Você está na página 1de 10

Por favor! Dr. Jair.

1
Jair Freitas Feitosa.2

Começamos a questionar a designação de "Doutor" quando é utilizada em


tratamento dispensado a pessoas que são apenas graduadas em decorrência de discussões
com alunos em sala de aula. Sempre com o objetivo de alertá-los para a necessidade
incessante de uma formação continuada para todos os profissionais e em todos os níveis.
Fomos questionados: se para ser "Doutor" basta ser graduado, por que fazer um curso de
doutorado? Tentamos criar argumentos procurando dissuadi-los desse sofisma verbal. Em
seguida, provocamos uma análise presumidamente aprofundada procurando saber qual a
origem, significado, e data que surgiu a titulação de Doutor. O passo seguinte foi
buscarmos, malogradamente, essas informações e tentar escrever um texto com o objetivo
único de explicar esse grandioso mal-entendido. Tentamos, através de correio eletrônico,
com várias universidades brasileiras esta informação e sempre ocorria de nunca obtermos
resposta, e quando chegavam respostas eram sempre negativas. Até a embaixada da
Inglaterra foi contatada, mas infelizmente não conseguimos êxito. Recebemos uma
mensagem que nos foi enviada por um professor da UnB, Noraí Rocco, contendo poucas
informações sobre os quesitos enumerados acima a cerca da origem dessa titulação. Mas
valeu a pena, porque através dessas informações fomos encontrando na rede mundial de
computadores mais detalhes e até que resolvemos parar de procurar e escrever este pequeno
amontoado de vindicações. Fomos informados ainda que algumas pessoas estão fazendo
pesquisas com a finalidade de registrar com mais detalhes a origem desse título.
Quereremos deixar bem claro que não pretendemos impedir ninguém de se intitular de
"Doutor", mas apenas manifestar nosso respeito por aqueles que efetivamente conseguiram
o grau de doutoramento.

É muito comum em nossa cidade encontrarmos por onde andamos placas e mais
placas com a indicação de escritórios de profissionais de várias áreas com a apresentação
do referido como sendo "Doutor". Alguns alunos nos questionaram se isto é correto. Não
sabemos até que ponto alguém pode utilizar como identificação a denominação de Doutor
sem possuir legalmente o título. Muitos defendem essa utilização argumentando que faz
parte de uma tradição e que em nosso país isto serve para impor respeito e diferenciá-los
dos demais.

A L.D.B lei N. 9.394 - DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996, estabelece as diretrizes e


bases da educação nacional e trata dos cursos de pós-graduação. No Art. 44 que trata de
pós-graduação diz o seguinte:

III - de pós-graduação, compreendendo programas de mestrado e


doutorado, cursos de especialização, aperfeiçoamento e outros, abertos a
candidatos diplomados em cursos de graduação3 e que atendam às
exigências das instituições de ensino;

Objetivamos demonstrar que o curso de doutoramento vem após a graduação, e que,


portanto, não nos permite admitir que basta apenas ser graduado para ser Doutor. Na
1
Texto escrito em novembro de 2004.
2
Licenciado em Filosofia pela UECE. Especialista em Docência do Ensino Superior pela UESPI.
Professor concursado do Estado do Piauí no Ensino Médio em Floriano – PREMEN.
3
Grifo nosso.
2

DEFINIÇÃO DOS CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO apontada no Parecer nº 977/65,


C.E.Su, aprov. em 3-12-65., e tendo como membros A. Almeida Júnior, Presidente da C. E.
Su – Newton Sucupira, relator. – Clóvis Salgado, José Barreto Filho, Maurício Rocha e
Silva, Durmeval Trigueiro, Alceu Amoroso Lima, Anísio Teixeira, Valnir Chagas e Rubens
Maciel, conhecido como "Parecer Sucupira", diz o seguinte:

O Sr. Ministro da Educação e Cultura, considerando a necessidade de


implantar e desenvolver o regime de cursos-pós-graduação em nosso
ensino superior e tendo em vista a imprecisão, que reina entre nós, sobre
a natureza desses cursos, solicita ao Conselho pronunciamento sobre a
matéria que defina e, se for o caso, regulamente os cursos de pós-
graduação a que se refere a letra b do art. 69 da Lei de Diretrizes e
Bases.

