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PREFÁCIO INFERNOS ÍNTIMOS

Eis que o fenecimento nos encontra no exato momento em que nos encontramos
conosco e/ou com a nossa consciência. A incompreensão dos dias e a certeza da morte
nos revelam o nada que habita dentro de nossas cabeças: um cérebro ou uma alma?
Continuaremos mal compreendidos até quando? Até revelarmos o que de mais íntimo
existe em nós, mesmo estando conscientes de que toda a timidez e nudez sejam por si
reveladas no cerne de tudo que externa a essência humana?
Victor Hugo elogiava Charles Baudelaire, talvez por sua astúcia, rompimento
com a linearidade da poética elaborada no século XIX, ou simplesmente por seu descaso
com tudo aquilo que era considerado honrado e permitido pela sociedade em seu tempo.
Baudelaire não fora apenas o herdeiro da crítica à retórica sentimentalista instituída por
Edgar Allan Poe. O negro e obtuso nonsense de Baudelaire são lúcidos e clareia as
mentes imberbes do século XXI e, ainda, sugere que nos esqueçamos da dualidade que
nos enfraquece diariamente por nossos compromissos supérfluos, fortalecidos pela
retórica atemporal do mito.
Larissa Marques é poetisa contemporânea deste século e tem como principal
influência em sua produção o poeta francês Charles Baudelaire, companheiro, a partir
de seus escritos, possibilitando-lhe leitura e longos diálogos consigo mesma. O „eu‟ em
Marques toma o caminho à tendência intimista do que poderíamos chamar de poesia
pós-moderna. Esta que se vende com o intuito gratuito da representação do fato ou,
simplesmente, a descrição personificada de imagens cotidianas.
Larissa Marques irrompe a seqüência lógica do retrato, coloca-se nele. Refere-se
ao fato desastroso da conseqüência humana, arrolamentos desastrosos dos ideais, a
partir do „eu‟ e do „outro‟ como a consciência doutrinada a marcar os limites e suas
possibilidades dentro do comum, de sua áspera realidade ao intimismo alheio que evoca
sua inquietação. Na abertura de sua segunda coletânea poética intitulada “Infernos
Íntimos”, Marques confessa:

“[...] Somos pó desse universo/ Confuso, obtuso (...) Em Baudelaire/


Em meus sonhos secretos (...) Descobri-me, enfim,/ Verme desse
universo absurdo [...]”.
Todavia, não seria possível contextualizar “Infernos Íntimos” sem o vislumbre
de Arthur Rimbaud em seu breve livro de prosa poética “Uma Temporada no Inferno”,
tanto pela referência ao título, quanto pela magnitude de sua poesia entrelaçando-se aos
referenciais de Larissa Marques.
Rimbaud em seu inferno mais que íntimo, revive todo o delírio de sua poesia e
as relações mantidas com as personalidades que marcaram sua vida e nos fala: “[...]
Consegui apagar do meu espírito toda a esperança humana. Para estrangular toda
alegria, dei o bote surdo da fera. Chamei os carrascos para, morrendo, morder a
coronha de seus fuzis. Chamei os flagelos para sufocar-me com a areia, o sangue. A
desgraça foi meu Deus. Deitei na lama. Sequei no ar do crime. E preguei boas peças à
loucura [...]”. Embora não cite Rimbaud, involuntariamente Marques o revive, não
porque exista o pessimismo em sua obra, mas sim por todo o esplendor de um
referencial profético à juventude póstuma do poeta.
Sem dúvida Larissa Marques não segue as tendências do regionalismo ou do
neo-romantismo seguido por inúmeros „novos poetas‟ em busca do ressurgimento
poético do novo século no Brasil. Mas, ela imprime força às suas palavras, que provam
maturidade e dissensão.
Ao debruçarmo-nos sobre “Infernos Íntimos” de Larissa Marques, temos a
sensação inicial de estarmos frente ao fim, o término de tudo que nunca tenha existido
separado à nossa existência, o pessimismo, talvez evocado de forma ficcional, ou
mesmo consentido, que reclama a ausência dos questionamentos internos, por ora
evitados, ora acatados como anormalidades patológicas a serem tratadas.
Os poemas de Marques não têm o propósito de cura, mas de reflexão. E sua
objetivação direta se mostra despida de subterfúgios e adornos estéticos. Larissa propõe
o diálogo, como um amigo dizendo a outro que o seu fim o aguarda, no desejo de que
ele tome como partida a saída deste mal, nunca lhe mostrando o caminho a seguir, mas
apontando-lhe o perecimento, revelando seus conflitos, seu inferno astral, sua
vulnerabilidade perante seus atos e decisões.
Há uma tendência estilística no contexto de sua obra, quando trata com
pessimismo vigoroso e seriedade assuntos ainda delicados na sociedade contemporânea,
tais como a libido feminina, relações efêmeras, sexo casual, entorpecentes e falta de
resignação, despindo a mulher ao perfilar seus desejos e repúdios à práxis moralista
determinada pelo patriarcalismo. Marques explora seu universo feminino dando voz à
mulher em seus momentos de maior introspecção:
“Aguçou minhas sensibilidades/(...) / foi-se sem aviso/ dilacerar
novos seres.../ e no negro da noite/ esperei por ti/ reinventei-te/ em
tragos descomunais/ porções de haxixe/ campos de papoulas.../ e no
negro da noite/ entreguei-me a outros braços/ a outros vícios/ quis-me
paraíso narciso/ com cipós brotando nas narinas/ seus olhos
habitando minha vagina.../ e no negro de meu ser/ seu sexo ereto em
minha boca/ o martírio de vitórias-régias/ em meus olhos/ acordo
sozinha/ vazia de nós.”

