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O QUE É FORMAÇÃO PARA A CIDADANIA?

Entrevista com a socióloga e educadora Maria Victória Benevides


realizada por Silvio Caccia Bava, diretor da ABONG, em janeiro de
2.000.

SILVIO: - Como você está vendo, hoje, essa discussão da cidadania?


Existem significados distintos que são atribuídos ao conceito
dependendo de quem fala. Para você, o que é cidadania hoje?

MARIA VICTÓRIA: - Cidadania para mim hoje se resume a uma


palavra, que é a participação. A participação como indivíduo ou como
um grupo organizado nas mais variadas áreas de atuação na
sociedade, na esfera pública. Então cidadania para mim é sinônimo
de participação, ou seja, de não omissão, indiferença etc., em relação
ao exercício do poder.

SILVIO: - Eu tenho acompanhado alguns experimentos de


participação, e hoje em dia consigo perceber que certos tipos de
participação são muito mais, vamos dizer assim, mecanismos de
cooptação dos de baixo, do que uma efetiva democratização do poder.
Se cidadania para você é participação, tem alguma condição para
essa participação, ou você está falando de uma maneira geral de
participação?

MARIA VICTÓRIA: - Eu estou me referindo à uma participação que


realmente exige algumas condições. É claro que essa possibilidade de
cooptação vai sempre existir, mas isso existe mesmo em uma
democracia mais avançada. A possibilidade de cooptação existe na
universidade, existe em relação ao sindicato, existe nos partidos
políticos, existe nas mais variadas áreas e instâncias da sociedade, do
poder. Então, a cooptação pode existir sim, quando é o próprio poder
constituído que abre espaços de participação, em relação, por
exemplo, a movimentos de moradores, a conselhos de fiscalização, de
gestão, etc. Então é por isso que você tem razão quando fala de
certas condições, não é? Uma dessas condições é a autonomia dessa
participação do grupo, do movimento, da associação, ou dos
indivíduos, tomados individualmente como eleitores, por exemplo.
Como eleitores que vão participar de processos de tomada de decisão
através de consultas populares, iniciativas legislativas, referendos,
plebiscitos etc. A possibilidade de cooptação é muito grave, mas ela
pode ser combatida de duas maneiras. Por uma maior informação,
que é a alma de qualquer proposta de cidadania, por uma maior
informação que seja efetivamente livre, de acesso democratizado etc.
E por uma preocupação com a autonomia tanto do lado da
participação da sociedade, quanto do lado do poder constituído, no
sentido de não impor condicionamentos institucionais que subordinem,
que leguem uma tutela dessa participação.

SILVIO: - A participação de que você fala, eu estou entendendo que é


uma via de mão dupla. Na sua opinião ela não existe sem a
concordância dos governos, mas ela também não existe sem uma
pressão social. Mas de fato, hoje em dia, nesse período, nessa maré
de desconstrução da cidadania que nós estamos vivendo,
mecanismos como orçamento participativo, ou como o funcionamento
efetivo dos conselhos, dependem muito mais do Estado, do que da
sociedade civil.

MARIA VICTÓRIA: - É por isso que eu queria dar como exemplo a


figura dessas consultas populares, que mostram como o poder
constituído pode desvirtuar e mesmo brecar uma participação efetiva
da cidadania democrática.

Por exemplo, no caso da regulamentação dessas figuras jurídicas


como referendos, plebiscitos, iniciativa popular legislativa, que nós
temos inscritos na Constituição desde 1988, no nível federal, no nível
estadual, no nível local, o problema que se coloca é que o Executivo
regulamenta de uma tal maneira que torna impossível a livre
manifestação e a livre participação. Por exemplo, quando só o
Executivo pode convocar, quando cabe ao Legislativo decidir os temas
que podem entrar numa convocação... A última regulamentação na
Câmara Federal praticamente impede a realização dessas consultas.

O projeto de consultas populares aqui em São Paulo, no município, de


autoria do então vereador Francisco Whitaker, foi aprovado na
Câmara dos Vereadores por maioria, aliás para a grande surpresa da
oposição. Mas depois o próprio prefeito, então Paulo Maluf, vetou o
projeto, que continua engavetado até hoje. Então, se brecou
claramente essa possibilidade de um tipo de participação através de
mecanismos institucionais.

SILVIO: - Mas veja o outro lado da moeda, a Tribuna Livre está


funcionando. Alguns membros da CPI da corrupção da Câmara
Municipal sugeriram a certas entidades da sociedade civil que
pedissem a constituição da Tribuna Livre para se manifestarem. E
apesar de uma divulgação razoável, pouca gente compareceu, o que
sugere um certo descrédito para as instituições. Então, quando você
concentra a sua definição de cidadania na questão da participação, eu
fico me perguntando: “Mas quem quer essa participação?". Nós
estamos em um período em que a cidadania está, vamos dizer assim,
no centro do debate da questão do poder. O descrédito nas
instituições, a crise que a gente vive, estes fatores estão, vamos dizer
assim, fragilizando a existência dessa cidadania de que você fala.

MARIA VICTÓRIA: - Eu acho interessante que a gente volte a um


clássico da cidadania como Marshal para distinguir uma cidadania
política e uma cidadania social. No plano da democracia política, no
exercício efetivo de deveres e direitos políticos, nós estamos tendo
esses problemas, de uma manipulação, de cooptação, de brecar
mesmo essa participação autônoma, livre, democrática. Esse processo
tem como contrapartida do lado da sociedade um desinteresse, um
desencanto com a participação, que já foi muito mais intensa no final
dos anos setenta pra cá, e mesmo, o que é pior do que tudo, um
desencanto e um desinteresse pela própria idéia democrática.

O mais perigoso aí é que o descrédito nas instituições políticas e


democráticas ultrapassa a figura das pessoas, dos executivos, dos
parlamentares, para atingir o próprio cerne da ação política, acaba se
transformando num descrédito na ação política e na sua capacidade
transformadora. Então, passa-se a ter uma atitude na vida social que é
o oposto de qualquer idéia de cidadania democrática, que é o das
estratégias individuais, do “salve-se quem puder”, da “justiça pelas
próprias mãos”, excluindo qualquer possibilidade de um mínimo de
solidariedade, no sentido do sólido social, e de qualquer tipo de
participação mais ativa na sociedade. Isso, em relação à cidadania
política. Embora eu veja com muita apreensão o estado atual e futuro
dessa cidadania política, eu não posso abrir mão dela, eu acho que
ela é essencial e os democratas radicais devem fazer tudo para que
ela seja uma realidade, na instância do Executivo, do Legislativo e das
várias áreas do povo organizado, que é o sinônimo de cidadania.

Você deve ter reparado que cidadania virou também sinônimo de


povo, quando se diz: “A cidadania exige tal coisa”, “A cidadania se
manifestou ao reivindicar tal coisa”, “a cidadania não admite mais...”.
Então, eu estou muito consciente dessa realidade negativa e de riscos
inerentes, mas eu acho que se tem que insistir. E do lado dos
governos, se não houver pressão, eles continuarão, que é da própria
essência do poder, e dos poderes executivos principalmente, eles
continuarão querendo controlar os processos, isso não há a menor
dúvida. Até no caso mais exitoso de participação cidadã, como é o
caso do orçamento participativo, o Executivo, podendo controlar, vai
querer controlar, isso não há dúvida.

Então, o que se tem que fazer é de alguma maneira semelhante ao


que ocorre com os processos eleitorais. Os processos eleitorais
tradicionais, votar em candidatos para o Executivo, para o Legislativo,
são evidentemente uma das primeiras práticas da cidadania política,
das mais antigas e que se mantém com pontos extremamente
negativos, como a existência de legendas de aluguel, de compra
efetiva de lugares para os candidatos, a manipulação da informação,
que é dos mais graves abusos do poder econômico, a ausência de um
mandato que tenha efetivamente condições de cobrança por parte do
eleitorado, que tenha a possibilidade de fiscalização do eleitorado em
cima dos representados... Eu, por exemplo, defendo um tipo de
mandato imperativo para enfrentar esses riscos e esses problemas. A
própria participação fiscal no processo eleitoral também tem muitos
riscos e muitos problemas, mas não vai ser por causa disso, que nós
vamos dizer que não precisamos ter um processo eleitoral, rotineiro,
formalmente instituído etc.

