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O Caráter do Hipócrita

Charles Spurgeon1 (1834-1892)

Nossa época é cheia de enganos. A simulação nunca esteve em posição tão


eminente como agora. Há poucos, eu temo, que amam a verdade nua e crua:
dificilmente nós a aguentamos em nossas casas; raramente você fará negócios com
alguém que se atenha estritamente a ela. Se você andar pelas ruas de Londres,
pensará que todas as lojas são feitas de mármore e todas as portas são de mogno e
das mais raras madeiras. Mas logo descobrirá que raramente vai encontrar um
pedaço sequer desses preciosos materiais em qualquer das lojas, e que tudo é
imitação e aparência e verniz. Não vejo problema com essas coisas, exceto que é a
representação externa de um mal interior que ali está. Assim como acontece em
nossas ruas, assim é em todo lugar: imitação, aparência e verniz são altamente
valorizados. A falsificação alcançou tal importância, que é com grande dificuldade
que se consegue detectá-la.
A falsificação se aproximou de tal forma daquilo que é verdadeiro, que o
próprio olho da sabedoria precisa ser iluminado antes que consiga discernir a
diferença entre uma coisa e outra. Isso acontece especialmente nos assuntos
religiosos. Houve uma época de intolerância para com ideias e crenças diferentes,
quando cada homem era pesado na balança; e se ele não estivesse exatamente
dentro do padrão ortodoxo daqueles dias, era devorado pelo fogo. Mas nesta
época de caridade e de cada vez mais caridade, estamos inclinados a permitir que
a falsificação seja aceita como válida, e a imaginar que a aparência exterior é tão
importante quanto a realidade interior. Hoje, mais do que nunca, é preciso dizer:
“Acautelai-vos do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”.
O ministro de Deus talvez possa parar de pregar essa doutrina em dias de
perseguição. Quando as fogueiras estão queimando e as torturas estão sendo
aplicadas, poucos são os homens hipócritas. Fogueiras e torturas são ótimos meios
de descobrir impostores; sofrimento, dor, e morte por causa de Cristo não serão
suportados por meros hipócritas. Mas nesta época sem esse tipo de problema,
quando ser religioso é ser respeitado; quando seguir a Cristo é ser honrado; e
quando a própria piedade se tornou lucro, é duplamente necessário que o ministro
de Deus erga a voz como uma trombeta contra o pecado: “o fermento dos fariseus,
que é a hipocrisia”.
O cristão, contudo, não pertence a essa classe. De vez em quando, ele ficará
terrivelmente alarmado para que, por fim, a sua piedade não se torne apenas
aparente e a sua profissão de fé se transforme numa presunção vazia. De tempos
em tempos, aquele que é verdadeiro desconfiará de si mesmo, verificando se
porventura não anda falsamente, ao passo que aquele que é falso se esconderá
numa constante confiança em sua própria sinceridade. Meus queridos irmãos, se
vocês estão em dúvida quanto a sua própria sinceridade, as verdades que vou lhes

