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Coleção Monografias Jurídicas nº 2

A Constitucionalização
do Processo Penal
Brasileiro
O Projeto de Lei do Senado nº 156/2009 e o Juiz das
Garantias

RODOLFO SANTOS CORREIA DA SILVA

Org. Antonio Eduardo


Ramires Santoro
A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

Rodolfo Santos Correia da Silva

RODOLFO SANTOS CORREIA DA SILVA

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO
PROCESSO PENAL BRASILEIRO:
O PLS nº 156/2009 e o Juiz das Garantias

Coleção Monografias Jurídicas

Organizador da Coleção Antonio Eduardo Ramires


Santoro

Rio de Janeiro

Novembro de 2010

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A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

Rodolfo Santos Correia da Silva

S586 Silva, Rodolfo Santos Correia.

A constitucionalização do processo penal brasileiro: o PLS nº


156/2009 e o juiz das garantias / Rodolfo Santos Correia da
Silva

68 f.

Coleção Monografia Jurídicas.

Processo Penal. I. Direito Constitucional.

CDD
341.430981

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Rodolfo Santos Correia da Silva

Dedico este trabalho a Maria de Lourdes, minha mãe, por me


ter ensinado, com o exemplo, a não esmorecer ante as
intempéries da vida, tendo força, raça e gana sempre; a viver a
vida, apesar do pesares, com manha, graça e sonho sempre; a
acreditar num mundo melhor, mantendo, sempre, essa estranha
mania de ter fé na vida.

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A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

Rodolfo Santos Correia da Silva

AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, ao Lá De Cima, por tudo


que me deu, que me dá e que me ainda dará, sobretudo pela luz
que me alumia os caminhos da vida.
Em seguida, agradeço àqueles que diretamente
colaboraram e sem os quais este trabalho não seria possível:
Professora Paula Calainho, pela atenção, paciência e zelo não
só comigo, mas para com todos os seus orientandos; e
Professor Antonio Santoro, de quem eu tive o duplo privilégio
de tê-lo como professor durante a graduação e, fora da sala de
aula, de tê-lo com um amigo. Todos os eventuais créditos
deste trabalho são destes professores; os equívocos e
omissões, descréditos meus.

Não poderia faltar, aqui, referência a Samanta Felix,


especialista em Processo Constitucional pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestranda em Direito Penal
Internacional pela Universidade de Granada (Espanha). Afora o
exemplo de profissional da advocacia, tenho a agradecer por
sua amizade sincera e honesta, e pela força que me dá para
continuar caminhando.

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A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

Rodolfo Santos Correia da Silva

Agradeço também a alguns professores que tiveram


vital importância na minha formação jurídica. São eles: Antonio
Santoro (de novo), Carlos Eduardo Adriano Japiassú, Telson
Pires, Floriano André, Guilherme Bollorini, Pablo Arruda e
André Luiz.

Por fim, mas não menos importantes, os


agradecimentos aos meus amigos de faculdade, que me
apoiaram, me incentivaram; que comigo discutiram,
debateram; com quem troquei idéias e experiências de vida;
com quem amadureci nestes cinco anos de curso. Não
esqueço, porém, de meus familiares e amigos pessoais, que
tiveram a compreensão necessária para entender que as horas
que deixamos de passar juntos foram investidas em uma boa
causa.

Aos meus irmãos, Rômulo e Rodrigo, um muito


obrigado mais do que especial por tudo o que representam em
minha vida.

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A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

Rodolfo Santos Correia da Silva

Maria, Maria
É um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece
Viver e amar
Como outra qualquer
Do planeta

Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que rí
Quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força


É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha


É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida....

(Milton Nascimento e Fernando Brant)

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A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

Rodolfo Santos Correia da Silva

RESUMO
SILVA, Rodolfo Santos Correia da. A constitucionalização do
processo penal brasileiro: o PLS 156/2009 e o juiz das garantias.
2010. 33f. Monografia (Graduação em Direito) – Centro Universitário
da Cidade, Rio de Janeiro, 2010.
O presente estudo inicia-se pela conceituação do Estado Democrático
de Direito e todos os reflexos decorrentes de sua adoção pela
Constituição da República de 1988, dentre eles as funções do Poder
Judiciário neste modelo de Estado. Passa-se, então, à análise do
processo penal, começando por uma análise histórica, passando pela
conceituação e desenvolvimento histórico dos sistemas processuais,
pela caracterização do processo penal condizente com um Estado
Democrático de Direito e, por fim, perquiri-se o papel do juiz no
processo penal. O derradeiro capítulo versa sobre o Projeto de Lei do
Senado nº 156/2009 (projeto de Código de Processo Penal), que
tramita no Congresso Nacional, tendo sido aprovado em primeiro
turno pela Casa Legislativa de origem. Tal projeto tem como mote a
constitucionalização do processo penal brasileiro, tornado, com isso, a
estrutura do processo penal brasileiro compatível com a Constituição
da República de 1988, o que não ocorre com a estrutura atual, vez que
baseada no Código de Processo Penal de 1941, cuja essência é
inquisitorial. A citada constitucionalização se dá em razão do
reposicionamento do juiz no processo penal, exercendo ele, agora, seu
verdadeiro papel: o de julgador imparcial e garantidor dos direitos
fundamentais do indivíduo.
Palavras-Chave: Estado Democrático de Direito. Processo Penal.
Projeto de Lei do Senado nº 15/2009. Jus das Garantias.

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Rodolfo Santos Correia da Silva

PREFÁCIO

Rodolfo é daqueles estudantes que se diferenciam à


primeira manifestação. Aos professores acostumados ao
marasmo da mediocridade soa petulante, àqueles que esperam
por algo que tenha valido à pena o esforço do magistério eis a
recompensa.

O convite à pesquisa veio acompanhada da dedicação e


com ela esta audaciosa monografia com cara de livro.

O tema, além de novo (aliás, mais do que isso,


incipiente beirando ao prematuro) já é uma digna contribuição
para compreensão do papel do Juiz das Garantias cuja inserção
em nosso sistema processual positivo tem tudo para acontecer.
E o melhor, de antemão encontra sua fundamentação
constitucional e axiológica (neste ponto até mais do que o autor
pretendeu fazê-lo) neste trabalho.

No mais, à leitura...

Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2010.

Antonio Eduardo Ramires Santoro


Organizador da Coleção

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Rodolfo Santos Correia da Silva

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................12
1 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 E A
ELEIÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO...................................................................................14
1.1 A Eleição do Estado Democrático de
Direito.......................................................................................16
1.1.1 Conceito de Estado Democrático de
Direito.......................................................................................17
1.1.2 Implicações Jurídicas.......................................................19
1.1.3 A Nova Pirâmide Jurídica na Visão do Supremo Tribunal
Federal ......................................................................................21
1.1.4 O Papel do Poder Judiciário.............................................24
2 PROCESSO PENAL.............................................................32
2.1 Breve Escorço Histórico do Processo Penal.......................32
2.2 Sistemas Processuais Penais ..............................................35
2.2.1 Sistema Acusatório..........................................................35
2.2.2 Sistema Inquisitório ........................................................37
2.2.3 Sistema Misto...................................................................39
2.2.4 A Superação do Reducionismo do Conceito de Sistema
Misto ........................................................................................41
2.3 Processo Penal Democrático...............................................43
2.4 O Papel do Juiz no Processo Penal.....................................45
3 O PLS Nº 156/2009 E O JUIZ DAS GARANTIAS..............47
3.1 A Compatibilização do Processo Penal com a Constituição
da República..............................................................................47

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3.2 O Instituto do Juiz das Garantias........................................51


CONCLUSÃO..........................................................................55
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................61

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A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

Rodolfo Santos Correia da Silva

INTRODUÇÃO

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei


do Senado (PLS) nº 156/2009, fruto do trabalho de uma
Comissão de Juristas instituída pela Presidência do
Senado Federal do Brasil, composta por Antonio Correia,
Antonio Magalhães Gomes Filho, Eugênio Pacceli de
Oliveira, Fabiano Augusto Martins Silveira, Felix Valois
Coelho Júnior, Hamilton Carvalhido, Jacinto Nelson de
Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do
Amaral. Tal projeto visa à reforma global do processo
penal brasileiro, substituindo não só o famigerado Código
de Processo Penal, que data de 1941, mas todas as leis
esparsas processuais penais.
O fato de a futura aprovação do citado projeto
ocasionar a mudança de toda a sistemática processual
penal do ordenamento jurídico pátrio é o que justifica o
esforço expendido na presente pesquisa, porquanto O
PLS 156/2009, visando à constitucionalização do
processo penal brasileiro, traz diversas inovações, dentre
elas o instituto do juiz das garantias.
A análise do papel reservado justamente ao juiz
das garantias, e se tal papel é compatível, ou não, com os
ditames da Constituição da República, é o objetivo do
presente estudo. Para tanto, foi utilizado o método de
pesquisa bibliográfica, tomando-se como manancial
teórico o constitucionalismo moderno, que tem como
apoio a doutrina jusfilosófica pós-positivista, decorrente
da criação dos Estados Constitucionais de Direito
emergentes do processo de valorização do ser humano e

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da dignidade da pessoa humana surgido no segundo pós-


guerra do século passado.
Inicia-se a presente pesquisa com o estudo da
opção política realizada pela Constituição da República
ao adotar o Estado Democrático de Direito, sendo feitas
algumas delineações acerca do momento histórico em
que se deu a elaboração da Constituição de 1988;
algumas delineações acerca do modelo de Estado
adotado, tais como, o conceito de Estado Democrático de
Direito, as implicações jurídicas e a posição do Supremo
Tribunal Federal sobre a nova pirâmide jurídica, referente
à hierarquia das normas; e, no fim da primeira parte, são
versadas as funções do Poder Judiciário neste modelo de
Estado.
Em seguida, é feita uma análise do processo
penal. Faz-se uma breve incursão histórica; são traçadas
linhas gerais sobre os sistemas processuais penais;
afirma-se o tipo de processo penal condizente com um
Estado democrático; e são afirmadas as principais
funções do juiz no processo penal de matiz democrático.
Por derradeiro, é feita uma análise sobre o PLS
156/2009, mais especificamente sobre a motivação de sua
elaboração, qual seja, a necessidade de uma reforma
global do processo penal brasileiro, visando à
compatibilização do Direito Processual Penal com a
Constituição da República de 1988, passando-se, logo
após, à análise do instituto do juiz das garantias e do
papel que lhe é reservado pelo projeto, ressaltando-se ao
fim a compatibilidade constitucional do papel reservado
pelo legislador, ao elaborar o PLS 156/2009, ao juiz que
atuará na fase pré-processual da persecução penal.