Evidenciaremos que a regulamentação do curso de doutorado se constitui como


preocupação desde a década de 1960 em nosso país sem, no entanto, desprezar as
informações sobre a sua origem em amplos termos históricos. Com o objetivo de elucidar
onde tudo começou citamos o que diz o parecer em relação aos níveis:

Mestrado e doutorado representam dois níveis de estudos que, se


hierarquizam. Distinguem-se o doutorado de pesquisas, o Ph. D. que é o
mais importante dos graus acadêmicos conferidos pela universidade
norte-americana, e os doutorados profissionais, como por exemplo,
Doutor em Ciências Médicas, Doutor em Engenharia, Doutor em
Educação, etc. O Mestrado tanto pode ser de pesquisa como profissional.

E continua o "Parecer Sucupira":

O título de Mestre, peculiar às universidades americanas e britânicas tem


sua origem, como grau acadêmico na Universidade Medieval. Com efeito,
na Idade Média chamavam-se Mestres todos os licenciados que faziam
parte da corporação dos professores em todas as Faculdades, com
exceção da Faculdade de Direito (Decreto ou Civil) onde os professores
se intitulavam doutores. O licenciado adquiria o título de Mestre no ato
solene da inceptio, pelo qual era recebido na corporação dos mestres
com todos os direitos e privilégios. Na verdade, segundo nos diz Rashdall
em seu livro The Universities of Europe in the Middle Ages, vol. I, na
universidade medieval os três títulos, mestre, doutor e professor eram
absolutamente sinônimos. Para o fim da idade Média os professores das
Faculdades, ditas superiores, tenderam a assumir o título de Doutor em
substituição ao de Mestre, ficando este para a Faculdade das Artes.

O parecer é bastante revelador quando afirma que a partir do Renascimento essas


titulações, Mestrado e Doutorado, adquirem importância cada vez mais específica:

Após o Renascimento, com as transformações sofridas pela


universidade, o grau de Mestre tende a desaparecer nas instituições
européias, sendo conservado até hoje, no mundo anglo-saxônico . Em
Oxford e Cambridge o grau de Mestre das Artes é concedido sem
qualquer exame a todo aquele que haja obtido o grau de Bacharel numa
destas Universidades e tenha seu nome nos livros de uma sociedade
(isto é, tenha pago as taxas correspondentes da Universidade ou de um
Colégio) por um prazo de vinte e um período de estudos. Nas
Universidades escocesas o M. A. é o grau concedido ao término do curso
de graduação. Nos Estados Unidos, por força da influência inglesa
permaneceu o grau de Mestre, sendo, por muito tempo, conferido sem
3

maiores exigências no fim da graduação, como era o caso do chamado


Masters Degree in cursu. Pelos fins do século passado, com a instituição
do doutorado segundo o modelo germânico, foi reformulado o M. A. para
obtenção do qual se exigem, cursos e exames, tornando-se ele um grau
inferior ao Ph. D.

Tratando já da natureza e processos da pós-graduação citamos as características


fundamentais apresentadas no decreto para a formulação de uma legislação específica. Os
autores apresentam no sexto item, o seguinte:

Os cursos de mestrado e doutorado devem ter a duração mínima de um e


dois anos respectivamente. Além do preparo da dissertação ou tese, o
candidato deverá estudar certo número de matérias relativas à sua área
de concentração e ao domínio conexo, submeter-se a exames parciais e
gerais, e provas que verifiquem a capacidade de leitura em línguas
estrangeiras. Pelo menos uma para o mestrado e duas para o doutorado.

No item doze surgem os requisitos básicos para alguém ingressar num curso de
doutorado. O parecer possui as preocupações e os valores representados pelos autores e sua
época:

Para matrícula nos cursos de pós-graduação, além do diploma do curso


de graduação exigido por lei, as instituições poderão estabelecer
requisitos que assegurem rigorosa seleção intelectual dos candidatos. Se
os cursos de graduação devem ser abertos ao maior número, por sua
natureza, a pós-graduação há de ser restrita aos mais aptos.