Então, tanto na participação tradicional, numa democracia


representativa, como na participação em outras áreas da atuação
cidadã, eu vejo a enorme necessidade daquilo que eu chamo de uma
educação para a democracia, uma formação para a cidadania, ou
seja, um movimento educacional no sentido político, que enfrente o
problema do descrédito, do desinteresse, do egoísmo político, do
desencanto com a própria idéia de democracia.
Eu fiquei muito impressionada com as últimas pesquisas que foram
feitas, daquilo que se chama de “latino barômetro”, no Brasil e países
da América do Sul. Essas pesquisas mostram que o Brasil é o pior
colocado no sentido de opiniões em relação à superioridade do regime
democrático. 49% dos entrevistados preferem a democracia, mas há
24% para quem tanto faz, é um número muito elevado, um quarto da
população absolutamente tanto faz, ser democracia ou ditadura, e o
outro quarto prefere a ditadura.

Eu até entendo mais quem prefere uma ditadura, porque assume


radicalmente uma posição favorável ao autoritarismo, ao fechamento.
Entendo mais do que aquele para quem realmente tanto faz, não vê
diferença nenhuma entre democracia e ditadura. Esse é um problema
seríssimo. Agora, para enfrentar isso, só com um processo
educacional, um processo de educação política no sentido da
democracia e da cidadania, e é nisso que eu tenho trabalhado mais.

Mas o outro lado, que recupera para a idéia da cidadania um sentido


mais forte, que deixa de estar revestida nesses aspectos formais, é a
cidadania social. No sentido de que os cidadãos têm direitos, direitos
que são inalienáveis, e direitos que são não apenas reivindicações
diante de prestações que o Estado deve cumprir, mas também
possibilidades sempre em aberto de criação de novos direitos. A
cidadania nesse sentido é a possibilidade de fruição efetiva de direitos
sociais, econômicos e culturais, de fruição efetiva no sentido de que
esses direitos não sejam apenas declamatórios, porque nós os temos
na Constituição, mas eles precisam estar acoplados a garantias
efetivas, a mecanismos imediatos de garantia desses direitos.

Por exemplo, foi muito ridicularizada uma lei aprovada no Congresso


que garante o direito à moradia. Ela foi muito ridicularizada porque da
maneira como está é ridículo mesmo, teria que todo mundo ter direito
à moradia etc. Essa lei significa o quê? Que todo mundo tem direito a
ter uma casa?

SILVIO: - Você sabe que o Japão e os Estados Unidos, durante a


discussão do Habitat II foram radicalmente contra a afirmação desses
direitos de moradia, porque a institucionalidade democrática desses
países garante que, uma vez aprovada essa lei, ela se torna efetiva
para todos. Então eles foram contra...
MARIA VICTÓRIA: - É um mecanismo auto-aplicável imediato...

SILVIO: - Eles foram contra reconhecer esses direitos de moradia


como um direito humano porque senão teriam que criar orçamentos
nos seus próprios países para atender a necessidade de moradia de
todo mundo.

MARIA VICTÓRIA: - Então a nossa grande dificuldade não é


reconhecer esses direitos, não é declarar esses direitos, isto já está
amplamente reconhecido e declarado. Vamos lembrar o que foi o
primeiro discurso do Fernando Henrique na campanha presidencial de
1994. Foi um discurso radicalmente comprometido com a efetivação
desses direitos, e não se avançou em rigorosamente nada. Nesses
cinco anos não se alcançou nada no campo de uma efetivação de
direitos econômicos, sociais, culturais etc. Então, a cidadania não se
esgota no plano da cidadania política. Ela também não se restringe
aos direitos sociais, econômicos, culturais, até mesmo porque existe
uma relação evidente entre cidadania política e cidadania social, na
medida em que sem essas possibilidades de participação, de canais
de participação, a reivindicação por esses direitos efetivos se torna
mais difícil.

Nós podemos ter uma situação rigorosamente populista, no péssimo


sentido da palavra, de uma ausência de canais de mediação, de
intermediação, e teremos então um “novo salvador”, um “pai dos
pobres”, que vai atender diretamente à esses reclamos, os direitos
sociais, econômicos, culturais etc.

Então elas se completam, a cidadania política e a cidadania social.


Não dá para dizer que só a garantia dos direitos sociais configura uma
cidadania democrática porque falta a liberdade e a autonomia para a
participação, até mesmo para reivindicar esses direitos. Assim como
também não dá para defender só a participação para pessoas que não
têm o mínimo para uma existência digna como seres humanos.

SILVIO:- Deixa eu complicar um pouquinho, de fato, eu me identifico


com essas suas definições, mas acho que nós estamos trabalhando
no plano teórico, ainda que iluminado por experiências como o
orçamento participativo, ou os mecanismos de participação afirmados
na nova Constituição. O que nós vemos no processo histórico recente
no Brasil é o que vários de nossos colegas chamam de desconstrução
de direitos. Essas reformas que encolhem a previdência, que retiram
dinheiro das políticas sociais, ou ações de Estado, como por exemplo
na primeira greve dos petroleiros do governo FHC, que bateram firme
na capacidade dos trabalhadores de se organizarem e reivindicarem.
Tudo isso leva a dizer hoje em dia, no meu modo de ver, que a
cidadania está em perigo, e que a luta pela construção da cidadania
não se opera só em condições institucionais favoráveis. Mesmo
durante a ditadura havia a necessidade da defesa dos direitos
humanos e tudo mais. Nesse cenário, e eu também quero saber se
você concorda com esse cenário, o que é a formação da cidadania?

MARIA VICTÓRIA: - Nós podemos pensar a formação para a


cidadania num campo formal e num campo informal. No campo
informal, é aquilo que a gente já conhece, através dos movimentos,
das associações, das ONGs , até mesmo dos partidos políticos com
os seus programas de formação etc. E a formação no sentido mais
formal se dá através do sistema regular de ensino, através da escola,
do ensino fundamental, do ensino universitário etc. Então essas duas
modalidades, do ensino formal e da formação fora dos mecanismos
formais de ensino, aliadas ao uso efetivo dos meios de comunicação
de massa, é que são essas possibilidades de se implementar
programas de formação de educação para a cidadania.

Eu não vejo como será possível trabalhar nessas escolas e nessas


instituições da sociedade civil para uma educação para a cidadania
sem um mínimo de acesso aos meios de comunicação de massa. Hoje
nós sabemos que a grande educadora do país é a Rede Globo, que
atinge a quase totalidade desse país continental, e que é realmente a
produtora de símbolos culturais, difusora de valores, tem portanto um
papel altamente educativo.

Então, as coisas estão muito ligadas, eu vejo uma grande necessidade


de atuar na escola desde o ensino fundamental, tenho trabalhado com
vários alunos na pós-graduação em relação a esses programas, nas
escolas públicas principalmente, mas não se descartam as escolas
privadas, e programas desse tipo na Universidade. Acompanho
também alguns programas partidários, que a meu ver têm um alcance
mais reduzido, porque o partido quer formar o “seu” cidadão. Quer
dizer, o PT tem um programa de formação política para formar o quê?
Para formar petista, e não necessariamente com uma abertura, com
uma pluralidade maior etc.

Mas defendo radicalmente uma intervenção nos meios de


comunicação de massa, no sentido de um controle democrático efetivo
sobre a programação, e que começa já com a política de concessões,
de canais de TV e de rádio, mas também na abertura da participação
direta da cidadania nesses meios de comunicação, um direito que é
chamado “direito de antena”.

SILVIO: - “Direito de antena”?

MARIA VICTÓRIA: - “Direito de antena”, que existe, por exemplo, já


com bastante êxito na Itália, mas existe em outros países também, eu
conheço específicamente a experiência italiana. O “direito de antena”
consiste em o poder constituído, relativo aos meios de comunicação,
que são essencialmente públicos, concessões públicas, garantir um
espaço para instituições representativas da sociedade civil, assim
como garante, por exemplo, o famoso horário gratuito para os partidos
e candidatos no período eleitoral e ao longo do ano.

SILVIO: - Mas nós temos, por exemplo, a TV Comunitária, a TV


Legislativa, a TV da Universidade... são experiências ainda incipientes,
mas que estão alterando...