No entanto, não há como falarmos de pessimismo sem remetermo-nos à obra do


filósofo, ensaísta, dramaturgo, poeta e historiador iluminista francês François-Marie
Arouet, conhecido por nós como Voltaire, que em um de seus mais importantes contos
“Cândido ou o Otimismo”, explana, a partir de personagens, sobre o otimismo e o
pessimismo humanos. É nesta obra que Voltaire discorre entre a narrativa dos
acontecimentos sobre a existência divina e sua proposta à humanidade, levando-nos, a
nós leitores, a contradições e inflexões sobre o devir humano.
Seu personagem Cândido é um jovem criado por Pangloss, responsável por
passar uma visão otimista do mundo ao menino, que logo descobre, ao serem expulsos
do castelo onde viviam, que tudo não passara de uma concepção de seu preceptor, pois
ao seu redor Lisboa era destruída e sua vida fora fadada ao fracasso. Cândido descobre,
então, que o mal caminha por todos os lugares e sua solução restringe ao cultivo de um
jardim, seja esta a representação de uma ilusão ou tentativa de lhe escapar da triste
realidade concomitante.
É a partir deste conto que Voltaire nos diz que o ceticismo não se aplica quando
da resignação do ser, mas sim do reconhecimento de sua ignorância perante o meio em
que vive. Muitos considerarão os poemas de Larissa a marca de um possível ceticismo,
embora antes mesmo de buscarem a resposta de suas suposições, encontrarão vestígios
de uma razão recorrente do mito que lhe assoprou a vida.
A professora Maria das Graças do Nascimento, em seu livro “Voltaire: a Razão
Militante”, de 1993, nos traz a idéia de que a reflexão de Voltaire sobre o mal no mundo
e a fragilidade humana dá origem a uma ética situada no universo estritamente humano.
Sendo assim, temos homens, mulheres e crianças de crenças, classes e etnias diversas,
se debatendo continuamente em questões sem respostas ou, simplesmente ainda, não
encontradas. Deste modo, temos a representação do jardim cultivado por Cândido,
exemplificando a concepção popular de que o mundo não seja tão ruim quanto pareça.
Lemos em Marques, portanto, sua trivialidade do pessimismo:
“Sonha, que teu desejo é vão,/ Ama, que teu sonho é vão,/ Viva, que teu
amor é vão,/ Grita, que tua vida é vã,/ Cala, que teu grito é vão,/ Morra,
que teu silêncio/ É o que te cabe/ Neste mundo sem perdão,/ Perdoa,
que tua morte é vã,/ E vá, que tua ida/ É apenas despedida/ Do que tanto
te aborrece. Considerando todo o pessimismo apresentado, percebe-se o
reconhecimento de sua ignorância, quando vimos a autora cultivando o
seu jardim, bem como Voltaire nos instiga”.