O nosso interesse nos leva a uma abordagem filosófica que nos possibilitará
identificar o aspecto subjacente no tratamento das pessoas sob a insígnia do "Mito do
Doutor". Nos parece ser uma forma de distinção muito mais fundamentada em nossa
tendência para assumir uma postura de submissão do que um simples tratamento. Quantas
vezes nos deparamos com cenas em que pessoas que possuem uma posição socioeconômica
mais destacada são tratadas com a distinção do título sem nem mesmo possuir alguma
graduação superior. As pessoas que possuem a titulação de Doutor não se comportam, no
geral, de maneira a demonstrar ou impor a sua titulação como imprescindível nas suas
relações.

Prosseguindo neste caminho podemos questionar qual as raízes dessa arrogância e


dessa submissão tanto de quem exige o tratamento quanto de quem se submete a ele. Será
pura ignorância? Será desatenção? Será costume, puro e simples? Ou existem explicações
mais profundas do que as aparentes frivolidades? Não pretendemos transformar um
costume numa discussão ardente e apaixonada. Defendemos apenas que aquilo que é
comum, que é banal, que é utilizado por todo mundo, aquilo que todo mundo diz e pensa é
objeto de reflexão filosófica com a finalidade de elucidar a sua essência. A Filosofia é na
sua origem esse questionamento do banal, pois ao se acostumar com as coisas e os seres, os
indivíduos tendem a perder a capacidade de indignação diante do que é errado. A Filosofia
é esse dizer não ao comum, ao banal. Estamos dizendo não ao comum, ao banal, ao
corriqueiro tratamento de "Doutor" a quem não possua esse título.
4

O professor Lenilson Ferreira4 em texto sobre esta questão descreveu de forma


esclarecedora a atitude de submissão que muitas vezes nos deixam em situação vexatória,
diz ele:
Um membro do Itamaraty apresentou Zoellick aos presentes como Dr
Zoellick e, na primeira intervenção de um jornalista local que se utilizou
daquele tratamento, o representante do governo de Washington corrigiu-
o. “Ainda não tenho o título de doutor,” disse Zoelick.

Daí em diante o professor faz uma análise em busca da identificação das causas e
conseqüências desse tipo de atitude, continua ele:

A tradição de chamarmos alguns entre nós de Doutor, à exceção natural5


dos médicos, remonta ao Brasil Colônia. O Mito do Doutor estruturou-se
no país após o Mito do Padre. O Mito do Doutor nasce da necessidade de
as famílias ricas terem em seu meio um advogado, além de um padre e
um político. A educação era, naturalmente, o instrumento de acesso
àqueles postos e só os ricos a ela tinham acesso na qualidade
necessária. Ao padre não cabia ou não era necessário o título de Doutor
porque lhe bastariam as credenciais divinas que o diferenciavam entre os
demais membros da sociedade. O advogado é o conhecedor das leis e,
portanto, detentor de certo poder de liberdade ou prisão. Ele
assenhorava-se deste conhecimento através da educação diferenciada
da exígua educação dada ao povo, principalmente após o Marquês de
Pombal ter expulsado os Jesuítas educadores. Àquela educação
diferenciada só os ricos tinham acesso e, logo, a diacronia de nossa
história transformou o termo em sinônimo de posição superior na escala
social. O excluído social acostumou-se a usar o tratamento como
reconhecimento da superioridade social, circunstancial ou permanente,
daquele frente a quem está. Isto é patente na famosa expressão “Doutor
Delegado.”