MARIA VICTÓRIA: - Essas iniciativas são extremamente importantes,


e eu acho que isso deve ser ampliado, e que não precisa
necessariamente estar vinculado a um canal, que exista mesmo na TV
aberta, no sentido de se garantir esse tempo, e que, por exemplo, a
TV Globo tenha que ter esse tempo, que é a única que avança em
todo o território nacional. O Brasil não tem acesso, na imensa maioria
dos seus municípios, à TV Comunitária, nem à TV Legislativa, nem
sequer à TV Educativa e à TV Cultura. Então nós defendemos, como é
o caso de outros países europeus, esse “direito de antena”, inclusive
nos grandes canais da TV aberta. Isso seria o quê? Isso seria um
canal aberto para entidades representativas da sociedade, por
exemplo, para as centrais sindicais, para confederações de ONGs,
para federações por exemplo como movimento de mulheres,
movimentos de consciência negra, movimentos de defesa dos índios,
movimentos de todo tipo se manifestarem.

Esses movimentos, de minorias em geral, precisam ter acesso


regulamentado como o horário gratuito para candidatos e partidos,
tomando como justificativa o próprio princípio democrático, no sentido
de que não é apenas a representação tradicional que garante essa
essência democrática da representação.

SILVIO: - Você falou da necessidade da questão da democracia e da


cidadania estarem presentes nos currículos escolares normais, você
falou do “direito de antena”, tem algum outro aspecto que você acha
importante ressaltar na idéia da formação da cidadania?

MARIA VICTÓRIA: - Bem, os meios de comunicação de massa num


sentido amplo, incluindo a imprensa, têm um papel pedagógico
importante, e isso deve ser enfatizado, deve ser garantido. Mas a
formação para a cidadania precisa se dar também no ensino formal e
nas entidades da sociedade civil. E precisam contar com a
participação das ONGs, dos sindicatos, dos partidos. O trabalho nas
escolas não precisa necessariamente estar segmentado num
determinado currículo.

SILVIO: - Não é uma Moral e Cívica?

MARIA VICTÓRIA: - Não é uma Moral e Cívica. É uma formação que


começa pela formação dos professores. Não é necessariamente um
programa de aulas que serão dadas aos alunos de uma determinada
disciplina. Será o que nós chamamos de um tema transversal, uma
formação que é dada aos professores independentemente de sua área
de ensino.

Durante muito tempo se supôs que essa era uma área, como você
falou, de Moral e Cívica, que caberia aos professores de História, aos
professores de Geografia, aos professores de Português no máximo.
E nós estamos perfeitamente convencidos de que essa formação
cidadã pode se dividir entre as mais variadas áreas de ensino, um
professor de Matemática pode estar perfeitamente formado nessa
área de cidadania e democracia na medida em que ele vai pautar o
seu relacionamento com os alunos e o seu tipo de inserção na escola
por aqueles valores da cidadania e da democracia.
Eu digo que essa formação para a cidadania é um problema muito
difícil, porque se trata de uma argumentação que não é apenas do
ponto de vista lógico, científico, formal. É uma argumentação que
passa pela ética, pela persuasão, pelo convencimento, ou seja, pela
conquista dos corações e mentes. Não dá para fazer um trabalho
desses só com um currículo, com textos que os professores de
História ou Português vão trabalhar.

SILVIO: - Maria Victória, em várias oportunidades você falou assim:


“formação para democracia” e “formação para cidadania”, é a mesma
coisa?

MARIA VICTÓRIA: - Olha, é a mesma coisa. É por isso que eu estou


sempre me referindo à cidadania democrática. E volto ao primeiro
ponto que você levantou no início da nossa conversa, como você diz
que cidadania virou uma palavra que é usada “a torto e a direito”, às
vezes muito mais a torto do que a direito, quase como uma capa
protetora para todo o tipo de intervenção do poder público, e inclusive
nas suas várias modalidades de cooptação e manipulação. Eu
costumo lembrar, na minha área específica da Educação, como, ao
analisarmos todos os programas de atuação da Secretaria de
Educação do município de São Paulo, por exemplo, todos, sem
rigorosamente nenhuma exceção, todos têm como objetivo precípuo
uma formação para a cidadania. Então, isso aparece com Paulo Maluf,
com Erundina , com Mário Covas, com Celso Pitta, quer dizer, é no
mínimo estranho que pessoas com atuações políticas e com princípios
ideológicos tão diferenciados usem a mesma expressão para designar
o objetivo principal, o objetivo essencial da sua gestão à frente de uma
Secretaria de Educação.

A idéia de cidadania certamente não será a mesma para gestores tão


diferenciados, até mesmo em relação ao que comumente se
apresenta como uma idéia democrática mais ampla. Então eu me
refiro especificamente à cidadania democrática, lembrando também
que essa idéia de participação, de mobilização do cidadão, esteve
sempre a serviço dos regimes autoritários e mesmo totalitários. Os
regimes totalitários foram amplamente mobilizadores, o cidadão era
um cidadão total, quer dizer que nascia e morria nas mãos do Estado.
Mussolini dizia: “Tomo o indivíduo ao nascer e só o largo na morte”. O
Estado controlava toda a atividade e toda a participação do cidadão,
que era extremamente mobilizado com passeatas, através dos
símbolos mais variados, desde cânticos a roupas, a bandeiras, a
participação com eventos de massa etc. Tanto o regime nazista,
quanto o regime fascista, nas suas várias encarnações, foram
extremamente mobilizadores dessa participação de um tipo de
cidadão.

SILVIO:- Mas então, qual é a diferença?

MARIA VICTÓRIA: - Então, a cidadania democrática é outra. A


cidadania democrática, e eu insisto nisso, é aquela que realmente se
apoia nos pilares da democracia que são a liberdade e a igualdade. Eu
diria até mais, a liberdade, a igualdade e a solidariedade, para repetir
o mote da Revolução Francesa. Essa liberdade que recupera todo o
processo de garantia dos direitos individuais e das liberdades públicas,
a igualdade no sentido do reconhecimento da igualdade intrínseca de
todos os seres humanos em relação aos direitos fundamentais para
um vida digna e a solidariedade no sentido de que a sociedade é esse
sólido que deve estar interligado por laços de apoio, de convivência
etc. Isso descartando de cara as lideranças autoritárias, carismáticas,
os mais variados tipos de cezarismos que levam à uma participação,
mas uma participação controlada, sem liberdade etc.

SILVIO: - Bom, então nós estamos dialogando com as bandeiras da


Revolução Francesa? Não avançamos?

MARIA VICTÓRIA: - Não avançamos. Porque a Revolução Francesa


não chegou aqui até hoje, não é? Nós ainda estamos tributários
longínquos dos ideais da Revolução Francesa, que permanecem
extremamente atuais.

SILVIO: - Nós temos um problema, que é a questão da desinformação.


Muito do que se faz, vamos dizer assim, como apropriação privada
dos bens públicos, do espaço público, se faz porque os indivíduos
estão desinformados e não têm canais para se manifestar. Eu queria
perguntar para você: todo indivíduo já é um cidadão, ou ele se torna
um cidadão? Hannah Arendt fala alguma coisa assim, que o indivíduo
só se torna um cidadão quando ele participa e atua no espaço público.
O Chico de Oliveira já diz que não tem mais isso, porque a televisão,
o público, entrou dentro do privado. Como é para você essa questão?
A formação para a cidadania tem pré-condições? O indivíduo tem que
adquirir alguma capacidade para se transformar em cidadão ou não?

MARIA VICTÓRIA: - Bom, então vamos fazer uma distinção entre


cidadania ativa e cidadania passiva. Todos são cidadãos passivos
porque todos, numa determinada sociedade, estão sujeitos à
intervenção e sanção de uma ordem jurídica. Todos são cidadãos
passivos garantidos por uma determinada constituição que atribui
deveres e direitos. Todos são cidadãos passivos a partir da idade civil
de responsabilidade. Eles só se tornarão cidadãos ativos quando
efetivamente assumirem uma responsabilidade em relação a essa
participação nas esferas de poder, tanto para participar de processos
decisórios, como para se organizar na reivindicação de direitos sociais,
econômicos, culturais. Então, o indivíduo realmente constrói essa sua
condição, ele se torna um cidadão ativo, e essa cidadania está ligada
também a uma pré-condição, que é a da responsabilidade civil.

Por exemplo, eu costumo fazer uma diferença entre direitos humanos


e direitos de cidadania, no sentido de que direitos humanos abrange
todos os seres humanos sem nenhuma distinção. As crianças têm
direitos humanos, os deficientes mentais têm direitos humanos,
aqueles que não são amplamente cidadãos pela constituição, como os
índios, os apenados, todos eles continuam tendo direitos humanos
fundamentais, mas não têm direitos de cidadão.