Marques não perde o desejo e a vontade de esfregar no mundo as obras de sua


dor e ânsia. Formaliza uma poesia casta e crua. Ao longo de todos os poemas
promovidos por um único título “Infernos Íntimos”. Em alguns, temos o aparecimento
de Arthur Schopenhauer, filósofo pessimista por sua visão de mundo como Voltaire,
porém, pautado pelo pensamento de que a vontade seja a força fundamental da natureza
humana, que manifesta em cada ser o sentido de sua razão no mundo, reflexão presente
em seu mais famoso estudo “O mundo como vontade e representação”. A
exemplificação do pensamento de Schopenhauer aparece na reflexão “Paraísos
orgásmicos”, em que Marques revela criarmos mundos dentro de uma vontade
inabalável, da qual escolhemos o submundo para talvez escrevermos versos e
vivenciarmos poesia.
Talvez seja cedo para identificarmos o valor e a singularidade dos poemas de
Larissa Marques, embora saibamos de sua genuína razão de ser. E o contentamento que
sentimos ao descobrir que nossos infernos tão segregados assemelham-se com os de
outros inúmeros seres pertencentes ao nosso mundo. Dos poemas, como postularia
Mário Quintana, descobrimos valores significativos de forma sub-reptícia, em versos
despretensiosos, senão em metáforas sem nenhuma lógica, talvez gratuitas. Ao não
atentarmos e/ou não considerarmos esses pontos em detrimento aos nomes e estilos
vendidos, perdemos o pouco garantido à poesia no Brasil.
Contudo, Floriano Martins em seu artigo “A poesia contemporânea no Brasil”,
nos diz que “apesar de tudo, essa é a poesia que se mostra, ainda que não seja a que
verdadeiramente temos – considerando a realidade da produção e consumo da literatura
brasileira, [grifo meu] –, (...) o país vive em perene descompasso entre a vertigem do
dia e um prazer ilusório”. Então, o que diria Larissa Marques a nós que descobrimos o
seu alvorecer poético, prestes a relatar sem nenhuma cautela o que nos aflige na alma e
na pele, nos sentidos e no sentir?

Será o fim, meu caro?/ tocamos o opúsculo da chegada?/ é aqui, o


fim do caminho?/ queria ter o poder de saber/ quem poderia supor-
nos, tão breves/ como as palavras que já esqueci/ não há cola/ que
emende as vaidades/ outrora quebradas/ não há tempo/ que cure
doenças/ terminais e graves/ e para que ter esperança/ se ela se
desintegra/ nos mares do esquecimento/ colocamos a mordaça/ que
faz “calos”/ nos olhos/ não queria a ignorância/ dos silêncios
inquebráveis/ e sim as palavras que dilaceram/ para que desdenhar
quem te gosta/ haverá sofrimento o bastante/ para que te pague o
quinhão que me cabe?

Efetuando ou não o pagamento que lhe cabe, a certeza nos falta neste instante,
mas o amor de Larissa e sua devoção ao dialético não. A compreensão de sua ânsia se
faz clara em sua problematização do próprio ego. A negação do hoje, ora nos incorre
naquilo que Floriano Martins considerará perplexidade existencial, ora irá nos remeter
às certezas que a cansam na vida. Não obstante sua tara por Baudelaire, apimentando
seus momentos mais íntimos com acrobacias anatômicas e fetiches por sadismo, a faz
entrar no erotismo como convergência moral:

“Nunca terei Baudelaire/ Preso entre meus quadris/ Mesmo assim o


amo/ Com extrema violência/ Um querer bruto e evidente/ Que
faz vibrar minhas carnes/ (...)/ Contento-me com amores utópicos/ Pois
os reais não me saciam/ Acabam logo, derretem/ (...)/ Enquanto os
imperfeitos/ Continuam intactos/ Em meus devaneios”.

Em “Infernos Íntimos” podemos ouvir a voz de uma mulher marcada pela


contradição e o desejo de pelo menos poetizar, com contra-senso romântico e debilidade
catártica. Lúcida e objetiva, Larissa Marques ressalva o seu devir poético naquilo que
melhor há em seu mentor: a incompreensão.

Túlio Henrique Pereira


Itumbiara, Goiás, Novembro de 2007

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