Devemos apontar outras fontes sobre a origem desse título ou desse tratamento.
Ainda que caiba nesta discussão a tentativa de assegurar para si essa deferência, expomos o
argumento utilizado por poucos que já tentaram refletir e encontrar uma justificativa que
pelo menos pareça plausível. Essas poucas pessoas dizem que estamos nos referindo apenas
a um tratamento, a uma forma respeitosa de tratar aqueles que cientificamente
desenvolveram, até certo grau, um conhecimento para atuar profissionalmente e que se
entendem como merecedoras dessa distinção. Mesmo assim não se obtém a separação entre
tratamento e a exigência de ser tratado segundo o título que por ventura venha a possuir.
Bom, se a defesa desse argumento se baseia na tentativa de romantizar ou deslocar do
campo da erudição a importância do tipo de tratamento, não convence, pois esse tratamento
possui uma significação que deve ser utilizada devidamente. Ainda que estejamos falando
de origem acadêmica e não puramente histórica, pois ao contrário seremos enredados numa
discussão puramente despropositada sendo que o significado da palavra e do que ela
representa nos remete ao âmbito em que ela se circunscreve. Então, continuamos a defender
o conhecimento da palavra e o seu significado para que as pessoas possam ter a
possibilidade de usá-la de acordo com as suas necessidades e objetividades, e não por
imposição de um conjunto de cidadãos sobre os outros.

4
Lenilson Ferreira, Professor da Escola Superior Cândido Mendes, Mestrando em Ciências
Pedagógicas do Instituto Superior de Estudos Pedagógicos (ISEP).
5
Grifo nosso. Chamo a atenção para essa atitude do professor em assumir que só os médicos,
pela especificidade do seu curso e pela maior deferência ao seu status social, merecem o
tratamento. A naturalização de um tratamento nos impede de discuti-lo e negá-lo, pois promove a
inalteração impossibilitando a modificação essencial.
5

Agora voltemos aos aspectos que discutem a origem do título, continua o professor:

Na história mundial, o título de Doutor é freqüentemente concedido a


figuras exponenciais. Roger Bacon, monge inglês do século XII, foi
cognominado de Doutor Admirável devido a seus conhecimentos de
ciência e filosofia. Santo Tomás de Aquino foi o Doutor Angélico. A Igreja
de Roma confere o título canônico de Doutores da Igreja aos santos e, na
religião judaica, o rabino é o Doutor da Lei.

Nas origens sociais dessa distinção encontramos explicações que nos colocam
diante de nosso comportamento baseado num senso resultante da colonização. Veja a
seqüência do raciocínio do professor Lenilson:

O Mito do Doutor é um potente elemento da mitologia sobre a qual se


funda o Povo Brasileiro, bem o percebeu Marilena Chauí. O que a autora
chama de “cultura senhorial” desenvolveu em nossa sociedade, segundo
ela, um “fascínio pelos signos de prestígio e de poder, como se
depreende do uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a
possível pertinência de sua atribuição,” evidenciado pelo nosso grifo.
(Brasil – Mito Fundador e Sociedade Autoritária, 2000).
... O tratamento, na forma em que é usado, reduz a educação ao poder
econômico. A vesga leitura capitalista do mundo mais uma vez limita algo
maior segundo sua estrita ótica econômica. Os que não conhecem, que
não sabem ou não têm delimitam os limites de seu território social do
mundo dos doutores com o uso da expressão. É um autêntico termo de
vassalagem, de marca incontestável de submissão, de inferioridade
social. Quem o usa se auto-exclui daquele mundo do qual a quem ele se
dirige torna-se um símbolo.

Quando atingirmos um grau de desenvolvimento intelectual que nos fundamente


para agirmos com autonomia e perspicácia, nos libertaremos de certos vestígios da
mentalidade de submissão e autoritarismo. Apoiando-nos no raciocínio do professor
resumiremos as suas observações citando a sua conclusão:

A medida em que nossa sociedade alcançar maiores padrões


educacionais, o Mito do Doutor poderá ser enfraquecido quando
atingirmos uma conscientização que modificará nosso modo de atuar,
como ensinou Paulo Freire. A pessoa consciente verá o significado real
das coisas e buscará transformá-las.
... Marilena Chauí define o título de Doutor como um “substituto
imaginário a antigos títulos de nobreza.” Talvez esta definição,
ironicamente, torne apropriado o seu uso quando o membro do Itamaraty
dirigiu-se ao representante de Washington e, inconscientemente,
demarcou posições de comando e de obediência. Tal como nos tão
antigos tempos em que não passávamos de uma colônia e vivíamos a
olhar para a metrópole.