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1 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 E A


ELEIÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO

05 de outubro de 1988. Congresso Nacional.


Brasília, Distrito Federal. É promulgada a Constituição
da República Federativa do Brasil, democraticamente
elaborada, votada e aprovada por uma Assembléia
Nacional Constituinte composta por parlamentares eleitos
diretamente pelo povo para a Câmara dos Deputados e
para o Senado Federal, cujo presidente foi Ulysses
Guimarães. É tempo de redemocratização no país após
longos e duradouros 20 anos de regime ditatorial militar.
Em 1985, alguns anos antes da promulgação da
Constituição da República, havia sido eleito, de forma
indireta, o primeiro presidente da República após a
regime militar (a emenda Dante de Oliveira, que
asseguraria a eleição diretamente pelo povo, não foi
aprovada pelo Congresso Nacional, sendo o presidente
eleito pelo Colégio Eleitoral), que teve como missão
maior realizar a transição do autoritarismo para a
democracia, tarefa nada fácil, pesando sobre seus ombros
a responsabilidade de evitar rupturas bruscas que
pusessem o país em colapso. A transição foi realizada
com sucesso. De lá até os dias de hoje passaram-se 22
anos, maior período de estabilidade política por que

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passou o Brasil, tendo sido exercidos 07 mandatos


presidenciais por 05 presidentes da República1.
Sob o ângulo de Lei Fundamental, Constituição é
“o conjunto de normas que organiza os elementos
constitutivos do Estado”,2 isto é, o instrumento político-
jurídico de fundação de um Estado. Esse é o conceito
clássico. Hodiernamente, todavia, tal conceito foi
ampliado pela doutrina. Assim, este é o conceito trazido
por Luis Roberto Barroso:3

“A Constituição, portanto, cria ou reconstrói o Estado,


organizando e limitando o poder político, dispondo
acerca dos direitos fundamentais, valores e fins públicos
e disciplinando o modo de produção e os limites de
conteúdo das normas que integrarão a ordem jurídica por
ela instituída. Como regra geral, terá a forma de um
documento escrito e sistemático, cabendo-lhe o papel,
decisivo no mundo moderno, de transportar o fenômeno
político para o mundo jurídico, convertendo o poder em
Direito.”

Além de prever a organização da estrutura de


funcionamento do Estado, a Constituição consagra

1
Em 31 de outubro do presente ano foi eleita em segundo turno
a candidata Dilma Roussef para o exercício do oitavo mandato
presidencial do período pós-ditadura. Será a sexta pessoa – a
primeira mulher – que exercerá o comando do Poder Executivo
federal no país no referido período.
2
SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivado, 28
ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 89.
3
BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional
contemporâneo, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 75.

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direitos e garantias fundamentais, sejam eles individuais,


coletivos ou difusos, e elege valores que irradiarão por
todo o ordenamento jurídico. Dentre os princípios
fundamentais, um merece destaque no presente estudo: o
modelo de Estado – Estado Democrático de Direito.4

1.1 A Eleição do Estado Democrático de Direito

O poder constituinte originário, como


contraponto ao autoritarismo que dominou o país durante
o período do regime militar (1964-84), elegeu o Estado
Democrático de Direito como modelo de Estado. A
população foi às ruas contra a Ditadura, porque a
prosperidade econômica, que dava guarida ao regime
autoritário, já não mais se fazia presente. O povo já não
tolerava mais a imposição de um regime de força; a
democracia se fazia necessária. Povo às ruas,
movimentos democráticos, movimentos estudantis,
Diretas Já. A emenda à Constituição que daria ao povo o
direito de eleger diretamente o novo presidente da
República não foi aprovada. A eleição do chefe do Poder
Executivo federal ficou por conta do Colégio Eleitoral, e
Tancredo Neves, candidato com apoio popular, foi eleito,
mas não assumiu em razão de seu falecimento, fazendo-o
em seu lugar o vice-presidente eleito, José Sarney.
Sarney tocou o projeto de Tancredo e convocou uma
Assembléia Nacional Constituinte para a elaboração de
uma nova Constituição. A Assembléia foi instalada e seus
trabalhos tiveram fim no referido 05 de outubro de 1988,

4
Artigo 1º da Constituição da República Federativa de 1988.

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tendo como resultado final a Constituição Cidadã5. A


democracia estava de volta; ou, ao menos, deveria estar.
No artigo 1º da Constituição da República está
prevista a citada escolha pelo Estado Democrático de
Direito. Estado Constitucional de Direito, Estado
Constitucional Democrático e Estado Constitucional e
Democrático de Direito são tratados aqui como
sinônimos, não sendo, para o presente estudo, relevante
discorrer sobre as sutilezas semânticas que os
diferenciam.6
Tal modelo foi eleito. Mas o que vem a ser um
Estado Democrático de Direito?

1.1.1 Conceito de Estado Democrático de Direito

O conceito é formado pela palavra Estado, que


recebe dupla adjetivação: democrático e de direito.
Estado é “a ordem jurídica soberana que tem por fim o
bem comum de um povo situado em determinado
território”7. Estado de Direito é aquele que se assenta
“sobre o monopólio estatal de produção jurídica e sobre o
princípio da legalidade”8. Nele há uma ordem vigente,
denominada ordenamento jurídico, ordem esta que
subordina não somente as pessoas, mas também o Estado.

5
O termo foi cunhado por Ulysses Guimarães, deputado que
presidiu da Assembléia Nacional Constituinte que promulgou a
CRFB/88.
6
BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit., p. 245.
7
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do
estado, 22ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 118.
8
BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit. p. 244.

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Afirma-se sua caracterização “pela simples existência de


algum tipo de ordem legal cujos preceitos materiais e
procedimentais sejam observados tanto pelos órgãos de
poder quanto pelos particulares”.9
O Estado Democrático de Direito é uma evolução
do Estado de Direito. Desenvolveu-se a partir do segundo
pós-guerra e caracteriza-se pela “subordinação da
legalidade a uma Constituição rígida”10, daí a adoção por
parte da doutrina da nomenclatura Estado Constitucional
de Direito.11 Além da exigência do cumprimento formal
do processo legislativo, no Estado Democrático de
Direito há a necessidade de efetiva compatibilidade
material das normas infraconstitucionais com as normas
constitucionais, afora a determinação de deveres de
atuação por parte do Poder Executivo e do Poder
Legislativo.12
Com isso, ampliou-se a limitação ao poder do
Estado, que antes dizia respeito somente às liberdades
públicas, o que significava dizer que havia apenas a
previsão de deveres negativos – obrigações de não fazer –
concernentes ao poder Público. Agora, ao Estado é dado
o dever de promover políticas públicas que visem ao
cumprimento dos direitos e garantias fundamentais
(deveres positivos, obrigações de fazer).
Tal fenômeno, todavia, não restou restrito
somente aos Poderes Executivo e Legislativo, tendo se

9
Ibidem, p. 41.
10
Ibidem, p. 244.
11
GOMES, Luiz Flávio. Estado constitucional de direito e a
nova pirâmide jurídica. São Paulo: Premier Máxima, 2008.
12
BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit. p. 245.

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espraiado também para o Poder Judiciário, o que


implicou efeitos na forma de interpretar e aplicar o
ordenamento jurídico.

1.1.2 Implicações Jurídicas

A opção política pelo Estado Democrático de


Direito deságua inexoravelmente no processo de
Constitucionalização do Direito, é dizer, “a passagem da
Constituição para o centro do sistema jurídico”.13 A
Constituição, agora, é o “filtro através do qual se deve ler
todo o direito infraconstitucional”.14 Tal fenômeno pode
ser observado sob diversos ângulos, importando para o
presente estudo dois deles: a normatividade das normas
constitucionais e a relevância das opções realizadas pela
Constituição na interpretação das normas
15
infraconstitucionais. .
O primeiro de há muito já vem sendo
defendido,16 não obstante seu reconhecimento no Brasil
só tenha-se dado com a promulgação da Carta da
República de 1988. Desde Kelsen se reconhece a
supremacia da Constituição dentro do ordenamento

13
Ibidem, p. 86.
14
Ibidem, p. 87.
15
Ibidem, p. 352.
16
Já em 1968, José Afonso da Silva escreveu a monografia
Aplicabilidade das normas constitucionais, em que defendia a
aplicabilidade direta das normas constitucionais, e não apenas
sua aplicação como normas orientadoras ao legislador. Em
1987, Luis Roberto Barroso defendeu sua tese de livre-
docência A força normativa da Constituição, texto cujo título é
auto-explicativo.

