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Luís Martins Fernandes

JORNAL DO OBSERVADOR
DE
VITORINO NEMÉSIO
UMA JANELA ABERTA PARA O MUNDO

Curso de Preparação para Doutoramento em

Ciências Literárias

Seminário “Questões da Literatura Autobiográfica”

Lisboa, Setembro de 2000


FCSH
Universidade Nova de Lisboa
2

1 . Cronicando...

A crónica1 é um género híbrido que flutua entre a literatura e o


jornalismo, tendo passado do paradigma histórico ao literário e deste ao
jornalístico.

Arrancou ligada a uma matriz histórica, como relato de eventos


de acordo com a ordem cronológica da sua ocorrência, na Antiguidade e
na Idade Média. Acabou, porém, por transitar para o domínio literário,
como registo de impressões das grandes viagens pelo “novo mundo”.

Nos tempos modernos a crónica entra no campo do Jornalismo


como texto que favorece a liberdade criadora, não obedecendo a regras
precisas. Os “cronistas”, muitas vezes, ao emitirem determinadas
reflexões pessoais a partir das peripécias ou quadros escolhidos,
transmitem às crónicas um forte pendor pessoal, que se reflecte num
estilo próprio e, em alguns casos, num tom declaradamente
autobiográfico.

No caso dos escritores consagrados, um pouco à imagem da


produção diarística, a crónica seria um momento de pausa nas
preocupações estéticas da actividade criadora habitual. A verdade é que
a marca pessoal do autor está sempre presente e, por vezes, os textos
resultantes deste exercício surgem marcados por um estilo mais
despreocupado, mas muito pitoresco, passando a ocupar um lugar
assinalável ou mesmo de destaque no conjunto da sua obra.

José Marques de Melo (1988) classifica a crónica, no universo


do jornalismo luso-brasileiro, como um género próximo do editorial,
do artigo e do comentário, ocupando habitualmente as “páginas de
opinião” 2. A função pedagógica e o pendor crítico são traços quase
omnipresentes.

Do texto jornalístico a crónica conserva a actualidade, a


oportunidade e a difusão coletiva, já que o seu suporte originário é a
publicação periódica, embora muitas vezes o destino final seja a sua
1
Não é fácil encontrar uma documentação consistente sobre a crónica. Para esta
abordagem introdutória servi-me, entre outros, dos estudos de Letria,J. e outro
(1982), Lopes, V. S. (1993), May, G. (1979) e Melo, J. M. (1988).
2
A panorâmica da crónica no universo hispano-americano, previamente apresentada
pelo autor , leva-o a situá-la “entre os géneros informativos, confluindo com a
notícia e a reportagem”(p. 52).
3

publicação em livro. Afasta-se, porém, dos padrões jornalísticos ao


permitir a expressão da subjectividade marcante do cronista num estilo
muito pessoal.

O cunho pessoal que o escritor dá à crónica através do recurso ao


humor, à ironia, ao elogio emocionado, a todas as formas de sentimento
(Letria, 1982:85 s.), aproxima o texto de uma produção literária ainda
que, como acontece com os variados géneros autobiográficos com que
confina, possa ser apodada de literatura ao “rés-do-chão” ou um
“género literário menor”, nas expressões de Jorge de Sá 3. A verdade é
que alguns dos nossos maiores escritores dos finais do século XIX e do
século XX foram/são exímios cultores deste género.

Georges May (1979:128-143) dedica um capítulo do estudo


L’autobiographie às relações de vizinhança entre a autobiografia e a
crónica. O termo “crónica” cobre um vasto leque de situações que o
autor ilustra como processos retomados pelos autobiógrafos:

i – a digressão genealógica, que permite à autobiografia arrancar


com uma ostentação do nascimento e dos ascendentes;
ii – a digressão folclórica ou etnológica, patenteando o
enraizamento regional, histórico e cultural do autor;
iiii – o diálogo e as cartas, que tornam a evocação pitoresca e
dinâmica, por um lado, e mais garantida na sua autenticidade
documental, por outro;
iiii – o quadro histórico e a reportagem, que sensibilizam o leitor
para o “meio” do narrador, espevitando e satisfazendo a sua
curiosidade histórica e ainda o desfile dos retratos dos grandes
homens que o autor conheceu;
iiiii – as narrativas de viagem, que permitem o reviver, pela
memória, acontecimentos reais que prendem o interesse do leitor.

As reflexões precedentes implicam o estabelecimento de um


“pacto de leitura” particular entre o “cronista”/autobiógrafo e o seu
leitor4. Este “protocolo de leitura” assumirá contornos especiais quando,
expressamente, o cronista deixar claro que as suas crónicas estão
pejadas de diarismo e memorialismo. É exactamente este o caso do
Jornal do Observador de Vitorino Nemésio de que nos ocuparemos de

3
SÁ, Jorge de (1985), A Crónica, S. Paulo, Ática, pp. 10 s, citado em Melo
(1988:51).
4
A propósito do pacto autobiográfico ver LEJEUNE, Philippe (1994) e ROCHA,
Clara (1992:35 ss).
4

seguida e que, praticamente, aflora, nas suas crónicas, todos os


processos inventariados por May e referidos no parágrafo anterior.

2 . Reflexões genológicas do “observador”

O “protocolo de leitura” é claramente apresentado, de uma


forma obsessiva, ao longo das crónicas que constituem o Jornal
do Observador.

A autor, na advertência à edição, começa por referir o


carácter periódico, efémero, variado e fragmentário da sua
produção/recepção original, afirmando todavia a sua estruturação
e unidade em torno da ideia de Jornal 5:

Mais um punhado de crónicas – notas de viagem, artigos, pequenos


ensaios – que reúno, já agora sob o expresso título de Jornal. Jornal
do Observador. Do “Observador”, porque por tal e não por mais se
tem o autor delas. E ainda porque estas crónicas foram integralnente
insertas no magazine que com esse título se publicou semanalmente
em Lisboa, desde 19 de Fevereiro 1971 a 22 de Fevereiro 1974.
Nemésio (1999:21)

A estruturação deste acervo fragmentário 6 radica, ainda, na


consciência que o autor tem de que o seu Jornal funciona como uma
janela aberta para o mundo, mas também como um retrato da sua
coesão interior7. Ele partilha a transparência comunicativa da
linguagem:

5
Cf. GOUVEIA (1985: IX).
6
Depreende-se que a organização das crónicas para publicação em volume
obedeceu a um critério de coesão temática, independentemente da data de
publicação no Observador. As crónicas referentes a Raul Brandão, por exemplo,
foram publicadas durante os três anos de colaboração, mas aqui aparecem juntas.
Por outro lado, a existência de duas ou mais datas aparece, muitas vezes, justificada
no corpo das crónicas e , noutros casos, entende-se pelo contexto e pela
“imposição” das efemérides que constituem o seu tema ou pretexto.
7
Na crónica publicada a 1.9.72 Nemésio justifica a falta de Jornal na semana
anterior, confessando. “ Os hábitos enraízam. Mesmo os maus. Habituei-me a abrir
esta janela para a rua” (p. 258, sublinhados nossos). A propósito da coesão interior
do Jornal, ver GOUVEIA (1985:4).
5

Nenhum sinal linguístico é afinal transparente senão no sentido de que a


verdade não está nele: vê-se através. Por isso através deste Jornal talvez me
realize um pouco e os leitores me entrevejam e ao que penso. Sobretudo ao
que sinto. (JO:27, 26.2.71 8, sublinhados nossos.)

Estas crónicas apresentam o que Paula Morão (1994:24) chama, a


propósito dos Essais de Montaigne, “o lugar movente do eu que
empreende a tarefa de se representar, mesmo se quer fazê-lo falando de
outros ou objectivando uma qualquer área do saber sobre o mundo”.

Parece que, como diz Carlos Reis (1998:470), referindo-se ao


Corsário das Ilhas, o autor nos convida a “preparar-nos para ler um
diário”. Aliás o subtítulo da obra (Jornal...) também aponta nesse
sentido9. A afirmação desta orientação intimista surge logo na
advertência que precede a edição das crónicas que apareceram no
Observador:

Aí tiveram generoso acolhimento, num “exclusivo” que apenas falhou em


raros números da publicação, dedicados a problemas especiais, e que assim
dificilmente comportariam matéria de redacção tão íntima.
(p.21, sublinhados nossos.)