É essa responsabilidade civil que vai garantir os direitos do cidadão.


Então, aquele que não é eleitor, não é um cidadão a parte inteira,
aquele que não tem o direito de ir e vir, que está apenado, que está
preso, ele não tem também a completude de seus direitos de cidadão,
é o mesmo caso do doente mental, que é irresponsável etc. Mas todos
terão sempre o amparo dos direitos humanos fundamentais. Eu acho
graça quando se fala; “a cidadania das crianças”...Eu entendo que
seja uma palavra mobilizadora para chamar a atenção para os direitos
das crianças, mas não se pode falar que esta criança seja um cidadão,
no sentido dessa responsabilidade civil. Então essa palavra é uma
palavra-chave como pré-condição para a cidadania, é assumir
responsabilidade. De certa maneira, de uma maneira empolada, nós
poderíamos dizer que a cidadania ativa é assumir essa
responsabilidade para se tornar um sujeito histórico, um sujeito
responsável pela sua história.

http://www.abong.org.br/diversos/chico.htm

O QUE É FORMAÇÃO PARA A CIDADANIA?

Entrevista com o sociólogo Francisco de Oliveira, realizada por Silvio


Caccia Bava, diretor da ABONG, em dezembro de 1999.

SILVIO: - Eu gostaria que você primeiro situasse qual é o campo


desse debate em torno da cidadania. Na verdade, quase todos os
atores coletivos sociais, quase todos os partidos políticos, senão
todos, se dizem defensores da cidadania... então, qual é a matriz de
referência que nós podemos usar para discutir cidadania? Afinal, nós
estamos falando de qual cidadania?

CHICO DE OLIVEIRA: - Nós estamos entrando na zona do agrião,


porque embora todo mundo se refira à cidadania, é extremamente
difícil de se lograr um conceito enxuto, que possa dar conta dessa
complexidade, não é?

Um caminho seria a gente tentar fazer uma definição que não é de


ausência, nem de carências, mas é uma definição de plenitude.
Cidadania seria uma espécie de estado de espírito em que o cidadão
fosse alguém dentro da sociedade - evidentemente não haveria
cidadão fora dela –, fosse alguém que estivesse em pleno gozo de sua
autonomia, e esse gozo de sua autonomia não fosse um gozo passivo,
mas sim um gozo ativo, de plena capacidade de intervir nos negócios
da sociedade, e através de outras mediações, intervir também nos
negócios do Estado que regula a sociedade da qual ele faz parte. Isso
na concepção ativa de cidadania, não apenas de quem recebe, mas
na verdade de um ator que usa seus recursos econômicos, sociais,
políticos e culturais para atuar no espaço público.

No fundo, a cidadania, a meu modo de ver, pode ser definida em


forma sintética como o estado pleno de autonomia, quer dizer, saber
escolher, poder escolher e efetivar as escolhas. E isto no Estado
moderno, na sociedade moderna, significa dizer um cidadão pleno,
consciente e ativo dos seus direitos, dos direitos individuais e dos
direitos coletivos. Então, como a gente vê, esse conceito é uma coisa
totalmente escorregadia e difícil de precisar.

SILVIO: - Eu concordo com você que a referência com a qual a gente


conversa é o cidadão enquanto indivíduo. Mas tem um problema, esse
cidadão, ele só pode efetivar o pleno gozo de sua cidadania mediado
pelo espaço público, só pode efetivar o pleno gozo de sua autonomia
mediado por instituições. Ele não existe, portanto, sem a produção
coletiva destas mediações. O indivíduo, então, não se realiza sem a
sua expressão coletiva. O pleno gozo de sua autonomia, ele só
consegue mediado por instituições.

CHICO DE OLIVEIRA: - São as instituições que compõem a armadura


material dos direitos da cidadania. Então, como é que ele efetiva?
Esse é um trabalho permanente de criação, recriação, de invenção e
reinvenção de instituições através das quais ele exerce essa
autonomia.

De fato, pensar no cidadão imaginado pelo ideário liberal, no mundo


moderno, pensar no indivíduo que pode, através de seus próprios
meios, exercer ativamente a sua autonomia, essa é uma quimera. É
uma quimera que não deve ser abandonada, é uma quimera que deve
ser criticada do ponto de vista de quais são os meios efetivos pelos
quais, em sociedade, ele exerce essa autonomia que é individual no
fundo, mas que é mediada por instituições.

A gente pensa, num cidadão, no Estado moderno, na sociedade


moderna, armado de direitos, possuidor de direitos, que exerce esses
direitos através de instituições que são criadas de forma democrática e
pública. É claro que em alguns recortes isso aparece como um
exercício individual, mas na maior parte dos casos só aparece como
um exercício que se dá através de instituições. Então, é fundamental
pensar essa tensão de uma sociedade constituída por cidadãos que
tenham a plena consciência de sua autonomia enquanto indivíduos,
enquanto pessoas, e que as instituições coletivas serão pouco
capazes de oferecer essa autonomia. É preciso ligar as duas pontas
porque o cidadão, pode ser ativo mesmo em condições em que as
instituições sejam desfavoráveis.

SILVIO: - Isso abre uma nova questão. Quando você fala que ser
cidadão é exercer os seus direitos e os seus deveres, você está
falando já de um pacto estabelecido. E como fica a idéia da contínua
criação de direitos? Se para ser cidadão eu preciso respeitar os
deveres que me são atribuídos, na verdade, então meu papel já está
definido na sociedade.

CHICO DE OLIVEIRA: - É evidente que a gente não está partindo do


plasma que fundou o mundo e a sociedade. Você nasce com alguns
princípios que a própria sociedade criou, quer dizer, você ingressa
numa certa sociedade já, de alguma maneira, parametrizado. Mas
cabe exatamente ao cidadão inventar e reinventar continuamente seu
lugar no mundo, isto é, o impacto se faz andando, não é uma situação
prévia de repouso absoluto, é uma situação sempre dinâmica e isso
dá um outro caráter à questão da cidadania. O cidadão pleno não é só
aquele que recebe o usufruto de sua plenitude, mas é aquele que forja
a plenitude desse usufruto, e isso significa uma participação ativa no
andamento da sociedade, na intervenção dentro do Estado, na criação
de instituições. Portanto, a gente não se restringe, desse ponto de
vista, à imagem liberal do cidadão individual que é depositário de
todos os direitos. Ele é mais o criador, o ativador desses direitos, do
que apenas um repositáro, um receptor.

SILVIO: - Mas Chico, nós estamos falando por enquanto em termos


gerais, genéricos. Se a gente procurar direcionar nossa conversa para
o Brasil, quem se interessa pela questão da cidadania é quem não tem
cidadania. Quem tem cidadania está querendo garantir o quê? Quem
é o portador desse discurso de direitos?

CHICO DE OLIVEIRA: - O portador desse discurso de direitos,


idealmente, deveriam ser todos. Evidentemente os direitos não
significam uma equalização total, nem muito menos a equivalência.
Então é claro, quem sofre mais carências de plenitude deve ser aquele
que tem menos. Agora, também aquele que tem, é preciso lutar para
mantê-la e ampliá-la, senão a gente terá um retrato estático da
cidadania.

No caso brasileiro, esta é uma sociedade, nós sabemos, em que ao


contrário de nascer cidadão, você nasce quase não-cidadão. São
muito poucos, é verdade, os que nascem com plenitude de autonomia.
Aliás, essa plenitude de autonomia, veja como está sendo inventada.
A plenitude de autonomia já está recuando do ponto de vista da faixa
etária. Antes o cidadão era aquele maior de vinte e um anos, aquele
que tinha responsabilidade civil e podia exercê-la em seu nome e não
por procuração. Hoje, a própria luta pela cidadania, da qual o Pólis[i]
como entidade faz parte, foi buscar lá os direitos da criança, do
adolescente. Isso não foi pedido pelos adolescentes, nem pelas
crianças, mas isso pode ter sido criação de adultos. Isto significa que
esses adultos, já cidadãos, continuam ativos e criativos na criação e
na invenção de nova plenitude. Então, é preciso criar e é preciso
manter e é preciso ampliar. E isso é um trabalho que é permanente. E
numa sociedade como a nossa, em que a maior parte nasce
constrangida, em lugar de podendo viver a plenitude, esse trabalho é
muito mais duro, muito mais árduo.