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jurídico, porém, nos países de tradição jurídica romano-


germânica (como o Brasil), o reconhecimento da
normatividade das normas constitucionais se deu apenas
com a superação do liberal Estado de Direito17. Exemplo
irretorquível desta normatividade é a previsão, dentre os
direitos e garantias fundamentais, do Mandado de
Injunção – remédio constitucional que tem como objetivo
a garantia da aplicação da norma constitucional cuja
eficácia esteja condicionada à regulamentação pelo
legislador infraconstitucional, e que não está produzindo
seus efeitos em razão da inércia do Poder Legislativo.
Agora, na nova ordem constitucional, as normas
constitucionais são verdadeiras normas jurídicas,
dirigidas aos juízes, inclusive, e não mais meras diretivas
políticas direcionadas apenas aos legisladores.18
Sobre o segundo ponto, tem clareza solar a
explanação de Luis Roberto Barroso:19

“A idéia de constitucionalização do Direito aqui


explorada está associada a um efeito expansivo das
normas constitucionais, cujo conteúdo material e
axiológico se irradia, com força normativa, por todo o
sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os
comportamentos contemplados nos princípios e regras da
Constituição passam a condicionar a validade e o sentido
de todas as normas do direito infraconstitucional.”

17
BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit. p. 244.
18
Ibidem, p. 86.
19
Ibidem, Op. Cit. p. 353.

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A interpretação do ordenamento jurídico no


Estado Democrático de Direito deve ser feita sob a forma
de cotejo das normas infraconstitucionais com a
Constituição, tanto do aspecto formal, quanto do aspecto
material, sendo tarefa do intérprete realizar a aplicação do
direito infraconstitucional a fim de atender aos valores e
aos fins eleitos pelo poder constituinte originário. Ou
seja: é necessário verificar a adequação constitucional da
legislação, aplicando-a sempre de forma a atender aos
fins colimados pelo constituinte.20
Como afirmado, desde Kelsen se reconhece a
supremacia da Constituição na pirâmide jurídica. Tal
pirâmide, no entanto, sofreu significativa alteração com a
emersão do Estado Democrático de Direito, fruto da
constitucionalização e internacionalização dos direitos
humanos. O Supremo Tribunal Federal delineou uma
nova hierarquia entre as normas jurídicas.

1.1.3 A Nova Pirâmide Jurídica na Visão do Supremo


Tribunal Federal

Há muito tempo se discute a questão da


hierarquia das normas jurídicas. No que toca ao direito
interno, discussões de repercussão não há. No entanto, no
que pertine ao direito internacional, o assunto não é
pacífico na doutrina.

20
GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura: no
estado constitucional e democrático de direito. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 122.

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Para alguns, há dois ordenamentos jurídicos: o


interno e o internacional. Chamam-se dualistas os que
assim pensam.21 Por outro lado, existe o grupo que, ao
revés, entende haver apenas um ordenamento jurídico,
que é composto tanto pelas normas internas quanto pelas
normas internacionais: são denominados monistas.22
Dentro do monismo há uma subdivisão, que leva
em consideração o posicionamento acerca da prevalência
das normas jurídicas. Alguns defendem a prevalência do
direito internacional sobre o interno; outros o reverso; e
outros a aplicação do princípio geral do direito segundo o
qual lei posterior derroga lei anterior.23
Na doutrina pátria, há ainda aqueles que invocam
o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição da República
para defender que os Tratados que versam sobre direitos
humanos são incorporados automaticamente ao
ordenamento pátrio com o status constitucional.24
O poder constituinte reformador, acerca dos
Tratados Internacionais de Direitos Humanos, em parte,
pôs fim à discussão, incorporando ao artigo 5º da Carta
Magna o parágrafo 3º, que confere status de emenda
constitucional aos referidos tratados, desde que sua
incorporação no ordenamento jurídico pátrio se dê em

21
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O tribunal penal
internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de
Janeiro: Lúmen Juris, 2004, p. 2.
22
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Op. Cit. p. 2.
23
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Op. Cit. p. 3.
24
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito
constitucional internacional. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad,
1997, p. 111 apud JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Op.
Cit., p. 4.

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processo legislativo idêntico ao necessário para a


aprovação daquele tipo de norma.
Com relação aos tratados que versam sobre
direitos humanos e já estão incorporados ao ordenamento
por meio da aprovação de decreto-legislativo e que não
seguiram o trâmite do citado parágrafo 3º, o Supremo
Tribunal Federal fincou bases e adotou um
posicionamento com relação ao tema no julgamento do
recurso extraordinário 466.343, oriundo do estado de São
Paulo. Na ocasião, entendeu o Pretório Excelso que na
pirâmide jurídica nacional os Tratados Internacionais de
Direitos Humanos estariam acima das leis ordinárias e
abaixo da Constituição; teriam eles, portanto, status
supralegal, mas infraconstitucional.
No julgamento do citado recurso extraordinário,
o relator, Ministro Cezar Peluso, em seu voto não se
pronunciou sobre o tema, mas, em aditamento, admitiu
considerar os Tratados internacionais sobre direitos
humanos supralegais, não se posicionando, porém, se
teriam status constitucional ou infraconstitucional. Em
seguida, o Ministro Gilmar Mendes proferiu voto
defendendo a supralegalidade infraconstitucional dos
referidos documentos internacionais, no que foi
acompanhado pelos ministros Carmem Lúcia, Ricardo
Lewandowski, Carlos Brito, Marco Aurélio e Menezes
Direito. O Ministro Joaquim Barbosa inclinou-se para a
adoção da norma (seja ela internacional ou interna) mais
favorável ao indivíduo. O decano, Ministro Celso de
Mello, proferiu seu voto no sentido de conferir status
constitucional aos Tratados em matéria de direitos
humanos. O Ministro Eros Grau estava ausente e a

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Ministra Ellen Gracie, não votou no exercício da


presidência.
Portanto, com essa decisão, verifica-se que o
Poder Judiciário ganha especial relevo no Estado
Democrático de Direito, tendo seu papel ampliado em
decorrência da superação do marco juspositivista, que
colocava o juiz na posição burocrática de ser apenas a
boca da lei.25

1.1.4 O Papel do Poder Judiciário

Em um Estado Democrático de Direito, os


poderes são independentes e harmônicos entre si.26 Como
prelecionava Montesquieu, os poderes compõem um
sistema de freios e contrapesos, exercendo um a
fiscalização do outro, o que dá o equilíbrio necessário ao
seu exercício, evitando-se assim que haja sobreposição de
um sobre o outro.
Ao Poder Executivo é destinada a função
precípua de administrar, de governar, executando as leis e
promovendo as políticas públicas. Ao Legislativo foi
reservada a função típica de legislar, de elaborar as leis
que regularão as relações entre os indivíduos.
Por fim, ao Poder Judiciário cabe a função
jurisdicional, cuja raiz etimológica radica na expressão
latina jurisdictio, que significa dizer o Direito. O Poder
Judiciário tem a função precípua de solucionar litígios,
dizendo o Direito e aplicando-o ao caso concreto. Age o

25
GOMES, Luiz Flávio. Op. Cit. p. 120.
26
Artigo 2º da CRFB/88.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 24


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

Rodolfo Santos Correia da Silva

Judiciário somente por provocação, salvo exceções, uma


vez que é este poder o responsável legítimo pela solução
de litígios em um Estado de Direito, sendo vedado, em
regra, o exercício arbitrário das próprias razões, isto é,
fazer justiça pelas próprias mãos.27
O Poder Judiciário, porém, em um Estado
Democrático de Direito, não se presta somente a este
desiderato, havendo outras funções exercidas pela
Magistratura28. Segundo as lições de Luiz Flávio Gomes,
à Magistratura são reservadas as seguintes funções: a)
solucionar litígios; b) controle dos demais poderes; c)
autogoverno; d) tutela dos direitos e garantias
fundamentais; e e) garante do Estado Constitucional e
Democrático de Direito.
Para o presente estudo, interessa mais
profundamente a segunda, a quarta e a quinta funções,
haja vista que a primeira é de unânime reconhecimento e
a terceira, diz respeito a uma questão eminentemente
administrativa de autogestão.
O controle dos demais poderes não é novidade.
Como dito, Montesquieu já o conclamava nos idos do
século XVIII. Todavia, questão curial para uma perfeita
compreensão do tema diz respeito à legitimidade
democrática do Poder Judiciário, pois, sempre que uma

27
Vide artigo 345 do Código Penal, que tem a seguinte
redação: Art. 345. Fazer justiça pelas próprias mãos para
satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o
permite: Pena – detenção, de 15 dias a 1 mês, ou multa, além
da pena correspondente à violência.
28
Neste trabalho é empregado o termo Magistratura (com
inicial maiúscula) como sinônimo de Poder Judiciário.

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A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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questão de repercussão nacional é levada ao crivo do


Poder Judiciário e existe a possibilidade de a decisão
proferida ser contrária à opinião pública majoritária, é
feita a seguinte indagação: é legítimo o julgamento por
11 juízes29, não eleitos por meio do escrutínio popular,
sobre a validade ou não de uma lei aprovada por 513
deputados e 81 senadores, parlamentares estes eleitos
diretamente pelo povo de forma democrática por meio do
voto?
A resposta é afirmativa. Não poderia ser
diferente. Há uma confusão, ou mesmo um
desconhecimento, muito comum sobre quais as funções
da Magistratura em um Estado Democrático de Direito e
sobre o fundamento da legitimidade democrática de sua
atuação.
Quanto às funções, continuaremos adiante. No
que pertine à legitimidade democrática, cabe um corte
epistemológico, sendo esclarecedora a lição de Luiz
Flávio Gomes:30

29
Este número se refere à composição do Pleno do Supremo
Tribunal Federal, que no Brasil é a instância máxima a que
pode chegar um processo judicial, seja por sua competência
originária, nos casos elencados na Constituição; seja pela via
difusa do controle de constitucionalidade, por meio do recurso
extraordinário; seja pela via concentrada do citado controle,
por meio das ações que buscam a validação ou invalidação de
normas infraconstitucionais.
30
GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura: no
estado constitucional e democrático de direito. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 120.