1 Charles H. Spurgeon: influente ministro batista inglês.


O caráter do hipócrita — C. H. Spurgeon 2

dizer talvez os ajudem a sondar seu próprio coração e a provar os seus próprios
motivos; e estou certo que vocês não haverão de me censurar se eu lhes parecer
muito severo. Em vez disso, você haverá de dizer: “Senhor, eu quero estar seguro
quanto a minha própria alma; diga-me com toda fidelidade e me fale
honestamente quais são os sinais de um hipócrita, e eu vou ficar sentado tentando
ler meu próprio coração para descobrir quais dessas coisas dizem respeito a mim
mesmo. E ficarei feliz se eu puder sair do fogo mais puro do que o ouro”.
O CARÁTER DO HIPÓCRITA: No capítulo que acabamos de ler, Mateus 23,
temos uma cuidadosa descrição do hipócrita, e não conheço melhor método de
expor o assunto do que me reportar outra vez às palavras de Cristo.
Um hipócrita pode ser conhecido pelo fato que as suas palavras e suas
ações são contrárias umas às outras. Como Jesus diz: “Eles dizem e não fazem”. O
hipócrita fala como um anjo; ele cita textos com a maior rapidez. Ele consegue
falar a respeito dos assuntos religiosos, quer sejam doutrinas teológicas, questões
metafísicas, ou dificuldades práticas. Em sua opinião, ele sabe muito e quando
começa a falar, você com frequência se sentirá envergonhado da sua própria
ignorância na presença do conhecimento superior dele.
Mas repare quando ele chega à prática. O que você vê ali? A maior
contradição de tudo aquilo que ele estava dizendo. Ele diz aos outros que
precisam obedecer à Lei. E ele obedece? Ah, não! Ele declara que os outros
precisam experimentar isto, aquilo, e aquiloutro; e ele expõe um elaborado método
de vida, muito acima da própria vida cristã. Mas ele toca aquilo? Não, nem mesmo
com a ponta de um só de seus dedos. Ele dirá aos outros o que devem fazer. Mas
ele se lembra do seu próprio ensino? Não, não ele! Siga-o até a sua casa,
investigue-o no mercado, repare nele enquanto compra: e se você quer refutar a
pregação dele, facilmente encontrará argumentos na própria vida dele. Meu
ouvinte! Será esse o seu caso?
Com vergonha, cada um de nós precisa confessar que em certa medida,
nossa vida contradiz aquilo que professamos. Coramos de vergonha e lamentamos
isso... Ah! Creiam-me, meus ouvintes: falar é fácil, mas fazer é difícil. Falar
qualquer homem pode falar, mas agir é difícil. Nós precisamos de graça interior
para fazer santa a nossa vida; mas a piedade só de lábios não carece de graça. A
primeira característica de um hipócrita, então, é que ele contradiz com suas ações
aquilo que afirma com a boca. Será que alguém de vocês faz isso? Se faz,
reconheça a sua hipocrisia, curve a cabeça, e confesse o seu pecado.
Outra característica do hipócrita é que, quando ele faz algo bom, é com o
intuito de ser visto pelos homens. O hipócrita toca trombeta antes de dar esmolas
e faz suas orações nas esquinas das ruas. Para ele, ser virtuoso sem ser visto é
quase um defeito: ele não consegue ver nenhuma beleza na virtude, a não ser que
haja mil olhos a contemplá-la; aí, sim, ela vale alguma coisa. O verdadeiro cristão,
como o rouxinol, canta de noite; mas o hipócrita canta todas as suas canções de
dia, quando pode ser visto e ouvido pelos homens. Ser bem falado pelos outros é o
elixir que prolonga a sua vida. Ser elogiado é como vinho suave para ele. A
censura de alguém a respeito de alguma virtude faz com que ele mude de opinião
sobre o assunto num instante, pois o padrão dele é a opinião dos seus