Daí a apreciação de Gouveia (1985:3) sobre os aspectos


diarísticos escondidos/desvelados nestas crónicas:

O diário de Nemésio não é, pois, um diário à maneira clássica, porque não


fala directamente de si mesmo, mas de coisas nas quais projecta os seus
sentimentos e valores. É como se tudo fosse aferido pelo seu mundo interior,
pelas suas reminiscências insulares, pelos seus valores religiosos que, no
entanto, ficam cautelosamente a bom recato. (Sublinhados nossos.)

De facto, ao contrário de José Gomes Ferreira, que utiliza numa


das suas obras de cariz autobiográfico o subtítulo sugestivo “ou o gosto
de falar de mim”, Nemésio, que reconhece ser um “impenitente
grafómano” (JO, 335, 9.2.73), um “galeriano da pena” (JO, 76,
20.8.71), confessa sentir-se pouco à-vontade a falar de si:

8
Por uma questão de comodidade, as referências às citações do Jornal do
Observador, serão apresentadas através da sigla JO, remetendo para a segunda
edição daquela obra pela INCM, Lisboa, 1999. Para facilitar o confronto das
citações em outras edições, depois da sigla e do número de página da edição que
aqui seguimos, fornece-se a indicação da data de publicação da crónica no
Observador. Muitas vezes omitiremos a sigla, na nossa referência, por julgarmos a
identificação da obra inequívoca.
9
Cf. PINHEIRO (1998:727).
6

Eu, que tanto remoo o passado longínquo, tenho custo em contar-me. Um


secreto pudor de assoalhar relações trava-me a confissão.
(JO, 243,21.5.71, sublinhados nossos.)

Esta confissão de recato está em contradição com inúmeras


situações, por exemplo quando anuncia a intenção de deixar os
intimismos para as Memórias de um Filho deste Século (JO, 289,
19.11.71).

Justifica-se uma atenção particular ao Jornal do Observador,


como diz Gouveia (1985:VI),

por ser constituído por escritos de fim de vida e por isso mesmo reflectirem
uma visão global, crítica e valorativa do passado, além de descomprometida
de imposições de género literário.

Efectivamente, sempre foi timbre de Nemésio não seguir


servilmente os cânones genológicos nas suas produções literárias 10,
atitude rica de consequências que lhe permitiu primar pela
originalidade. Gouveia (1995:106) reconhece que ele “revoluciona o
género crónica, porque faz dela um misto de diário, de ensaio e de
artigo, sendo o estilo – ousamos acrescentar – em que melhor se afirma,
na prosa”. É certo que Nemésio tem uma forma muito pessoal de tratar
a crónica, mas afinal “a liberdade criadora” é uma marca deste género
de textos (Víctor Lopes, 1993:110).

2.1 . Crónicas, além/aquém de tudo o mais...

Nemésio esteve ligado ao jornalismo desde muito novo – o que


o leva a falar de “facilidades tipográficas precoces” (JO, 79, 27.8.71) –
mesmo durante os estudos, como meio de obviar à necessidade de se
autofinanciar11, mantendo essa ligação pela vida fora, colaborando

10
Ver, a este respeito, REIS (1998:470).
11
Escreveu Norberto Lopes (1978:3): “O jornalismo foi a primeira enxada de que
Vitorino Nemésio, como tantos outros estudantes nas mesmas condições que
pretendem concluir os seus cursos sem recursos próprios que lho permitam, lançou
mão para garantir a sobrevivência”.
Sobre o “profissional da imprensa” que Nemésio foi, ver também FERREIRA
(1997), MOTTIN (1998).
7

assiduamente com jornais. Esta faceta vai acompanhá-lo por toda a


vida:
Como a História (com H) se torna sentimental à escala da microtoponímia!
Dessa bitola caseira, ufanamente ilhoa, não sairei destas linhas: assim tenho
a ilusão de que tornei a repórter e trato de assegurar a caixa ao meu pequeno
jornal. (JO, 220, 24.12.71, sublinhados nossos.)

O carácter pedagógico das crónicas (cf. p. 1) está bem patente na


obra e na vida de Nemésio que, na cerimónia da sua jubilação a que se
refere neste jornal, antecipando-a12 e evocando-a13, afirma, peremptório:

Dou a minha última lição de professor na efectividade e em exercício,


segundo a lei. Claro que a lei só tira o exercício ao funcionário: o homem
exerce enquanto vive14

Seguindo um procedimento análogo ao de Clara Rocha (1998)


relativamente ao Corsário das Ilhas, podemos questionar-nos se, apesar
de o autor manter um estilo muito próprio, as crónicas do Jornal do
Observador se conformam basicamente aos “traços canónicos do
género, correspondendo a uma expectativa de leitura” (p. 475).

Assim, “a vinculação temporal dos textos” (ibidem) que, segundo


Abel Barros Baptista (1997:64), permite uma aproximação entre o
diário e a crónica como “géneros da data”, aponta para a
produção/recepção descontínua, cumulativa e fragmentária. Este traço é
omnipresente, já que todos os textos são datados, incluindo por vezes
duas ou mais datas (a da redacção ou registo nos “conhenhos” e a da
publicação), mantendo uma “referencialidade cronológica exacta”.

Também o “programa de informação, segundo a lógica do meio


de comunicação que lhe dá suporte” (Clara Rocha, 1998:475) é um
aspecto da crónica expressamente assumido pelo autor:

Perdeu valor a antiga convicção de que o discurso é livre e voluntariamente


conduzido pelo falante ou escrevente, que escolhe o vocábulo apropriado à
coisa a exprimir e adopta as construções, regências e ordem de palavros que
lhe parecem dar com justeza o pensamento ou o sentido. De suposto senhor
da linguagem o homem tornou-se o seu instrumento. E, assim, o autor não é

12
“Vou para a prateleira” (JO, 194, 8.10.71).
13
Quinze dias depois da sua última lição, enquanto passeia em Bourges, evoca-a
nestes termos: “Ora eu tinha dado há quinze dias a última [lição] da minha longa
carreira...” (p.299, 21.1.72).
14
in GOUVEIA:1986:433, sublinhados nossos.
8

propriamente o responsável pelo que escreve, mas o medium ou lugar-onde


o sistema da linguagem escrita se realiza.
(JO, 103 s, 18.2.72, sublinhados nossos.)

A informação fornecida por Nemésio é vasta e variada já que é


um viajante curioso e atento:

...fico sempre um pouco para trás, nas minhas tarefas taquigráficas do


impressionismo ou nos involuntários micro-retiros da meditação, e talvez da
poesia – oh, sem versos! (...)
A mim interessa-me em campo o que posso anotar de exacto: o máximo
de informação correcta e de compreensão possível – seja ele fauna, ou
flora, actividade humana ou não importa que aceno ao entender e guardar.
(JO, 338, 16.2.73)

Com esta abertura de horizontes, “o cronista deambula pelos


diversos saberes” ( Clara Rocha, 1998:476), dando expressão ao seu
humanismo e à sua vasta cultura de “homen universal”.

O segundo traço que pode permitir o estudo articulado de diário e


crónica, segundo Baptista (1997:65 s), é o facto de serem géneros ditos
da “personalidade15: dotada de opiniões, moldada por experiências,
animada de preocupações, que o tornam capaz de seguir os problemas
da sua actualidade...”. Esta personalidade é garantida pelo nome, pela
assinatura que chancelava as colunas que lhe eram reservadas no
Observador.

Mas não é só a assinatura que deixa nas crónicas a marca da


personalidade do autor, que se define, metafóricamente, como “operário
das palavras” (JO, 277, 13.10.72). Ele assume que algumas destas
crónicas falam muito de si, como o ilustram as seguintes citações:

Um Jornal no sentido que dei a esta página – tanto crónica ou artigo como
efemérides pessoais – sai fora dos nossos hábitos, cria o que chamarei o
“soslaio”, a desconfiança de través, a começar pelo autor.
(JO, 34, 9.4.71, sublinhados nossos.)

...estrago as férias desentranhando-me em jornal! Jornal na TV, colaborando


em diário, e o meu Jornal, que é este. Isto me vem de facilidades

15
Mª Alzira Seixo (1986:162) refere-se a “uma espécie de géneros de pessoa ...
que fundamentalmente se traduzem no diário, na crónica e nas memórias,
tradicionalmente encarados como documentos da personalidade ou da época”.
9

tipográficas precoces e de uma tendência para a sociabilidade e a


confissão16.
(JO, 79, 27.8.71, sublinhados nossos.)