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“O Poder Constituinte (soberano) concebeu duas formas


de legitimação democrática: a representativa (típica doa
altos cargos políticos) e a legal (inerente à função
jurisdicional). A legitimação legal, racional ou formal dos
juízes, portanto, em nada se confunde com a legitimação
democrática representativa. Aquela reside na vinculação
do juiz à lei e à Constituição, que são elaboradas pelo
Poder Político (...) Os juízes, portanto, de acordo com o
sistema adotado pelos Constituintes, não só não serão
eleitos diretamente pelo povo, senão que estão proibidos
de exercer qualquer atividade partidária, o que significa
que não podem sequer desejar sua eleição direta.”

A legitimidade democrática da Magistratura,


portanto, não reside em sua eleição diretamente pelo
povo, pois, para o ingresso nas carreiras da Magistratura,
o poder constituinte originário previu o processo do
concurso público.31 Se a Assembléia Nacional
Constituinte – expressão máxima da vontade do povo –,
ao elaborar a Constituição, previu determinada forma de
investidura para se tornar membro do Poder Judiciário, o
respeito a esta forma é inafastável. Entretanto, além da
forma de ingresso, necessária seja desempenhada a
função de controle dos demais poderes pela Magistratura
obedecendo-se à Constituição e às leis, desde que estas
sejam compatíveis com aquela, o que lhes confere

31
Artigo 93, I da CRFB/88.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 27


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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validade.32 A função jurisdicional é exercida sempre


vinculada e em obediência à Constituição e às leis
válidas, sendo vedado o uso alternativo do Direito, “no
sentido de que o juiz está desvinculado da lei”.33
Outra função da Magistratura relevante para o
presente estudo é a de tutela dos direitos e garantias
fundamentais. É o Poder Judiciário o responsável direto
pela tutela dos direitos e garantias fundamentais dos
homens. O respeito ao ordenamento jurídico é
característica fundamental do Estado Democrático de
Direito, e “só quem pode assegurá-lo em sua plenitude é
o Poder Judiciário, por meio da tutela judicial efetiva”.34
A expressão direitos fundamentais é sinônima,
aqui, dos termos direitos naturais, direitos humanos,
direitos do homem, direitos individuais, liberdades
fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais
do homem.35 No dizer de José Afonso da Silva,36 a
expressão designa

“...no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e


instituições que ele concretiza em garantias de uma
convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No
qualificativo fundamentais, acha-se a indicação de que se

32
GOMES, Luiz Flávio. Estado constitucional de direito e a
nova pirâmide jurídica. São Paulo: Premier Máxima, 2008. p.
75.
33
GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura: no
estado constitucional e democrático de direito. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 123.
34
Ibidem, p. 96
35
SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 179.
36
Ibidem, p. 12.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 28


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana


não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo
sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a
todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente
reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.”

À Magistratura, então, é dada a missão de


proteger e fazer serem respeitados os direitos e garantias
fundamentais, tão caras ao homem e cujo respeito é traço
fundamental para a caracterização do Estado
Democrático de Direito. Luigi Ferrajoli,37 com maestria,
sintetiza afirmando que a legitimação substancial
“consiste na função e capacidade da jurisdição de tutelar
os direitos fundamentais dos cidadãos”. E continua
asseverando que “na sujeição do juiz à Constituição e no
seu papel de garante dos direitos fundamentais está o
principal fundamento de legitimação democrática da
jurisdição”.38
Por derradeiro, merece destaque a função de
garante do Estado Constitucional e Democrático de
Direito. Como dito acima, Estado Constitucional e
Democrático de Direito é, para o presente trabalho,
considerado sinônimo de Estado Democrático de Direito.
Foi dito também anteriormente que o Estado
Democrático de Direito é uma evolução do Estado de
Direito.

37
FERRAJOLI, Luigi. Justitia pena y democracia. In: Jueces
para La Democracia, nº 4, Madrid, p.5 apud GOMES, Luiz
Flávio. Op. Cit. p. 120.
38
Loc. Cit..

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 29


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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O Estado de Direito liberal, que se desenvolveu


no século XIX, culminou nas atrocidades perpetradas
pelo Estado Nazista de Adolf Hitler durante a Segunda
Guerra Mundial (1939-45). O Estado Alemão fez tudo o
que fez sob a égide da lei. A doutrina filosófica
juspositivista, que dominava o cenário jurídico à época,
deu guarida a tudo isso, seguindo a racionalidade do
seguinte axioma: “se o legislador é justo, portanto, só
pode produzir normas justas”.39 Para superar este marco
filosófico, surge o pós-positivismo, “confluência das duas
grandes correntes de pensamento que oferecem
paradigmas opostos para o Direito: o jusnaturalismo e o
positivismo”.40 Os direitos naturais agora estão, se não
em sua totalidade, em sua maioria, positivados nas
Constituições elaboradas do fim da Segunda Guerra até
os dias atuais. A dualidade direito natural versus direito
positivo já não mais subsiste, uma vez que o direito
natural, agora, como dito, está positivado. O problema foi
transferido do campo da normatividade para o campo da
efetividade. Esta é a questão a ser resolvida dentro de um
Estado Democrático de Direito, já que seu marco
filosófico o levou a tal situação.
O Poder Judiciário, neste contexto, exerce o
papel de garantidor da eficácia dos direitos fundamentais;
do controle da constitucionalidade das leis; da aferição da
validade das normas infraconstitucionais
(compatibilidade formal e substancial com a
Constituição). Estado de Direito em que não há esse tipo

39
GOMES, Luiz Flávio. Op. Cit. p. 113.
40
BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit. p. 247.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 30


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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de garantia, não pode ser chamado qualificado como


democrático.
Outrossim, a Magistratura exerce seu mister de
solucionar os litígios que lhe são levados com
independência e imparcialidade, tutelando sempre os
direitos e garantias fundamentais dos indivíduos,
mormente para conter os abusos do Poder Público no
exercício de seu papel no sistema de freios e contrapesos,
característico da tripartição dos poderes, garantindo,
assim, a permanência do Estado Democrático de Direito.
Além disso, em função eminentemente administrativa de
autogestão, exerce ainda o Poder Judiciário seu
autogoverno, o que lhe garante a independência da qual
necessita para ser imparcial.41
A contenção dos abusos do exercício do Poder
Público deve ser realizada em todas as esferas. Uma,
todavia, merece atenção especial, porquanto se trata da
intervenção estatal legítima mais gravosa do Estado na
esfera do indivíduo: o processo penal – meio pelo qual se
aplica o Direito Penal.

41
GOMES, Luiz Flávio. Op. Cit. p. 80-94.

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2. PROCESSO PENAL
2.1 Breve Escorço Histórico do Processo Penal

A história do Direito Penal é dividida, de forma


bastante singela, em três generalizadas etapas: vingança
divina, vingança privada e vingança pública.42 Para fins
de relato histórico do processo penal, será levada em
consideração somente a terceira etapa, vingança pública,
vez que anteriormente a isso não havia verdadeiramente
um direito penal, senão um sistema de retribuições não
institucionalizado. E, tendo o processo penal a finalidade
de “verificar a existência ou não da violação do próprio
direito estatal de proibir e a incidência ou não do próprio
direito estatal de punir”,43 será tomada como marco
referencial inicial a fase em que o jus puniendi é avocado
pelo Estado.
A Grécia Antiga já conhecia o processo penal do
tipo acusatório. No berço da democracia, o processo
penal, segundo as lições de Tourinho Filho,44 tinha
“participação direta dos cidadãos no exercício da
acusação e da jurisdição”, e era caracterizado pela
“oralidade e publicidade dos debates”.

42
BITENCOURT, Cezar Robeto. Tratado de Direito Penal.
Parte Geral 1. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 28.
43
SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. A legitimação do
direito penal: origem político-axiológica do sistema penal.
Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de pós-
graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2005,
p.101.
44
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal 1.
25ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 77.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 32


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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Em Roma, houve variação dos sistemas. Na Alta


República, o processo penal, assim como na Grécia, era
acusatório, cedendo espaço para o que se tornaria o
modelo inquisitório conforme se passava do período
republicano para o período do Império.45
Com o avançar dos tempos, ganhou força no
mundo ocidental a Igreja Católica, força tamanha que em
determinado momento Estado, moral e religião se tornam
conceitos entrelaçados de forma inseparáveis. Com isso,
o Estado ganhou contornos místicos, transcendentais, e o
fundamento de o poder estar nas mãos de um monarca
absolutista era a vontade divina.
Até o século XII, ainda não havia no seio da
jurisdição secular processo sem acusação. Do século XIII
em diante, todavia, tendo por referência simbólica o IV
Concílio de Latrão, a Igreja, sob o comando o Papa
Inocêncio III, altera profundamente o processo e, com o
mote de se buscar a verdade real, é abolida a figura do
acusador. O processo a partir deste momento é iniciado
ex officio pelo juiz inquisidor.46
Neste momento, em busca da propalada verdade
real dos fatos, é admitida largamente a tortura, visando à
confissão. Nas sábias palavras do referido Tourinho
Filho,47 “baseado no interesse superior de defender a fé,
fomentavam-se a indignidade e a covardia”.
Este modelo perpetuou-se pela Europa por toda a
Idade Média e Idade Moderna. A ruptura, no entanto,
45
Ibidem, p. 79.
46
Ibidem, p. 82.
47
Ibidem, p.83.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 33


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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teve início com o Iluminismo, no final do século XVIII.


