também indicando as especificidades do tratamento de
nal A Gazeta do dia 13 de agosto de 2006, caracteriza da algumas lutas, sobretudo a luta indígena pela demarcação
seguinte forma o Programa Produtor Florestal, da empre- das terras, por meio de alguns exemplos.
sa Aracruz Celulose: “Representa (o programa) resposta Em geral, percebe-se que o tratamento midiático às lu-
vigorosa da silvicultura à abertura de postos de trabalho, tas dos movimentos é marcado pela invisibilidade desses
inserção social, geração de renda e fixação do homem no grupos, o que pode se dar de diversas formas. A primeira
campo, evitando o êxodo rural – sempre aventureiro”.19 delas é simplesmente a não divulgação das lutas. A não
Por esse fragmento, percebe-se que o que é atribuído ao publicação ou exibição das atividades de manifestação
Programa, logo, à empresa, não condiz com sua real atua- dos movimentos significa negar a sua existência, o acon-
ção no Espírito Santo. Porém, em âmbito do discurso mi- tecimento, não permitindo que haja um compartilhamen-
diático, ela aparece fornecendo respostas a diversos pro- to social do que está de fato em questão.
blemas sociais do campo capixaba. Torna-se uma realida- Se for considerado que a maior parte das informações
de discursivamente construída. que circula atualmente parte dos meios de comunicação
Em síntese, pode-se dizer que a promessa do agro- de massa, significa dizer que tornar as lutas sociais in-
negócio e da empresa Aracruz Celulose possui uma visíveis midiaticamente também significa torná-las invi-
grande inserção no imaginário social, em certa medi- síveis socialmente. Nesse sentido, pode-se dizer que um
da, porque o que se anuncia sobre suas ações preen- primeiro ponto da problemática da mídia seria justamen-
che lacunas importantes de demandas sociais urgen- te a falta de informação para a população sobre as lutas
tes da população capixaba. A empresa se torna refe- dos movimentos e, principalmente, sobre os motivos que
178 rência não apenas pelos recordes adquiridos com a impulsionaram essas lutas, ou seja, os impactos da mono-
cultura do eucalipto para essas populações. sigual de enfrentamento, dado que a reprodução das hie-
Complementando esse ponto da invisibilidade total, no- rarquias de poder ocorre também na mídia. Isso é possível
ta-se que, ao contrário do que ocorre com a Aracruz Celu- devido à forma como esses meios (re)produzem discursi-
lose, os movimentos sociais não possuem uma agenda de vamente o mundo, logo, também as relações de poder.
ações positivas divulgadas constantemente pela mídia. O Portanto, é necessário enfatizar: mesmo que a reivindi-
modo como as populações indígenas e quilombolas pre- cação ou a crítica dos movimentos seja apresentada, em
servam a Mata Atlântica, o quanto a agricultura dos cam- muitas matérias, por meio de aspas, isso não significa que
poneses, com produção agroecológica, produz alimentos elas tenham o mesmo “peso” que a argumentação da em-
saudáveis ou como a reforma agrária distribui renda e presa. Não é pela quantidade de linhas destinadas a um
gera empregos não está na ordem do dia da mídia. Não lado ou a outro que se determina “quem vence” no discur-
existe uma pré-construção de uma imagem positiva dos so, embora isso também seja um fato a se considerar. É a
movimentos nos meios de comunicação. Logo, a popula- partir da observação da forma de construção textual que
ção tende a saber de sua existência exclusivamente nos os sentidos passam a emergir.
momentos de luta, ou, como sempre é divulgado, nos mo- Esses são alguns recursos midiáticos importantes de
mentos de conflito. Esse é um ponto bastante importan- serem percebidos a fim de se compreender que há diver-
te de se considerar, pois existe um desequilíbrio enorme sas maneiras de tratar as lutas sociais, que não passam
entre o que é construído diariamente pela mídia sobre a apenas pelo “falar bem” e “falar mal” dos grupos em ques-
empresa Aracruz Celulose e sobre os movimentos. tão. Há muitas sutilezas nessa construção simbólica, im-
Partindo para outras formas de invisibilidade, existe a portantes de serem identificadas e comentadas.
que é utilizada nos tais momentos de conflito, quando as Para além da invisibilidade desses movimentos na mí-
lutas são, então, divulgadas, mas a intervenção dos movi- dia, existe um outro processo de tratamento midiático,
mentos para explicar suas motivações, objetivos, é mui- que é a forma de abordagem desses sujeitos sociais quan-
to restrita, insuficiente para expor à população os reais do aparecem em luta. Como já foi dito, são nesses mo-
problemas que estão enfrentando. Existe um descompas- mentos de atividade que os movimentos existem social-
so muito grande entre a narração do jornal que destaca mente pelos meios de comunicação; logo, o tipo de abor-
o lado da empresa e as possibilidades de explicação por dagem influi na caracterização que a opinião pública terá
parte dos movimentos. desses sujeitos.
Esse descompasso pode se exprimir de diversas formas, O que se nota, em linhas gerais, é que o modo como a
como pelo espaço gráfico destinado no jornal aos movi- mídia apresenta essas lutas as torna deslegítimas, des-
mentos e pelo tempo de fala na televisão que lhes é con- qualificadas, desmoralizadas, diluídas, espontâneas ou
cedido, ou por meio de intervenções de autoridades em desnecessárias, conforme os recursos discursivos textuais
favor da empresa e contra os movimentos, o que já com- utilizados na produção da notícia. As seguir, alguns tre-
plexifica a questão. Quando a polícia, representantes do chos que exemplificam as diversas considerações apon-
governo ou os donos da Aracruz, que são autoridades so- tadas acima.
cialmente reconhecidas, têm sua opinião registrada nos Sobre as comunidades quilombolas, a partir de uma
meios de comunicação, o “lado” que eles defendem tende coluna de opinião do jornal A Gazeta. Nota-se que a iden-
a ser considerado mais legítimo pela população. Isso é es- tidade desses povos é colocada em xeque:
clarecido no seguinte fragmento:
“Outro dia, no Senado, o senador Gerson Camata mostrou um
“Segundo essa noção, podemos dizer que o lugar a partir mapa do Brasil com territórios quilombolas, a serem efetivados.
do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz. [...] Como Segundo ele, falsos quilombolas estão se multiplicando em todo
nossa sociedade é constituída por relações hierarquizadas, o País, com carimbo oficial; estão pregando o ódio racial.
são relações de força, sustentadas no poder desses O governo federal, a polícia, proprietários rurais de diversos
diferentes lugares, que se fazem valer na ‘comunicação’.”20 pontos sabem que existem falsos quilombolas, falsos índios,
falsos sem-terra, falsos sem-teto, falsos desempregados e
Isso significa que existe um “peso” diferenciado entre a outras categorias de mentirosos e aventureiros, protegidos
fala de um quilombola e a fala de um dono da Aracruz Ce- por organismos nacionais e até estrangeiros, que chegam
lulose, uma vez que ambos estão em hierarquias diferen- aqui com o objetivo de insuflar, revolucionar, inverter o
tes nas relações sociais de poder na sociedade capitalis- processo político. Há muitos anos que esses grupos invadem
ta. E os meios de comunicação, que constroem subjetiva- propriedades, prédios, repartições públicas, até o Congresso
mente a opinião na sociedade, reproduzem essas desigual- Nacional e, ainda, recebem ajuda oficial – os mais abusados
dades ao invés de desconstruí-las. Por isso, mesmo que os recebem condecorações, prêmios em dinheiro, benesses as
movimentos sociais tenham o mesmo espaço (número de mais diversas, até aposentadorias como heróis! O que está
linhas, tempo) nesses veículos, aparecem em situação de- acontecendo no Brasil, ao sabor desse tipo de gente?”21 179
área”, destaca Freitas.
Sem invasão. “Esse é o lado silencioso, sem lona preta,
sem pneu queimado, sem invasão de propriedades, sem
discursos inflamados na busca dessas famílias pelo seu
pedaço de terra”, enfatiza Freitas. Os projetos aprovados
para o crédito fundiário são quase todos associações e
cooperativas que reúnem grupos de trabalhadores rurais.”23

Sobre o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA),


numa mobilização contra o agronegócio da Aracruz Celu-
lose, no município de Linhares, pode-se notar uma crimi-
nalização bastante explícita da luta, atribuindo-lhes o ca-
ráter de “vândalos”:

“Uma passeata, marcada por momentos de tumulto,


protestos e violência tomou conta da cidade e da BR
A Aracruz desencadeou uma campanha difamatória e racista contra os índios 101 Norte, ontem. As cenas foram protagonizadas por
integrantes do Movimento de Pequenos Agricultores
(MPA). Apesar da violência, de acordo com dirigentes da
Sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais entidade tratava-se de uma manifestação pacífica.
Sem Terra (MST), tendo em vista a ocupação da fazen- Exibindo bandeiras vermelhas e gritando palavras de
da Agril, da Aracruz Celulose, no município de Aracruz, ordem contra o capitalismo e o agronegócio, dentre várias
percebe-se que a empresa transparece tendo muito mais ações, os agricultores bloquearam o trânsito na rodovia
autoridade e legitimidade que a luta do movimento: BR 101, quebraram vidraças da porta principal do prédio
onde funciona a prefeitura, agrediram um agente da Polícia
“Aracruz. Na madrugada de ontem cerca de 200 famílias, Rodoviária Federal, que estava à paisana, e tentaram impedir
integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST), reocuparam o trabalho de jornalistas e cinegrafistas. Uma repórter,
a Fazenda Agril Agropecuária, localizada no distrito de Vila inclusive, foi atingida por uma pedra.
do Riacho, em Aracruz, norte do Espírito Santo. Elegendo a Aracruz Celulose como o principal alvo dos
A ocupação começou por volta das duas horas da protestos – empresa que, segundo os manifestantes, estaria
madrugada. Os manifestantes montaram barracas e tendas planejando outra intervenção para desviar água do Rio
de lona, ocupando uma área de quase nove mil hectares da Doce, como forma de atender a demanda de suas indústrias
fazenda, que pertence à empresa Aracruz Celulose.” –, eles seguiram até o prédio da prefeitura.
‘Nunca tinha visto uma coisa assim aqui em Linhares’,
O outro lado comentou assustado um funcionário que por pouco não
Aracruz recorrerá à Justiça pedindo a desocupação foi agredido. Outros, temendo a violência, permaneceram
no interior do prédio. Um manifestante atirou uma pedra
“A assessoria de imprensa da Aracruz Celulose informou quebrando a vidraça da porta principal, enquanto outros
que empresa é a proprietária legal de toda a área, e retiraram dos mastros as bandeiras que estavam hasteadas
vai recorrer à justiça para que o local seja novamente em frente ao prédio.
desocupado. A empresa afirma que, dos quase nove mil Um dos coordenadores do MPA, Joel Hollunder, explicou
hectares da fazenda Agril Agropecuária, 6,8 mil são de que o movimento está inserido na programação da
área preservada e 1,3 mil de plantio de eucalipto.”22 Semana Nacional de Luta Contra o Agronegócio em Favor
da Agricultura Camponesa. Eles reivindicam subsídios
Ainda sobre o MST, é interessante notar como a refor- agrícolas, linhas de crédito, financiamentos e incentivos para
ma agrária a partir da ocupação de terra, ou seja, forma os trabalhadores camponeses. Destacou que Linhares foi
mais elementar de pressão social, é vista como algo des- escolhida para a manifestação por concentrar os principais
necessário. No fragmento abaixo, há um incentivo do jor- movimentos do agronegócio capixaba.”
nal para uma reforma agrária mais “digna”, pela compra
e não pela ocupação de terra: O outro lado
Aracruz afirma desconhecer projeto
“Os novos donos das terras são empreendedores que
se sentem valorizados por terem tido a oportunidade de “O diretor de Operações da Aracruz Celulose, Valter Lídio
180 comprar sua propriedade rural, não importa o tamanho da Nunes, afirmou desconhecer a existência do projeto de
desvio das águas do Rio Doce, visando ao favorecimento chegada ao Espírito Santo.
da indústria. Ele acredita que a empresa foi o alvo A partir de 2005, com o novo impulso da luta indígena, fo-
escolhido pelo movimento que declarou guerra ao ram realizadas inúmeras atividades de mobilizações, des-
agronegócio devido à sua importância no setor”. 24 de a auto-demarcação da área até a ocupação do Portocel e
da fábrica da empresa. Toda essa disputa foi acompanhada
Por esse último fragmento, nota-se que a notícia deixa midiaticamente e a proposta é apresentar qual a mensa-
subentendido que o motivo original apontado pelo movi- gem dessa situação que foi passada para a população.
mento para a luta (tentativa de desvio do Rio Doce pela O que se pode notar é que a mídia tratou o caso sob três
Aracruz Celulose) parece ser apenas um “pretexto para a enfoques: reforçando o argumento da legalidade da Ara-
baderna”, desqualificando a manifestação. cruz Celulose, apelando emocionalmente para os danos
Sobre a Rede Alerta contra o Deserto Verde e seus causados à empresa pelos índios e criminalizando expli-
movimentos, o jornal é sintético e taxativo em sua carac- citamente as ações das comunidades. A seguir serão da-
terização como “ameaça à ordem”: dos exemplos desses enfoques.
No argumento da legalidade, o jornal A Gazeta tratou
“Índios e integrantes do MST e da Rede Alerta contra o Deserto a questão a partir das provas apresentadas pela Aracruz
Verde voltaram a invadir área da Aracruz Celulose. No último Celulose, as quais tentam comprovar a aquisição legal das
dia 7, eles já haviam derrubado eucaliptos na área próxima terras por parte da empresa e, além disso, a não-existên-
à fabrica. Ontem, 100 manifestantes ameaçaram e roubaram cia de índios na região. O exemplo abaixo confirma isso:
motosseras de funcionários que trabalhavam na área.”25
“Para provar que é legítima dona, a empresa elaborou
Essa forma de mediação, então, dificulta profundamen- um relatório de contestação ao laudo da Funai. [...], o
te a interlocução desses movimentos sociais com a opi- documento levou oito meses para ficar pronto. A contestação
nião pública, pois além desses meios construírem coti- contém mais de 15 mil páginas. [...] Ao todo, mais de vinte
dianamente uma boa imagem da Aracruz Celulose, dis- profissionais participaram da elaboração.26
torcem profundamente os momentos de luta, de reivindi- Entre as diversas provas apresentadas pela empresa, está
cação, de exposição pública desses sujeitos sociais, com- um censo do Ministério da Agricultura, elaborado em 1920.
prometendo, então, que a população conheça os impactos Segundo a Aracruz, o censo ‘não indica a presença de uma
causados por essa multinacional. única aldeia indígena na região’27. Fotos aéreas, tiradas em
Feita essa exposição geral, será feito um estudo de caso 1957 pelo Instituto Brasileiro do Café, também foram usadas
especificamente sobre o tratamento aos índios Tupini- como prova.”28
quim e Guarani, de Aracruz, na sua luta pela demarcação
das terras. A análise foi feita por um período de três me- Na matéria citada, em nenhum momento foi entrevista-
ses do jornal A Gazeta, no ano de 2006. do sequer um representante da Funai para prestar escla-
recimentos sobre o parecer do órgão, favorável à demar-
A luta indígena no jornal A Gazeta cação das terras indígenas, por exemplo. Nesse sentido, a
O enfrentamento dos índios à empresa Aracruz Celulo- matéria traz apenas uma informação unilateral, da empre-
se se deu, historicamente, na luta pela retomada de suas sa, excluindo, além da fala indígena, a fala do órgão oficial
terras, roubadas pela empresa para a implantação de sua do Estado que trata da questão e que seria essencial para
fábrica e de seus monocultivos de eucalipto, desde sua esclarecer o processo de estudo e demarcação da área.
Então, sob o marco legal, o problema em si, ou seja, a
A empresa questionava o direito à terra e a indianidade dos Tupiniquim aquisição ilegal das terras indígenas pela Aracruz Celu-
lose e, por isso, a luta pela demarcação da área, foi pouco
esclarecido para a população. Há muitas lacunas de in-
formação que precisariam ser preenchidas para uma me-
lhor compreensão do caso. Citando mais um exemplo: os
direitos garantidos aos índios pela Constituição Federal
não são sequer mencionados ao longo das diversas publi-
cações dos meios de comunicação, o que fez com que sua
reivindicação aparecesse para a população como opor-
tunista, pois transparece como “um grupo que, aleatoria-
mente, quer terra alheia, de uma empresa que dá certo”.
No aspecto da legalidade, então, evidencia-se que há
majoritariamente espaço para as provas históricas e vi-
suais da empresa; acima, inclusive, do órgão oficial do Es- 181
de 15 anos foram consumidas pelas chamas”32 [associa a
um crime ambiental, destruição de árvores nativas; apaga
da memória que o eucalipto é plantado para o corte, não
para preservação]. E para finalizar, o socorro: “O fogo teve
que ser combatido pelas brigadas de incêndio da empre-
sa”;33 “Depois de muito trabalho os brigadistas consegui-
ram apagar as chamas”.34
• Sobre o prejuízo causado à empresa: “Desde maio
de 2005, a Aracruz Celulose é alvo de queimadas e cortes
de árvores, o que desde então gerou um prejuízo de R$
5 milhões e causou um estrago em 450 hectares – o que
equivale a 450 estádios do Maracanã”;35 “O gerente regio-
nal florestal da empresa, Marcelo Ambrogi, disse que a
O território indígena foi conquistado e construído durante séculos
Aracruz já está extraindo eucalipto de São Mateus por-
que não pode cortar árvores”;36 “A Aracruz já protocolou
tado com competência para isso, a Funai. [...] pedidos de reintegração de posse e proteção da área,
O outro enfoque da construção de sentidos da luta dos mas não tem como combater os focos de incêndios”.37
índios é o que trabalha com a comoção (pena) diante dos Nota-se que há um esforço para tornar a empresa uma
estragos sofridos pela empresa e provocados pelos índios verdadeira vítima dos “ataques” dos índios. Pelo que é dito,
no período de luta; e também com a comoção (emoção) parece que a Aracruz nunca precisou usar os eucaliptos de
diante do apoio que a empresa recebeu de seus funcioná- São Mateus, sendo este município, juntamente com o de
rios em dado contexto. Conceição da Barra, os maiores locais de plantio de euca-
É um momento do discurso sobre a luta indígena em lipto da empresa no estado. E o “estrago” de 450 hectares
que as consequências das ações se sobrepõem às justifi- parece gigantesco se observado isoladamente, mas compa-
cativas das manifestações, isolando, de certa forma, os su- rado à área total da empresa (279 mil hectares), torna-se
jeitos de suas “justas motivações” e associando-os aos im- bastante pequeno. O que está se tentando fazer é relativi-
pactos imediatos (prejuízos econômicos, principalmente) zar as informações a fim de que se torne perceptível o exa-
advindos dessa forma de luta, em que há o corte e queima gero de muitas afirmações, recurso da “dramatização”.
dos eucaliptos da empresa. • Sobre a manifestação dos trabalhadores da Ara-
O isolamento dos sujeitos também é reforçado pelo apa- cruz: esse ponto merece uma breve consideração por se
recimento de outros personagens em cena, os trabalha- tratar de uma manifestação de apoio à empresa por par-
dores da empresa, que surgem como aliados da Aracruz, te dos trabalhadores. Há uma exaltação tão grande da ati-
fato bastante exaltado. Os índios, embora realizassem as vidade, uma descrição tão empolgante da passeata, que
atividades com o apoio de diversos movimentos sociais e o “clima” pode ser sentido pelo leitor. Isso praticamente
também de autoridades políticas, aparecem sempre iso- nunca é observado no jornal quando se trata de manifes-
lados na sua luta. tações, mesmo passeatas, de movimentos que questionam
A comoção apresenta-se, então, pela “dramatização” da a empresa, a ordem.
narrativa, conforme os exemplos a seguir, junto dos quais Observa-se que, neste caso, mesmo com “as ruas toma-
há comentários: das de gente” e com a carreata, nenhum transtorno ao
• Sobre a queima de eucaliptos: “Desde o início do trânsito foi mencionado, por exemplo; numa clara posição
protesto os integrantes [...] já derrubaram mais de cem do jornal em relação a qual lado da disputa se encontra.
hectares de plantações de eucalipto. Outras centenas de Os fragmentos seguem: “Os manifestantes lotaram a
árvores foram incendiadas”29 [parece que outras árvores Praça da Paz, no centro da cidade, e comerciantes fecha-
além do eucalipto foram incendiadas, o que não aconte- ram as portas para aderir ao movimento. Por volta das
ceu]; “Depois de uma longa conversa com os manifestan- 15h30, centenas de pessoas começaram a chegar ao lo-
tes, eles decidiram continuar com a derrubada e também cal. Em pouco tempo a rua ficou tomada de gente. Ao todo,
com a queima das árvores”30 [índios como pessoas insen- mais de cinco mil participaram da manifestação”38; “Às 16
síveis, irredutíveis]; “O clima seco e o vento forte contri- horas, a rua em frente à praça já estava lotada. A todo
buíram para alastrar as chamas. O incêndio foi provoca- momento ônibus chegavam vindos de diversas empresas
do a poucos metros do viveiro de mudas da Aracruz Ce- da região. Quem descia carregava apitos, faixas e cartazes
lulose. No local trabalham cerca de quatrocentos funcio- com palavras de apoio”39; “Conforme a carreata avançava
nários”31 [índios provocam risco de morte para os fun- pela avenida, os comerciantes baixavam as portas das lo-
cionários]; “Em poucos minutos dezenas de metros qua- jas. Quem estava no trabalho, na hora do protesto, encer-
182 drados de plantação foram destruídos. Árvores com mais rou o expediente mais cedo para aderir à manifestação”.40
E a avaliação da manifestação foi concedida à empresa: produtivo, mas de todo país” 48.
“Foi uma prova do amadurecimento dos movimentos sin- E nesse contexto, há uma “confissão” da empresa de
dicais e também da própria democracia”.41 que a quarta fábrica da Aracruz não foi sediada no Espí-
Para encerrar a análise, será abordado o momento “ter- rito Santo justamente por causa dessas ações dos índios:
ror”, ponto máximo da deslegitimação da luta indígena “No dia 30 de julho, Aguiar revelou que o estado era for-
pela atribuição de um caráter quase terrorista aos índios, te candidato a sediar a quarta fábrica da Aracruz, mas
no que tange ao aspecto da violência a eles atribuída, e pe- perdeu o investimento superior a US$ 1,3 bilhão para o
los empecilhos que suas ações vinham causando ao cresci- Rio Grande do Sul”49; e prossegue: “A decisão seria con-
mento da empresa, logo, ao desenvolvimento do estado. sequência: 1) dos conflitos com os indígenas que reivin-
O caráter quase terrorista atribuído aos índios é obser- dicam posse de terras; 2) do trabalho contra a empresa
vado em diversas passagens. O jornal passou dos termos junto a grandes clientes no exterior por parte de grupos
“invadir”, “queimar”, para “roubar” e “agredir” com bas- defensores dos índios; 3) tentativas da Assembléia Le-
tante naturalidade, sem qualquer argumentação de de- gislativa de impedir novos plantios de eucalipto; 4) das
fesa por parte dos índios. São, de fato, acusações, como comissões de inquérito instaladas contra a Aracruz”50.
as que seguem: “Ontem, 100 manifestantes ameaçaram e A associação entre a perda de investimentos para o Es-
roubaram motoserras de funcionários que trabalhavam pírito Santo e a luta indígena é imediata, o que também
na área”42; “[...] um grupo de 40 colaboradores da Aracruz, cria uma sensação de que “não se pode prejudicar um es-
destacados na empresa DP, foram agredidos por cerca de tado inteiro por conta dessas atitudes dos índios”; outro
100 manifestantes”. No texto do documento consta ain- elemento que deslegitima a luta indígena, uma vez que o
da que os trabalhadores que desobstruíram a estrada dos “interesse coletivo” (o interesse da empresa, na verdade)
eucaliptos derrubados foram abordados e tiveram quatro aparece ameaçado por conta de um pequeno grupo.
motoserras roubadas.43 Então, ao invés de haver um debate no mesmo nível, ou
Somadas às acusações acima, existem aquelas a par- seja, uma resposta condizente ao problema levantado, há
tir da voz da empresa, que também aparecem nas maté- uma acusação ou uma desmoralização dos índios, tiran-
rias: “Desde ontem, registramos queixa-crime na delegacia do completamente o foco do debate. É como se os direitos
para que a polícia e a justiça tomassem providências con- constitucionais garantidos aos índios fossem postos em
tra esse roubo, um crime a céu aberto, mas nada foi feito”44; cheque por uma questão de “desvio de moral”; como se
e ainda “Muito antes de serem atos de protesto, são ações eles tivessem que “merecer” as terras a partir de um bom
de violência, roubo e intimidação de trabalhadores”45. comportamento, ou seja, não fazendo nenhuma ação de
Com a idéia de agressão física e de roubo há um rebai- pressão contra a empresa, a Funai ou o Ministério da Jus-
xamento da luta indígena, a partir da desqualificação mo- tiça. O debate a partir de elementos históricos, antropoló-
ral dos índios, atribuindo-lhes falta de honestidade e ca- gicos, e mesmo legais é totalmente suprimido.
ráter agressivo. Então, na medida em que os índios são identificados como
Além disso, há uma constante referência à possibilida- uma ameaça à empresa, imediatamente há uma associação
de de os índios repetirem a mesma ação “vândala” das de sentidos entre eles e à de perda de empregos, de gera-
mulheres da Via Campesina no Rio Grande do Sul aos vi- ção de renda, de investimentos em educação, de moderni-
veiros da Aracruz. Isso aparece como forma de “rumor”, zação tecnológica para o estado, de financiamento de novos
criado pelo próprio jornal para associar a ação dos índios empreendimentos que possam gerar mais empregos, etc. A
à ação das mulheres, amplamente criminalizada pela mí- representação “índios em luta” passa a significar um em-
dia. Eis a referência: “Ontem à tarde havia rumores de pecilho a todo um conjunto de “oportunidades” criadas (na
que os índios planejavam invadir os laboratórios da em- maioria das vezes apenas discursivamente) pela empresa e
presa, mas a informação foi desmentida pelas lideranças por todo projeto que ela representa, ou seja, coloca em risco
indígenas”46. A própria empresa também enfatiza esse te- o conjunto de promessas feitas pelo agronegócio.
mor nas suas falas nas matérias: “Tememos por uma in- Portanto, o discurso da luta indígena não é construído
vasão como aconteceu em Guaíba, no Rio Grande do Sul apenas nos momentos em que os índios se encontram em
– onde integrantes do Movimento Sem Terra destruíram situação de luta concretamente. Já vem sendo tecido histo-
o laboratório e viveiro da Aracruz”47. ricamente e continua sendo elaborado cotidianamente, seja
O momento “terror” também é constituído pela apre- pelas referências diretas a eles, quando se fala sobre eles
sentação dos índios como uma ameaça à empresa, à vida mesmos, seja pela referência indireta, quando se trata de
dos trabalhadores e a seus postos de trabalho, ao desen- algo que se relaciona de algum modo com eles, como o dis-
volvimento do estado, enfim. Isso é constante e explici- curso criado para o projeto do agronegócio representado
tamente divulgado pela empresa em seus depoimentos: pela Aracruz, que tem a ver com eles na medida em que há
“Essas invasões põem em cheque investimentos, empre- um processo histórico de apropriação indevida das terras
gos e o desenvolvimento futuro não apenas de um setor indígenas por essa empresa. 183
Uma mídia democrática e alternativa é necessária
REFERÊNCIAS
Conforme os estudos feitos, nota-se que existe uma ne- 1- Charaudeau, Patrick, Discurso das mídias, São Paulo, Contexto, 2006, p 21.
cessidade urgente por parte das diversas organizações
sociais em repensar a mediação pública das informa- 2- Berger, Christa, Do jornalismo: toda notícia que couber, o leitor apreciar e o anunciante
aprovar, a gente publica, In. Porto, Sergio Dayrell (org.), O jornal: da forma ao sentido,
ções diante desse contexto de extrema concentração dos 2ª ed., Brasília, UnB, 2002, p. 274.
meios de comunicação de massa no País. Isso é muito im-
portante, pois a disputa em âmbito “subjetivo” e simbólico 3- Lima, Venício A. de, Mídia: teoria e política, São Paulo, Perseu Abramo, 2001, p. 103-104.
é uma disputa pela manutenção do ponto de vista domi-
4- Bordieu, Pierre, Sobre a televisão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 58.
nante, ou pela transformação do ponto de vista domina-
do da ordem vigente. Isso se aplica na luta da Rede Alerta 5- Bordieu, Pierre, Sobre a televisão, ob. cit, p. 66.
contra o modelo implantado pela Aracruz Celulose, pois
6- Bordieu, Pierre, Sobre a televisão, ob. cit, p. 66.
além da disputa pela retomada do território dos povos,
por exemplo, há a disputa também por uma interpreta- 7- Marcondes Filho, Ciro, Jornalismo Fin-De-Siècle, São Paulo, Página Aberta, 1993, p.127.
ção da história, por uma concepção de viver na terra e no
campo, enfim, por um projeto de desenvolvimento para a 8- Charaudeau, Patrick, Discurso das mídias, ob. cit, p. 39.