semelhantes. A sua lei é a lei do interesseiro e da autopromoção: ele cultiva a
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virtude porque ser virtuoso implica em receber elogios. Mas se amanhã a maldade
fosse mais prestigiada, ele se tornaria tão mau quanto os outros. Há muitos que
estão à procura é de aplausos.
Agora, é esse o seu caso? Sejamos honestos em nosso auto-exame. Quando
ajudamos os pobres, tentamos fazê-lo secretamente, quando ninguém vai
comentar o assunto? Fazemos nossas orações em nosso quarto, onde Deus, que
ouve o clamor em secreto, atende a nossa súplica? Podemos dizer que, se os
homens todos fossem como pedras cegas, surdas e mudas, não alteraríamos nossa
conduta nem um pouco? Podemos dizer que a opinião dos nosso semelhantes não
é a lei que nos guia, mas que somos servos do nosso Deus e da nossa consciência, e
não faremos nenhum mal devido a bajulação, nem nos sentiremos instigados a
agir corretamente por medo de sermos censurados? Veja: aquele cuja motivação
para agir corretamente não é mais do que o desejo de ser elogiado pelos outros
tem todos os indícios de ser um hipócrita. Mas aquele que faz o que é certo,
mesmo contra a opinião dos outros, e o faz simplesmente porque crê que é o certo,
e vê a aprovação de Deus sobre o que faz, não precisa temer que é um hipócrita...
É o que acontece com você? Se é, seja honesto. E assim como você declararia
culpado o seu semelhante, declare-se culpado a si mesmo.
Outra característica é que os hipócritas amam títulos, honras e o respeito
dos homens. A maior alegria do fariseu era ser chamado Rabi2. Quando se
encontrava no mais destacado lugar da sinagoga, sentia-se realmente grande...
Mas o verdadeiro cristão não precisa de títulos. Uma das características dos
cristãos é que em geral usam nomes ofensivos para serem identificados. Houve
tempo em que o nome metodista era ofensivo. O que disseram esses bons homens
para aqueles que lhes atribuíram esse nome? “Vocês nos chamam metodistas para
nos ofender, não é? Pois esse será o nosso nome.” O nome puritano era o mais
rude de todos; era a maneira pela qual os bêbados e os de boca suja se referiam a
um homem piedoso. “Bem,” — disse o homem piedoso — “serei chamado de
puritano. Se esse nome é uma vergonha, eu o assumirei.” Assim tem acontecido
com o cristão por todo o mundo. Ele tem escolhido para si mesmo o nome que lhe
foi dado maliciosamente pelo inimigo. Com o hipócrita isso não acontece. Ele
assume o nome que lhe é mais honroso; ele quer sempre ser considerado como
quem pertence ao mais respeitoso grupo, e dentro daquele grupo quer exercer um
cargo que lhe confira o mais honrável título. E então, você pode dizer do íntimo da
sua alma que em matéria de religião não está buscando honras ou títulos, mas que
você pode desprezar sob seus pés isso tudo e não desejar grau mais elevado do
que o de um pecador salvo pela graça e não querer maior honra do que sentar aos
pés de Jesus e aprender dEle? Vocês estão dispostos a ser os desprezados
seguidores do Filho do carpinteiro...? Se for assm, penso eu, vocês tem pouca
hipocrisia dentro de si. Mas se O seguem apenas porque são honrados pelos
homens, adeus à sinceridade da religião de vocês!
Havia uma outra característica do hipócrita, que ao mesmo tempo era algo
bom, ou seja, ele coava um mosquito e engolia um camelo. Os hipócritas dos
nossos dias não nos condenam por comermos sem lavar as mãos, mas continuam