Pensadores, dentre eles o expoente Cesare Beccaria,
começaram a se insurgir contra o modelo de Estado da
época. Tal movimento culminou na Revolução Francesa
– revolução burguesa que colocou, literalmente, a baixo o
Antigo Regime.48
Após a revolução, ascendeu ao poder Napoleão
Bonaparte, inicialmente como primeiro-cônsul e,
posteriormente, em 1804, como Imperador. Para servir a
este Império foi criado o sistema processual penal misto,
composto por elementos caracterizadores do sistema
acusatório e inquisitório. Este sistema foi perpetuado por
todo o mundo (cada Estado moldando-o com suas
nuanças e idiossincrasias), sendo hoje o mais encontrado
na parte ocidental do globo. Nele a primeira fase, pré-
processual, é inquisitória, não havendo direito a
contraditório ou a ampla defesa; e a segunda fase,
processual, acusatória, havendo, aqui, o contraditório e a
ampla defesa.
Para uma compreensão sobre o processo penal,
necessária uma passagem pelos elementos históricos e
conceituais de cada sistema.

48
A referência literal se faz pelo fato de o símbolo da citada
revolução ser a Queda da Bastilha, prisão que abrigou diversos
personagens que se opunham ao absolutismo do rei Luis XVI
da França.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 34


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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2.2 Sistemas Processuais

No dizer de Tourinho Filho,49 “levando-se em


conta os princípios que o informam, o Processo Penal
pode ser acusatório, inquisitivo e misto”. Vejam-se a
característica de cada um destes tipos.

2.2.1 Sistema Acusatório

O sistema acusatório tem os seguintes traços


marcantes:50

“a) há separação entre as funções de acusar, defender e


julgar, com três personagens distintos: o autor, o réu e o
juiz (ne procedat iudex ex officio);
b) o processo é regido pelo princípio da publicidade dos
atos processuais, admitindo-se, como exceção, o sigilo na
prática de determinados atos;
c) os princípios do contraditório e da ampla defesa
informam todo o processo. O réu é sujeito de direitos,
gozando de todas as garantias constitucionais que lhe são
outorgadas;
d) o sistema de provas adotado é do livre convencimento,
ou seja, a sentença deve ser motivada com base nas
provas carreadas para os autos. O juiz está livre na sua
apreciação, porém não pode se afastar do que consta no
processo;

49
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 88.
50
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14ª ed. ver.
ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 48-49.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 35


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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e) imparcialidade do órgão julgador, pois o juiz está


distante do conflito de interesse de alta relevância social
instaurado entre as partes, mantendo seu equilíbrio,
porém dirigindo o processo adotando as providências
necessárias à instrução do feito, indeferindo as
diligências inúteis ou meramente protelatórias;”

Desta forma, no sistema acusatório o processo


penal é um processo de partes, caracterizado “pela
atuação de partes contrapostas – acusador e acusado –,
que duelam em igualdade de posições e direitos,
apresentando-se um juiz sobre posto a ambas”.51 Sua
adoção se dá em Estados de cariz democrático, por sua
estrutura dialética, sendo o sistema “mais aplicado nos
países que privilegiam a liberdade do cidadão”. 52
A origem do sistema acusatório remonta à Grécia
Antiga, onde o processo penal tinha participação direta
do povo. No direito romano também se praticou um
processo penal inspirado em ditames democráticos, mais
precisamente no período final da Alta República. Com a
superação do período da República pelo Império, os
traços democráticos cederam espaço, em Roma, para o
que mais tarde se desenharia como sistema inquisitório.53

51
SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no
processo penal acusatório: incongruências dno sistema
brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005, p. 41.
52
Ibidem, p. 45
53
LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua
conformidade constitucional. Vol. I. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009, p.56-58.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 36


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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Foi no século XIII, entretanto, que o sistema


acusatório surge como tal na Inglaterra, comandada pelo
Rei Henrique II, que, com o intuito de desonerar a
jurisdição real da imensa quantidade de processos que a
abarrotava, criou o sistema Trial by Jury, modelo em que,
nos casos de admissão da acusação, um Jury formado por
12 cidadãos julgava as questões de direito material,
enquanto o representante real cuidava do respeito às
questões processuais, às regras do jogo.54
Diferentemente do que ocorreu na Inglaterra –
país adotante do sistema jurídico do Common Law – nos
países da Europa Continental – de tradição jurídica do
Civil Law –, o sistema processual penal desenvolvido no
mesmo período foi inquisitório, em razão da força
política exercida pela Igreja Católica.

2.2.2 Sistema Inquisitório

Como características do sistema inquisitório,


Paulo Rangel assim aponta: 55

“a) As três funções (acusar, defender e julgar)


concentram-se nas mãos de uma só pessoa, iniciando o
juiz, ex officio, a acusação, quebrando, assim, sua
imparcialidade;

54
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema
acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado.
In: O novo processo penal à luz da Constituição: análise
crítica do Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 5.
55
RANGEL, Paulo. Op. Cit., p. 47.

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b) O processo é regido pelo sigilo, de forma secreta,


longe dos olhos do povo;
c) Não há o contraditório nem a ampla defesa, pois o
acusado é mero objeto do processo e não sujeito de
direitos, não se lhe conferindo nenhuma garantia;
d) O sistema de provas é o da prova tarifada ou prova
legal e, conseqüentemente, a confissão é a rainha das
provas.”

O processo penal no sistema inquisitório,


portanto, ao reverso do sistema acusatório, não é um
processo de partes, não tem estrutura dialética, havendo a
concentração das funções de acusar, defender e julgar em
um só sujeito, o juiz-inquisidor.56 Sua adoção se dá em
países de cariz autoritário, tendo sido o sistema adotado
por excelência durante os regimes absolutistas medievais
e modernos.57
O sistema inquisitório começou a se delinear já
na fase do Império na Roma Antiga. Seu surgimento
como sistema, todavia, se deu nos regimes monárquicos
medievais como superação do sistema acusatório
privado.58 Assim como o sistema acusatório, o
inquisitório somente aparece como sistema no século
XIII, mais especificamente em 1215 com o IV Concílio
de Latrão, no seio da Igreja Católica. Tal aparecimento se
deu em razão da perda de prestígio e poder da Igreja

56
SILVA, Danielle Souza de Andrade e. Op. Cit. p. 46.
57
O termo moderno, aqui, refere-se, especificamente, ao
período compreendido entre o Descobrimento das Américas
(1492) e a Revolução Francesa (1789) – Idade Moderna.
58
RANGEL, Paulo. Op. Cit. p. 46.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 38


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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Católica na sociedade, sociedade esta que passava por


uma transformação na transição dos feudos para os
burgos.59
Após vigorar por quase toda a Europa
Continental durante as Idades Média e Moderna, tal
sistema caiu junto com os regimes absolutistas da época,
surgindo na França, comandada por Napoleão Bonaparte,
um novo modelo.

2.2.3 Sistema Misto

O chamado sistema misto surgiu na França com o


Code d’Instruction Criminalle de 1808. Tal modelo foi
pensado por Jean-Jacques-Régis de Cambacérès para
servir a Napoleão Bonaparte, Imperador da França e,
como tal, um tirano.60
O sistema misto é composto por elementos
caracterizadores de ambos os sistemas
supramencionados, quais sejam, acusatório e inquisitório.
O sistema misto, concebido na França e cuja espinha
dorsal serve a boa parte dos sistemas processuais dos
países ocidentais, tem a primeira fase inquisitória e a
segunda, acusatória. Na primeira, que no Brasil
corresponde ao Inquérito Policial, não há direito ao
contraditório nem à ampla defesa, sendo esta uma fase
administrativa, cujo objetivo é apurar e colher indícios de
autoria e materialidade de determinado fato delituoso
com o escopo de dar subsídios para o exercício da ação

59
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 2.
60
LOPES JR., Aury. Op. Cit. p. 67.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 39


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penal por seu titular (no Brasil, em regra, o Ministério


Público).
Na segunda fase, após provocação da parte
acusadora, é iniciada a etapa judicial da persecução
penal, dirigida por um juiz e na qual, diferentemente da
primeira, se aplicam os direitos ao contraditório e à
ampla defesa, sendo o processo um jogo equilibrado entre
as partes.
Os sistemas puros, como concebidos, não
existem mais na atualidade.61 Hodiernamente, o que há
são sistemas possuidores de elementos característicos do
sistema acusatório e do sistema inquisitório, sendo
comum a afirmação de que a conceituação de um sistema
se dá em razão da existência ou não da separação das
funções de acusar, julgar e defender. Acusatório é o
sistema em há tal separação; e inquisitório, o sistema em
que tal separação não há.
Este modo simplório de caracterizar o sistema
processual foi um engodo criado pelo mencionado
Napoleão, Imperador da França, como arremedo de
processo penal seguidor dos ditames democráticos,
escamoteando-se, assim, a verdadeira essência
inquisitória daquele sistema processual com o
reducionismo do conceito de sistema misto.