sociedade que é construído subjetivamente pelos meios 9- Marcondes Filho, Ciro, Jornalismo Fin-De-Siècle, ob. cit, p. 129.
de comunicação.
Assim sendo, o ponto principal de reflexão encontra- 10- Berger, Christa, Do jornalismo..., ob. cit, p..279.
se em como dialogar com a sociedade, comunicar as lu- 11- Marcondes Filho, Ciro, Jornalismo Fin-De-Siècle, ob. cit, p. 143.
tas sociais, os pontos de vista sobre os problemas advin-
dos com o projeto do agronegócio, diante da influência de 12- A Gazeta, Programa florestal da Aracruz faz 15 anos. Edição de 31.08.2006, p. 18.
toda a construção cotidiana simbólica massiva feita pelos
13- A Gazeta, Arcelor e Aracruz estão na lista. Edição de 17.08.2006, p.18.
meios de comunicação.
Partindo disso, é necessário que os movimentos tam- 14- Fernandes, Bernardo Mançano, O agronegócio e a reforma agrária, In.:
bém façam lutas no âmbito da comunicação em dois sen- http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=501, ago./2004, acesso em 20 de janeiro de 2007.
tidos: na tentativa de democratizar os meios de comu- 15- Fernandes, Bernardo Mançano, O agronegócio e a reforma agrária, ob. cit., acesso em
nicação que existem, a fim de desconstruir o monopólio 20 de janeiro de 2007.
hoje existente; e na produção de meios alternativos de
comunicação, com conteúdos e formas diferenciados do 16- Orlandi, Eni Puccinelli, Análise de discurso: princípios e procedimentos, ob. cit, p. 82.

