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26 Mito e Filosofia
Filosofia
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O DESERTO
DO REAL <Eloi Correa dos Santos1
Colégio Estadual Mário Evaldo Morski. Pinhão - Pr < Ilustração do Mito da Caverna. www.lacaverna.it
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ra buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verda-
de mais nítidos do que os que lhe mostravam?
– Seria assim – disse ele.
– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem
fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser as-
sim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada
daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objetos?
– Não poderia, de fato, pelo menos de repente.
– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais
facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objetos, refletidas
na água, e, por último, para os próprios objetos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no
céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que
se fosse o Sol e o seu brilho de dia.
– Pois não!
– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na
água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.
– Necessariamente.
– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo
dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.
– É evidente que depois chegaria a essas conclusões.
– E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus
companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os
outros?
– Com certeza.
– E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prêmios para o que distinguisse com mais
agudeza os objetos que passavam e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primei-
ro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil em pre-
dizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia
entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso dese-
jo “servir junto de um homem pobre, como servo da gleba”, e antes sofrer tudo do que regressar àque-
las ilusões e viver daquele modo?
– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela ma-
neira.
– Imagina ainda o seguinte – prossegui eu –. Se um homem nessas condições descesse de novo pa-
ra o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol?
– Com certeza.
– E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sem-
pre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se
habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo su-
perior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão ? E a quem tentasse soltá-los e con-
duzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam ?
– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.
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se-á tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível atra-
vés dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do
Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a
tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha
expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadei-
ra. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo,
a idéia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a < Acorrentado na caverna.
causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou
a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da ver-
dade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida par-
ticular e pública.
ATIVIDADE
estão presos às percepções que recebem dos seus sentidos. Para eles
isto seria a única verdade possível. Um deles se liberta e sai da caver-
na. Num primeiro momento sua visão fica ofuscada, pois ele se depa-
ra com a luz do sol, em seguida habitua-se à luz reconhecendo o co-
nhecimento inteligível.
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te em Mileto. De acordo com os próprios gregos os inauguradores do
pensamento racional foram: Tales, Anaxímenes e Anaximandro. Con-
tudo, podemos nos perguntar sobre a existência de um pensamento fi-
losófico ou racional entre os chineses, babilônios ou hindus, embora
houvesse alguma forma de racionalidade entre os diferentes povos an- < Tales de Mileto (624 a.C. - 546
tigos, ela nunca se desvencilhou da religião local e das explicações li- a.C.)
gadas às divindades e seres imaginários, que comumente justificava os
interesses da classe vigente.
A filosofia procede de um estudo denominado cosmologia (Kós-
< www.pensament.com
mos-ordem e organização do mundo, logia-logos, pensamento racio-
nal ou estudo). Portanto, a filosofia nasce do exercício racional na bus-
ca de uma ordem do mundo ou do universo. O mito por sua vez narra
a origem das coisas por meio de lutas e relações sexuais entre as for-
ças que governam o universo, por isso, são chamadas cosmogonias e
teogonias. < Anaxímenes (585 – 525 a . C).
A literatura grega narra a origem do universo utilizando-se de figu-
ras de linguagem, enquanto os físicos buscavam essas explicações na
natureza.
< www.biografiasyvidas.com
buscam uma explicação para a relação entre o caos e a ordem do mundo.
A maneira de entender essa relação é que muda. Enquanto o poeta vê os
deuses como os responsáveis por tudo o que há, os antigos pensadores
preferem partir das formas da natureza que esses deuses representam (ter-
ra, água, ar) para entender a vida. (PENSADORES, 2004, p.18)
ATIVIDADE
Após a leitura do poema Teogonia (1) de Hesíodo, compare a linguagem usada neste poema com a
descrição da origem do mundo feita no texto de Anaxágoras (2), escrevendo um texto sobre as seme-
lhanças e diferenças. Leia os textos para a turma, a fim de compará-los.
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Texto 1 Texto 2
(...)e então [Prometeu] feriu profundamente o coração de Assim estando as coisas, é preciso
Zeus, o alto senhor do trovão, que ficou furioso quando ele considerar que muitas coisas e de todo
viu ao longe a luz do fogo entre os homens, e imediatamente gênero se encontrem em tudo aquilo que
ele lhes deu um problema para que pagassem pelo fogo. vem a ser por aglomeração e sementes
O famoso Deus Pacífico misturou argila e lhe deu a forma que têm forma, cores e gostos de todo
de uma virgem tímida, exatamente como Zeus queria, e Athe- tipo. E se condensaram homens e se-
na, a deusa de olhos de coruja, res vivos que têm sensibilidade. E estes
homens têm cidades habitadas e obras
A vestiu em roupas prateadas e com suas próprias mãos
de manufatura, como nós, e têm o sol e
lhe colocou um véu na cabeça (...)