2 Titulo respeitoso dado pelos judeus aos doutores da Lei: meu grande; meu mestre.
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se concentrando em algumas omissões cerimoniais. O sabatismo3 tem fornecido à


hipocrisia um excelente refúgio. Coisas necessárias feitas pelo cristão são objeto do
horror santarrão dos fariseus; e obras de misericórdia e sorrisos de alegria são
odiosos pecados na opinião do hipócritas, se feitos num domingo. Mas nosso Pai
trabalha até agora e Cristo também trabalha, pois as obras de bondade,
misericórdia e caridade são as obras apropriadas ao sábado; contudo se o cristão
se dedica a isso, dizem que ele está transgredindo a santa Lei de Deus. A mais leve
infração de alguma cerimônia religiosa torna-se um grande pecado aos olhos do
hipócrita. Mas ele, pobre coitado, que acha defeitos em você em assuntos tão
triviais, coando um mosquito, é aquele que você verá enganando, adulterando
suas mercadorias, mentindo, aumentando artificialmente os preços, e oprimindo
os pobres. Tenho reparado que aqueles que se preocupam com pequeninas coisas,
que estão sempre à procura de pequenos pontos de controvérsia, são exatamente
os que omitem os mais importantes assuntos da Lei... Desconfie sempre de você
mesmo quando você está mais preocupado com pequenas coisas do que com as
coisas maiores. Se você perceber que fere mais a sua consciência o fato de não ter
comparecido à comunhão do que enganar uma viúva, fique certo de que você está
errado... Vocês podem estar absolutamente certos que é um enganador o homem
que coa um mosquito mas engole um camelo. Prestem atenção, meus queridos
amigos, vocês devem esforçar-se em coar os mosquitos, não tenho nenhuma
objeção quanto a isso — vocês só não devem mais tarde engolir um camelo! Seja
tão específico quanto quiser em matéria de certo e errado. Se você pensa que uma
pequena coisa está errada, ela é errada para você: “... tudo o que não provém de fé
é pecado” (Rm 14.23). Se você não tem liberdade para fazê-lo, crendo que está
certo em não praticar aquilo, mesmo que outra pessoa possa fazer aquilo e fazê-lo
com a consciência tranquila, para você isso não é certo. Seja criterioso com os
mosquitos; eles não são coisa boa nas suas vinhas; esforce-se para expulsá-los! É
bom livrar-se deles, mas depois não abra a boca para engolir um camelo. Pois se
você fizer isso, não dará evidência de ser um filho de Deus, mas provará que é um
detestável hipócrita.
Mas continue a leitura desse capítulo, e você verá que essas pessoas
negligenciavam toda a parte interior da religião, observando apenas os ritos
exteriores. Nosso Salvador afirmou que eles lavavam “o exterior do copo e do
prato, mas estes, por dentro, estão cheios de rapina e intemperança” (Mt 23.25). Há
muitos livros de capa bonita, mas sem conteúdo nenhum. E há muitos que
apresentam um exterior muito espiritual, mas não têm nada no coração. Você
conhece alguém assim? Se você conhecer a si mesmo, talvez descubra alguém
assim. Você conhece alguém extremamente religioso, que dificilmente deixa de
participar de algum dos meios da graça4, que pratica os rituais em todas as
reuniões e formas, que não se desviaria nem um fio de cabelo de algum
mandamento externo? Diante do mundo, parecem pessoas eminentemente
piedosas porque são cuidadosos com as coisas externas do santuário; contudo são
negligentes quanto aos assuntos do interior do coração. Contanto que tomem o
pão e o vinho, não se importam que estejam comendo a carne e bebendo o sangue