que é (re)produzido pela grande mídia. É preciso aden- 17- Orlandi, Eni Puccinelli, Análise de discurso: princípios e procedimentos, ob. cit, p. 83.
trar no campo da construção simbólica também, compre-
ender e construir os elementos dessa disputa, mas dife- 18- Orlandi, Eni Puccinelli, Análise de discurso: princípios e procedimentos, ob. cit, p. 83.
renciando-os dos padrões dominantes já evidenciados. 19- Passos, Ângelo, Coluna “Economia Capixaba”, Jornal A Gazeta, edição de
A intenção deste artigo foi, partindo de exemplos viven- 13.08.2006, p. 29.
ciados pelos movimentos sociais do Espírito Santo, realizar
um exercício de analisar e observar, de modo menos natural, 20- Orlandi, Eni Puccinelli, Análise de discurso: princípios e procedimentos, ob. cit, p. 40.

o que é produzido como informação. Algo que deve se tornar 21- A Gazeta, Coluna Opinião. Falsos quilombolas, por Uchôa de Mendonça. Edição de
uma prática constante e que pode suscitar uma relação dife- 28.08.2007.
renciada com a mídia. Além disso, serve de estímulo para se
22- A Gazeta, MST volta a ocupar Fazenda da Aracruz Celulose. Edição de 27.04.2006.
pensar em novas formas de comunicação, nas quais sejam
produzidos outros sentidos, condizentes com os princípios 23- A Gazeta, Famílias têm crédito barato para comprar terra e produzir. Edição de
de uma sociedade mais justa e igualitária. 28.08.2007.

24- A Gazeta, Protesto de Agricultores fecha BR 101 por 4 horas em Linhares. Edição de
30.03.2006.

25- A Gazeta, Interior: Aracruz. Edição de 12.09.2006, p. 09.

26- A Gazeta, Índios permanecem em área da Aracruz até parecer de ministério, Edição de
14.09.2006, p. 12.

27- A Gazeta, Índios permanecem em área da Aracruz até parecer de ministério, Edição de
14 de setembro de 2006, p. 12.

28- A Gazeta, Índios permanecem em área da Aracruz até parecer de ministério, Edição de
14 de setembro de 2006, p. 12.

184
29- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de
setembro de 2006, p. 09. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A Gazeta, Protesto de Agricultores fecha BR 101 por 4 horas em Linhares. Edição de 30 de
30- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de março de 2006.
setembro de 2006, p. 09.
____, MST volta a ocupar Fazenda da Aracruz Celulose. Edição de 27 de abril de 2006.
31- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de
setembro de 2006, p. 09. ____, Ângelo Passos, Coluna “Economia Capixaba”. Edição de 13 de agosto de 2006.

32- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de ____, Arcelor e Aracruz estão na lista. Edição de 17 de agosto de 2006.
setembro de 2006, p. 09.
____, Programa florestal da Aracruz faz 15 anos. Edição de 31 de agosto de 2006.
33- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de
setembro de 2006, p. 09. ____, Índios derrubam eucalipto da Aracruz para protestar, Edição de 08 de setembro
de 2006.
34- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de
setembro de 2006, p. 09. ____, Interior: Aracruz. Edição de 12 de setembro de 2006.

35- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de 25 de ____, Índios mantêm ocupação de área próxima à Aracruz, Edição de 13 de setembro
setembro de 2006, p. 13. de 2006.

36- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de 25 de ____, Índios permanecem em área da Aracruz até parecer de ministério, Edição de 14 de
setembro de 2006, p. 13. setembro de 2006.

37- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de ____, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de setembro
25.09.2006, p. 13. de 2006.

38- A Gazeta, Disputa por terras provoca protestos em Vitória e Aracruz, Edição de 16 de ____, Disputa por terras provoca protestos em Vitória e Aracruz, Edição de 16 de setembro
setembro de 2006. de 2006.

39- A Gazeta, Disputa por terras provoca protestos em Vitória e Aracruz, Edição de 16 de ____, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios.
setembro de 2006. Edição de 25 de setembro de 2006.

40- A Gazeta, Disputa por terras provoca protestos em Vitória e Aracruz, Edição de 16 de ____, Famílias têm crédito barato para comprar terra e produzir. Edição de 28 de agosto de 2007.
setembro de 2006.
____, Coluna Opinião. Falsos quilombolas, por Uchôa de Mendonça. Edição de 28 de
41- A Gazeta, Disputa por terras provoca protestos em Vitória e Aracruz, Edição de 16 de agosto de 2007.
setembro de 2006.
Bourdieu, Pierre. Sobre a televisão. Tradução de Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro:
42- A Gazeta, Interior: Aracruz. Edição de 12 de setembro de 2006, p. 09. Jorge Zahar, 1997.

43- A Gazeta, Índios mantêm ocupação de área próxima à Aracruz, Edição de 13 de Charaudeau, Patrick. Discurso das mídias. Tradução de Ângela S. M. Corrêa. São Paulo:
setembro de 2006, p. 10. Contexto, 2006.

44- A Gazeta, Índios derrubam eucalipto da Aracruz para protestar, Edição de 08 de Fernandes, Bernardo Mançano. O agronegócio e a reforma agrária. Disponível em:
setembro de 2006, p. 08. http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=501, ago./2004, acesso em 20 de janeiro de 2007.

45- A Gazeta, Índios mantêm ocupação de área próxima à Aracruz, Edição de 13 de Girelli, Luciana Silvestre. A mídia e o agronegócio no Espírito Santo: a construção de
setembro de 2006, p. 10. sentidos da empresa Aracruz Celulose e da luta indígena. Monografia de conclusão de
curso apresentado ao Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do
46- A Gazeta, Índios mantêm ocupação de área próxima à Aracruz, Edição de 13 de Espírito Santo. Vitória, 2007.
setembro de 2006, p. 10.
Kuschick, Christa Liselote Berge. Do jornalismo: toda notícia que couber, o leitor apreciar
47- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de 25 de e o anunciante aprovar, a gente publica. In.: Porto, Sergio Dayrell (org.). O jornal: da forma
setembro de 2006, p. 13. ao sentido. 2ª ed. Brasília: UnB, 2002, pp. 273-284.