Em busca de argumentos que esclareçam a origem desse tratamento encontramos


um texto que é bastante revelador das muitas posturas que existem em torno dessa questão.
Um advogado, Júlio Cardella, escreveu um artigo6 em que procura ir às raízes daquilo que o
incomoda, no caso a utilização do mesmo tratamento pelos médicos. Vejamos o que ele diz:

6
Advogado - Doutor por Direito e Tradição. Por: Dr. JÚLIO CARDELLA, (Tribuna do Advogado de
Outubro de 1986, pág. 5)
6

Comecemos pela tradição, que é também fonte de Direito, para


demonstrar que a verdade está a nosso lado sem querer ferir
suscetibilidades dos outros colegas liberais, mas com o intuito de
reivindicar aquilo que nos pertence e que nos vem sendo usurpado por
"usucapião, através de posse violenta", no dizer de um saudoso
companheiro.
... Embora fôssemos encontrar o registro da palavra DOUTOR em um
cânon do ano 390 citado por MARCEL ANCYRAN, editado no Concílio de
Sarragosse, pelo qual se proibia declinar essa qualidade sem permissão
(Code de L'Humanité, ed, 1778 - Verdon - Biblioteca OAB-Campinas), o
certo é que somente se outorgou pela primeira vez esse título aos
filósofos - DOCTORES SAPIENTIAE - e aqueles que promoviam
conferências públicas sobre temas filosóficos, assim também eram
chamados DOUTORES, os advogados e juristas aos quais se atribuía o
JUS RESPONDENDI.
... Percebe-se daí, que, pelas suas origens, o título de Doutor é honraria
legítima e originária dos Advogados ou Juristas, e não de qualquer outra
profissão.

Como foi demonstrada, a intenção do autor é reservar aos advogados a


exclusividade da distinção. Mas ele mesmo diz, a partir de suas fontes, aos que primeiros
foram outorgados esse tratamento foram os filósofos. Se isto procede justificamos assim o
título deste texto que ora escrevemos. Somos da área da Filosofia e entendemos que a
identificação FILÓSOFO deve ser reservada àqueles que foram e aos que são capazes de
elaborar um sistema de compreensão e explicação do mundo, da realidade de maneira
original. Portanto, como sou um simples licenciado em Filosofia me resigno assim a esse
tratamento: Professor de Filosofia. No entanto, reclamo o uso da distinção, segundo o autor
do texto citado, só para provocar. Mas não deixamos de apontar nas extemporâneas
observações de Júlio Cardella um ressentimento pelo fato dos médicos acharem-se no
direito de reivindicarem para si também o tratamento de "Doutor". Na tentativa de
fundamentar a sua assertiva, pois ele defende que um advogado deve ser tratado por
"Doutor" em conseqüência do fato de que toda vez que defende um cliente num tribunal
apresenta uma tese baseada nos conhecimentos profundos dos códigos do Direito. Ao citar
outros trabalhos com objetivos semelhantes convence-se da legitimidade do tratamento ao
defender a existência de um alvará régio outorgado por um regime onde não se permite aos
elaboradores das leis autonomia de fazê-las com a liberdade da democracia. Como sustentar
esse argumento? Diz ele assim:

Houve, portanto, como afirmamos, um caso de "usucapião por posse


violenta" por parte dos médicos que passaram a ostentar a honraria, que
no Brasil, é uma espécie de "collier a toutes les bêtes", pois qualquer um
que se vê possuidor de um diploma universitário, se autodoutora...
O decano dos advogados de Campinas - Dr. João Ribeiro Nogueira -
estimado amigo, pesquisador incansável, lembra muito bem em artigo
publicado no "Correio Popular" de 3 de agosto de 1971, um alvará régio
editado por D. Maria I, a Pia, de Portugal, pelo qual os bacharéis em
Direito, passaram a ter o direito ao tratamento de DOUTORES!...
Ora, todos sabem que uma lei só perde sua vigência quando revogada
por outra lei. Assim, está plenamente em vigor no Brasil esse alvará que
outorgou o título de DOUTOR aos advogados! Não consta nesse alvará
legal, que tenha sido estendido a nenhuma outra profissão! E tanto isto é
verdade, que à época, um rábula, de notável saber jurídico e grande
honrabilidade, obteve também a honraria, por exercer a profissão, mas foi
necessário um alvará régio especial, sendo doutorado por decreto
legislativo, pois não era advogado diplomado em Faculdade de Direito.
Foi o caso do rábula Antonio Pereira Rebouças...
7

A lei está em vigor, assim como tantas outras da época do Império, que
não foram revogadas, como o nosso Código Comercial de 1850.