Em outras crónicas Nemésio fala de “autocrítica”, “autognose” ou


“autoconhecimento” (JO, 134, 23.6.72) e de confissão como “descarga”
do eu:

Eu cá sei ao que venho, e por ora não passo de um homem que viaja e tem
um caderno de notas à mão. Sou também um pequeno examinador de
consciência, mas isso é mais delicado e menos para notas. Temo faltar à
confissão que projectei e a que alguém me incitou, não como reparação
moral para com quem estou em falta, mas como descarga de mim... e criação
literária. Tenho o vírus da escrita, mas já raramente a virose. Só em viagem
me ataca. Trago comigo os antibióticos.
(JO, 309, 3.12.71, sublinhados nossos.)

Esta citação merece-nos vários comentários. Desde logo o esboço de


uma contradição, muitas vezes reiterada, do pouco à-vontade em falar
de si convivendo com o propósito confessional. Estabelece, por outro
lado, uma distinção entre as confissões clássicas, desde Santo
Agostinho, e as mais recentes, que funcionam como “descarga”. A
fechar, e insistindo no vício da escrita e no carácter de criação literária 17
a que estas crónicas se conformam, encontramos o tema da “motivação
entre viagem e escrita”, referida por Clara Rocha (1998:477), que mais
algumas citações confirmam. Desde logo temos um jogo de palavras a
traçar o seu programa de viagem/escrita, em que os dois movimentos
se implicam numa reciprocidade completa:
Escrevo para viajar e viajo para escrever, impenitente gafómano.
(JO, 335, 9.2.73)

17
A convicção do carácter propedêutico ou residual das crónicas relativamente às
criações literárias canónicas é expressa por Nemésio no comentário a “um livrito
de Câmara de Lima (...). Um pequeno primor de crónica e humorismo”, e que bem
podemos aplicar a muitos dos seus textos de que nos ocupamos: “Estilo corrente
que a coloquialidade anima e uma contensão elegante e discreta qualifica. Nem as
prisões do lugar-comum, inevitáveis no jornalismo, conseguem tirar essas crónicas
breves da rampa de lançamento (digamos assim ...) a um género literário superior.”
(JO, 92, 22.10.71, itálicos nossos.)
10

A viagem tanto pode ser real como evocada ou propiciada pela escrita.
Comecemos por uma viagem na história, com um carácter pedagógico
de formação de uma consciência nacional:
Mas estes excursos micro-históricos afastam-nos demasiado de onde
diaristicamente parti e de aonde queria chegar, que é à Restauração como
ingrediente da consciência nacional activa, na medida em que a há.
(JO, 162, 8.12.72, sublinhados nossos.)

Viagem mais curta, mas não menos expressiva, é a apresentada


na crónica em que evoca uma deslocação de Zurique a Berna:

De repente, porém, poupando transições, eis-me saltando a Zurique – 24,


Dufourstrass. O salto, claro está, é dado na máquina de escrever, que não faz
cerimónia com tempo de viagem nos cadernos e às vezes baralha tudo. (...)
O comboio cá rola para Berna e eu anoto (...) mas esta literatura itinerante de
nuvens e montes não me quadra (...) os montes helvéticos perfilam-se, o
material rolante funciona bem na tarde fosca – tudo estilo, afinal, bem bom
para diário em marcha.
(JO, 312 s, 29.3.72, sublinhados nossos.)

Estimulado pelo seu “coração viajeiro” (JO, 330, 2.2.73), escreve


no canhenho, na altura das viagens, e, posteriormente, “translad[a] estas
verbas” para a crónica (JO, 328, 26.1.73). Ou, por outras palavras:
“Reverto pois ao meu caderno de andadas” (JO, 336, 16.2.73).

Faz frequentes excursos, neste caso económico, mas regressa aos


cadernos que o documentam: “Passaria agora às notas do canhenho de
Mato Cana...” (JO, 323, 9.3.73). Interessante a este respeito é o título de
crónica “Cábula Africana” (JO, 330, 2.2.73).

Estas crónicas são, pois, tributárias dos registos de viagens onde


o autor costuma apontar “o chegar e o partir”. (JO, 223, 11.5.71.)

Para muitas das suas crónicas são convocados registos de viagens


passadas:

Saudoso do meu longo itinerário do Amazonas que inseri em Caatinga e


Terra Caída, rebusco na gaveta dos rascunhos a ver se lá encontro alguns
apontamentos inéditos. É também um recurso (confesso) de quem se não
sente lá muito inspirado e lhe soa a hora da tecla. (...) Picoto com um dedo
ou dois a minha dose hebdomadária de música celestial. (...) E o certo é que
lá vou encontrar um punhado de linhas do meu diário de Manaus, de 10 a 12
11

de Julho de 1958 (...) Simplesmente as folhas do meu memorial não


morreram.
(JO, 252, 19.5.72, sublinhados nossos.)

É evidente aqui o traço da pressão da publicação, tão


característico da crónica, e que Baptista (1997:65) apresenta como um
terceiro “ponto que dificilmente se fará partilhar pelos dois géneros” –
crónica e diário. É que “ a crónica tem a particularidade de se destinar
sempre à publicação, em particular em jornais, enquanto o diário é, por
convenção ou por natureza, secreto, apartado do mundo (...), íntimo”
(ibidem).

Afinal, através do “mecanismo de legitimação da publicação” que


é o situar-se no domínio da opinião, apesar da “inquietação da
publicação própria do diário” de que Nemésio também faz eco, os dois
géneros poderão ser aproximados . Veja-se a apreciação que o autor
faz, quando da sua visita ao engenho do amigo/escritor brasileiro José
Lins do Rego e que transcrevi no início da página quatro.

Afinal, ao publicitar-se, paradoxalmente, “o diário íntimo é a


negação da intimidade” (JO, 173, 14.4.72).

“A possibilidade de recolha posterior em livro, das crónicas


publicadas em jornal, a inclusão (...) dessa recolha na obra completa
d[o] autor” apontam para uma analogia da “relação do cronista com as
suas crónicas” e “do diarista com o seu diário” (Baptista,1997:67). É
que os dois se interrogam sobre a legitimidade e o interesse dessa
publicação. A título de exemplo, veja-se a apreciação que Nemésio faz
acerca da importância do (ou pelo menos de algum) material a publicar,
depois de referir o seu diário de Manaus cujas folhas não morreram:

Ninguém, nem mesmo eu, as chorava. De resto dizem pouco.


(JO, 252, 19.5.72)

A auto-ironia que pratica leva o autor a apresentar-se


caricaturalmente identificado com uma situação de O Morgado de Fafe
de Camilo, a propósito de uma viagem no expresso de Lisboa a
Hendaia:

A criazinha pequeno-burguesa (como agora se diz em dialética mal vertida),


mal sai da casa provinciana, com o modesto passaporte de bolseiro ou
repórter, puxa logo o caderno de bolso, promovendo-o a diário de viagem
12

nas designações chiques: bloc-notes, carnet de route. (...) Mas voltemos ao


meu caderno de Dezembro 62, onde o abri.
(JO, 279 s, 26.11.71.)

Mais à frente, Nemésio tem um apontamento significativo, no


terceiro dos três fragmentos (de diário) que compõem a “crónica” de
19.11.71:

10.11.1971 – Voltei. Mas não sei onde tenho os cadernos das viagens
posteriores para verificar se os ovos da “omelete” futura eram da galinha de
então. (P. 290)

Além da referência humorística ao caderno de viagens perdido,


regista-se a futilidade do tema que acumula, na mesma crónica, com
temas tão sérios como a teoria do relatividade de Einstein e os quadros
de Renoir e Cézanne. Aliás, num tom mais sério, no primeiro bloco da
crónica, datado de 10.9.71, confessa:

(...) exumo da minha papelada um caderno de viagem com notas ainda


concisas, quase taquigráficas, que me apetece “encarnar”, como os santeiros
(...) Pelo sim, pelo não, vamos lá às páginas amarelecidas (vinte anos!) do
meu caderninho francês (p. 288).

3 . Memórias alheias

Em treze das suas crónicas, Nemésio, que tanto nos adverte para
as suas incursões no domínio autobiográfico, apesar de referir a inibição
«[d]o pudor de abuso do “eu” odioso» (p. 36), faz a recepção / crítica de
vários textos incluídos na literatura do eu.