48- A Gazeta, Índios mantêm ocupação de área próxima à Aracruz, Edição de 13 de Lima, Venício. Mídia: teoria e política. São Paulo: Perseu Abramo, 2001.
setembro de 2006, p. 10.
49- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de 25 de Marcondes Filho, Ciro. Jornalismo fin-de-siécle. São Paulo: Página Aberta, 1993.
setembro de 2006, p. 13.
Orlandi, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5ª ed. Campinas:
50- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de 25 de Pontes, 2003.
setembro de 2006, p. 13.
Página na internet do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação: www.intervozes.org.br

185
186
PARTE 4
• Mudanças climáticas • Consumo excessivo
• Ficção sobre o mercado de carbono

187
1
de efeito estufa ou que tiram esses gases da atmosfe-
ra em países do Sul global, como o Brasil. É óbvio que
a Aracruz/Fibria e outras empresas identificaram neste
comércio, ou mercado de carbono, uma tremenda oportu-
nidade para fazer novos negócios e obter mais lucros.
Uma rápida visita ao site da Aracruz/Fibria mostra
primeiramente uma preocupação que as mudanças climá-
ticas possam afetar negativamente a produção de euca-
lipto, ou seja, possam afetar seu principal negócio. O que

Mudanças climáticas: chama a atenção é que, apesar de informar que também


realiza o chamado ‘inventário de carbono’, a Aracruz/

uma lucrativa
Fibria não assume em nenhum momento sua responsa-
bilidade por ter contribuído de forma significativa para
os problemas climáticos atuais. Isso seria fundamental, já
oportunidade que em sua história de pouco mais de 40 anos é evidente
que ela tem uma dívida climática histórica na região por
Winnie Overbeek ter, dentre outros motivos, destruído milhares de hectares
de Mata Atlântica quando iniciou seus plantios de euca-
lipto, de acordo com os depoimentos de indígenas Tupini-
quim e Guarani e de quilombolas do Sapê do Norte, apre-
Conforme o debate em torno das mudanças climáti- sentados neste livro.
cas tem mostrado nos últimos 18 anos, o atual modelo de Em seguida, a Aracruz/Fibria informa no seu relatório
produção e consumo ocidental baseado na queima dos de sustentabilidade de 2009 que está estudando várias
chamados combustíveis fósseis (petróleo, carvão mine- oportunidades para poder vender os chamados ‘crédi-
ral e gás natural) e a lógica capitalista hegemônica, volta- tos de carbono’. Neste sentido, a empresa elaborou dois
da para a maximização de lucros, que vem aprofundan- projetos nos moldes do Mecanismo de Desenvolvimen-
do cada vez mais este modelo, são os principais respon- to Limpo (MDL) e busca registrar estes projetos junto
sáveis pela atual crise climática. As mudanças climáticas à ONU. Sem apresentar maiores informações e deta-
já afetam muitas populações rurais no hemisfério Sul e lhes sobre nenhum dos projetos, ela busca obter com
colocam em cheque a sobrevivência da humanidade. a suposta redução de emissões de gases de efeito estu-
Para atender a demanda de consumo excessivo de fa destas propostas mais um subsídio para seus negó-
papel descartável - que atende a apenas 20% da huma- cios já altamente rentáveis. É explícito que o MDL é um
nidade -, a produção de celulose, a partir da monocultu- mecanismo totalmente inacessível para a participação
ra do eucalipto em larga escala, é realizada no hemisfério da sociedade civil através de, por exemplo, audiências
mais rentável: o Sul global, com destaque para o Brasil e, públicas, além de ter promovido, em geral, mais emis-
dentro deste, o Espírito Santo. Além da ampla utilização sões de carbono por ter aquecido os negócios de gran-
de insumos produzidos a partir do petróleo, como os agro- des empresas, já que trata-se de um verdadeiro subsídio
tóxicos, a importação de máquinas da Europa, a exporta- para a atividade industrial.
ção da celulose para os continentes de maior consumo Em seu sítio eletrônico, a Aracruz afirma que está fazen-
e o deslocamento das atividades agrícolas para outras do um levantamento da quantidade de carbono armaze-
regiões do Brasil, devido à expansão das áreas plantadas nado em suas ‘reservas nativas’. Junto com o argumento
com eucalipto, fazem com que o setor de papel e celulose, de que as áreas de plantações de eucalipto em si já seriam
incluindo a Fibria/Aracruz, seja um considerável emissor importantes sumidouros de carbono, a empresa busca
de gases poluentes e um dos grandes responsáveis pela convencer a todos de que ela vem contribuindo significa-
crise climática. tivamente para reduzir os problemas do clima através das
No entanto, o Protocolo de Quioto deixou a Aracruz/ árvores, abundantes no seu território de mais de 1 milhão
Fibria em uma situação bastante confortável. O Protoco- de hectares, sejam elas eucalipto ou nativas.
lo, além das ínfimas metas de redução de emissões, intro- É importante salientar que plantar eucaliptos ou árvo-
duziu o chamado comércio de carbono a partir da falsa res nativas e/ou preservar áreas de floresta nativa não
suposição de que é possível que os países industrializa- resulta em nenhuma contribuição de longo prazo para
dos do hemisfério Norte reduzam menos a emissão de esfriar o planeta. Árvores em crescimento garantem
CO2 (ou seja, possam queimar mais petróleo, óleo e gás apenas uma absorção temporária de carbono (CO2) da
natural) desde que haja a compensação de suas emis- atmosfera. Quando, no caso de eucalipto, as árvores são
188 sões através de atividades que evitam emissões de gases cortadas depois de 6 - 7 anos, transformadas em celulo-
se e, mais tarde, em papéis, sobretudo descartáveis que
viram lixo, o carbono ‘armazenado’ é novamente libera-
do. No caso de árvores nativas, o processo pode ser mais
demorado, mas tem o mesmo resultado final quando a
árvore morre ou é queimada. Por isso, por mais que o
reflorestamento com árvores nativas seja um ato louvá-
vel e necessário, é inaceitável que o carbono armazenado
em árvores justifique a emissão de uma quantidade equi-
valente de carbono da queima de combustíveis fósseis
por empresas poluidoras dos países industrializados do
Norte. Isto resulta em um aumento líquido da quantida-
de de carbono em circulação entre a atmosfera, biosfera e
o solo, aprofundando ainda mais a crise climática. Mesmo
assim, empresas poluidoras como a Aracruz ganham um
subsídio a mais para continuar poluindo e lucrando.
O que mais impressiona nesse processo é a capacidade
da Aracruz/Fibria, uma grande contribuinte para a atual
crise ambiental, em se transformar em um agente que
seria parte da ‘solução’ do problema. Além das propos-
tas já citadas, a Aracruz informa no seu site que preten-
de participar da edição do chamado Índice de Carbono
da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). Esta é outra
comprovação de que o comércio de carbono, na verda-
de, reforça o capital financeiro que pratica a especulação,
neste caso, com o carbono, ou seja, com o ar. Ironicamen-
te, a Aracruz/Fibria, que em 2008 sofreu uma perda de
mais de R$ 2 bilhões com atividades especulativas, agora
se prepara para investir fortemente na exploração deste
mercado, que só existe para proporcionar lucros ainda
maiores para as empresas poluidoras.
Cabe à sociedade civil organizada e crítica denunciar
publicamente mais este mecanismo perverso que, além de
não resolver o mais grave problema ambiental da humani-
dade, vem, com falsas soluções, agravar o mesmo e aumen-
tar os lucros a curto prazo de empresas como a Aracruz/
Fibria, enquanto o planeta e, principalmente, as populações
mais vulneráveis, têm suas sobrevivências ameaçadas.
Neste momento, além dos gritos de mulheres e homens
indígenas, quilombolas, camponeses e pescadores, a
própria natureza grita que este modelo de produção que
a Fibria/Aracruz vem implantando no Espírito Santo há
mais de 40 anos está falido. Se os governos dos países do
Norte quiserem garantir para suas populações um consu-
mo de papel no nível estadunidense ou europeu, esses
governos precisam criar as condições para isso nos seus
próprios países. E se isso não garante os lucros monstruo-
sos que empresas como a Aracruz/Fibria obtêm no Brasil,
talvez seja momento de finalmente permitir que as popu-
lações dessas sociedades possam decidir sobre o futuro
que querem ter: um que priorize e garanta alta lucrativi-
dade para as grandes corporações ou um outro que parta
de um modelo e lógica de produção e consumo construído
local e regionalmente, capaz de esfriar o planeta e, desse
modo, garantir um futuro para a humanidade.
2 Um f im para a
cultura do consumo
excessivo
Patrícia Bonilha
1