Para finalizar as colocações de Júlio Cardella apresento sua nota no final do artigo:
Muitos colegas não têm o hábito de antepor ao próprio nome, em seus
cartões e impressos, o título de DOUTOR, quando em verdade, devem
faze-lo, porque a História nos ensina que somos os donos de tal título,
por DIREITO E TRADIÇÃO, e está chegada a hora de reivindicarmos o
que é nosso; este título constitui adorno por excelência da classe
advocatícia.
NOTA DO AUTOR: Nada, absolutamente nada, tenho contra a laboriosa
classe médica. Apenas procurei evidenciar o que a lei e a tradição
revelam, sem quebra de ética em nossa conduta. Serve, entretanto, este
articulado, de endereço certo aos que, por ignorância ou má-fé, teimam
em não se curvar à evidência dos fatos..."

Entendemos que existam, portanto vários argumentos em defesa da utilização da


distinção, mas vamos resumi-los em duas tendências: a primeira trata da defesa da
utilização apenas como uma forma de tratamento. Querem apenas ser diferenciados dos
outros profissionais que não possuem uma graduação e se orgulham imensamente de
possuir um curso superior em decorrência da tradição e dos arranjos históricos em torno da
primazia da tal titulação. A Segunda tendência defende que quem fez um curso superior
adquiriu por direito a outorga do título por ter assimilado os conhecimentos científicos
necessários e suficientes para o exercício da profissão. Neste caso, ser tratado como
"Doutor" se torna uma exigência aos que a esses profissionais se dirigem. Podemos
discordar dessas duas vertentes e apresentar uma terceira que procura resumir o que se
esconde por traz dessas justificativas. Como o título de Doutor possui uma credibilidade e
um respeito muito grande dentro da comunidade acadêmica e na sociedade como uma
totalidade, como quem faz ou fez um curso de doutorado teve de realizar pesquisas e
apresentar um nível de conhecimento em sua área superior aos demais colegas de profissão
que não possuem o título, como isto demonstra a excelência do profissional por haver se
destacado em defender uma tese acadêmica com grau de originalidade, por demonstrar,
enfim, a posse tanto em quantidade como em qualidade de conhecimentos científicos o
profissional adquire respeito e credibilidade na sociedade. Ora, nada mais elementar do que
atrair para si um pouco dessa credibilidade e respeito mesmo sem ter feito aquilo que é
imprescindível para a titulação efetiva. Então, exige-se o tratamento para poder ser aceito
como um profissional que possui a importância de um Doutor. As pessoas, por atribuírem
essa credibilidade aos profissionais qualificados originalmente de Doutor, se sentiriam mais
seguras se forem atendidas por eles. O engodo vem do fato de se dizer “Doutor” e não sê-
lo.

Para fortalecer o argumento que pretendemos empregar em defesa da não utilização


do título de Doutor por quem efetivamente não o possui, apresentamos um resumo de dois
documentos que são pura abstração, mas que são documentos publicados por entidades
reconhecidamente legalizadas e representativas de suas categorias profissionais. Diz a
resolução:

RESOLUÇÃO COFEN Nº 256/2001 Autoriza o uso do Título de Doutor


pelos Enfermeiros. O Conselho Federal de Enfermagem - COFEN, no
uso de suas competências e atribuições legais;
CONSIDERANDO que o uso do título de Doutor, tem por fundamento
procedimento isonômico, sendo em realidade, a confirmação da
autoridade científica profissional perante o paciente/cliente
8