Aqui é preciso fazer uma diferença, que a imprensa confunde


diariamente, entre o cidadão e o contribuinte. Eles reduzem
freqüentemente a cidadania ao contribuinte. Isso é uma concepção
liberal em que a cidadania eqüivale ao caráter de contribuinte. Na
revolução burguesa essa proposição era ultra revolucionária, porque
significava que os direitos não vinham só do nome, do status, mas
eram direitos criados pelas atividades. Só que hoje continuar
reduzindo o cidadão a contribuinte é uma perda. Por quê? Exatamente
porque a nossa é uma sociedade imensamente desigual onde, se
essa for a pressuposição, a grande maioria de brasileiros estará fora
da cidadania.

Então é preciso fazer o caminho do Marshall, que é um caminho em


que os direitos econômicos e sociais são precedidos pela própria
cidadania. A cidadania é que cria todos os direitos. Senão a gente fica
na concepção economicista de que é preciso ter bem-estar, é preciso
estar no gozo de usufrutos materiais, para poder ser cidadão. A
cidadania pensada dessa forma se reduz ao contribuinte, anula
qualquer capacidade criativa.

SILVIO: - Se a cidadania vem, vamos dizer assim, da capacidade dos


indivíduos de atuarem sobre o espaço público de maneira a instituir
direitos, essas mobilizações da sociedade, elas serão sempre
referentes a alguma dimensão particular. A questão da mulher, a
questão da criança, a questão do salário... É possível pensar uma
formulação para a questão da cidadania onde cada uma dessas
demandas particulares, desses movimentos sociais, se reconheça?
Ou isso sempre será um mosaico fragmentado de mil partes?

CHICO DE OLIVEIRA: - Não, acho que não. Acho que é possível


caminhar-se nessa direção. Aliás, acho que essa é uma questão da
modernidade. Ao invés de se pressupor um estado geral e universal
de cidadania, nós pressupomos uma espécie de caminho que se auto-
constrói. Mas essa auto-construção requer que a própria cidadania
seja capaz de integrar cada uma dessas especificidades sem a qual
ela se tornará um universal vazio. É a partir dessas especificidades
que você constrói a cidadania, não é negando-as.

SILVIO: - E como seria isso?

CHICO DE OLIVEIRA: - A cidadania enquanto uma dimensão


universal não nega qualquer especificidade, ao contrário, reforça as
especificidades. Quando se diz que você primeiro é cidadão e
depois..., esse depois é uma forma só analítica de dizer. A cidadania
ou incorpora a sua plenitude ou ela não é cidadania. É assim com
cada um dos aspectos. Então não basta pressupor a cidadania
universal, é preciso fazer um processo em que estejam presentes sua
dimensão étnica, religiosa, econômica, política, cultural, para criar
essa plenitude, se não você não poderá chegar a essa dimensão
universal.

Para dizer de uma forma banal, é pelo fato de você ser negro que eu
posso ser judeu. Isso requer não somente a aceitação do ponto de
vista de que é de direito.

SILVIO: - Você reconhece a alteridade do outro...

CHICO DE OLIVEIRA: - Requer a alteridade do outro.

SILVIO: - E percebe que essa multiculturalidade é uma condição


necessária para a autonomia.

CHICO DE OLIVEIRA: -Sim, essa multiculturalidade é que, num


determinado momento, promove uma espécie de fusão. E daí ela
passa a irradiar qualidades e forças para cada uma das
especificidades. Ou seja, ela tem que se fundir. Se ela permanecer
como especificidade aí de fato você tem uma perda. A perda seria, e
só para usar uma metáfora espacial, no espaço da negritude você
pode ser negro e no espaço da não-negritude você não ter direito de
ser negro. Isso é interessante porque mostra a fragmentação da
sociedade contemporânea da qual os Estados Unidos são talvez o
caso mais exemplar... os guetos são a reiteração sobre a espécie.
Você é negro em um bairro negro, mas em um bairro branco você não
é negro, você não é ninguém. Você é um estranho.

SILVIO: - Mas se você diz que cidadão é aquele que tem o pleno gozo
de sua autonomia, ninguém é cidadão. Porque nós não realizamos
esse ideal. Estamos sempre a meio caminho, batalhando por ele.

CHICO DE OLIVEIRA:- Exatamente.

SILVIO: - Então não tem cidadãos?

CHICO DE OLIVEIRA: -Tem, mas cidadão é o que faz, não é o que


recebe. É difícil pensar numa cidadania como uma acumulação. A
cidadania é um gozo ativo que você pode cravar no momento em que
o problema, o processo, o confronto, o litígio, o conflito, te acode.
Eventualmente há a formação de um espaço público que é onde você
atua e onde o cidadão ativo atua.

SILVIO: - A Hannah Arendt diz assim: o indivíduo existe no seu mundo


privado, na sua família, nos seus grupos primários... ele se transforma
em cidadão quando ele passa a atuar no espaço público. Seja na
construção do espaço público, seja na representação dos seus
interesses individuais e coletivos nas negociações que esse espaço
oferece. Nesse caso há um momento em que o indivíduo não é
cidadão. Você concorda com isso?

CHICO DE OLIVEIRA:- Não, não concordo. Talvez na reflexão de


Hannah Arendt isso pudesse ser mais verdadeiro. Hoje eu não
concordo porque o que a gente vê na sociedade contemporânea é que
há um duplo movimento: um movimento que é uma espécie de
privatização do público e do outro lado uma publicização do privado.
Nessa dialética você vê que a intimidade é o refúgio desse indivíduo
arendtiano. Ora, sua intimidade está completamente compartilhada,
para dizer o mínimo, pela televisão. Então, se você é só um indivíduo,
você não pode impor à televisão nenhuma regra que impeça a invasão
de teu espaço privado, porque estão se defrontando dois atores
privados. Ora, a televisão é pública por definição, não porque isso
tenha sido instituído, o movimento dela é de publicizar. Ela publiciza
todo tempo, portanto acho que a complexidade da sociedade
contemporânea avançou para além da definição de Hannah Arendt.

SILVIO: - Então, para você o indivíduo é cidadão a todo momento?

CHICO DE OLIVEIRA: -Tem que ser. Veja o Estatuto da Criança e do


Adolescente como mostra isso: não tem mais pátrio poder que possa
fazer qualquer coisa com a criança e o adolescente. Quer dizer, tem
regras agora de publicização do privado que dão à criança e ao
adolescente o direito de não ser espancado, o direito de não ser
reprimido. O pátrio poder já está regulado também. A antiga intimidade
já está regulada. Eu como pai não posso mais fazer o que me dá na
telha.

SILVIO: - Mas então como é possível se falar em desconstrução da


cidadania?

CHICO DE OLIVEIRA:- Pode-se falar em desconstrução da cidadania,


mas esse discurso não deve supor, nem deixar nunca parecer, que se
tem limites rígidos entre sociedade e Estado. Esse recorte da vida
privada, que antes se confundia com o espaço da intimidade, precisa
de regras públicas para que se possa, na verdade, ser cidadão em
pleno gozo de sua autonomia.

É na esfera pública que você exercita tua autonomia. Aí você pode ter
desconstrução da cidadania, exatamente porque a desconstrução
também passa por esse conjunto de instituições mediadoras. A
cidadania é atacada pela via da instituição. Essa ação faz de conta
que não está fazendo nada com os direitos individuais, mas ataca pela
via das instituições. Hoje nós estamos vivendo um período em que há
tentativas efetivas de desconstrução da cidadania. Pode vir pelo
Estado, pode vir pelo setor privado, pode vir pelos próprios
movimentos que a gente chama de sociedade civil.

SILVIO: - Aí tem uma questão interessante. Se cidadania se constrói


através da institucionalização de regras e de direitos, no Brasil nós
temos um monte de leis que são muito boas e que não funcionam...
Então, como as instituições podem garantir a cidadania?

CHICO DE OLIVEIRA: - Eu acho que esse é um ponto interessante,


mas a gente deve radicalizar a questão. É claro que as leis sozinhas
não fazem tudo, por isso é preciso finalmente que cada indivíduo
esteja ativo, tenha consciência da posse de seus direitos, sem isso
dificilmente você terá uma cidadania com plenitude.

A lei cria o espaço da virtualidade, ela não é efetiva mas ela cria o
espaço da virtualidade, através dela você pode interrogar o outro, você
pode interrogar as instituições, não apenas o outro indivíduo. A lei tem
essa dimensão, exatamente de criação de um espaço virtual, por isso
que é preciso retornar à questão do indivíduo, fazer a ligação
permanente, porque a lei cria apenas o espaço virtual, se cada um de
nós não formos ativos, se não ativarmos as instituições, aí você fica só
no reino da virtualidade.