Um tema que não poderia ficar de fora deste livro é o


do consumo excessivo de papel. Por ser considerado a
causa motriz de todo o atual processo de produção, ele
está intimamente vinculado a todos os diferentes tipos de
destruição (cultural, ambiental, social, econômica, territo-
rial) consequentes da monocultura de eucalipto. Portan-
to, além de expor as mazelas do processo de produção
de uma mega-empresa como a Aracruz, também é funda-
mental atentarmos para o que ocorre na outra ponta e
denunciar a distribuição desigual do papel e o irracional
desperdício que caracterizam o consumo mundial dessa
matéria prima. Aqui, é fundamental compreender que,
mais do que qualquer outra coisa, o consumo de papel é
uma questão política.
De acordo com o Movimento Mundial pelas Flores-
tas Tropicais (WRM, sigla em inglês), desde o começo da
década de 1960, o consumo de papel e papelão em todo
o mundo tem aumentado quase sete vezes. Sua produ-
ção usa quase a metade da madeira obtida industrial-
mente do planeta, mais água que qualquer outro produ-
to industrial e uma quantidade de energia por tonelada
similar à utilizada para a fabricação do aço. “Cada tonela-
da de papel requer 98 toneladas de outros recursos para
sua fabricação e o papel é o maior contribuinte para o
fluxo de lixo na maioria dos países consumidores. Redu-
zir nossos impactos no planeta usando menos papel é um
bom ponto de partida”, afirma a organização.
Os países do Norte consomem 57 vezes mais papel do
que os do Sul. Ou seja, 2,5 bilhões de pessoas mais pobres
têm 57 vezes menos papel disponível que um europeu
ou estadunidense médio. Enquanto a média mundial per
capita é de 54 kg/ano, na Finlândia, consome-se 324 kg/
ano; nos EUA, 297 kg/ano; e na França, 178 kg/ano. Do
outro lado da balança estão os países que consomem
190 abaixo da média mundial: na Tailândia, consome-se 50
kg/ano; no Brasil, 39 kg/ano; Equador, 23 kg/ano; Indo- distribuição do papel e o seu consumo excessivo, é muito
nésia, 20 kg/ano;Vietnã, 15 kg/ano; Camarões, 3 kg/ano; comum – e ideologicamente interessante - relacionar o
Camboja e Uganda, 2 kg/ano; e Laos, 1 kg/ano apenas. alto consumo do papel às taxas de alfabetização ou ao
Grande parte do papel consumido no Norte é totalmen- nível de escolaridade e erudição. Mas esta relação é equi-
te desnecessário. Os funcionários de escritórios no Reino vocada. A Finlândia, por exemplo, consome 324 kg/ano, e
Unido imprimem 120 bilhões de folhas de papel ao ano, tem uma taxa de 99% de alfabetizados. O Canadá conso-
suficientes para criar uma pilha de mais de 13 mil quilô- me 263 kg/ano e tem 99%. Já Costa Rica consome 191 kg/
metros de altura. Dois terços desse papel acabam nas ano e 95% de sua população é alfabetizada. Chile conso-
lixeiras antes do fim do dia. Os estadunidenses usam 130 me 52 kg/ano e 96% da população é alfabetizada. No Viet-
bilhões de copos de papel ao ano. Depois de 15 minutos nã, 15 kg/ano são consumidos por pessoa, enquanto 93%
de uso, eles são descartados. da população é alfabetizada.
Para dar conta de manter essa cultura de desperdício, Outros dados – bastante impressionantes - que confir-
desvalorização do papel e despreocupação/desinforma- mam essa falsa relação:
ção sobre as suas consequências, as comunidades rurais * apesar de os EUA ser o país que mais consome papel
e tradicionais em diversos países do Sul estão enfren- no mundo, 58% da sua população adulta nunca leu um
tando a rápida expansão das plantações de eucalipto. No livro depois de ter deixado a escola e 80% das famílias dos
Laos, por exemplo, apesar de usarem em média menos de EUA não compraram nem leram um livro em 2007;
um quilograma de papel ao ano, as pessoas estão sofren- * apenas 1/3 da produção de papel é usada para escre-
do diretamente os mais diversos impactos para satisfa- ver e imprimir (livros, jornais, periódicos), uma grande
zer as exorbitantes demandas de matéria prima barata da parte é usada para publicidade e quase a metade de todo
indústria global do papel. papel produzido é utilizado para embalagens e, portanto,
Apesar dos fatos comprovarem a desigual e injusta é rapidamente descartada;

Mapeando o eucalipto, a celulose e a Aracruz

Atualmente, o Brasil é o 11o produtor mundial de lhão de hectares; destes, 585 mil hectares são de mo-
papel, o 4o maior produtor de celulose2 e o maior pro- nocultura de eucalipto. Desse total, 185 mil hectares
dutor mundial de celulose de eucalipto3. O País tam- estão no Espírito Santo, e, destes, 104 mil são plan-
bém ocupa a 4a posição na produção mundial de ma- tados com eucalipto. A produção nacional de celulo-
deira, participando com 6% do total. se dessa empresa em 2009 foi de 5,19 milhões de to-
As florestas plantadas de eucalipto e pinus tive- neladas; destas, 2,3 milhões de toneladas foram pro-
ram uma expansão de 5% ao ano, no período de 2005 duzidas em terras capixabas. Cerca de 90% da produ-
a 2008 no Brasil. Em 2009, por conta da crise econô- ção total da Aracruz no Brasil foi exportada, em sua
mica, houve um desaceleramento de 2,5%.
De acor- maioria, para Ásia (36%), Europa (31%) e América do
do com o Anuário Estatístico da Associação Brasilei- Norte (23%). Os principais produtos finais foram len-
ra de Produtores de Florestas Plantadas (Abraf), em ços de papel e papel sanitário, ou seja, papéis descar-
2009, essas áreas de plantações de monocultura ocu- táveis (43%). Outros 23% foram papéis especiais, in-
param 6,3 milhões de hectares. clusive papéis de luxo; 33% da produção foi destina-
A área ocupada por florestas de eucalipto está em da para papéis para escrever e imprimir.
franca expansão em vários estados brasileiros. Atu- Após a fusão da Votorantim com a Aracruz Celu-
almente, os maiores produtores são: Minas Gerais, lose, ocorrida em 2009, a estrutura societária da em-
São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul, Espírito San- presa ficou da seguinte maneira: Votorantim Indus-
to e Mato Grosso do Sul. Em 2009, a área de plan- trial S.A. (29,34%), BNDESPar (30,42%), Tesouraria
tações de monoculturas de árvores no Espírito San- (0,07%) e Flutuação Livre - percentual do capital da
to foi de 208.510 hectares, sendo que 40.400 hecta- empresa que se encontra em mãos de acionistas com
res ficam nas áreas de fomento florestal (plantio de participação inferior a 5% - (40,17%). Além disso, a
eucalipto por agricultores)4. As principais empresas Aracruz/Fibria é proprietária de 50% da Veracel Ce-
que atuam no Espírito Santo são a Aracruz/Fibria e lulose S.A. (Bahia) e 50% da Conpacel (São Paulo).
a Suzano Papel e Celulose. O lucro líquido da Aracruz/Fibria no ano de 2009
No Brasil, a Aracruz possui um total de 1,043 mi- foi de R$ 558 milhões.

191
* o serviço de correios dos EUA envia 20 bilhões de lem o consumo desnecessário, promovendo um uso racio-
catálogos de produtos por ano, o que representa pouco nal e socialmente apropriado do papel, garantindo uma
mais de três catálogos para cada ser humano vivendo distribuição equitativa entre os países e dentro dos países,
neste planeta; facilitando o desenvolvimento de modelos diversificados
* o papel é a base de quase metade de todas as emba- em menor escala para a produção de pasta, respeitando
lagens fabricadas. tanto as pessoas quanto o meio ambiente. O único e real
As indústrias de celulose têm cada vez mais se expan- obstáculo é o interesse econômico das grandes compa-
dido em países como Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, nhias cujo objetivo é continuar obtendo lucros através
Colômbia, Equador, Congo, África do Sul, Tailândia, Indo- da imposição de um consumo crescentemente grande e
nésia, Malásia e Suazilândia. Os principais motivos que ilimitado de papel”.
estimularam a instalação das fábricas nesses países são: O enfrentamento do problema dos monocultivos de
o acesso barato à terra; os generosos subsídios, apoio e, eucalipto e da produção de celulose, portanto, passa
muitas vezes, o próprio financiamento do Estado; o fato também por uma urgente mudança estrutural no modo
de o clima e o solo favorecerem o rápido crescimento das de consumo. É preciso investir em uma nova cultura radi-
árvores (5 vezes mais que no Norte); os custos com mão calmente oposta ao consumismo e ao desperdício, em que
de obra serem muito inferiores se comparados aos de a orientação seja a de reduzir drasticamente o consu-
países “desenvolvidos”; a regulamentação ambiental ser mo, reutilizar/reaproveitar produtos e reciclar/reinven-
flexível e a fiscalização ser deficitária e questionável; e, tar materiais. Para isso, é fundamental adotar práticas
por fim, a garantia de lucros exorbitantes, às custas das responsáveis como banir ou evitar ao máximo os produ-
pessoas e dos ecossistemas. tos descartáveis. Precisamos também desenvolver uma
Portanto, é explícito que a indústria de celulose se maior capacidade de vincular o produto-papel com os
deslocou para os países do Sul com o objetivo de barate- graves impactos causados pela forma como ele é produ-
ar os seus custos. Para além disso, o setor divulga cons- zido, nos responsabilizando pelo que estamos compran-
tantemente os seus planos de aumentar essa produção do/causando. Neste sentido, é importante evitar comprar
barata, criando novas necessidades de produtos descar- produtos de empresas como a Aracruz, apesar da dificul-
táveis, como toalhas, lenços, guardanapos, copos, embala- dade de colocar este tipo de boicote em prática devido aos
gens, com o objetivo único e exclusivo de aumentar ainda monopólios de mercado.
mais os seus já astronômicos lucros. Desconstruir o atual modelo de produção e consu-
Quem paga a conta desse modo de produzir, que mo exige uma relação totalmente diferente e muito mais
proporciona celulose cada vez mais barata e mais lucra- profunda com as pessoas, a natureza e com a vida. Ao
tiva para as empresas, são as populações atingidas dire- invés de seguir um modelo de sociedade movido pelo
tamente. Contraditoriamente, elas estão “pagando” um lucro, pela competitividade e pelo crescimento ilimitado,
preço cada vez mais alto por essa produção, já que ficam praticar uma vida fundamentada no respeito, na gentile-
com todos os impactos. As indústrias de celulose agem za, no amor e na compreensão de que o “meio ambiente”
sempre da mesma forma agressiva e desrespeitosa em é um reflexo do “meu ambiente” de cada um de nós. Para
relação aos povos e ao meio ambiente, seja na África, Ásia caminharmos neste sentido, é preciso resistir e enfren-
ou América Latina: são uma das maiores poluentes do ar tar o histórico modelo de sociedade que nos é imposto.
e da água; estão entre as maiores usuárias de matérias E, justamente, em nome de uma vida em sintonia com a
primas; ocupam a 1a posição no consumo industrial de natureza e com as verdadeiras riquezas de nossos povos,
água doce; a 3a em emissão de gases de efeito estufa; a 5a e por uma sociedade justa, é que devemos seguir firmes
posição em uso de energia industrial; utilizam largamen- na luta contra empresas destruidoras como a Aracruz.
te insumos como adubo químico, mecanização e agrotó-
xicos; desestruturam a economia local; causam o empo-
brecimento das populações; se apropriam indevidamente
das terras e causam o deslocamento de antigos morado- REFERÊNCIAS
res; degradam os solos; destroem a biodiversidade, dimi-
nuindo drasticamente os animais e plantas endêmicos; 1- Os dados da primeira parte do texto foram extraídos do sítio eletrônico do Movimento
impactam na oferta de trabalho da região onde se insta- Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, em inglês) e do documentário Montanhas de
Papel, Crescente Injustiça, produzido em 2008, por essa mesma organização.
lam; causam a diminuição da produção de alimentos e a
perda da segurança alimentar; e substituem os ecossiste- 2- Segundo a Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa)
mas naturais por desertos verdes.
3- Segundo a Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa)
Em seu site, o Movimento Mundial pelas Florestas
Tropicais avalia que “essa situação já atingiu limites into- 4- A partir desse trecho, todos os dados são do sítio eletrônico da Aracruz/Fibria:
192 leráveis e a sua solução requer políticas que desestimu- www.fibria.com.br.
3
O ano é 2010.
Ficção
quilombola
e mercado
de carbono

Marcelo Calazans e Renata Valentim exploram duas


diferentes experiências no Mercado de Carbono.