a lua e todas as coisas como nós, e a
Ele [Zeus] fez este lindo mal para equilibrar o bem,
terra produz suas muitas coisas e de to-
Então ele a levou aos outros deuses e aos homens do gênero, das mais úteis das quais fa-
...eles ficaram boquiabertos, deuses imortais e homens zem uso, depois de reconhecê-las em
mortais, quando eles viram a arte de seduzir, irresistível aos sua moradia. Disse isso sobre a forma-
homens. ção por separação, porque não apenas
Da sua raça vem a raça das mulheres fêmeas, esta raça entre nós é possível o processo de for-
mortifica e população de mulheres, uma grande infestação entre mação, mas também em outros lugares.
os homens mortais, que viviam com riqueza e sem pobreza. Antes que tais coisas se formassem, es-
Acontece o mesmo com as abelhas nas suas colméias tando juntas todas as coisas, não se dis-
alimentando os zangões, conspiradores maus. tinguia nenhuma cor. Havia, com efeito, o
obstáculo da mistura de todas as coisas,
As abelhas trabalham todo dia até o pôr-do-sol, ocupa-
do úmido e do enxuto, do quente e do
das o dia inteiro fazendo pálidos favos, enquanto os zangões
frio, do luminoso e do escuro e de mui-
ficam dentro [da colméia] nos favos vazios, enchendo o estô-
ta terra que aí se encontrava, e das se-
mago com o trabalho dos outros.
mentes ilimitadas em quantidade, em na-
Foi assim como Zeus, o alto senhor do trovão, fez as mu- da semelhantes uma à outra. Com efeito,
lheres como uma maldição para os homens mortais, cons- nem mesmo das outras coisas em nada
piradoras do mal. E ele juntou outro mal para contrabalançar uma se assemelha a outra. Dessa forma,
o bem. Qualquer um que escape ao casamento e à malda- e preciso considerar que no todo se en-
de das mulheres, chega à velhice sem um filho que o mante- contra tudo.
nha. Ele não precisa de nada enquanto viver, mas quando ele < ( Anaxágoras, in: REALE, 1997, p. 65)
morre, parentes distantes. Dividem seus bens. Por outro la-
do, quem se casa como é mandado, e tem uma boa espo-
sa, compatível, tem uma vida equilibrada entre o mal e o bem,
uma luta constante. Mas se ele se casa com uma mulher
abusiva, ele vive com dores no seu coração o tempo todo,
Dores no espírito e na mente, o mal incurável
< (Hesíodo, Teogonia 567-612. Tradução de S. Lombardo
z Racionalização do mito
Num primeiro momento a filosofia racionalizou o mito, em segui-
da despojou-se, das figuras alegóricas que representavam a origem das
coisas adentrando no campo da physis, substituindo gradualmente às
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PESQUISA
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z A questão do conhecimento
No texto lido apresentam-se dois tipos de conhecimento: o dos ho-
mens comuns, cujo saber é produzido por meio das percepções sen-
síveis e imediatas; e o saber filosófico ou científico, fruto de uma me-
todologia orientada pela razão e pela pesquisa reflexiva e prática. O
< http://terapiabreve.vilabol.uol.com.br
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Filosofia
nhar estas funções sociais. Na polis grega, a educação dos jovens era
responsabilidade do Estado, os estudantes que se destacavam dos de-
mais prosseguiam seus estudos e poderiam chegar a serem governan-
tes após uma longa aprendizagem e uma rigorosa educação moral e
intelectual.
Um dos objetos desta educação é a superação do senso comum(o
campo das opiniões) para o conhecimento crítico. Conforme Genié-
ve Droz, pensador contemporâneo, no mito platônico o conhecimen-
to progride do sensível para o intelectual, a inteligência vai do aparen-
te para o essencial, do obscuro para o luminoso, sendo as Idéias, elas
próprias, iluminadas pela fonte de toda luz, o Bem. (DROZ, 1977, p. 77)
Como se elabora o conhecimento crítico em Platão? A filosofia é a
única forma de buscar por esse conhecimento? Para Platão, sim, uma
< ARCIMBOLDO, Giuseppe. O Bi-
vez que seja possível, com a metodologia apropriada, superar o nível bliotecário c. 1526.
das opiniões. De onde vem o desejo e a atração pelo mundo inteligí-
vel que possuem alguns homens, se tecnicamente nunca tiveram con-
tato com o mesmo? Como explicar a vontade do prisioneiro que não
conhece o lado de fora da caverna de sair dela?