CONSIDERANDO que o uso do título de Doutor, tem por fundamento


praxe jurídica do direito consuetudinário, sendo o seu uso tradicional
entre os profissionais de nível superior;
CONSIDERANDO, que a exegese jurídica, fundamentadas nos costumes
e tradições brasileiras, tão bem definidas nos dicionários pátrios,
assegura a todos os diplomados em curso de nível superior, o legítimo
uso do título de Doutor;
CONSIDERANDO que a não utilização do título de Doutor, leva a
sociedade e mais especificamente a clientela, a que se destina o
atendimento da prática da Enfermagem pelo profissional da área, a
pressupor subalternidade, inadmissível e inconcebível, em se tratando do
profissional de curso superior;
CONSIDERANDO que deve ser mantida a isonomia entre os
profissionais da equipe de saúde, e que o título de Doutor é um
complemento, ou seja, um "plus" 7, quanto a afirmação de um legítimo
direito conquistado à nível de aprofundamento de uma prática terapêutica
com fundamentação científica;
CONSIDERANDO deliberação do plenário, em sua reunião ordinária nº
296;
RESOLVE:
Art. 1º - Autorizar aos Enfermeiros, contemplados pelo art. 6º, incisos I, II,
II, IV, da Lei 7.498/86, o uso do título de Doutor.
Art. 2º - Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação,
revogando-se disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 12 de Julho de 2001.
GILBERTO LINHARES TEIXEIRA, COREN Nº 2.380 -
PRESIDENTE
JOÃO AURELIANO DE AMORIM SENA, COREN-RN Nº 9.176 -
PRIMEIRO SECRETÁRIO

Continuando com as excentricidades propomos a análise dessa outra resolução de


outro órgão federal de representação profissional orientando os seus membros que utilizem
por determinação o título de "Doutor". Esta decisão do CREFITO não está na íntegra
porque é literalmente igual a do COFEN. Veja, então:

TÍTULO DE DOUTOR - DECISÃO 03/92

O Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da


2ª Região - CREFITO-2, na conformidade com a competência
prevista no inciso II, do art. 44, da Resolução COFFITO-6,tendo
em vista deliberação da Diretoria em sua 477ª Reunião
Ordinária, realizada em 10.02.1992, consoante com a luta até
então desenvolvida pelo Egrégio Conselho Federal, e
considerando a não existência no direito positivo brasileiro,
consubstanciado na Lei nº 465, de 10.02.1965, de preceitos
legais disciplinando a concessão do título de Doutor.

Baseando - se em que o uso do título tem por fundamento


procedimento isonômico, sendo, em realidade, a confirmação da
autoridade científica profissional perante o paciente;........

DECIDE

Recomendar que os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais,


na sua atuação profissional usem o título de Doutor , por se
tratar de um direito legítimo e incontestável destas categorias.

7
Destaque nosso.
9

Se eu fosse um autólatra e começasse a exigir que todos me tratassem de "Doutor",


que reação teriam as pessoas que me conhecem e sabem que o máximo que fiz em pós-
graduação foi uma especialização na área de educação? Se eu resolvesse ignorar a reação
das pessoas a esse comportamento adotado por mim? Se eu tivesse consciência que aquilo
que eu pretendo fosse uma forma equivocada de tratamento? Se eu explicasse às pessoas
que isto faria muito bem ao meu ego mesmo que soubesse que o título não era verdadeiro?
Se eu resolvesse assumir esta identidade para satisfazer as exigências de outras pessoas? E
se eu fosse analisado por um psicólogo ou psiquiatra? Conheci um senhor que exigiu até
mesmo em seu talão de cheques o uso da denominação de Dr. antes de seu nome. Ele,
primeiro, não é um ser humano com suas características, não é um ser humano com
imagens integradas que formam a sua identidade, não é um ser com sentimentos,
qualidades e defeitos, ele é antes de qualquer coisa um "Doutor". Pobre coitado, não
percebe que foi descaracterizado por um conjunto de valores que não o percebe primeiro
como homem, mas apenas como um objeto coisificado que ele se tornou. É uma exigência
desta sociedade que nós deixemos de ser humanos e nos tornemos coisas, símbolos. Assim
desumanizados perdemos a consciência de nossa existência como seres coletivos e
passamos a existir como seres individualizados. Essa individualização ocorre quando
perdemos as referências que nos identificam como coletivos. Todos os valores são
dizimados e a nossa cultura coletivizadora perde a essência, assumindo assim as
características de uma cultura desestruturadora do Ser Humano. O ser humano que antes de
se ver como tal se ver como uma coisa, está alienado. Se está alienado não percebe a sua
existência numa teia de relações heteronomizadoras. Ele não é ele, é uma coisa, é um título,
é um "Doutor".