Não é por outra razão que estão se fazendo reformas. Por quê?
Porque a Constituição de 1988 criou virtualidades, e a luta pela
cidadania é a luta contra o constrangimento do seu direito físico, a luta
contra o constrangimento do seu direito à informação, contra qualquer
outro constrangimento. Se vai ocorrer o litígio, o confronto, o conflito,
depende de cada um e depende evidentemente dessa virtualidade.

A gente podia dizer que, no fundo, ou a democracia e a cidadania


estão na raiz da construção da sociedade, ou elas de fato se efetivam
muito pouco. Mas é bom chamar a atenção para esse espaço virtual.
A Constituição de 1988 criou espaços virtuais a partir dos quais você
pode hoje contestar informações, você pode interrogar aquele que
dispõe de seus dados e obrigá-lo a se explicar.

SILVIO: - Eu fico pensando, às vezes, que tem algumas noções que


são mais mistificadoras do que qualquer outra coisa. Por exemplo,
essa história do empoderamento dos pobres que nós adotamos como
uma referência para nosso trabalho. Nas pesquisas que realizamos,
de avaliação de políticas que se orientam para atender as
necessidades dos mais pobres, como as de renda mínima, o discurso
é o de transformar os pobres em cidadãos, mas essas políticas não
conseguem fazer isso, e se o Estado retira seu apoio estes grupos
voltam à condição de miserabilidade em que se encontravam antes.
Será que não tem algumas pré-condições para a construção da
autonomia, do empoderamento?

CHICO DE OLIVEIRA: - Eu acho que não, arriscaria dizer que não tem
pré-condições porque senão a gente faria um caminho tipo “Big-
bang”. O que é que detona a construção da cidadania, quer dizer,
esse empoderamento? E aí ficaria uma questão metafísica, que talvez
ao nível da filosofia possa ser respondida, eu não tenho condições de
responder.

SILVIO: - Mas eu estou levantando a questão de que, sem saber ler e


escrever, por exemplo, fica muito difícil você acessar o espaço
público.

CHICO DE OLIVEIRA: - Evidente, evidente.

SILVIO: - Se a pessoa não consegue ler num ônibus a direção do


sentido da sua viagem, como é que ele consegue gozar de sua
autonomia?

CHICO DE OLIVEIRA: - Evidente. Aí você toca num tema


fundamental. Essa plenitude de autonomia não é um vazio, ela
significa que você é capaz de acessar, de trabalhar, de manipular,
manipulação no sentido de utilizar os recursos, usufruir e utilizar os
recursos, de acordo com a sua contemporaneidade. Essa
contemporaneidade numa sociedade complexa, vai dizer exatamente
que se alguém não domina as linguagens universais pela quais
acessa os reconhecimentos da sociedade, acessa o outro, acessa a
alteridade do outro, evidentemente cidadão não é. Ele não tem
condições de ser.

SILVIO: - Numa sociedade de signos, de símbolos, como a nossa, é


quase analfabeto quem não consegue entender a linguagem do
computador...

CHICO DE OLIVEIRA: - É claro, você já está passando num nível que


não é mais ter de saber português e as quatro operações
fundamentais de matemática, de aritmética. Você vai ter de saber
computador. Então, a cidadania ativa... por isso ela tem que inventar.
Isso significa dizer que, para ser cidadão hoje no Brasil, você tem que
ser capaz de acessar e trabalhar os códigos, símbolos, signos da
sociedade, senão você não é.

SILVIO: - Então tem muita gente que não é?

CHICO DE OLIVEIRA: -Tem, evidente. Numa sociedade com essa


tradição autoritária como a nossa, o que é cercear a palavra, não é
cercear a inteligibilidade dos signos da sociedade? Veja o abuso de
signos em inglês na cidade, não é?

Há uma parcela da população que não domina o inglês e pode entrar


numa farmácia pensando que está num posto de gasolina ou tomar
um porre de diazepan, sei lá, porque está tudo em inglês, não é? E
isso faz parte do conflito social permanentemente.

SILVIO: - Eu fico pensando nos acampamentos do MST, aqueles


pequenos produtores rurais que quebraram, que perderam as terras,
que estavam no limite da sobrevivência e excluídos de qualquer tipo
de integração comunitária. Eles se inscrevem em uma comunidade,
são valorizados por essa comunidade, se reconhecem no código da
comunidade, e eu diria que são cidadãos aí, sem saber ler e escrever,
coisa que eles não seriam em São Paulo. Então, nós podemos falar de
distintas cidadanias? Como é que nós tratamos essa diversidade
toda? Esse produtor rural analfabeto, ele consegue ser cidadão em
uma situação e não consegue ser cidadão em outra?

CHICO DE OLIVEIRA: -Não, certamente se ele se colocar enquanto


indivíduo, isso pode ocorrer, mas aí a questão é a capacidade de se
criar instituições mediadoras, porque evidentemente se ele vier para
São Paulo como indivíduo, ele se ferrou, ele não será cidadão, porque
ele não domina recursos, até linguísticos, da sociabilidade. Mas se ele
vier a São Paulo enquanto membro de uma cooperativa, de uma
organização qualquer da sua comunidade, ele pode acessar e
manipular os signos da sociabilidade aqui em São Paulo.

Esse é o truque da dominação, um dos truques da dominação,


consiste precisamente nisso... Por que foi que até o fim da ditadura os
sindicatos, as centrais sindicais, não eram reconhecidas? Porque se
trata de um recurso de método criado pelos dominados, que sendo
cerceados, eles não tem como ativar o conflito.

SILVIO: - Você está falando que todo indivíduo é cidadão porque o


público e o privado de alguma maneira se misturaram, e agora você
está dizendo que tem brasileiros que não são cidadãos porque não
acessam os signos. Como é que ficam essas duas afirmações que
aparentemente são contraditórias?

CHICO DE OLIVEIRA: - Todos brasileiros virtualmente são cidadãos.


Por isso eu insisto na coisa da criação, da invenção. Se você
considerar um estado inicial de paz onde todos são cidadãos, aí não
tem nada a criar. Deus terminou sua obra no sexto dia e no sétimo
descansou e está em pleno repouso. Essa outra concepção afirma
que você pode construir a tua forma de plenitude, mesmo no estado
de carência.

Veja o exemplo que nós acabamos de discutir. Você tem um


trabalhador rural, um camponês, um assentado, que é analfabeto, não
domina computador. Se ele vem enquanto indivíduo para São Paulo,
está ferrado porque ele não lê códigos, nem lê nem pode se
comunicar, a não ser com ele mesmo. Ora, a criação da instituição
mediadora pela qual ele vem a São Paulo já é uma forma de auto-
criação da cidadania. Visto dessa forma essa contradição que você
assinala permanece?

SILVIO: - Claro que permanece.

CHICO DE OLIVEIRA: - É que você está no mundo do privado, você


está no mundo da intimidade e, de fato, aí há uma multidão de
cidadãos, virtualmente cidadãos, que não o são. Agora, para a gente
não pensar da forma liberal - e pensar da forma liberal não é uma
questão pejorativa - como é que o indivíduo adquire as próprias
armas? Numa forma socialmente determinada você pode pensar que
há, de fato, gente que socialmente não tem acesso aos códigos, para
dizer como o Chacrinha, não se comunica.

É a falta de cidadania, muito mais do que o mercado, que gera a


exclusão. E isso é importante para que a gente escape do
reducionismo liberal, em que no mercado indivíduo e cidadão se
equivalem. Por quê? Porque era legítimo no século XVII falar de
mercado enquanto lugar da autonomia, mas hoje não é.

SILVIO: - Hoje o Ignácio Ramonet, por exemplo, do Le Monde


Diplomatique, fala que nós estamos passando de uma economia de
mercado, para uma sociedade de mercado, onde a regulação do
espaço público se dá pela lógica do mercado...

CHICO DE OLIVEIRA: - Pois é. E isso exclui. Porque o mercado


introduz a divisão entre quem tem e que não tem...a gente podia ser
muito cínico e dizer que mesmo o mendigo participa do mercado,
evidentemente daquela maneira, com as linguagens que o mercado
introduz, com a desigualdade que o mercado introduz. Então, passar
de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado pode
ser fatal. Por isso que é preciso insistir nessa não redução, senão a
gente corre o risco de confundir o cidadão com o contribuinte, quer
dizer, tem direito só quem é contribuinte. E quem não é?