61
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit, p. 7.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 40


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2.2.4 A Superação do Reducionismo do Conceito de


Sistema Misto

Hoje em dia não há mais sistemas puros, ficando


estes modelos, assim como concebidos, na história.
Hodiernamente, “todos os sistemas processuais penais
conhecidos mundo afora são mistos”,62 vez que,
reafirmando o que foi dito anteriormente, os sistemas
processuais, assim como concebidos, ficaram na história,
não existindo mais sistemas puros.63
Jacinto Coutinho,64 tomando o conceito Kantiano
de sistema como conjunto de elementos colocados em
relação sob uma idéia única, afirma que a identificação
de um sistema se dá pelo princípio unificador (idéia
única) que faz a ligação entre os seus elementos. E, sendo
idéia única, o princípio unificador, como tal, não pode ser
misto.
Assentada esta conceituação de sistema, para
uma análise dos sistemas processuais penais, necessária a
identificação do princípio unificador que os caracteriza, e
não apenas a análise da separação inicial das funções de
acusar, defender e julgar (actum trium personarum). Ao
sistema acusatório corresponde o princípio dispositivo; e
ao sistema inquisitório, o princípio inquisitivo.65
O processo é o meio pelo qual se exerce a
jurisdição (jurisdictio – dizer o Direito). Para dizer o
Direito, é necessário o conhecimento dos fatos pretéritos
62
Ibidem, p. 1.
63
Ibidem, p. 7.
64
Ibidem, p. 7-8.
65
Loc. Cit.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 41


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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– no caso do processo penal, o fato criminoso objeto de


investigação e todas as suas circunstâncias –, o que se dá
por meio da prova. É justamente na gestão da prova,
portanto, que reside o núcleo fundante do sistema
processual penal, caracterizando-se o sistema pela a
opção política de ser dar “a função de aportar as provas
ao processo seja ao juiz (como no Sistema Inquisitório),
seja às partes, como no Sistema Acusatório”.66
Todos os sistemas atualmente são mistos, no
sentido de que possuem invariavelmente elementos
(secundários) tanto do sistema acusatório quanto do
sistema inquisitório. A caracterização de um sistema
como tal, entretanto, não se dá pela presença de
elementos secundários, senão por seu princípio
unificador, que será Dispositivo (sistema acusatório) ou
Inquisitivo (sistema inquisitório), não cabendo mais o
reducionismo do conceito de sistema misto ou o engodo
de que, presente a separação das funções de acusar,
defender e julgar, caracterizado estaria o sistema como
acusatório.
No seio da Igreja Católica, antes do IV Concílio
de Latrão, existia a figura do acusador, que não se
confundia com o juiz-inquisidor. No entanto, apesar de
sua existência, após realizada a acusação, o processo
ficava a cargo do juiz-inquisidor, que ia à cata de provas,
provas estas que depois serviriam de base para o seu
convencimento.
Portanto, não é, única e exclusivamente (não
obstante se reconheça sua vital importância para a

66
Loc. Cit.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 42


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existência de um sistema acusatório), a separação das


funções de acusar, julgar e defender que caracteriza um
sistema como acusatório; que torna o processo penal
conforme aos ditames democráticos.

2.3 Processo Penal Democrático

O processo penal é reflexo da opção política de


um Estado. O projeto democrático implica
necessariamente na valorização do homem e do valor da
dignidade da pessoa humana, valores que são
pressupostos básicos do sistema acusatório, tendo
democracia e sistema acusatório a mesma base
epistemológica. Afora isso, é de bom alvitre rememorar
que “a transição do sistema inquisitório para o acusatório
é, antes de tudo, uma transição de um sistema político
autoritário para o modelo democrático”. 67
A Constituição da República de 1988, de maneira
coerente com sua opção política por um modelo de
Estado Democrático de Direito, realizou a opção pelo
sistema acusatório. Apesar de “não prever nossa
Constituição – expressamente – a garantia de um
processo penal orientado pelo sistema acusatório”,68 tal
opção é resultante de uma interpretação sistemática da
Carta Política, vez que a determinação do Ministério
Público como titular exclusivo da ação penal pública (art.
129, I), do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV),
do devido processo legal (art. 5º, LIV), da presunção de

67
LOPES JR., Aury. Op. Cit. p. 176.
68
Loc. Cit.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 43


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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inocência (art. 5º, LVII) e da exigência de publicidade e


motivação das decisões judiciais (ar. 93, IX) são
características que, apesar de secundárias (pois fundante
é a gestão da prova), indicam a opção pelo sistema
acusatório. Mais que isso: os citados elementos
secundários são inconciliáveis com o sistema inquisitório.
No sistema acusatório a imparcialidade é o
“princípio supremo do processo”,69 tendo todos os
direitos e garantias existência em prol da manutenção
deste princípio, com a finalidade de ser realizado um
julgamento justo. Assim como o Direito Penal
democrático, o processo penal com mesmo matiz tem a
função de proteção do indivíduo ante as arbitrariedades
do Estado. Como dito, a adoção do sistema acusatório,
mormente nos países de tradição jurídica romano-
germânica, se deu em razão da superação de um Estado
autoritário por um democrático, alterando-se, assim, o
seu fundamento do eficientismo antigarantista para a
instrumentalidade constitucional.70
Desta feita, tem-se que o processo penal de matiz
democrático tem como fundamento a instrumentalidade
constitucional, o que significa dizer que é o instrumento
de realização do Direito Penal (leia-se: do exercício do
direito de penar – aplicação da pena), sob o enfoque do
Princípio da Necessidade, mas também, e tão importante
quanto, é o instrumento de garantia da observância
máxima dos direitos fundamentais insculpidos na
Constituição, visando assim não só à observância das

69
LOPES JR. Aury. Op. Cit. p. 122.
70
Ibidem, p. 24.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 44


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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regras do jogo, mas “um respeito real e profundo dos


valores em jogo, com os que – agora – já não cabe mais
jogar”.71
É esse instrumento de garantia o meio pelo qual
se exerce a jurisdição, que, por sua vez, apesar de una, é
exercida individualmente por cada indivíduo que é
investido daquele poder: o juiz.
Para que um processo penal seja tido como
democrático, portanto, necessário se faz o cumprimento
pelo juiz, que exerce a jurisdição, do papel que lhe é
atribuído no Estado Democrático de Direito.

2.4 O Papel do Juiz no Processo Penal Democrático

As funções do Poder Judiciário dentro de um


Estado Democrático de Direito já foram suficientemente
alinhavadas no item 1.1.4 deste trabalho. Cumpre agora
reforçar o já citado anteriormente, chamando especial
atenção para a função do juiz de garantidor dos direitos
fundamentais.
Nas palavras de Aury Lopes Jr.,72

“o juiz assume uma nova posição no Estado Democrático


de Direito, e a legitimidade de sua atuação não é política,
mas constitucional, consubstanciada na função de
proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada
um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição
contrária à opinião da maioria.”

71
Ibidem, Op. Cit. p. 109.
72
Ibidem, Op. Cit. p. 110-111.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 45


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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Reafirmando a posição acima, o Ministro do


Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes asseverou que
a posição do juiz no Estado Democrático é, por vezes,
contramajoritária, devendo o magistrado zelar pela
observância dos direitos fundamentais ainda que esta
observância se dê em desacordo com a vontade da
maioria.73
O Ministro Celso de Mello, também do Supremo
Tribunal Federal, assenta que o juiz “representa o órgão
estatal incumbido de concretizar as liberdades públicas
proclamadas pela declaração constitucional de direitos”, e
continua, assentindo que é dever do magistrado “atuar
como instrumento da Constituição – e garante de sua
supremacia – na defesa incondicional e na garantia real
das liberdades fundamentais da pessoa humana”. 74
Desta forma, verificamos que o papel do juiz em
um processo penal que se quer democrático é o de
julgador imparcial e garantidor dos direitos
fundamentais dos indivíduos (investigado/acusado e
vítima), ainda que para isso tenha que tomar decisões que
contrariem a vontade da maioria. Sua legitimação
democrática não é política, afirma Aury Lopes Jr. acima,
mas constitucional; ele não é investido em sua função por
vontade da maioria para atender aos seus ditames e
reclamos, mas é investido, sim, na forma insculpida na

73
Opinião versada em voto proferido no recurso extraordinário
630.147/DF, que julgava a aplicabilidade da cognominada Lei
da Ficha Limpa.
74
Trecos do voto proferido no recurso extraordinário nº
466.343/SP.

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A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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Constituição da República, para garantir, por meio do


exercício de sua função jurisdicional, o respeito aos
direitos fundamentais de todos, inclusive da minoria
(normalmente representada na pessoa do acusado, que
sofre, em muitas das vezes, verdadeira execração
pública), ainda que para fazê-lo seja necessário estar
contra a vontade da maioria.
Foi pensando em possibilitar ao magistrado que
atua na será criminal o pleno cumprimento do papel que
lhe é atribuído em um processo penal de matiz
democrático, que o legislador ordinário elaborou o
Projeto de Lei do Senado nº 156/2009, buscando-se,
assim, atender aos reclamos da Constituição da República
de 1988.

3 O PLS Nº 156/2009 E O JUIZ DAS GARANTIAS

3.1 A Compatibilização do Processo Penal com a


Constituição da República

Entre os estudiosos do Direito Processual Penal,


é consenso a necessidade de uma reforma global visando
à compatibilização deste ramo do Direito com a
Constituição da República vigente. No Brasil, há “uma
convergência quase absoluta: a necessidade de
elaboração de um novo Código, sobretudo a partir da
ordem constitucional da Carta da República de 1988”.75

75
Trecho retirado da Exposição de Motivos do PLS nº
156/2009, projeto de Código de Processo Penal.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 47


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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O processo penal é um importante termômetro


político. Aury Lopes Jr.,76 fazendo menção a James
Goldschmidt, assevera que

“os princípios de política processual de uma nação não


são outra coisa do que o segmento de sua política estatal
em geral; e o processo penal de uma nação não é senão
um termômetro dos elementos autoritários ou
democráticos da sua Constituição. A uma Constituição
autoritária vai corresponder um processo penal
autoritário, utilitarista (eficiência antigarantista).
Contudo, a uma Constituição democrática, como a nossa,
necessariamente deve corresponder um processo penal
democrático, visto como um instrumento a serviço da
máxima eficácia do sistema de garantias constitucionais
do indivíduo.”

