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Juiz chegou e já ouviu tiros


Alceu A. Sperança
No livro O Brasiguaio Don
Antonio, em que o ex-deputado
federal Lyrio Bertoli narra fatos
reais com nomes fictícios, ele é o
juiz “Estefânio de Figueiras”.
Epiphânio Alves de Figueiredo
(1921−1997), advogado, primeiro
juiz de Cascavel e um dos raros
corajosos que nos tempos da
opressão ditatorial denunciava
abertamente os criminosos que
comandavam o Oeste do Paraná,
completaria 90 anos neste dia 25 de
maio.

Baiano de Ilhéus, Epiphânio se formou pela Universidade


Estadual do Rio de Janeiro. A vinda para Cascavel, a cidade violenta
e injusta que o conquistou, não foi voluntária.
O juiz titular designado pelo Tribunal de Justiça do Estado para
atuar em Cascavel se intimidou com os “atributos” sangrentos da
cidade e se recusou a trazer a família ao Oeste do Paraná.
Foi assim que o TJ designou como juiz substituto esse baiano de
33 anos, com a missão única de celebrar o casamento de Estanislau
Schock e Terezinha Simioni e já retornar ao Norte do Paraná.
É o dia 9 de julho de 1954. Epiphânio acaba de chegar e está
prevenido de que em Cascavel, venenosa cidade do “faroeste”
brasileiro, as coisas se resolvem mais na bala que na conversa.
Afinal, a Justiça era uma criança: a Comarca tinha só um mês de
existência e juiz algum tinha coragem para assumi-la. Isso implicaria
trazer a família para um lugar assustador e sem escola para as
crianças.
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“O pior era o
jaguncismo
oficializado.
Eram as instituições
oficiais com jagunços
lá dentro”

O jovem juiz procura um hotel para se hospedar e lhe indicam o


Hotel Americano, em cujas proximidades estava a padaria-
lanchonete de dona Frida, sogra de João Lindolfo Deckmann,
proprietário do futuro Cine Teatro Coliseu.
Ali o recém-chegado Epiphânio se deparou com um homem que
brandia um revólver e disparava para cima.
− Cheguei e perguntei quem era o delegado de polícia, no que
alguém respondeu: “É aquele, lá”. O delegado, após ouvir os tiros
dirigiu-se para o local. Nisso, dona Frida já tinha desmaiado de
medo. Dirigi-me ao delegado: “O senhor, por favor, prenda este
homem”. Ele não sabia que eu era o juiz recém-chegado e que vim a
Cascavel fazer um casamento para depois voltar.
O delegado retrucou: “Só farei a prisão com ordem expressa do
juiz”. Epiphânio: “Pode fazer a prisão. Eu sou o juiz”. Feita a prisão,
no dia seguinte o infrator compareceu ao Fórum.
Ao ser interrogado, contou Epiphânio, “o infrator quis amolecer a
pena se declarando baiano como o juiz, como conterrâneo: dizia que
nasceu em Ilhéus, assim como eu”.
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“Havia muito crime. A


tônica aqui era o crime,
de todas as ordens, muito
homicídio, todo mundo
andava armado”

O juiz nem pestanejou: “Justiça, para ser boa, tem que começar
em casa”. O conterrâneo do juiz foi condenado, preso e depois
nunca mais foi visto em Cascavel.
Ameaçado de morte e acusado de ser inflexível demais, ainda
assim, ao deixar a função de juiz, Figueiredo decidiu advogar nesta
cidade injusta.
Só uma coisa iria abalar esse baiano “sistemático”: a morte da
esposa Maria Thereza de Abreu, professora, depois homenageada
com o nome de uma escola em Cascavel.
Epiphânio teve com ela quatro filhos: Valéria, que foi servir na
Aeronáutica, Paulo (engenheiro agrônomo), Cláudio (advogado) e
Maria Thaís (jornalista).
A Cascavel que Epiphânio encontrou clamava por justiça: “Todo
mundo andava armado. O pior era o jaguncismo oficializado. Eram
as instituições oficiais com jagunços lá dentro”.
Quando a morte o golpeou, em 16 de novembro de 1997, a
democracia pela qual ele tanto lutou havia sido conquistada pelo seu
MDB mais de uma década antes, mas as injustiças ainda se
acumulavam no País.
Em uma reunião com jornalistas, que ele carinhosamente
chamava de “mexericólogos”, pouco tempo antes de sua morte,
reconheceu que ainda havia muito por fazer: “Conquistar a
democracia não é a democracia. A democracia é uma construção
ainda longe de acabar”.
Cabe aos que sobreviveram cimentá-la e lhe dar o devido
acabamento.

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