SILVIO: - Então vamos passar para a segunda fase da entrevista. Nós


tentamos cercar essa conceituação para discutir uma questão mais
específica, o que vem a ser formação para a cidadania?

CHICO DE OLIVEIRA: - Aí é que é complicado. É complicado, mas


não devemos recusar o debate nem deixar de enfrentá-lo. Digo isso
exatamente porque não estamos partindo de uma pressuposição de
um estado inicial de paz. Acho que é obrigação daqueles que são
cidadãos - porque acessam, manejam, trabalham, manipulam todos os
códigos da sociabilidade - é obrigação remontar esse processo, como
já se fez na questão da criança e do adolescente. Não precisou de
passeatas das crianças para pedir seus direitos. Em algum momento a
complexificação da sociedade exige, requer isso....quer dizer, o mundo
privado, o mundo da família, o mundo da intimidade, não dá mais
conta desse processo.

Por que se afirmam os direitos das crianças e dos adolescentes?


Porque o mundo privado não pode, não tem capacidade, de processar
a violência. O mundo privado não tem mais essa capacidade, se ele
foi sempre o refúgio da violência, no mundo contemporâneo ele é uma
aberração. Então é a sociedade que requer, pela sua complexidade,
que mesmo aquele que não pode fazer passeata no meio da rua, a ele
sejam reconhecidos os direitos e a plenitude de sua autonomia,
porque senão é a sociedade complexa que “vai pagar o pato”.

Essa discussão é também a discussão da crise da Febem, por


exemplo. O que é a Febem? A Febem, como todas as instituições
carcerárias, é um lugar de separação, um lugar que a sociedade
define como uma separação temporária, para que o infrator, ele se
recupere. No caso da Febem, para que a Febem reencaminhe para a
vida. Essa separação termina produzindo a exclusão, porque ela
termina construindo um perfil do excluído, que não tem mais
capacidade de ativar seus mecanismos de inclusão na sociedade, sua
plenitude de autonomia.

Então eu sugiro pensar o problema da Febem desse ângulo, relendo


de outro modo. Ao invés de vê-lo de uma forma penal, vê-lo de uma
forma cidadã, sem nenhuma ingenuidade. Para isso há um trabalho de
formação sim a ser feito nesse nível, que ninguém deve recusar. Nós
não podemos recusar, principalmente quem trabalha com a questão
de políticas públicas e da exclusão não pode recusar, porque senão se
fica num beco sem saída, quer dizer, será que as crianças e
adolescentes internados na Febem já dominam todos os meios de
acesso à cidadania e portanto eles podem sair? Certamente não.

SILVIO: - O Eder Sader falava da liberação das energias da sociedade


civil, você fala em ativar a plenitude da autonomia, traduz isso, o que
quer dizer ativar a plenitude da autonomia?

CHICO DE OLIVEIRA: - Ativar quer dizer usar um conjunto de


instituições, de mecanismos que já existem na sociedade; usá-los para
exercer de fato sua autonomia. Esse ativar tem sentido de um
movimento em expansão, não é um estado de repouso. Isso pode ser
traduzido também nos termos do Eder Sader. Trata-se de possibilitar a
criação pela sociedade civil desses mecanismos, regulamentos,
instituições, sem os quais ela na verdade não existe, sem os quais se
reduz de novo a sociedade civil a um conjunto atomizado de
indivíduos, e aí não funciona.

SILVIO: - Nós ficamos sempre numa situação de indefinições quanto


às reais possibilidades do exercício da plenitude do gozo da cidadania
pelo indivíduo. Ele enquanto indivíduo não tem essa capacidade de
ativar os seus direitos, tem?
CHICO DE OLIVEIRA: - Não. Muito pouco. A questão é como você
ativa os seus direitos numa sociedade. Para isso é bom entender o
passado brasileiro. Os escravos tinham direitos, suas rebeliões, suas
revoltas, ativaram o campo virtualmente possível, mas toda vez que
eles saíam pela solução individual, o que pegavam do outro lado era a
repressão dessa sociedade.

SILVIO: - Já é a terceira vez que eu engasgo com o seu


“virtualmente”, o virtual seria, vamos dizer assim, o campo da
imaginação criadora, pode construir qualquer coisa?

CHICO DE OLIVEIRA: - Não, o virtual é socialmente determinado. O


virtual é um campo de possibilidades, e esse campo de possibilidades
é socialmente determinado e se enfrenta com uma dimensão de
iniquidade que é socialmente construída. Seria um campo de
possibilidades, virtualidade é isso, mas isso é materialmente
construído, não é uma coisa telemática.

SILVIO: - Quando você fala que a complexificação da sociedade


requer a cidadania porque a violência atravessa toda a sociedade,
pega todo mundo, pode-se dizer que hoje há questões como a
poluição e o trânsito que pegam todo mundo. Isso de alguma maneira
dilui os recortes de classe?

CHICO DE OLIVEIRA: -Não. Não dilui recortes de classe. Porque


estamos num campo de possibilidades, mas são ainda possibilidades
burguesas, não no sentido pejorativo, mas no sentido exatamente da
cidadania, tal como ela se constituiu no campo burguês. Em outras
palavras, a âncora mais forte do campo de possibilidades é a âncora
da propriedade. Mas de alguma maneira, não recusemos esse
confronto porque é dessa espécie de embate que se afirma o novo.
Num primeiro movimento é mimetismo mas num segundo é criação, é
desse campo que você extrai o teu recurso de método.

O MST de novo é o melhor exemplo. A promessa burguesa é a da


propriedade para todos. Então eu quero também. Por isso o MST,
sempre tão conservador, é tão revolucionário. Nesse paradigma
burguês a propriedade da terra é coisa fundamental, embora hoje
seja muito menos... O Bill Gates não precisa de propriedade da terra.
SILVIO: - Você sabe que há um ano, mais ou menos, houve uma
discussão antevendo a profundidade da crise social, e eu me peguei
fazendo um trabalho com outros companheiros da ABONG de
elaboração de propostas de corte puramente keynesiano, defendendo
frentes de trabalho, renda mínima, essas coisas. Quando você fala
que o marco de estruturação do campo de possibilidades é burguês,
no sentido de que hoje nós não temos uma outra alternativa colocada,
me fica essa pergunta: você acha que existe uma virtualidade
diferente da burguesa na sociedade brasileira?

CHICO DE OLIVEIRA: - Acho que existe. Não é o caso de ficar num


lamento do paraíso perdido, não é Proustiano, quer dizer, é para
frente, eu acho que nós temos que utilizar ao máximo os recursos da
racionalidade burguesa. Com isso eu quero dizer que não estou
identificado com o tímido Genoíno para dizer que a única maneira é
ser uma democracia radical. Ao contrário, eu estou tentando dizer que
é preciso extrapolar esse marco, é preciso ir além dele. Até mesmo
porque ele já está caindo aos pedaços.

SILVIO: - Não parece. Por que é que está caindo aos pedaços?

CHICO DE OLIVEIRA: - Se você reparar toda nova dominação é


virtual, portanto a reclamação do MST só é revolucionária porque esta
sociedade ainda está fincada na propriedade material, quer dizer que
a própria burguesia está extrapolando...

SILVIO: - Mas isso é um reforço no sentido de dizer que o paradigma


burguês, ele é tão mais forte hoje em dia por força deste capital
financeiro voando .... essa nuvem de trilhões, por força das
corporações transnacionais, pela debilitação do Estado nacional...
Todas essas coisas tornam, vamos dizer assim, uma outra
possibilidade de organização societária mais difícil.

CHICO DE OLIVEIRA: - Fica mais difícil, sem dúvida nenhuma fica


mais difícil. Ninguém pode pensar que você controla esses
movimentos de capitais. Mas essa nuvem de trilhões, ela também é
uma virtualidade. Hoje, se trabalha em rede...

SILVIO: - Nós estaríamos retomando o caminho da construção do


Estado do Bem-Estar em escala planetária? Nós nunca checamos os
fundamentos dessa lógica.