O amor que deseja a sabedoria é a própria filosofia (literalmente
amor ao saber). Gradualmente, à medida que o homem conhece, o pró-
prio conhecimento desperta o desejo contínuo de saber. Após deixar a
caverna este humano sofre a cegueira, pois não tivera antes contato com
tal luz, e o abandono de seu antigo estado causa medo e dor, mas ele é
convidado a continuar sua ascese superando o mundo sensível, apreen-
dendo os movimentos do sol, as estações e suas conseqüências.
Desta forma, a conquista da sabedoria e da felicidade carece de in-
cansáveis esforços na aprendizagem das ciências e das artes. É um pro-
cesso contínuo de auto-superação. Ele se habitua aos objetos reais do
mundo fora da caverna, mas a ascensão é apenas um momento de de-
puração pessoal. A filosofia na tradição platônica não tende a algum ti-
po de ostracismo intelectual, depois da contemplação da luz é neces-
sário o retorno para dentro da caverna para despertar os outros para
este conhecimento, isto é, o filosofo para Platão, tem um compromis-
so social e político. Podemos perceber neste momento a preocupação
com a “morada comum”. Platão tentou concretizar sua idéia de nova
sociedade no final de sua vida atuando politicamente.
Conhecer para Platão é o sumo bem, e o bem está na organização da
cidade de acordo com este conhecimento e não de acordo com as opi-
niões. Podemos comparar o ideal de homem que habita o interior da ca-
verna, com o senso comum, ambos estão apegados a impressões sensí-
veis e não se permitem enxergar outra realidade senão as imposta pelas
circunstâncias. Na polis grega, os homens que se negavam a participar
da vida pública, eram chamados de idiotés, por que se deixavam repre-
sentar por outrem. Ao negar a própria vontade se submetiam e deixa-
vam à responsabilidade de decidir o destino da cidade para os outros.
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como uma força de resistência das camadas mais baixas, ou que não
tem acesso aos meios de tecnologia. Neste sentido podemos nos ques-
tionar, fazendo uma análise do quanto o conhecimento científico al-
cança seus objetivos, chegando aos maiores interessados que são as
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Filosofia
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que não podem reduzir-se à unidade e à coerência nem mesmo na
consciência individual”. O senso comum, ainda que implicitamente,
“emprega o princípio da causalidade”; “em uma série de juízos, iden-
tifica a causa exata, simples e imediata, não se deixando desviar por
fantasmagorias e obscuridades metafísicas, pseudo-profundas, pseudo-
científicas etc.” Nisto reside o valor do que se costuma chamar bom < Antonio Gramsci 1891-1937.
senso”. (GRAMSCI, 1991. p. 16.)
Com o nascimento da filosofia, os gregos foram aos poucos rom-
pendo com o mito e a religião. Da mesma maneira o pensamento cien-
tífico pretende romper com o senso comum. Assim, enquanto a pri-
meira ruptura é imprescindível para constituir a ciência, a segunda
deve transformar o senso comum em um conhecimento que chega a
todas as camadas, depurado de seus preconceitos e pré-juízos. Com
essa dupla transformação, o que se espera é um senso comum esclare-
cido e uma ciência coerente com as realidades sociais; um saber prá-
tico que dá sentido e orientação à existência e se apega a prudência
para encontrar o bem comum. Depois de romper com senso comum,
à ciência deve se transformar num novo e melhorado senso comum,
combinando, assim, a praticidade do senso comum com o método e o
rigor típicos da ciência e da filosofia.
DEBATE
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Ensino Médio
< Ilustração: Eloi Correa dos Santos e Edevaldo de Oliveira Gonçalves.
z Referências:
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DROZ, Geniéve. Os mitos Platônicos. Brasília Editora Universidade de Brasília, 1997.
GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História (trad. Carlos Nelson Coutinho). Rio de Janei-
ro: Civilização Brasileira. 1991.
PLATÃO; República. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
REALE, G; ANTISERI, D. História da Filosofia. Vol. I. São Paulo: Paulus, 1991.
RICOEUR, Paul, Les Conflit des Interprétations: Essais D’Herméneutique, 1969 ( trad. port. O Conflito
das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica).
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências; São Paulo, Cortez, 2003.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Práxis (trad. Luiz Fernando Cardoso). Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 1968.
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Filosofia
VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2001.
________, Jean-Pierre. Mito e Pensamento entre os gregos. São Paulo: Editora Difusão Européia
do Livro, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1973.
WEBER, Max. Essays in Sociology. Oxford University Press , organizado por H.H
Gerth e C. Wright Mills, 1946 ( trad. port. Ensaios de Sociologia).
Imagem de abertura: Teseu – o herói de Atenas. 440-430 BC – Feito em Atenas e encontrado na Itá-
lia – Lazio. www.thebritishmuseum.ac.uk
ANOTAÇÕES
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