Na crónica “Memórias alheias”, de 9.4.71, debruçando-se sobre


os nossos memorialistas do século XIX, ilustra a afirmação peremptória
“Memórias, temos; leitores para elas é que não” (p. 34) com as obras
Memórias da Vida de José Liberato Freire de Carvalho 18, utilizadas
amiúde por Oliveira Martins, e Recordações da Minha Vida de Simão
José da Luz Soriano, que considera “fastidiosas, prolixas” (p. 35).
Aponta ainda autores de diários íntimos da mesma época: Fortunato
José Barreiros e António Ribeiro Saraiva. Refere, em seguida, bons
18
Este memorialista já lhe merecera uma referência na crónica intitulada
“Memórias”, em Sob os Signos de Agora, Lisboa, INCM, 1995, p. 55.
13

memorialistas, de que destaca o Marquês de Fronteira D. José


Trasimundo19, o Conde de Lavradio D. Francisco, Aragão Morato,
Norton de Matos, Cunha Leal, João Chagas e Egas Moniz. Para
concluir, são referidas duas “memórias amplas, a toda a extensão do
vivido” ( p. 36): as de Tomás de Melo Breyner e Raul Brandão.

Na crónica “Memórias íntimas”, de 16.4.71, depois de retomar


alguns memorialistas antes referidos, põe a tónica nas «“memórias
interiores”: a zona do lembrar em que já pouco importam os
acontecimentos datados, mas as reacções pessoais profundas que eles
provocam» (p. 37). Depois de ilustrar este tipo de memórias com os
casos de Raul Brandão e Camilo Castelo Branco, fornece-nos a chave
para a busca da unidade neste tipo de textos, que bem pode funcionar
para nós como leitores das suas crónicas:

A unidade, em “memórias interiores” como em tudo o que pertence à


criação artística, vem da “invariante” do respectivo criador. (p. 38)

E logo faz a derivação para a busca de explicação genética, com


uma interpretação de O Acaso e a Necessidade de Jacques Monod. Mas
afinal não é esse o caminho.

As memórias literárias alimentam-se de um ânimo que já nada tem de


metabólico, um ânimo puramente cultural.
E como nos falam bem! Desde Santo Agostinho; (sic) que sentia Deus mais
íntimo que ele mesmo, até Rousseau e aos seus descendentes românticos,
que somos todos nós, impenitentes confessores daquilo por que ninguém nos
pergunta e que poucos querem saber ...” (p. 39).

A crónica “Vocações e Memórias”, de 23.7.71, evoca As Minhas


Memórias de Cunha Leal, já referidas, que gravam admiravelmente o
“microcosmo provinciano” ( p. 44), como “depoimento literário (...) [e]
sociológico” (p. 45) de grande valor. Estas memórias fornecem o
pretexto para a confissão de Nemésio: “[É] um género que sempre me
interessou” (p. 43).

Seguem-se cinco crónicas onde, entre outros escritores de


nomeada, é referido insistentemente Raul Brandão, que Nemésio
assume como seu mestre. Numa carta de 26.12.26, que lhe dirige,

19
Também este memorialista recebeu tratamento elogioso na crónica referida na
nota anterior.
14

confessa ter vontade de um dia escrever um livro sobre ele 20. Dessa
carta cito um fragmento significativo da intenção de passar do
ficcionista ao “cronista/ensaísta”:

Como a escrever sou mais literato que humano, é possível que um dia troque
a pena de novelista por uma que seja ao menos útil a escrever sobre os
outros, sobre os que foram verdadeiramente originais com um graveto entre
os dedos. Talvez um dia escreva um livro sobre o meu Amigo.
(in Arquipélago, vol. X, 1998, p. 207)

A crónica de 16.7.71, “De Raul Brandão a Régio”, aponta a amizade


que o ligou ao primeiro, que tinha uma “costela de andarilho e de
repórter” (p. 58), e o “eclectismo prodigioso” (p. 59) do segundo. Na
crónica “Mais Raul Brandão”, de 22.12.72, sob o pretexto de ter
assistido a um programa na RTP sobre o seu “Mestre incomparável”
( p. 63), evoca-o comovido. É ainda de Raul Brandão e da sua casa no
Alto que trata na crónica “De Nespereira a Pascoais”, de 29.12.72, e
ainda nas “Respigas Brandonianas”, de 5.1.73, onde refere, de forma
mais comedida do que nas cartas atrás citadas, a vontade de escrever
sobre Raul Brandão e também sobre Teixeira de Pascoais:

[Deles] cada um de per si e ambos os dois, poderia escrever não direi um


volume, mas um punhado de páginas. (p. 67)

Finalmente, a primeira parte da crónica que fecha este ciclo de


memórias literárias, “A areia da ampulheta”, de 9.1.73, apresenta uma
interessante síntese das Memórias:

A hipocrisia verbal vigente no relato jornalístico via-se batida em brecha


pela cínica ingenuidade adâmica do memorialista. Raul Brandão foi o
primeiro a dar uma espécie de estratigrafia das classes dominantes entre nós
no primeiro quartel do século. A “mistura” aristocrático-burguesa do
mundanismo e dos negócios, o arrivismo pela caixa de teatro e pelo artigo
assinado, todas as formas de promoção e tábuas de valores de uma sociedade
em crise receberam nas Memórias de Raul Brandão tipologia concreta e
comentário. (p. 71)

Mas Nemésio não se limita a assoalhar relações – o que, aliás, diz


pretender evitar – com os escritores prestigiados, faz também justiça a
muitos que “não tinham entrado no sistema de circulação
favorecida” (p. 71). É o caso de Manuel da Silva Gaio que pouco

20
Em carta de 8.8.29 insiste na mesma ideia: “Releio os seus livros e tenho-os
quase todos anotados para um longo estudo em que penso, - um estudo sobre a sua
pessoa tal como a vejo e se revela.” In Arqipélago, X, 1998, p. 228.
15

publicou, mas que ele considera ter exercido o “magistério socrático


do café e da livraria” (p. 72) relativamente aos jovens da sua geração.

Mais à frente, fazendo algumas reflexões sobre o diário que o


cansa na cidade-mistério que na crónica seguinte desvendará como
sendo Coimbra, evoca, de passagem, o Jornal de Amiel, impregnado de
“intimidade” (JO, 174, 14.4.72). Mas deixa-nos um alerta:

A inconsistência do “eu” sente-se melhor no flagrante da apreensão do


tempo, na pretensão – tão nossa conhecida – de apanhar num momento o
todo da própria duração e chamar a isso “eu mesmo”. (Ibidem)

Nas crónicas de 4 e 11.2.72 Nemésio surpreende-nos com


memórias de ruas: na primeira são as Memórias de Uma Velha Rua Da
Praça às Covas ( de Angra) de “Frederico Lopes – nas letras João
Ilhéu”, que registam “a vida quotidiana de quase cinco séculos de uma
cidadania longe dos grandes centros urbanos” ( p. 226), insistindo, com
uma significativa alegoria do seu bornal de “embarcadiço” (p. 228), no
triste destino destas produções do “limite de idade”:

Escrever só estas coisas que poucos leiam, miudezas do passado pessoal que
forma o lastro do navieco já prestes a amarrar na doca de dentro, e a abater
ao longo curso. (P. 225)

Na crónica “A passo ajudado”, partindo da Angra de João Ilhéu e


da sua adolescência, passa em revista as memórias das suas cidades:
Horta, Lisboa, Coimbra, Montpellier e Bruxelas (p. 29), e ainda o Rio
de Janeiro, a Baía, a Belém do Pará, “um raro Paris (...) ou uma Colónia
(...) de três dias” (p. 230). A propósito das memórias das ruas de
Lisboa, acrescenta o inédito do Dr. Alfredo de Matos Chaves, Do
Chiado ao Pote das Almas, aos trabalhos de Júlio de Castilho, Gomes
de Brito, Matos Sequeira, Luís Pastor de Macedo... Do Chiado ao Pote
das Almas
em que o dom de contar e uma fina ironia no retrato individual põem de pé
todo um mundo abolido de costumes e classes em crise. (Pp. 229 s)

Aproxima-se, por isso, mais das obras de fundo alfacinha dos já citados
Marquês de Fronteira e Tomás de Melo Breyner.

E concluiremos esta recepção dos géneros autobiográficos no


Jornal do Observador com as substanciais referências que lhe merece o
Journal de Annaïs Nin, filha do pianista Joaquim Nin. Foi exactamente
aqui que residiu o seu interesse, dadas as ligações deste pianista com
Francisco de Lacerda, cuja “evocação” prepara nesta viagem à Suíça. E
16

não deixa de exprimir o seu desalento por o Journal não contemplar o


músico português nas relações de Joaquim Nin, apesar de considerar
tratar-se de “um grande documento humano centrado na figura um
pouco leviana do pai, grande virtuose do piano que Francisco de
Lacerda em parte orientou e ajudou a afirmar-se” (JO, 314, 29.3.72).