CHICO DE OLIVEIRA:- Não, acho que não. Em muitos casos se tende


a uma espécie de reclamação de um mundo "keynesiano”, mas acho
que isso extrapola, tende a romper esse limite. Se a questão da
propriedade for deslocada, se rompe as barreira do som, daí essa luta
hoje entre o Governo Americano e Microsoft. Ela é muito interessante
para ser analisada, para ser percebida, aí está o conflito, o conflito na
sua exacerbação, quer dizer, é uma espécie de batalha do século XXI.

E qual é o conflito? O conflito é de um lado a Microsoft tentando


radicalizar a virtualidade, o que quer dizer falta de forma; e por outro
lado o Estado Americano tentando cercar essa virtualidade, porque
sem forma não há conteúdo, sem forma não há como estabelecer
nenhum contraponto e aí de fato o risco será, se essa tendência do
virtual vencer, aí nós entramos num mundo extremamente perigoso,
não sabemos se é bom ou ruim, porque falta a forma através da qual
se acessa, se dialoga, se interroga, falta a forma.

SILVIO: - Vamos pensar, a partir dessa idéia da deflagração das


energias que constróem direitos, a questão da formação para
cidadania. É possível pensar uma formação do ponto de vista, por
exemplo, de cursos? Eles contribuiriam para a formação da cidadania?
A formação para a cidadania envolve o quê?

CHICO DE OLIVEIRA: - Difícil de se prever. Se a gente exagerar,


quase em qualquer ato da vida social se encontra o espaço de
ativação. Mas é bom não ficar só nisso porque senão é tudo e não é
nada. É preciso construir formas mediante as quais se possa dar
densidade ao conteúdo. Os cursos continuam sendo uma das formas
da formação, uma atividade que pode ao mesmo tempo informar e
formar no sentido reflexivo. Formar por quê? Não é para fazer
nenhuma apologia das teorias da informação. Formar porque é
necessário que se tenha e conheça as formas da sociabilidade, que se
possa decodificar os signos da sociabilidade sem o que não se pode
ativar a cidadania e isto se passa através de conhecimento formal.

Conhecimento formal não tem nada parecido com formalismo.


Conhecimento formal quer dizer, precisamente, sem a forma você não
pode reproduzir e é preciso reproduzir. É preciso reproduzir e produzir.
Portanto, a educação formal, entendida nesse sentido, continua sendo
um dos melhores meios para lograr, se não lograr completamente,
pelo menos para se criar, produzir o conflito no campo de significados.

SILVIO: - A idéia que eu estou querendo trabalhar é a seguinte, é mais


uma opinião minha, eu acho que você ativa a disposição de se
informar e se tornar analítico e reflexivo. E isso também depende de
uma disposição, não sei se psicológica, social ou antropológica, no
sentido lato da palavra, de um engajamento emocional, de uma
vivência que transforme e resignifique os seus valores.

Me lembro uma figura que conheci. Era uma mulher, chefe de família,
negra, favelada, operária, vivia cumulativamente tudo que você puder
imaginar de discriminações. E ela resolveu se inscrever no espaço
público pela via da Sociedade Amigos de Bairro. Podia ter sido por
qualquer outra dessas frentes, eram igualmente sensíveis para ela,
mas ela encontrou as amigas, o cotidiano, um espaço acolhedor, foi
por aí então. Para falar em formação para cidadania, eu fico com
muito temor de cursos formais. Depois de ter umas aulas de
sociologia, de história, de política, de como funciona a nossa
sociedade, fica o quê?

Eu sempre imaginei que a questão da formação da cidadania


necessariamente deveria inscrever a possibilidade da ação coletiva e
do sujeito se encontrar nessa ação coletiva com seus pares e seus
opositores. Acho difícil que a escolaridade permita mudar a qualidade
do engajamento, da reflexão, do sentido de pertencimento, o que você
acha disso?

CHICO DE OLIVEIRA: - Não concordo inteiramente com você. Acho


que sem dúvida reduzir a formação da cidadania a bancos escolares é
pobre. Mas eu diria que sem isso também não ocorre. Esse
movimento contínuo de ampliação no teu espaço de percepção faz
parte da tua aquisição da cidadania. Você precisa saber, de alguma
maneira dizer isso parece um exagero, que esta mulher negra,
operária, favelada, precisa um dia saber o que é que houve na Grécia
no século IV.

SILVIO: - Por aí você encontraria uma maneira de trabalhar a questão


da formação da cidadania no seu sentido universal, o que de alguma
maneira se contrapõe a isso que eu estou falando de que essa
construção da inclusão se faz pela via do coletivo, pela via da
mobilização social...

CHICO DE OLIVEIRA: - E nela pela via do reconhecimento do outro,


o outro é o conflito, não é paz, o outro é conflito. Ninguém se faz de
cidadão voltado para dentro feito avestruz, é voltado para fora que
você faz a formação para a cidadania. Se você botar esta mulher
favelada nesta única dimensão, ela não sai dali. É preciso colocá-la
em conflito com as outras dimensões, para que ela possa ativar...

SILVIO: - Você acha que é forçar a mão eu dizer assim: então, a


formação para a cidadania é impulsionar para o conflito?

CHICO DE OLIVEIRA: - Acho que é...Para você não ficar exatamente


numa concepção passiva e apenas de usufruto, de receber, você
caminha para um conflito...

SILVIO: - Numa sociedade tão desigual como a nossa, a inclusão


significa impulsionar o conflito para que este tenha um caráter
redistributivo.

CHICO DE OLIVEIRA: - No exemplo da mulher, ela saiu da sua casca


de caracol, é claro, vendo por esse lado emocional que você falou.
Certamente na dimensão operária ela não encontrava espaço. Por quê
? Porque nós sabemos que o operariado é mais machista do que
Judas, então na sociedade amigos de bairro ela encontrou aí uma
atividade em que parece que ela está só entre iguais, mas não é
verdade. Quer dizer, elas não se reuniam para festejar seu favelismo,
para celebrar o seu favelismo, se reuniam para romper...Se ela não
tivesse caminhado para o conflito em torno de algo, não sei o quê, dali
não saía nada. Então eu acho que formar cidadãos é além de
reflexivo, é formar para o conflito, senão a inversão fica impossível.

SILVIO: - O que eu tenho falado é que a cidadania é um processo


contínuo de ampliação de novos direitos, em bases aos acumulados
historicamente em cada momento...

CHICO DE OLIVEIRA: - Sim, isso significa que você domina o


conjunto que está a sua disposição.

SILVIO: - Agora, nós estamos numa situação contraditória, quer dizer,


que novos direitos são esses? Nós estamos perdendo os velhos...

CHICO DE OLIVEIRA: - Por isso mesmo que o processo de cidadania


é contínuo. Você não pode estar em estado de repouso nunca.
Atenção para o argumento: se tem cidadania porque encaminhar para
o conflito? Por que cidadania é conflito. Tem outros poderes tentando
destruir ali o campo onde você se ativou, onde você construiu
organizações populares. O Programa "Comunidade Solidária" não é
inocente...

SILVIO: - Ele não ativa a cidadania?

CHICO DE OLIVEIRA: - Pode até ativar, mas é como os sindicatos


rurais durante a ditadura. Ela fez de tudo para co-habitá-los, os
sindicatos de carimbo... E hoje o sindicalismo rural combativo é muito
maior que o urbano, apesar de 80% da população estar nas cidades.
É possível que por dentro do Comunidade Solidária os sujeitos
estejam se ativando, mas ele é feito com o único propósito de
despolitizar, um programa que não é inocente...

SILVIO: - Se construir cidadania, de alguma maneira, é ampliar a


esfera do conflito, isso significa politizar os temas da sociedade. O que
é politizar os temas da sociedade, os temas da agenda social, os
temas que são restrições à cidadania. O que é politizar o social ?

CHICO DE OLIVEIRA: - De forma muito genérica, é passar do estado


de carência para o estado do direito. Acho que politizar significa em
primeiro lugar isso, identificar o espaço da política como um lugar de
onde se contesta. Isso requer instituições! Mas basta criar
instituições? Não! Ao fazer essa passagem você dá um passo que é
exatamente introduzir a cidadania e reconhecer a cidadania como
forma de conflito. O direito só se dá quando se tem o conflito, a
carência não. Você pode ter carência e isso não gerar conflito
nenhum, pode gerar violência, que é outra coisa e nós não estamos
falando de violência, estamos falando de conflito. Então, fazer essa
passagem é absolutamente necessário, tanto para continuar
ampliando os direitos como para resistir à sua desconstrução.
* Instituto Pólis de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas
Sociais, ONG situada em São Paulo – SP.

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