3 Movimento daqueles que observam o Dia do Senhor (domingo) como o Sábado Cristão.
4 Os cultos públicos, a santa ceia, o batismo, a leitura da Palavra, as orações...
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de Cristo. Contanto que sejam batizados com água, não se importam que tenham
sido sepultados com Cristo na morte pelo batismo. Contanto que tenham
comparecido à casa do Senhor, estão satisfeitos. Para eles não faz diferença se
tiveram comunhão com Cristo ou não. Não, eles estão plenamente satisfeitos,
contanto que a casca esteja bem; não se importam com a semente (a parte central,
interior). O trigo pode ir para onde quiser — eles estão completamente satisfeitos
com a palha, com o refugo, e com os talos, isso lhes basta e é o que lhes interessa.
Algumas pessoas que eu conheço são como as estalagens que têm um anjo
na placa de entrada, mas têm um demônio como proprietário. Há muitas pessoas
desse tipo. Elas tomam muito cuidado para manter com excelente aparência a
placa; são conhecidos por todos os homens como rigidamente religiosos. Mas por
dentro, que é o que realmente importa, estão cheios de perversidade. Mas eu
tenho, às vezes, ouvido pessoas se equivocarem a esse respeito. Elas dizem: “Ah,
bem, pobre homem; ele é um bêbado inveterado, com certeza; mas no fundo ele é
um homem de muito bom coração”. Ora, como Rowland Hill5 costumava dizer,
isso é de admirar, que alguém diga uma coisa dessas a respeito de outra pessoa:
mau na superfície e bom no fundo. Quando os feirantes levam suas frutas ao
mercado, não conseguem fazer os fregueses acreditar que possuem maçãs boas, se
as que estão no topo estão podres. A conduta exterior de um homem é, em geral,
um pouco melhor do que o seu coração. São muito poucos os homens que vendem
coisas melhores do que aquelas que expõem na vitrine.
Por isso, não me entenda mal. Quando eu digo que temos de prestar mais
atenção ao interior do que ao exterior, não pretendo que você deixe o exterior sem
tratar. “Limpa o exterior do copo e do prato” — limpe-os o mais que você puder,
mas tome cuidado também para que o interior esteja limpo. Cuide primeiro do
interior. Pergunte a si mesmo: “Eu já nasci de novo? Já passei das trevas para a
luz? Já fui resgatado do reino de Satanás para o reino do Filho amado de Deus?
Será que eu vivo em comunhão pessoal com o Senhor Jesus? Posso dizer que meu
coração anela o Senhor assim como a corça suspira pelas águas?” Porque se eu não
posso afirmar essas coisas, qualquer que seja minha vida exterior, estou me
enganando e enganando os outros, e os ais do hipócrita recaem sobre mim. Limpei
o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de perversidade. Será isso
verdade a respeito de qualquer de vocês? Estarei pregando algo de que eu mesmo
sou culpado? Então Deus seja bendito por isso! Que a verdade seja a morte dos
nossos enganos.
Você também pode conhecer um hipócrita por outra característica: a
religião dele depende do lugar onde está, ou da hora do dia. Ele levanta às sete
horas, talvez, e você o verá muito religioso por uns quinze minutos. Ele está, como
disse um menino, “Fazendo as suas orações para si mesmo”, nesses primeiros
minutos da manhã. Bem, depois você o encontrará bastante piedoso por outra
meia hora, pois é o momento das orações em família. Mas quando ele começa a
trabalhar, e ele conversa com seus subordinados, não garanto que você consiga
considerá-lo com respeito e simpatia. Se um dos seus funcionários andou fazendo
alguma coisa um pouco errada, você talvez o encontre usando palavras iradas e