Tomando nota da premissa de que o processo


penal é termômetro do regime político estatal, constata-se
facilmente que um Código de Processo Penal elaborado
em 1941, sob a égide do Estado Novo, não pode ser
compatível com a Constituição elaborada em 1988, sob
os auspícios do rompimento com o regime ditatorial
militar da época, sob ares democráticos intensos. Daí a
urgente necessidade de reforma, mas uma reforma global,
uma reforma de todo o sistema, e não uma reforma
pontual, como de há muito se faz no país. É preciso
superar o ultrapassado e autoritário Código de Processo
Penal de 1941.

76
LOPES JR., Aury. Op. Cit. p. 7.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 48


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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A Comissão de Juristas responsável pela


elaboração de anteprojeto de reforma do Código de
Processo Penal instalada no âmbito da Presidência do
Senado Federal do Brasil cumpriu seu mister, tendo
elaborado um anteprojeto e entregado-o à Presidência do
Senado. Tal anteprojeto passou a tramitar no Senado
Federal como Projeto de Lei do Senado (PLS) nº
156/2009, já tendo sido aprovado pelo plenário daquela
Casa Legislativa em primeiro turno, estando na ordem do
dia 23 de novembro de 2010 para votação em segundo
turno.77
A missão de elaborar um anteprojeto de Código
de Processo Penal para substituir o Código vigente e
todas as leis esparsas que tratam sobre o processo penal,
ao que parece, foi cumprida com êxito. A Comissão
conseguiu elaborar um texto que dá nova sistemática a
todo o processo penal, tornando-o compatível com a Lei
Fundamental, indicando a superação de um sistema
processual ainda com viés inquisitório.78 A exposição de

77
Informação fornecida em 17 de novembro de 2010 pelo site
do Senado por meio do push de acompanhamento de matérias
legislativas.
78
Para Jacinto Coutinho, o sistema processual brasileiro não é
acusatório, mas inquisitório, em razão de seu núcleo fundante,
que na visão do referido autor é a gestão da prova. Logo,
estando ela, no caso brasileiro (vide artigo 156, CPP), nas mãos
do juiz, tem-se caracterizado o sistema como inquisitório,
porquanto funções atinentes ao exercício da acusação estariam
nas mãos do órgão julgador, gerando-se assim a confusão das
funções de acusar e julgar na mesma pessoa (COUTINHO,
Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 8-9)

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 49


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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motivos já demonstra esta superação ao alinhavar as


diretrizes que permeiam todo o projeto:

“Nesse passo, cumpre esclarecer que a eficácia de


qualquer intervenção penal não pode estar atrelada à
diminuição das garantias individuais. É de ver e de se
compreender que a redução das aludidas garantias, por si
só, não garante nada; no que se refere à sua observância,
ao contrário, é exigência indeclinável para o Estado. Nas
mais variadas concepções teóricas a respeito do Estado
Democrático de Direito, o reconhecimento e a afirmação
dos direitos fundamentais aparecem como um verdadeiro
núcleo dogmático. O garantismo, quando conseqüente,
surge como pauta mínima de tal modelo de Estado.”

Outrossim, ao que parece, o PLS 156/2009 tem


tudo para se transformar no Novo Código de Processo
Penal, dando início a um movimento necessário que já
tarda 22 anos: a constitucionalização do processo penal
brasileiro.
Importante passo para se chegar a tal desiderato,
é a previsão do juiz das garantias, instituto que visa a
garantir o cumprimento das mais importantes funções do
juiz que exerce a função jurisdicional por meio de um
processo penal: julgar de maneira imparcial e garantir os
direitos fundamentais daqueles que participam do
processo penal, mormente daqueles sobre os quais
recaem a ameaça de ser aplicada uma pena.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 50


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3.2 O Instituto do Juiz das Garantias

No Livro I, Título I, Capítulo II do PLS nº


156/2009 – compreendido entre os artigos 14, inclusive, e
17, inclusive – está disciplinado o instituto do Juiz das
Garantias, inovação trazida nesta proposta de reforma
global do processo penal brasileiro.
Versa da seguinte maneira o artigo 14 do
mencionado projeto:

“Art. 14. O juiz das garantias é responsável pelo controle


da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda
dos direitos individuais cuja franquia tenha sido
reservada à autorização prévia do Poder Judiciário,
competindo-lhe especialmente:”

Adiante, o artigo 15 define a competência do juiz


das garantias, que abrange todas as infrações penais, com
exceção daquelas definidas como de menor potencial
ofensivo, definindo como termo final a propositura da
ação penal; finda a sua competência com o oferecimento
da denúncia ou queixa, portanto.
O artigo 16 prevê o impedimento de o magistrado
que atuou como juiz das garantias em determinado
processo exercer a atividade jurisdicional na fase
processual, ao reverso do ocorre hodiernamente, com a
prevenção do juízo (e, com isso, do juiz) que atuou na
fase pré-processual.79 E o artigo 17 apenas estipula que as

79
Artigo 75, parágrafo único do CPP.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 51


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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normas de organização judiciária de cada ente federativo


é que designarão o juiz das garantias.
Por juiz das garantias, no dizer de Rubens
80
Casara,

“...entende-se o ator jurídico criado pela Reforma o


Código de Processo Penal que passa a ser responsável
pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela
das liberdades públicas, ou seja, das inviolabilidades
pessoais/liberdades individuais frente à opressão estatal,
na fase pré-processual”

A expressão juiz das garantias é uma


redundância,81 vez que, conforme exposto acima (item
1.1.4 e 2.4), é função de relevo do juiz no processo penal
a de garantir direitos fundamentais dos acusados e
investigados em geral. Foi essa a missão reservada a ele
pela Constituição da República e que o PLS 156/2009
visa a atender.
No tocante ao artigo 14, afora a menção expressa
ao controle da legalidade e à salvaguarda dos direitos
individuais, não há nada de novo, porquanto após a
aprovação da Constituição de 1988, e a conseqüente

80
CASARA, Rubens R.R. Juiz das garantias: entre uma missão
de liberdade e o contexto de repressão. In: O novo processo
penal à luz da Constituição: análise crítica do projeto de lei nº
156/2009. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 170.
81
MAYA, André Machado. O juiz das garantias no projeto de
reforma do código de processo penal. Boletim IBCCIM, ano 17,
nº 204, Novembro/2009, p..

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 52


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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eleição do Estado Democrático de Direito, outra não


poderia ser a função do juiz no processo penal.82
Sobre a regra dos artigos 15 e 16, entretanto, não
se pode dizer o mesmo. O primeiro versa sobre a
competência do juiz das garantias, delimitando-a do
início da investigação até a propositura da ação penal. Já
o segundo, traz a previsão do impedimento do juiz que
funcionou como juiz das garantias na fase processual da
persecução penal, o que significa um giro de 180º na
sistemática do processo penal em vigor no país.
Conforme já apontado, o artigo 75, parágrafo único do
Código de Processo Penal, em vigor hodiernamente,
estipula que o juiz a que for distribuído o feito para
qualquer diligência anterior à denúncia ou queixa ficará
prevento para o processamento da ação penal.
O fundamento desta nova postura, que há algum
tempo já é defendida por parte da doutrina pátria83, é a
garantia de imparcialidade do juiz que irá realizar o
julgamento (juiz do processo), uma vez que “sua
imparcialidade está comprometida não só pela atividade
de reunir o material ou estar em contato com as fontes de
investigação, mas pelos diversos pré-julgamentos que
realiza no curso da investigação”.84 Ou seja: o juiz que
tem contato com os elementos indiciários e provas
produzidos durante a fase investigativa – inquisitória – e,
por vezes, toma decisões (decretação de prisão cautelar,

82
Loc. Cit.
83
Ver, por todos, a afirmação de que “a prevenção deve ser
uma causa excludente de competência” (LOPES JR., Aury. Op.
Cit., p. 127.)
84
LOPES JR., Aury. Op. Cit. p. 127.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 53


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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autorização de interceptação telefônica e busca e


apreensão, etc.) inexoravelmente realizará “processos
psicológicos interiores que levam a um pré-juízo sobre
condutas e pessoas”,85 o que lhe retira o necessário
“distanciamento do juiz do processo, responsável pela
decisão de mérito, em relação aos elementos de
convicção produzidos e dirigidos ao órgão da
acusação”.86
Além disto, o artigo 4º do PLS 156/2009 veda ao
magistrado qualquer iniciativa na fase de investigação,
em razão de o processo penal ter estrutura acusatória,
observando-se assim o núcleo fundante do sistema
acusatório: a gestão da prova.87 O magistrado que atua na
fase de investigação (juiz das garantias) o faz não em
busca de provas, mas sim em busca da garantia da
observância máxima dos direitos fundamentais dos
indivíduos envolvidos, mormente investigado e vítima.
Portanto, tem-se que a criação do instituto do juiz
das garantias tem como finalidade principal “garantir um
maior distanciamento entre o juiz responsável por
proferir a decisão penal e os elementos indiciários
colhidos durante o inquérito policial, no intuito de
minimizar, o quanto possível, a contaminação subjetiva
do magistrado”,88 visando com isso à garantia da

85
Loc. Cit.
86
Trecho retirado da Exposição de Motivos do PLS nº
156/2009 no que diz respeito ao instituto do juiz das garantias,
mais especificamente sobre a regra de impedimento prevista no
artigo 16.
87
LOPES JR., Aury. Op. Cit., p. 70-74.
88
MAYA, André Machado. Op. Cit.