Este diário merece a Nemésio uma apreciação bastante crítica:

livro em verdade espantoso pela coragem confissional, que outros


chamariam furor de autocatarse analítica, mas que a um velho criado na
confissão auricular soa a um certo sadismo de auto-acusação que toma o
caminho sinuoso e deleitável do psicodrama de tertúlia. (JO, 310, 3.12.71)

A concluir a crónica que dá conta do seu “diário em marcha” (p.


313) “De Zurique a Berna” (título da crónica, p. 312), Nemésio mostra-
se um crítico mordaz, embora não se coíba de se autocriticar também:

Ao deitar-me, ontem, dei no estupendo Journal de Annaïs Nin (...) com uma
página de porno, cena de uma casa suspeita. Assim o amor ao dissecar e de
tudo dar conta leva estas pobres flores cosmopolitas da cultura ao limiar do
enxurdeiro. Ou é a nossa hipocrisia existencial que faz de prude? Não me
sinto melhor do que o Henry cuprulálico que Annaïs maravilhosamente pinta
no seu diário; mas acho preferível guardar nos fundões subconscientes a
inclinação para o sórdido. Quando muito, psicanalisarmo-nos com todas as
precauções de quem desrolha um esgoto. O Diário de Annaïs foi comparado
às Confissões de Santo Agostinho, de que terá a coragem da auto-acusação,
mas não o remordimento. (P. 314)

Já na crónica anterior esta comparação tinha merecido uma certa


reserva a Nemésio:

- best-seller superlativado pela crítica francesa ao nível de Santo Agostinho


(Rousseau, ainda, vá ...)” (P. 310).
17

4 . Coração Viajeiro

São muitas as marcas das “narrativas de viagens”, que permitem


a aproximação da crónica e da autobiografia, na perspectiva de G.
May21, com que nos defrontamos na obra nemesiana.

Vários números do Jornal de Vitorino Nemésio têm títulos que


apontam inequivocamente para a realização de viagens bem localizadas
que funcionam como seu núcleo: Corsário das Ilhas, Caatinga e Terra
Caída, com o subtítulo viagens no Nordeste e no Amazonas, O Segredo
de Ouro Preto e Outros Caminhos.

No Jornal do Observador, ao pôr a tónica na observação, como


marca unificadora destes textos 22, Nemésio não deixa de ser o homo
viator, “ora encantado com o que lhe é dado observar, ora obsecado
com matérias de maior profundidade, desprendendo-se de todas as
reflexões a paixão que o move a peregrinar pela cultura 23.” (Gouveia,
1985:48)

Muitas das suas crónicas são preparadas “em trânsito” e enviadas


para a redacção do periódico, mantendo esse laço com a
“correspondência”, ostentando algumas marcas do género epistolar.
Invertendo e glosando a fórmula lapidar com que Pessoa definiu
Kameneski24, assume-se como “escritor parado, provisoriamente
errante” (JO, 180, 10.9.71), numa crónica que tem o título sugestivo e
realista de “Carta da montanha”.

4.1 . Viagens ao pé da porta

O volume do seu Jornal intitulado Viagens ao Pé da Porta, abre


com uma carta-prefácio ao Dr. Nuno Simões, fazendo duas confissões
interessantíssimas – «fui criado com o dito de “quem não desabafa

21
Ver p. 2 deste trabalho.
22
«Do “Observador”, porque por tal e por mais se não tem o autor delas»
(Advertência, p. 21).
23
O autor assume-se como “peregrino cultural” ( JO, 313, 29.3.72).
24
Nemésio cita de memória a frase que Pessoa inclui no prefácio a um “livrinho
naturista” de Eleázaro Kamenesky, chamando-lhe “judeu errante provisoriamente
parado” (p. 179)
18

rebenta”, e preciso expandir-me.»; e “para tal género de escrita


[„periódico pessoal hospedado em folhas alheias‟] – que aliás tenho em
tanto apreço como a ficção e a poesia – nenhum destinatário mais digno
que o meu querido Dr. Nuno Simoõs” 25.

Mas esse volume não esgotou a sua vontade de falar dos quatro
cantos de Portugal, por isso aqui retoma alguns destinos das suas
viagens cá dentro. Assim, para continuar a “exercer”, depois de
aposentado da sua “longa carreira de cicerone ex cathedra” (p. 299,
21.1.72), torna-se o nosso cicerone, entre outros destinos, de viagens
pela linha do Douro até ao Minho (p. 170, 23.4.71), até ao Alentejo,
com paragem na Portalegre de Régio (pp. 200-202, 2.7.71) e em “Avis
Maravilhosa vila morta” (pp. 204-205, 15.10.71), passando pela sua
saudosa Coimbra (14.4.72; 10.9.71) e por S. Pedro de Muel, destino
privilegiado das suas férias (27.8.71, 13.8.71, 3.9.71, 14.7.72, 28.5.71),
por Fátima (10.3.72, 17.3.72), com a sua Ilha sempre no coração (pp.
209-230, 3.3.72, 16.3.73, 10.12.71, 24.12.61, 14.5.71, 4.2.72, 11.2.72).
Aliás Coimbra e a sua Ilha são objecto de sistemáticas correspondên-
cias, através dos famosos “deslizes da memória”, como se estes espaços
da “topofilia”, para usar um termo feliz de Bachelard 26, fossem o centro
do seu mundo, onde tudo ganha sentido. Ao evocar os campos do
Mondego numa viagem de Zurique a Berna confidencia: “Passo a vida
a reduzir ao perto de que fujo o longe que me cansa” (JO, 314, 29.3.72).

4.2 . Destinos estrangeiros de um homem universal

Nemésio escreve várias crónicas sobre as viagens ao estrangeiro.


Imediatamente antes da série de crónicas “brasileiras”, dá-nos conta,
de relance, de uma “viagem relâmpago ao Canadá”, que aproveita para
“reforçar a imagem livresca” da Terra Nova (JO, 231-233, 4.6.71). E no
fim das crónicas do Brasil, conclui o livro com mais vinte e uma
cónicas de viagens pelo estrangeiro assim distribuídas: França (9),
Suíça (2), Itália (1), S. Tomé (3), Moçambique (1), Rodésia (2),
Zimbabwe (1) (na geografia de então), África do Sul (1).

25
NEMÉSIO, Vitorino (1998), Obras Completas, vol. XIX, Viagens ao Pé da
Porta, Jornal de Vitorino Nemésio 6, Lisboa, INCM, p. 31, sublinhados nossos.
26
Gaston Bachelard engloba na categoria das imagens do espaço feliz espaços de
posse, espaços protegidos contra as forças adversas e espaços amados. (Cf. La
poétique de l’espace, Paris, PUF, 1978, p. 17).
19

A maior incidência nas viagens a França justifica-se, porque em


Tours se sente «quase “naturalizado” graças ao ambiente de família» (p.
285), que afinal lá tem e visita com frequência, partindo dali para a
tarefa de “trota-monumentos” (p. 298, 21.1.72) – Castelos do Loire
(12.3.71,14.1.72), Poitiers (19.11.71, 25.2.72), Bordéus (19.11.71),
Bourges (21.1.72) Paris à la minuta (28.1.72) e para os seus encargos
de congressista (31.12.71). Não são só as cidades e os seus
monumentos que são aqui evocados, mas também os santos, os
escritores, as leituras literárias e científicas, os professores lusófilos...

Estas crónicas estão cheias de reflexões de tipo intimista e


autobiográfico de que, aliás, fomos dando conta ao longo deste
trabalho27.

Mas, dentro da temática das viagens, fixar-nos-emos, de seguida,


na marcante presença do Brasil no Jornal do Observador.

O Brasil, onde Nemésio teve várias estadias mais ou menos


prolongadas no seu ofício de “peregrino cultural”, desperta nele um
interesse particular, como o próprio confessa:

É o meu Brasil de cinco visitas prolongadas que me acorda na saudade


revivida, um Brasil com registos na sensibilidade mais concreta: o cheiro à
terra, ao capim, a cor das coisas, a toada da fala e até o número de “dibeis”
dos ruídos de bonde e de petardo... (JO, 247, 21.7.72)

Nemésio publica no Observador quinze crónicas sobre o


Brasil, “cujo ponto de vista englobante é o de observar e reflectir sobre
a realidade quotidiana”, como diz Fernando Cristóvão ( 1998:10).