Segunda-feira, 22 de abril de 2010


Londres, Inglaterra, 6h30
Quarto de hotel.
Descarga. Água e papel sanitário se esvaindo pelo ralo.
Gripado, talvez febril, Dr. A traz sob o braço o relató-
rio semanal que estivera lendo. Dois dias de planejamento
estratégico haviam se passado. Com Proctor & Gamble e
Kimberly Klark, a reunião de logo mais seria decisiva: 45%
das exportações de sua empresa estavam em jogo. Vincu-
ladas às 2,7 milhões de toneladas de celulose branqueada
de fibra curta de eucalipto.
Orgulhoso de si, Dr. A corrige o nó da gravata frente
ao espelho. Projeta o futuro como quem deduz o desa-
bar milimétrico de peças de dominó – no Norte, uma epi-
demia de lenços de papel Tempo ou Kleenex, perfuma-
dos com aloe vera, para narizes sensíveis. No Sul, mais
três fábricas de celulose, no Espírito Santo, Rio Grande
do Sul, Uruguai, Argentina, onde quer que fosse. Não im-
porta. Onde oferecessem o melhor lance: baixos custos,
altos lucros.
Fundamental era que o Estado receptor garantisse, não
importa como, um novo ciclo de expansão dos plantios
uniformes de eucalipto geneticamente modificados. “Me-
lhor que dinheiro no banco!” disseram os pós-graduados
Drs. Jeremias & Jeremias, seus consultores junto ao Banco
Mundial. Os créditos de Carbono seriam suficientes para
fazer re-girar todo o circuito do capital. Os dólares nun-
ca foram tão verdes! “Esta é a ocasião”, repetia Dr. A con-
sigo mesmo.
193
Durante seguidas noites, aprendera a sonhar com pro- antes da monocultura, 12 mil famílias, 256 mil hectares
jetos, indicadores, monitoramentos, mensurações, contro- quilombolas. Em 2006, 1,3 mil famílias em 32 comuni-
les. Alguém tinha que pensar nisso. Uma enorme enge- dades-ilha, em meio ao eucaliptal. O Estado já conhe-
nharia global: O Banco Europeu de Investimento (EIB), cia esses números, a lei garantia a posse, as pesquisas
o Banco Nórdico de Investimento (NIB), o Fundo de Pe- asseguravam a legitimidade do direito. Que nada. Qua-
tróleo da Noruega, as Agências de Crédito de Exportação, tro anos já se passavam e o segundo governo Lula não
as transnacionais. Agora, o Fundo de Carbono do Ban- se decidia.
co Mundial coordenava o negócio das árvores no Sul, en- Desde então a negrada parou de esperar. Milhares de
quanto garantia, por anos, um amplo suprimento de Car- negros e negras marchando pelas ruas, cartas públicas,
bono para britânicos, holandeses e noruegueses. Era só assembléias, debates, mobilizações de resistência e con-
uma questão de tempo, para que outros se interessassem fronto. Não pediam mais autorização para acessar o que
no sequestro. era deles. A milícia armada de Dr. A e a PM que viessem.O
O celular. O táxi aguardava. Nas esquinas de Londres, sol do Outono era seco, não diferente do resto do ano.
os jornais estampavam: Brasil e Costa Rica abrem a Co- Qualquer fagulha e era uma vez aquela paisagem unifor-
pa do Mundo. Onde fica mesmo o Terceiro Mundo? Es- me de plantação homogênea. Não conseguia imaginar a
tranho dia de Primavera. escala: 66% de Conceição da Barra incendiaria com o eu-
calipto. Outros 15% com cana de açúcar. O Terceiro Mun-
Conceição da Barra, Espírito Santo. Brasil. 6h30. do é aqui.
Quilombo Angelim. Nessa hora, por todo o Sapê do Norte, já se prepara-
Em meio à plantação de mandioca. va o café, o beiju, o bolo de aipim, o cuscuz de coco, o fei-
Benedito Meia-Légua estivera por toda a noite à esprei- jão tropeiro e o agrião. Não era dia de plantar nem colher
ta. Dormira fora de casa. Na dúvida, melhor era o risco mandioca. Não iam coletar os resíduos de eucalipto, nem
da fuga. Sempre haveria outros, negros como ele, e mais fazer carvão. Nem arriscar uma pesca ou caça. Hoje não
adiante, no mesmo caminho, uma mesma sina. Lei natu- haveria nenhum confronto. Em Linharinho, Meia Légua
ral dos encontros. África, Brasil, Espírito Santo. Todo um haveria de arranjar alguma TV. A seleção brasileira estre-
Atlântico já o separava de um passado improvável. ava na Copa. Uma pequena trégua.
Na semana anterior, Benedito, Rugério e Nega foram
presos. A negrada reclamou. Na mesma noite, juntaram Londres, Inglaterra. 10h15.
uns vinte, foram na delegacia de polícia, e tiraram eles de Sala de reunião.
lá. A polícia ainda ofereceu alguma resistência. - Considerações de apreço ao Sr. Diretor.
Processados, já nem se lembrava quantos: só no qui- - Um novo Tempo e outro Kleenex já se anunciam nas
lombo São Domingos eram uns 70. Cercados de eucalip- propagandas.
to por todos os lados, mas nada daquilo era pra eles. E fo- - O processo de deslignificação garante a brancura.
ram presos por uns tocos, geneticamente degenerados, - A uniformidade da fibra garante a textura.
que sequer serviam pra celulose. No quilombo de Roda (Café. Chá. Leite)
d’Água, pegaram Dealdina tentando uma pesca à toa, na - Escala nunca foi problema.
lama do rio seco, e com ela as duas mais novas de Maria. - Nem o Estado.
Levaram todas, com rede e tudo. - Nem os selos verdes.
Tal como Meia Légua, eram todos acusados pela lei do - Responsabilidade social é não ter vizinhança.
Estado, e pelos princípios e critérios do Banco Mundial, (Troca de cartões)
dos selos verdes, das certificadoras: Não podiam coletar
a biomassa da madeira, com que construíam suas casas Conceição da Barra, Espírito Santo. Brasil. 11h.
de estuque. Não podiam queimar combustíveis fósseis Quilombo de Linharinho.
em seus fogões a lenha. Não podiam invadir a proprie- Ronaldinho Gaúcho era um novo Pelé? Na tela verde,
dade privada. Não podiam pescar nem caçar nos cria- não tinha vez pra branco. A negrada se acotovelava diante
tórios de peixes, pacas e tatus. Até seu Antonino, com da TV. Em cima dela, uma pequena escultura de São Jor-
seus cabelos brancos, ficou 12 dias preso. Coletava pal- ge guerreiro, domador de dragões.
mito em uma instalação de Mata Atlântica in vitro. Pro- No último encontro da Rede Alerta contra o Deserto Ver-
cessado como criminoso. Formação de quadrilha. Mar- de tinha vindo um costarriquenho. Meia légua não se lem-
ginal. Quem seria o próximo? brava ao certo do nome em espanhol, mas lá tinham os
Desde 2006 que o Instituto Nacional de Colonização e “garífunas”, (seria isso mesmo?). Não se prendia à grafia.
Reforma Agrária (Incra) concluíra as pesquisas de deli- Importa é que eram negros, como os quilombolas daqui,
mitação e demarcação das terras quilombolas do Sapê filhos de uma mesma América Colonial. Contra a Costa
194 do Norte. Nos estudos, dois momentos. Nos anos de 1970, Rica, era jogo entre irmãos. Queria mesmo era enfrentar
a Noruega ou a Alemanha ou ainda os ingleses. Preto no de Quioto. Os problemas sociais e ambientais eram ques-
branco, no campo era 11 x 11. Fim de jogo. tões estritas ao Estado. O Carbono, o Banco Mundial fi-
nanciava, e novamente a empresa garantia um curto ciclo
De volta à guerra. de sequestro. O único problema agora é o aeroporto.
Dominguinhas, Rosa, Edu, Antônio, Zeca de Neuza, Pin- As passagens, o passaporte, os celulares, notebook, re-
to, Careca, Mara, Silvio, Nem, Dona Grande, Seu Antoni- lógio, agenda digital, carregadores, baterias, planilhas, re-
no, Zé da Baiana, Severino, Osvaldo, Dona Maria, todos os latórios, papéis. Com o tempo, adquirira uma estranha
de São Mateus estavam por lá. Os da Barra vieram em pe- neurose, de tanto sair de quartos de hotel. Sempre achava
so, uns 30. Durante a farofa, uma assembléia. Em Linhari- que havia algo esquecido. Eterno retorno. Curto circuito.
nho, dia de jogo era álibi, tal como o Congo, o Jongo, o Ti- Círculo vicioso: tempo/fábrica/eucalipto/terra/água.
cumbi, o Reis de Boi, o Samba, a Capoeira, as Ladainhas. O táxi. Rush de fim de tarde. Dr. A pensava: “Por que as
Cabula. Salve Santa Bárbara. Estava decidido. Por todo o ruas estão sempre entupidas de automóveis?” Sua alergia
Sapê do Norte já corria o rumor: as terras iam ser retoma- voltava. Dr. A abre um novo Kleenex e assoa o nariz. Logo
das. No dia de São Jorge! Era meio a meio, pau a pau. estaria longe dessa Primavera londrina.