Fomos questionados: se alguém que agisse afirmando ser o que não é, estaria
incorrendo num crime de falsidade ideológica? A resposta a essa pergunta evidente se
revela envolta em elementos bastante contraditórios. O que sabemos é que alguns
conselhos federais estão criando resoluções de amplitude nacional informando a todos os
associados que utilizem a denominação de "Doutor" antes de seu nome como forma de
identificação (veja as resoluções acima). Justificam tal atitude em decorrência de não haver
uma legislação específica que regulamente a utilização do título. E baseado no que diz o
texto do CREFITO-2: "e considerando a não existência no direito positivo brasileiro,
consubstanciado na Lei nº 465, de 10.02.1965, de preceitos legais disciplinando a
concessão do título de Doutor.", contrapondo com o Parecer nº 977/65, C.E.Su, aprovado
em 3-12-65, que tem por objetivo regulamentar os cursos de pós-graduação de Mestrado e
Doutorado, e a L.D.B lei N. 9.394 - DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996, art. 44, que
regulamenta a pós-graduação, podemos questionar: se os cursos de pós-graduação estão
regulamentados em lei, dentre eles o Doutorado, como podemos aceitar que não exista uma
definição na utilização tanto do título como da sua simbolização?
Mas se os conselhos autorizaram os seus afiliados a utilizarem a designação, então
eles estão livres para agirem assim, dentro da lei, como afirmam os conselhos federais das
profissões. Ninguém, portanto, segundo esses conselhos, estaria agindo fora da lei ou
contra a lei.
Enfim, pretendemos esclarecer que este título na sua origem possuía uma
designação que ocorria através do reconhecimento à competência demonstrada por um
pensador que foi capaz de acrescentar originalmente informações à sua área de atuação.
Depois, começou a ser outorgado a alguém que possuía um determinado curso superior, por
10

exemplo; advogados e posteriormente a médicos. Quando as universidades regulamentaram


através de uma legislação específica a concessão do título de Doutor, a sua utilização fora
das especificidades para adquiri-lo se tornou deselegante. Atualmente a vulgarização do
título chegou a tal ponto que todos querem ser tratados como tal. A vulgarização possui um
sentido contraditório ao que normalmente se defende. Quando a palavra é utilizada para
aquilo que ela não representa termina causando nas pessoas, em geral, um descrédito de
algo que merece o maior respeito. Então, aquele que reclama o tratamento sem ter
conseguido os requisitos fundamentais está contribuindo para o descrédito do título, e não
para a finalidade que a pessoa deseja, seja ela qual for. A vulgarização provoca um
descrédito não somente à palavra, mas ao que ela simboliza. O que a palavra Doutor
simboliza é algo muito sério e representativo para a nossa sociedade que necessita sempre
dos avanços provocados pelos resultados dos estudos que são feitos. Vivemos permeados
pela ideologia da História e do Progresso, a nossa sociedade é organizada em torno dessa
ideologia, e nesse sentido necessitamos da contribuição que as teses de doutorado
apresentam para podermos melhorar cada vez mais as nossas vidas, as nossas relações
sociais e nos elevarmos como seres humanos. Por isso, não entendemos que para ser
chamado de Doutor, alguém defenda o argumento da tradição ou do respeito.

Podemos, então, sugerir a criação de uma significação semelhante para quem não é
Doutor e que deseja utilizar-se dessa designação como forma de tratamento: Doutor por
tradição, Doutor por Resolução ou coisa parecida.

Você também pode gostar