Quatro dessas crónicas foram publicadas em 1971. É com


“Adamismo geográfico” (JO, 234, 29.10.71) que Nemésio abre esta
série, apresentando considerações sobre a Transamazonense – estrada
de 5 000 km, e o fundamentado estudo de Maurice le Lannou sobre a

27
De notar ainda que alguns destes textos foram elaborados a partir de
registos de viagens anteriores, alguns com vinte anos, de acordo com as indicações
fornecidas no início das crónicas, como acontece com parte das crónicas
brasileiras e como acontecerá com as últimas crónicas, que abrem com datas de
1960, 1964 e 1969, com excepção da crónica de 9.6.72, que corresponde a uma
“viagem frustrada a França” que propiciou uma “viagem em prosa” às festas do
Divino Imperador nos Açores.
20

Amazónia, desautorizando o labelo de que “os franceses não sabem


geografia” (p. 234).

As crónicas seguintes apressam-se para trás através do “modo


de deslize [que] é a memória” (JO, 237, 30.4.71). Nas crónicas de 30.4
e 7.5 evoca “comovido” (p. 241) a “peregrinação aos lugares, ligados à
vida de um grande amigo morto: o José Lins do Rego dos romances
sem par do Ciclo da Cana de Açúcar...” (P. 237).

Na crónica de 21.5.71 as “memórias” evocadas nas semanas


anteriores “acordam outras de velhos camaradas brasileiros” (p. 244):
Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Aurélio Buarque de Holanda.

Das crónicas publicadas em 1972 sobre o Brasil, as quatro


primeiras foram redigidas em Portugal, ainda que servindo-se dos
registos de viagens / estadas anteriores. Começa por referir a recepção
de correio brasileiro, deixando escapar uma fuga intimista, comentando,
em seguida os livros recebidos (JO, 246-248, 21.7.72). Debruça-se, na
crónica seguinte, sobre as comemorações do “achamento” e sobre o
“século e meio que leva a independência desse povo” (p. 249),
evocando a representação portuguesa de António José de Almeida,
nosso presidente em 1922, nas celebrações do centenário. Na terceira
crónica utiliza registos inéditos do seu diário de Manaus não publicados
em Caatinga e Terra Caída (19.5.72) e, finalmente, na crónica de
11.8.72 mostra a sua indecisão e os preparativos para a viagem ao Rio
para falar sobre Camões, evocando, em seguida, as memórias dos
“longos meses lectivos” passados na Bahia (p. 257).

Segue-se um bloco de sete crónicas escritas no Rio de Janeiro e


publicadas no Observador entre 16.8.72 e 13.10. 72. Estas crónicas
testemunham a sua paixão pelo Brasil e a sua atenção às belezas e
misérias deste país:

Deslumbramento e poluição cabem afinal no mesmo saco da “Cidade


Maravilhosa”(JO, 258, 1.9.72).

As notas dos três dias de Brasília cuja história conhecia


“livrescamente”, apresentam-no “deslumbrado” (JO, 261, 8.9.72). E dá-
nos também as suas impressões de «Cristalina, “cidade” [que] é uma
aldeia grande ou uma vila pequena» (p. 263) que lhe faz lembrar a sua
ilha. Tem tempo e sensibilidade para dedicar a crónica de 15.9.72 à
“Pobre de Terceira” que “está morrendo aos pedaços”, vitimada por um
cancro, em paralelo com a morte de Hélio, esfaqueado, abrindo e
21

fechando em tom aforístico: “É ruim morrer de câncer, mas na faca


também”. A crónica de 22.9.72 é dedicada à “Novela marginal”
brasileira que utiliza lugares comuns da estética modernista. Evoca, de
passagem, “As vinhas na barra da Tijuca” que lhe fazem lembrar as
suas ilhas:

Estive nas Vinhas, na Terceira, entre gente sã, fidalga, sem mover um pé do
Rio”(p. 272).

A crónica de 6.10.72 traça a biografia do terceirense António da Costa


Rebelo, evocado na proximidade da data em que faria setenta anos. E a
despedida do Brasil é feita em volta do pretexto desta visita – Camões -
“Brasil. Canto IX”. E, na hora da despedida, evoca 1952, o seu 1500: o
ano que representa a “primeira visão do Brasil de um operário das
palavras luso” (277, 13.10.72). E conclui: “vinte anos de visitas ao
Brasil têm-me ensinado muito.” E, com a consciência de estar perto do
seu fim28, com um aproveitamento da liturgia das horas, faz uma auto-
análise sem perder o seu humor:

Mas posso bem fechar o arco destas saudades com Completas (...) Mas dir-
se-ia que o leo rugiem de S. Pedro ruge menos aqui. Ilusão, certamente, de
um pecador reformado. (Ibidem)

5 . Retratos à la minuta

São muitas as figuras da literatura e das artes evocadas e


retratadas nas suas crónicas, bem ao gosto dos memorialistas do século
XIX. Seguimos a lista proposta por Artur Anselmo (1999:16 s) com
algumas alterações.

28
Esta consciência do "limite de idade” é uma constante na sua poesia desta fase.
Vejam-se, a título de exemplo, os versos: “Minha morte civil, folha de
vencimentos,/ Cairá também como ao choupo amarelo,/ Aposentados nós nos
escudos do exílio:/ (...) Abro no choupo o que fecho no osso:/ Meu nome
passageiro/ Convocado do chão.”
( “Epígrafe”, Limite de Idade, in NEMÉSIO, Vitorino, Obras Completas, Vol. II –
Poesia, Lisboa, INCM, 1989). Esta fase de Nemésio, mesmo na poesia, revela
preocupações científicas, também patentes em muitas crónicas.
22

Entre os escritores portugueses: Camões (pp. 130-132, 16.2.72),


Francisco Rodrigues Lobo (p. 190, 3.9.71), Visconde de Benalcanfor
(p. 93, 22.10.71), Gabriel Pereira (p. 93, 22.10.71), Camilo Castelo
Branco (pp. 139-141, 28.7.72), Júlio Dinis (p. 85-87, 24.9.71), Raul
Brandão (pp. 58-69, 16.7.71; 22.12.72; 29.12.72; 5.1.73), Florêncio
Terra (p. 93, 22.10.71), Teixeira de Pascoais (pp. 64-66, 29.12.72),
Carlos Malheiro Dias (p. 74, 6.8.71), Afonso Lopes Vieira (pp. 80-81,
27.8.71; 185-187, 13.8.71; 191-193, 14.7.72), Júlio Dantas (p. 74,
6.8.71), Augusto de Castro (pp. 73-75, 6.8.71), Manuel da Silva Gaio
(pp. 71-72, 9.1.73), Alfredo Guisado (pp. 94-96, 5.11.71), Câmara Lima
(p. 92, 22.10.71), Cunha Leal (pp. 43-45, 23.7.71), Ezequiel de Campos
(pp. 322-323, 9.3.73), Raul Proença (p. 67, 5.1.73), Câmara Reys (pp.
68, 5.1.73 e 85, 24.9.71), Jaime Cortesão (p. 67, 5.1.73), Chagas Franco
(pp. 291-293, 31.12.71), Eleázaro Kamenesky (pp. 179-180, 10.9.71),
José Régio (pp. 59, 16.7.71; 201-202, 2.7.71), Tomaz de Figueiredo
(p.172, 23.4.71), Alfredo de Matos Chaves (pp. 229-230, 11.2.72), João
Ilhéu, pseudónimo de Frederico Lopes (pp.225-227, 4.2.72), Pinto
Barriga (pp. 167-168, 12.1.73), Fernando de Castro Pires de Lima (pp.
168-169, 12.1.73), Ibérico Nogueira (p. 92, 22.10.71), Eudoro de Sousa
(p. 262, 8.9.72), Francisco Tenreiro (p. 326, 2.3.73), Miguel Torga (pp.
176-177, 10.9.71), Fernando Namora (pp. 176-178, 10.9.71);
Entre os artistas plásticos: Guilherme Filipe (pp.49-51, 18.6.71),
Jorge Barradas (pp. 55-57, 9.7.71), Carlos Botelho (pp. 142- 144,
4.8.72);
Entre os compositores: Francisco de Lacerda (pp. 309-314,
3.12.71 e 29.3.72), António da Costa Rebelo (pp. 273-275, 6.10.72);
Entre os escritores e artistas brasileiros: José Lins do Rego (pp.
244-245, 21.5.71 ), Graciliano Ramos (pp. 244-245, 21.5.71), Vitalino
(p. 247, 21.7.72), António Celestino (pp. 256- 257, 11.8.72), Paulo
Cavalcanti (p. 257, 11.8.72), Rachel de Quriroz (pp. 259-260, 1.9.72);
Entre os colegas estrangeiros: Victor Buescu (pp. 52-54,
25.6.71), Scarlat Lambrino (p. 53, 25.6.71), Georges le Gentil (pp. 291-
292, 31.12.71);
Entre os escritores estrangeiros: Mauriac (pp. 182-183, 5.5.72),
Mircea Eliade (p. 53, 25.6.71);
Entre os artistas estrangeiros: Picasso e Charlot (pp. 97-99,
12.11.71).