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A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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imparcialidade, vindo ao encontro do sistema acusatório,


opção realizada pela Constituição da República de 1988.
Concretiza-se, destarte, a tão esperada – já faz mais de 22
anos da promulgação da Constituição – compatibilização
necessária entre o processo penal e os ditames da Lei
Fundamental; a constitucionalização do processo penal,
portanto.

CONCLUSÃO

A Constituição da República Federativa do


Brasil de 1988 taxativamente fez a opção política modelo
de Estado Democrático de Direito. Como toda
Constituição, nasceu fruto de um momento histórico de
ruptura com o regime político vigente, mais precisamente
o regime autoritário da Ditadura Militar (1964-84).
Essa opção política tem reflexos de extrema
relevância na interpretação e aplicação do Direito,
ganhando relevo, no caso em tela, a constitucionalização
do Direito. Este movimento teve eco profundo nos países
de tradição jurídica romano-germânica, mormente no
segundo pós-guerra do século XX, com o processo de
valorização indivíduo por sua simples condição de ser
humano, emergindo um valor-guia que permeia (ou, ao
menos, deveria permear) o ordenamento jurídico dos
países que optaram por realizar um projeto democrático.
Em efeito cascata, imbuído do espírito da
internacionalização dos direitos humanos, no Estado
Democrático de Direito a pirâmide jurídica formulada por
Hans Kelsen sofre uma reformulação, ganhando destaque
os Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Tais

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 55


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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documentos, quando inseridos de forma ordinária em


nosso ordenamento por meio do decreto-legislativo, têm
status supralegal, não obstante infraconstitucional, sendo
possível, ainda, sua inserção no ordenamento com status
de emenda constitucional, desde que sua aprovação siga o
mesmo trâmite legislativo de aprovação de uma emenda
constitucional (artigo 5º, parágrafo 3º da Constituição da
República).
Para garantir a observância desta nova forma de
pensar e aplicar o Direito, fica responsável o Poder
Judiciário, exercendo o controle dos demais poderes por
meio de sua típica função jurisdicional no sistema de
freios e contrapesos. Além da função de controle dos
demais poderes e de julgamento imparcial e
independente, ganha relevo a função de garantidor da
observância dos direitos fundamentais e, em
conseqüência, da função de garante da ordem
democrática instituída, pois garantir o respeito aos
direitos fundamentais é exercer a missão que lhe foi
atribuída pelo poder constituinte nos limites de sua
legitimidade.
É neste contexto que se insere o processo penal,
instrumento inequivocamente político. Teve início o
processo penal com a avocação do jus puniendi por parte
do Estado, tornando-se a sanção, a partir de então,
institucionalizada. A sanção, para ser aplicada, deve
necessariamente passar pelo processo penal.
No início, na Grécia Antiga, os cidadãos
participavam do processo, exercendo as atividades de
acusar e defender. Assim também se procedeu na Roma
Antiga. Aqui, no entanto, com a superação do período

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A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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republicano, o processo foi através do tempo perdendo


seu viés democrático, tendo culminado, bem mais à
frente, no sistema inquisitório, gestado no seio da Igreja
Católica, que aos poucos tomou o mundo civilizado de
tradição jurídica do Civil Law. Confusão das funções de
acusar, julgar e defender; prova tarifada; processos
secretos; ausência de imparcialidade do juiz; e ausência
de contraditório e de ampla defesa – essas eram as
características do processo inquisitório, característico dos
regimes absolutistas.
No fim do século XVIII, inspirados pelos
pensadores iluministas, os franceses põem abaixo o
Antigo Regime, surgindo com força a classe burguesa,
detentora do capital, que começa a ganhar a importância
que o mundo capitalista hoje conhece. A Revolução
Francesa rompeu com o regime absolutista e, sob pressão
dos burgueses – que detinham o capital, mas não o
prestígio –, surge o Estado de Direito, ganhando relevo
princípios como legalidade e igualdade jurídica. A lei, a
partir de então, passa a vigorar para todos,
independentemente do estrato social a que se pertença. A
lei passa a ser uma só e aplicada a todos igual e
indistintamente.
Tal modelo de Estado teve sua derrocada com o
Estado Nazista alemão, que, durante a Segunda Guerra,
realizou a tentativa de extermínio de grupos religiosos,
étnicos e sociais – judeus e ciganos, por exemplo. O
Estado alemão, comandado por Adolf Hitler, realizou a
barbárie conhecida como Holocausto sob a batuta do
Estado de Direito, sob a proteção e mandamento das leis,

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 57


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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elaboradas e aprovadas por aqueles realizavam a


representação popular.
Neste ponto, se tocam a recriação do Estado de
Direito, agora sob novas bases, fruto da evolução do
Estado de Direito Legalista para o Estado Democrático
de Direito, e a superação definitiva do sistema processual
penal inquisitório. A partir deste ponto, é hora de a
democracia deixar de ser formal para se tornar
substancial. Os ditames democráticos não podem ser
reduzidos à escolha dos representantes do Parlamento,
mas sim devem permear todas as instâncias e esferas do
Poder Estatal, seja ele político, seja ele jurídico,
relevando-se, sempre, o valor Dignidade da Pessoa
Humana; sendo sempre o indivíduo o centro em torno do
qual gira o ordenamento jurídico. E, para se coadunar
com este ditame, na seara criminal, somente dá conta um
processo penal que seja baseado no sistema acusatório,
sendo necessária a separação das funções de acusar,
julgar e defender; a publicidade dos atos processuais; a
existência efetiva do contraditório e da ampla defesa,
permitindo-se, assim, que o processo tenha estrutura
dialética; o livre convencimento motivado do juiz; e, o
“princípio supremo do processo”, a imparcialidade do
juiz.
Como garantia da efetividade de todas essas
características do sistema acusatório, mister a gestão da
prova estar nas mãos das partes, e nunca do juiz, sob pena
de o magistrado tornar-se inquisidor, aos moldes do
processo penal autoritário do sistema inquisitório, ainda
que em menor intensidade. O juiz não pode ir à cata de
provas; não pode ter iniciativa com relação à produção de

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 58


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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provas, mormente na fase investigativa, sob pena de sua


contaminação psicológica, o que comprometeria sua
imparcialidade – “princípio supremo” de um processo
que tenha por fim um julgamento justo, sem tendência
preordenada para qualquer dos lados.
O juiz atuante no processo penal, para que
exerça seu papel constitucional, tem de ser imparcial.
Além disso, tem de ser ele o garantidor dos direitos
fundamentais dos indivíduos que do processo participam,
visando sempre à máxima observância dos direitos e
garantias fundamentais, vez que, ao garantir a máxima
proteção dos direitos fundamentais do acusado, por
exemplo, está o magistrado, em verdade, garantindo que
todos, absolutamente todos, terão respeitados os mesmos
direitos se estiverem naquela posição.
O PLS 156/2009, visando exatamente a essa
proteção, traz importante inovação na ordem jurídica
pátria: o juiz das garantias. Como o nome diz, este
magistrado é responsável pelo zelo das garantias (leia-se:
direitos fundamentais) dos indivíduos envolvidos no
processo (investigado e vítima). A vítima, que sofreu a
agressão, e neste momento é a parte mais fraca, recebe a
proteção do Direito Penal, que prevê sanção para aquele
que pratica um crime. A partir do momento em que
alguém é acusado ou investigado pela prática de um
delito, está ameaçado de uma possível imposição de
pena, passando a ser a parte mais fraca, necessitada,
destarte, de proteção, proteção que tem como fim a
contenção de abusos por parte do mais forte (o Estado). A
vítima também tem direitos fundamentais no processo
penal, como o de ver um culpado condenado, e o juiz é

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 59


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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garantidor desse direito, não se nega. Todavia, ao lado


deste direito da vítima, não se pode esquecer e suprimir a
qualquer custo os direitos do investigado, dentre eles o
direito à ampla defesa, à presunção de inocência, ao
devido processo legal etc., ainda que, futuramente, prove-
se ser ele culpado.
Ao lado de atribuir expressamente ao
magistrado que atua na fase pré-processual da persecução
penal a missão de garantidor dos direitos fundamentais, a
previsão do juiz das garantias visa à manutenção da
imparcialidade do juiz que atuará na fase judicial, uma
vez que o magistrado que atuou como juiz das garantias
ficará impedido de atuar no processo, com o desiderato
de evitar a contaminação psicológica daquele que, antes
de ser ofertada a oportunidade de defesa e contraditório –
de formação de uma estrutura dialética para formação do
convencimento, portanto –, teve contato com indícios,
provas e versões sobre um suposto fato delituoso. É para
garantir a imparcialidade (princípio supremo do
processo) que o PLS 156/2009 traz a lume o instituto do
juiz das garantias.
Desta forma, ao prever a figura do juiz das
garantias visando à garantia da imparcialidade do juiz do
processo, o legislador brasileiro está atendendo a uma
demanda de 22 anos: a constitucionalização do processo
penal brasileiro, que ainda tem como norma geral o
famigerado Código de Processo Penal de 1941 – diploma
legal inserido no ordenamento jurídico pátrio no período
do Estado Novo.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 60


A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro

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e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A Atuação do Juiz no
Processo Penal Acusatório: incongruências no sistema
brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional
Positivo. 28ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006.
TOURINHO FILHO. Fernando da Costa. Processo Penal,
volume 1. 28ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003.

5.3 Dissertações e Teses


SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. A Legitimação do
Direito Penal: origem político-axiológica do sistema penal.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais (IFCS), Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

Coleção Monografias Jurídicas nº 2 62

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