5 Rowland Hill (1744-1833) – Pregador anglicano que ministrou em Southwark, na Surrey Chapel, em Londres. Era um aristocrata
convertido ao Evangelicalismo e um grande defensor da pregação itinerante. Muito citado por Charles Spurgeon.
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não adequadas. Você também o encontrará não exatamente piedoso, se ele


encontrar um cliente que ele não julga lá tão esperto, pois vai tentar passar a perna
nele. Você verá também que, se ele vir uma boa oportunidade em qualquer hora
do dia, estará bem disposto a fazer alguma trapaça. Ele foi um santo de manhã,
pois naquela hora ele não tinha nada a perder com aquilo. Mas ele não leva a
religião com tanta seriedade assim. “Negócios são negócios”, diz ele, e coloca a
religião de lado mediante o expediente de espichar a consciência, que no seu caso
é feita de material bastante elástico. Bem, em algum momento à tarde você o verá
outra vez bastante piedoso, a não ser que tenha saído de viagem, onde nem a
esposa, nem a família, nem a igreja podem vê-lo. E você o encontrará nalgum
teatro. Ele não iria se houvesse a possibilidade de um pastor ficar sabendo disso,
pois seria excomungado. Mas ele não se importa de ir quando os olhos da igreja
ou de qualquer de seus amigos não estiverem vendo o que faz. Roupas elegantes
produzem elegantes cavalheiros, e lugares finos fazem finos hipócritas. Mas o
homem que é verdadeiro para com Deus e para com a sua consciência é um cristão
o dia todo e a noite toda, e é cristão em todo lugar. “Ainda que você me encha a
casa de prata e ouro” — diz ele — “eu não faria nenhuma trapaça. Ainda que você
me desse as estrelas e as incontáveis riquezas dos impérios, eu não faria aquilo que
desonra a Deus ou que mancha a minha profissão de fé”.
Ponha o verdadeiro cristão onde possa pecar e ser elogiado por isso, e ele
não o fará. Ele não odeia o pecado por causa dos outros, mas o odeia por motivos
próprios. Ele diz: “Como poderia eu fazer essa maldade e pecar contra Deus?”
Você descobrirá que ele é um homem falho, mas não é um homem falso. Você
descobrirá que ele tem muitas fraquezas, mas não pecará de modo intencional,
nem planejará pecar de propósito. Como cristão, você precisa seguir a Cristo tanto
nos atoleiros quanto nos prados; você precisa andar com Ele tanto na chuva
quanto no sol; você precisa andar com Ele tanto nas tempestades quanto no bom
tempo. Não se pode chamar de cristão aquele que não consegue andar com Cristo
nos trapos, na pobreza, nos insultos, na vergonha. Esse é o hipócrita que consegue
andar com Cristo nos chinelos de prata e O abandona quando se torna necessário
andar descalço... Será isso verdade a respeito de algum de nós? Podemos dizer que
desejamos ser sempre os mesmos? Ou mudamos conforme nossas companhias e
conforme o horário? Se for assim, somos hipócritas confessos, reconheçamos isso
diante de Deus, e queira Deus nos fazer sinceros.
Há uma outra característica do hipócrita; e agora a ponta do chicote cairá
em minhas próprias costas e da maioria de nós também. Os hipócritas, e outras
pessoas além dos hipócritas, geralmente são severos com os outros e bastante
tolerantes consigo mesmos. Você já ouviu um hipócrita descrever a si mesmo? Eu
digo a ele: “Você é um sujeito sovina, miserável”. “Não, não sou,” — diz ele —
“Eu sou é econômico”. Eu digo a ele: “Você é desonesto, é um ladrão”. “Não,” —
diz ele — “eu apenas sou esperto e profissional”. “Certo,” — eu lhe digo — “mas
você é orgulhoso e arrogante”. “Oh!” — diz ele — “O que eu tenho é apenas um
adequado respeito próprio”. “Tudo bem, mas você é um bajulador fingido”.
“Não,” — diz ele — “Eu me faço tudo para com todos”. De uma forma ou de outra
ele fará os defeitos parecerem virtudes nele, mas ele seguirá critério diferente
quando avaliar os outros. Mostre-lhe um cristão que de fato é humilde, e ele dirá:
“Eu odeio esse jeito bajulador dele”. Diga-lhe que você conhece alguém que é
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muito ousado por Cristo: “Oh! Ele é atrevido demais e sem respeito” — ele dirá.
Mostre-lhe alguém que é generoso, alguém que faz o que pode no serviço do
Senhor, gastando e sendo gasto por Ele. “Irrefletido e imprudente” — diz ele —
“Extravagante! Essa pessoa não sabe o que faz.” Você pode destacar uma virtude,
e o hipócrita imediatamente diz que é um defeito. Você já viu um hipócrita virar
médico? Ele tem uma vistosa trave no olho, suficientemente grande para expulsar
da sua alma a luz celestial. No entanto, ele é um hábil oftalmologista. Ele se dispõe
a ajudar algum pobre irmão, cujo olho está levemente infectado com um cisco, tão
pequeno que mesmo a mais intensa luz do sol dificilmente o torna visível. Veja o
nosso amigo da trave no olho; ele faz uma cara de entendido e dispara: “Deixe-me
tirar esse cisco do seu olho!” “Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho e, então,
verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão” (Mt 7.5). Há pessoas
do tipo que transforma as virtudes dos outros em defeitos, e os seus próprios
defeitos eles transformam em virtudes. Se você é um cristão, vou dizer-lhe qual
deve ser a sua atitude: ela deve ser exatamente o oposto. Você deve sempre
desculpar os outros, mas jamais deve arrumar desculpas para si mesmo. O
verdadeiro cristão, quando vê algum pecado em si mesmo, lamenta o fato e se
perturba muito com isso. Ele diz: “Oh! Eu me sinto tão cheio de pecado”. E a
pessoa que ouve diz: “Eu na verdade não consigo ver isso. Não vejo nenhum
pecado em você; eu gostaria de ser tão santo quanto você é.” “Não,” — diz o
cristão — “Eu sou cheio de defeitos”.
João Bunyan descreve Misericórdia, Cristiana, e as crianças depois que
foram lavados na água e selados com o selo. Ele diz que elas saíram da água todas
com aparência muito agradável; e uma começou a dizer à outra: “Você está mais
bonita do que eu!” e: “Você é mais graciosa do que eu!” disse a outra. E então cada
uma começou a lamentar seus próprios defeitos e a elogiar a beleza das outras.
Esse é o espírito de um cristão. Mas o espírito de um hipócrita é exatamente o
contrário: ele julgará e condenará e punirá com a lei do linchamento toda e
qualquer outra pessoa. E quanto a si mesmo, ele está isento, ele é um rei, ele não
conhece lei, e a sua consciência descansa e lhe permite prosseguir em paz nos
próprios pecados que ele condena nos outros.

Pregação feita na manhã de domingo de 6 de fevereiro de 1859,


no The Music Hall, Royal Surrey Gardens.

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Tradução: Helio Kirchheim
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