Londres, Inglaterra. 14h. Londres, Inglaterra. 19h.


Quarto de Hotel. Aeroporto. Check In. Vôo 721 BA.
Depois de três aspirinas, já não tinha febre. Na ponta do Dr. A interroga pelas milhas, na companhia aérea. Da
consumo estavam garantidos os processos de venda. Dr. última vez que reviu suas anotações, tinha o suficiente
A estava feliz, quer dizer, satisfeito. Tinha devorado dois para sete voltas ao planeta. Quase uma viagem espacial.
hamburguers e refrigerantes. Repousava no sofá, duran- Londres, Madri, São Paulo, Vitória, Aracruz, Conceição da
te um re-planejamento estratégico. Na idéia, mais três mi- Barra. Na próxima semana percorreria o eixo nórdico.
lhões de toneladas de celulose ao ano. Uma nova missão, Gostava de viajar. No avião, depois dos anúncios de se-
uma nova planta industrial. Na tela da Microsoft, reluzia a gurança, a decolagem, um pequeno Lexotan e pronto. So-
longa lista de fornecedores e reuniões: as turbinas da Akz, nhava por sobre o Atlântico, do Norte para o Sul, do Sul
as torres e filtros da Beloit, o digestor da Kamyr, as pontes para o Norte, já não distinguia sonho e vigília.
rolantes da Mannesmann, as linhas de secagem da Voith Era Cabral e Colombo, corsário, pirata, capitão. Depois
Paper e os geradores da BBC Brow e ainda Siemens, Kva- era um Viking, e o vento norte era quente e úmido. E não
erner, Metso, ABB, Andritz-Ahlstrom, Jaakko Poyry. Ufa. havia mais verões nem invernos. O Velho Atlântico se alar-
Um grande horizonte de sentido para sua vida. gava e afastava ainda mais os continentes. De lá da camada
Quem sabe pudesse ganhar novamente o prêmio do de ozônio e da atmosfera, a Terra era mais azul. Em Con-
Environmental Business Institute, da Câmara de Comér- ceição da Barra o mar invadia a cidade e devorava as casas
cio Internacional. Não faltaria quem o indicasse. Lembra- de sua orla. Um novo dilúvio ameaçava a grande planície
va da época da pré-inauguração da segunda fábrica no capixaba. Os eucaliptais estavam em risco! A comissária
Espírito Santo, com presença até do Príncipe Charles, na- aparece sorrindo. Jantar. O vôo. Que horas são? Longa noi-
quele abril de 1991. Não tinha culpa se o planeta aquecia, te atrás do sol poente. A cadeira começa a apertar. A alergia
se os rios tinham sido desviados sem Estudo de Impacto ataca novamente. Mais um Kleenex. Mais um Lexotan.
Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), Agora dormia na arca, em pleno dilúvio. Água, solvente
se os motosserristas mutilados e depois desempregados. universal. O que seria de sua monocultura? Seu sertão de
Não era de sua conta, se a Mata Atlântica tinha sido der- eucalipto virava mar. Uma incontrolável onda varria seus
rubada aos correntões e tratores da empresa, se nunca sumidouros de Carbono, composta por Antônios Conse-
havia pago pelo consumo de H2O, se os agrotóxicos con- lheiros, Virgulinos, Coriscos, quilombolas, guaranis, tu-
taminavam. Tudo legal! A empresa construíra os fóruns piniquins, sem terra, mulheres camponesas, pescadores.
do Poder Judiciário, financiara as campanhas parlamen- A febre voltava. Esqueceu-se da aspirina. Já não dormia
tares para o Poder Legislativo e sempre apoiara o Poder dentro da arca. Estava em pleno mar. Quioto, o Estado, Je-
Executivo, inclusive no setor de segurança, estruturando remias & Jeremias, os florestais e advogados, a monocul-
os batalhões de choque. No Brasil, no Rio Grande do Sul tura. Onde estavam todos? Teriam lugar dentro da arca?
e no Espírito Santo, sentindo-se soberano, Dr. A dizia: “O
Estado sou eu”. E quem poderia negar? Terça, 23 de Abril de 2010.
Dr. A só despertou com o som da TV programada. Sem- Conceição da Barra, Espírito Santo. Brasil. 5h.
pre monitorava as ações nas bolsas, os níveis de risco dos Sapê do Norte.
investimentos, as mais novas tecnologias de segurança Dois mil negros e negras marcham pela BR 101 no
patrimonial. Jeremias e Jeremias Consultores e uma pen- norte do Espírito Santo. O Estado, a empresa e mesmo
ca de ambientalistas e tecnocratas garantiam a equação Lula não têm contingente policial suficiente pra asse- 195
gurar a perpetuação do racismo ambiental. São milha-
res de Beneditos e Beneditas. Por cada comunidade que
passam, crescem como bola de neve. Não reivindicam
mais os restos de eucalipto pra fazer carvão. Nunca fo-
ram carvoeiros. Querem suas terras tradicionais de vol-
ta, aquelas mesmas que o Incra denominava “devolutas”.
Na linguagem do Estado, eram terras da União, isto é, de
todos e de ninguém. Para negros e negras que lá sempre
habitaram, eram terras quilombolas.
O Brasil avança pras quartas de final. Contra a Norue-
ga. Quero ver você olerê, olará. Você me pegar. A auto-
demarcação era apenas o começo. Os Beneditos e Bene-
ditas queriam mais. Queriam re-viveiros de mudas de
Mata Atlântica, suas frutas e raízes e cipós e sementes.
Sonhavam com a recuperação de seus rios, córregos e
nascentes; com suas caças e pescas, com sua agroecolo-
gia familiar. Inventaram até de re-aprender Nagô e Yo-
rubá. Ficavam horas a trançar cabelos e balaios, feste-
javam noites inteiras no calor dos tambores. No dia se-
guinte, mutirão pra destocar eucalipto e plantar mandio-
ca. Não tinham pressa. Tinham todo o futuro pra re-es-
crever sua história.

196
SOBRE OS AUTORES
Alacir De´Nadai - Técnica da Federação de Marcelo Calazans – sociólogo, coordenador
Órgãos para a Assistência Social e Educacional da Fase/ES e membro da Rede Alerta contra o
(Fase)-ES e membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde
Deserto Verde
Marilda Teles Maracci - doutora em geografia
Daniele Meirelles - Técnica da Fase-ES e pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e
membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde

Fabio Martins Villas - economista, com Patrícia Bonilha - assessora de comunicação


especialização em cooperativismo, indigenista e da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras
membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde Multilaterais

Gilsa Helena Barcellos - graduada em serviço Renata Valentim - psicóloga e professora


social pela Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES) e doutora em geografia pela Selma dos Santos Dealdina – quilombola
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), moradora da Comunidade Angelim III, em São
integrante do Fórum de Mulheres do Espírito Mateus (ES) cuja família, assim como centenas
Santo e da Rede Alerta contra o Deserto Verde de famílias quilombolas no norte do estado, teve
suas terras usurpadas pela Aracruz Celulose
Helder Gomes - mestre em economia (UFES) e
membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde Simone Raquel Batista Ferreira - mestre em
geografia humana pela Universidade de São
Luciana Silvestre Girelli - jornalista (UFES), Paulo (USP) e doutora em geografia (UFF)
atuou no setor de comunicação da Via
Campesina no Espírito Santo entre os anos de Winnie Overbeek - membro da Rede Alerta
2006 e 2009 contra o Deserto Verde e do Centro de Estudos e
Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo
Luiz Alberto Soares - ex-trabalhador da Sul da Bahia (Cepedes/Ba) e integrante da
Aracruz Celulose, ex-líder sindical e membro da coordenação da Rede Brasil sobre Instituições
Rede Alerta contra o Deserto Verde Financeiras Multilaterais

197
Os Tupiniquim e Guarani são símbolos da resistência
contra o perverso modelo de desenvolvimento
que a Aracruz representa
199
A história de 40 anos da maior empresa de celulose branqueada de
eucalipto do planeta é marcada por severos e irreversíveis impactos
ambientais, sociais, culturais e econômicos no estado do Espírito Santo.
Com vultosos financiamentos públicos e o incondicional apoio político do
Estado, a Aracruz Celulose se apropriou indevidamente de territórios
indígenas e quilombolas, destruindo o modo de vida comunal desses povos.
Responsável por impor drásticas mudanças também na vida dos camponeses,
essa empresa destruiu milhares de hectares de Mata Atlântica, sempre
movida pela obsessão de lucros continuamente crescentes.

Ao publicar , a Rede Alerta contra o Deserto Verde e a Rede


Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais pretendem explicitar a
perversidade do atual modelo de “desenvolvimento” a partir da realidade dos
territórios onde atuam as mega empresas. Por outro lado, é fundamental dar
visibilidade e registrar o histórico processo de resistência e enfrentamento
das comunidades locais contra a Aracruz. Atingidas diretamente pelos
impactos, irregularidades e ilegalidades cometidas por essa empresa, os
povos da região lutam desde a sua implantação – em plena ditadura militar –
até os dias de hoje para ter os seus direitos fundamentais respeitados.

REDE ALERTA
CONTRA O DESERTO VERDE

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