Muitas das crónicas que tomam como pretexto as figuras acima


inventariadas, entre outras, podem considerar-se verdadeiras páginas de
crítica literária 29 e artística. E, apesar do confessado impressionismo por
29
Cf. GOULART (1998:617 ss).
23

parte do autor, e da ausência de constrangimentos formais, não deixa de


ser rigoroso e de apresentar sistematizações pertinentes e valiosas. Não
se limita a “apanhar as migalhas”. Dois factos merecem realce: não dá
voz apenas, ou mesmo prioritariamente, às celebridades, fazendo justiça
àqueles que, tendo valor, são esquecidos pelo sistema; e não assoalha
ressentimentos, nem embarca na “cultura da má língua”, que,
paradoxalmente, dá título a uma crónica (JO, 103-105, 18.2.72).

O comentário a uma exposição de pintura de Carlos Botelho


arranca a Nemésio uma auto-crítica literária – que pratica diversas
vezes – , referindo uma “larga zona da [sua] poesia e ficção, que aspira
a uma representação como que plástica das coisas” (p. 142, 4.8.72).

6 . Fastos e Nefastos

Muitas das crónicas do Observador constituem uma reflexão do


autor sobre efemérides dos calendários religioso e civil, que servem de
pretexto para uma articulação de conhecimentos de vários domínios
desde a Teologia, às ciências sociais e humanas e mesmo às ciências
exactas, testemunhando a vasta cultura de Nemésio.

Começamos pelas aparições de Fátima, que preenchem as


crónicas de 10.3.72 e 17.3.72. A primeira parte das notas
fragmentárias, diarísticas, da sua visita de 11 e 14.6.56. A segunda
apresenta uma reflexão pessoal documentada sobre o fenómeno e o
“processo de Fátima”.

O calendário religioso motiva ainda as seguintes crónicas:


“Missas de Macabeu” (pp. 152-154, 10.11.72), a propósito dos fiéis
defuntos; “Magusto” (pp. 155-157, 17.11.72), a propósito do dia de S.
Martinho, que lhe merece uma abordagem da questão hagiográfica;
“Stella Matutina” (pp. 164-166, 15.2.72), sobre o historial da devoção e
a definição do dogma da Imaculada Conceição; “Magras evocações”
(pp. 112-114, 31.3.72), sobre a Semana Santa e a superficialidade da
sua vivência no século XIX, documentada com A Velhice do Padre
Eterno de Guerra Junqueiro; “Assis: Domingo de Ramos” (pp. 315-
317, 2.4.71), evocando as suas memórias de uma visita a esta cidade;
24

“Aleluia no campo” (pp. 115-117, 7.4.72), a propósito de uma Páscoa


afastada de Lisboa; “Próprio de Maio” (pp. 124-126, 26.5.72),
evocando a “folia” do Espírito Santo da sua infância na ilha.

Também as efemérides e os acontecimentos civis e culturais


merecem a sua atenção, porque, afinal, como Nemésio diz a propósito
da romagem à campa de “Mouzinho” de Albuquerque no Dia da
Cavalaria, “para quem presta atenção às variedades de sentido dos
grupos sociais, estas coisas esclarecem, significam” (p. 40, 30.7.71).
Esta crónica segue um processo típico das memórias, ao transcrever o
requerimento de admissão de Mouzinho ao curso de Engenharia dos
livros de assentos da Universidade de Coimbra, para dar valor
documental ao seu texto e reforçar o “efeito de real”. Também o “Dia
de Camões” (pp. 46-48, 11.6.71) mereceu a sua atenção a partir da
interpretação simbólica de uma caneca de loiça com o busto do épico,
oferecido pelo artesão António Duarte, concluindo, com fina ironia:
“até quando traz a sua triste verónica a uma caneca de vinho o venera a
seu modo” (p. 48). A propósito do primeiro de Dezembro evoca a sua
infância na Ilha e o “feriado na escola”(8.12.72).

Nemésio vai fazendo o “elogio fúnebre” de grandes figuras que


morrem. É o caso do “andarilho da pintura” modernista Guilherme
Filipe (pp. 49-51, 18.6.71), do “humanista insubornável” Victor Buescu
(pp. 52-54, 25.6.71), do pintor, ceramista e ilustrador Jorge Barradas
que escapou à morte por pouco (pp. 55-57), de Augusto de Castro (pp.
73-75, 6.8.71), de Armando Cortes-Rodrigues, que lhe faz evocar o
sobrevivente do Orpheu Alfredo Guisado octogenário (pp. 94-96,
5.11.71), de Pinto Barriga e Fernando de Castro Pires de Lima (pp. 167-
169, 12.1.73).

“A glória literária é uma ilusão” (p. 91, 22.10.71), mas “os ritos
literários” adaptam-se às novas técnicas30, insuflando o “flatus vocis da
autoria” (p. 128, 2,6.72), envolvendo o escritor no star system e ao
mesmo tempo deixando-o, paradoxalmente, fora do sistema da venda

30
Na crónica “Rito literário e silêncio” refere Nemésio: “Os ritos literários estão-se
transformando, como tudo que atravessa a era técnica. Revelações, estreias, críticas,
os usos da camaradagem com o élan da dedicatória, o dia do autógrafo (prática
recente), as praxes dos prémios – tudo muda. Já se lançam poemas (...) as novas
galerias ( em livrarias muitas delas) casam a biblioteca ao museu; (...) A aliança da
literatura à televisão é outra inovação oportuna. [A experiência lho diz!] (...) O
poema recitado e comentado, com iconografia e paisagem de ambientes – sobretudo
biográfico(...)” (p. 203, 15.10.71, sublinhados nossos).
25

da cultura como diz, com grande acuidade, Nemésio a propósito da


“feira de livros [que] é mero mercado” (ibidem):

agora, de mais a mais que entrou a moda do vernissage, como nos pintores,
para o livro de estreia, e o dia vedetístico dos autógrafos, e outras práticas
soalheiras da intimidade antiga do tímido, trabalhador de scriptorium,
levado da onda da publicidade áudio-visual e da badana biográfica.
Feira do Livro sim, mas não Festa do Livro, salvo uma iniciativa ou outra de
detalhe (...) para ajudar discretamente a aviar uns exemplares ao seu
revendedor mediante a presença em carne e osso. (Ibidem).

Claro que as coisas mudaram, mas este grito de ressentimento


fica registado como mais um desabafo do escrevinhador inveterado a
quem a notoriedade não desagradava como se pode ver pelo desabafo
que teve para Artur Anselmo:

Andei toda a vida a trabalhar na obscuridade, com poucos que me lessem,


para chegar aos 69 anos e ficar célebre por causa da televisão. (Cf. Anselmo,
1999:14)

Este narcisismo é bem patenteado em referências que faz ao


programa Se Bem me Lembro em duas crónicas do Brasil31 e numa de
França32.

7 . Crónicas ou Autobiografia Velada?!

Estas crónicas funcionam como “ritos gráficos”(p. 282, 18.8.72)


que cristalizam os “ritos turísticos”, os ritos culturais e os registos do
observador atento e do homem universal que é Vitorino Nemésio. Pelo
31
– “o resto é já com a saudade e com a página de memórias. Puro “se bem me
lembro”...(p.262, 8.9.72); “Faz-me bem rever – se bem me lembro...”(p. 276,
13.10.72)
32
Num dos seus “ritos turísticos” (p. 299, 21.1.72), comenta assim o facto de se
saber reconhecido por um grupo de emigrantes portugueses que, como ele,
visitavam o Castelo de Chambord: “O grupo descobrira em mim a fonte carnal de
uma imagem familiar a alguns deles, milagre da fácil magia semanal da RTP.
Acenei-lhes de longe e em vez do gibão joanino de hóspede de Francisco I palpei o
meu velho sobretudo de professor reformado.” (P.296, 14.1.72). Até a preocupação
com o seu traje e com a sua situação de funcionário remetido para a prateleira da
reforma denuncia o seu narcisismo.
26

seu óculo são filtrados problemas científicos, culturais e ambientais 33,


cheios de actualidade; fazendo desfilar aos olhos do leitor figuras
marcantes dos vários ramos do saber e da arte, acontecimentos e
viagens. Mas a novidade destas crónicas reside no facto de cobrir todas
estas problemáticas sempre falando de si próprio. Como diz Machado
Pires (1987:26), associando-o a Raul Brandão, “Nemésio cultiva a
introversão na escrita, a análise interior a pretexto da viagem ou
crónica, mas refugiando-se (...) no seu próprio íntimo, como bitola para
avaliar, em última análise, os homens e o mundo”.

O seu estilo coloquial, desafectado e pitoresco permite-lhe


apresentar um discurso flexível que concilia, numa mesma crónica,
coloquialismo e erudição, um registo culto e regionalismos, dominando
o aparelho conceptual das várias áreas do saber que aflora.

A “hibridez” da crónica, como género na fronteira do jornalismo


e da literatura, alarga-se para o domínio ambíguo dos géneros
autobiográficos, cujos limites continuamente toca e invade, de acordo
com as constantes indicações do próprio autor. Se Nemésio atribui
tantas designações a estas “crónicas”, que insere no seu “jornal”, com
toda a polissemia que o termo envolve (p. 127, 2.6.72), afirmando que
ele “tem função de memórias” (p. 188, 13.9.71), como iremos nós
defini-las ou classificá-las genologicamente? Artur Anselmo (1999:17s)
passa em revista os subgéneros diário íntimo, crónica, bloco notas,
caderno de viagens, roteiro, que encontram, todos eles, apoio nos textos
de Nemésio, mas também handicaps fundamentais, e decide adoptar a
definição mais poética e aberta que encontrou: “uma dose
hebdomadária de música celestial” (JO, 252, 19.5.72).

Nós diremos, em jeito de conclusão, que as potencialidades que a


crónica proporciona foram aproveitadas, e mesmo expandidas, por
Nemésio que as transformou na forma predilecta para dar vasão ao seu
vício da escrita, resvalando para o intimismo lírico e mesmo para o
ficcional, por exemplo, quando dá a palavra ao seu alter ego, Mateus
Queimado, para explicar o nome da Ilha Terceira (p. 209, 3.3.72), na
crónica que ostenta, significativamente, o título ficcionalizante “Uma
história de cego”, abrindo com o incipit “Conta Mateus Queimado...”.

33
Cf. as crónicas “O fumo das fábricas”... (JO, 118-120, 12.5.72) e “À luz do
Petróleo” (121-123, 30.6.72). A poluição é motivo do Congresso de Estocolmo em
que Nemésio participa e de que dá conta na última crónica referida.
27

Este homem universal, completamente avesso às capelinhas da


especialização “crónica”, toca em todos os assuntos com que a sua
curiosidade insaciável se depara, com o acerto e o conhecimento que a
sua vasta experiência, a sua profunda cultura e o empenhamento de
leitor aplicado lhe proporcionam. Mas, quando o seu estilo lhe parece
descarrilar para o “críptico” (p. 250, 28.4.72), apressa-se a mudar de
registo ou a assumir a exploração lúdica da linguagem, como vimos no
“jogo” da “cidade mistério” (cf. p. 14). Expressivo é o jogo da
ambiguidade da palavra “folha” (da árvore/do papel) que aprecia e
explora “a pretexto do Outono próximo” (p. 82, 17.9.71). Mas mais que
exploração da homonímia essas folhas mortas evocam, por relação
metafórica, as “folhas mortas” do espólio nemesiano. Das suas
primícias fala ele nessa crónica. E das outras? Das que aguardam a
oportunidade de sair da gaveta e ver a luz do dia? Quantas viagens sem
partida à vista?

Apropriando-nos do seu ludus e dos versos de “Epígrafe” 34,


diremos que estas “folhas” caídas do choupo amarelo estão longe de
falar de um “nome passageiro” do choupal das nossas letras. É que o
apelo do alto é mais forte que o do chão.

34
Cf. p19, nota 28.
28

BIBILOGRAFIA

A – ACTIVA

NEMÉSIO, Vitorino (1999), Obras Completas, Vol. XXI, Jornal do


Observador, Jornal de Vitorino Nemésio 8, Lisboa, Imprensa
Nacional – Casa da Moeda.

B – PASSIVA

a) Sobre Viotrino Nemésio:

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Vitorino Nemésio”, in AAVV (1998), Vitorino Nemésio Vinte
Anos Depois, O Colóquio Internacional Ponta Delgada, 18-21 de
Fevereiro de 1998, Lisboa, Edições Cosmos, pp. 521-533.
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do açoriano”, in Arquipélago, Línguas e Literaturas, Número
Especial: Vitorino Nemésio, Vol. X, 1988, Ponta Delgada, pp.
13-25.
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Observador”, Introdução a NEMÉSIO,Vitorino (1999), Obras
Completas, Vol. XXI, Jornal do Observador, Jornal de Vitorino
Nemésio 8, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, pp.
9-18. Este estudo também foi editado em AAVV (1998), Vitorino
Nemésio Vinte Anos Depois, O Colóquio Internacional Ponta
Delgada, 18-21 de Fevereiro de 1998, Lisboa, Edições Cosmos,
pp. 511-517.
CARVALHAL, Tânia Franco (1998), “Vitorino Nemésio e o Brasil”, in
AAVV (1998), Vitorino Nemésio Vinte Anos Depois, O Colóquio
Internacional Ponta Delgada, 18-21 de Fevereiro de 1998,
Lisboa, Edições Cosmos, pp. 771-777.
COELHO, Eduardo Prado (1988), “Nemésio: a casa evanescente”, in
Arquipélago, Línguas e Literaturas, Número Especial: Vitorino
Nemésio, Vol. X, 1988, Ponta Delgada, pp. 41-47.
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Geórgias Nemesianas”, Introdução a Viagens ao Pé da Porta,
Lisboa, INCM.
FERREIRA, Dina Matos, Vitorino Nemésio: micromemória do
29

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GOUVEIA, Mª Margarida Maia (1985), A Viagem e Viagens em
Vitorino Nemésio, Ponta Delgada, Universidade dos Açores.
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Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.
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1998, Lisboa, Edições Cosmos, pp. 475-482.
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Número Especial: Vitorino Nemésio, Vol. X, 1988, Ponta
Delgada, pp.195- 232.

b) Sobre a Questão Genológica:

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Luso-Brasileiro, Lisboa, Vega.
BAPTISTA, Abel Barros (1997), “O espelho perguntador”, in Colóquio
/Letras, nº 143/144, Janeiro-Junho, Lisboa, 1997.
LEJEUNE, Philippe (1994), Le pacte autobiographique, Paris, Seuil.
LETRIA, José Jorge e GOULÃO, J. (1982), Noções de Jornalismo,
Lisboa, Livros Horizonte.
LOPES, Víctor Silva (1993), Iniciação ao Jornalismo, Lisboa, Quid
Juris? Sociedade Editora, Ld.ª.
MATHIAS, Marcello Duarte (1991), “Autobiografias e diários”, in
Colóquio / Letras, n.os 143/144, Lisboa, 1997.
MAY, Georges (1979), L’autobiographie, Paris, Presses Universitaires
de France.
MELO, José Marques de ( 1988), “A crónica”, in AAVV (1988),
Jornalismo e Literatura, Actas do II Encontro Afro-Luso-
Brasileiro, Lisboa, Vega, pp. 41-53.
MORÃO, Paula (1994), “O secreto e o real – Caminhos contemporâ-
neos da autobiografia e dos escritos intimistas”, in, Românica, nº
3, 1994, pp.21-30.
ROCHA, Clara (1992), Máscaras de Narciso, estudos sobre a literatura
autobiográfica em Portugal, Coimbra, Almedina.
31

SEIXO, Mª Alzira (1986), “O outro lado da ficção – diário, crónica,


memórias, etc...”, in A Palavra do Romance, ensaios de
genologia e análise, Lisboa, Livros Horizonte, Horizonte
Universitário.
32

ÍNDICE

1.CRONICANDO...........................................................................................1

2.REFLEXÕES GENOLÓGICAS DO “OBSERVADOR...............................3

2.1.CRÓNICAS, ALÉM / AQUÉM DE TUDO O MAIS.......................5

3.MEMÓRIAS ALHEIAS.............................................................................11

4.CORAÇÃO VIAJEIRO..............................................................................16

4.1.VIAGENS AO PÉ DA PORTA....................................................16

4.2.DESTINOS ESTRANGEIROS DE UM HOMEM UNIVERSAL...17

5.RETRATOS À LA MINUTA......................................................................20

6.FASTOS E NEFASTOS...........................................................................22

7.CRÓNICAS OU AUTOBIOGRAFIA VELADA ?! ...................................24

BIBLIOGRAFIA...........................................................................................27

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