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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ª VARA

CÍVEL DA COMARCA DE SÃO PAULO

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por meio do


1º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, agindo por designação,
nos termos da Portaria PGJ 6038/2007, vem respeitosamente perante
Vossa Excelência, com fundamento no art. 129, inc. III, da Constituição
Federal, nos arts. 81, § único, incs. I e II, e 82, inc. I, ambos do Código de
Defesa do Consumidor, no art. 5º, caput, da Lei Federal nº 7.347/85, e no
art. 25, inc. IV, a, da Lei Federal nº 8.625/93, propor AÇÃO CIVIL
PÚBLICA, com pedido de MEDIDA LIMINAR, a ser processada pelo rito
ordinário, contra

COOPERATIVA HABITACIONAL DOS BANCÁRIOS DE SÃO PAULO - BANCOOP,


pessoa jurídica inscrita no CNPJ sob nº 01.395.962/0001-50, com
endereço na Rua Líbero Badaró, 152, 5º andar, Centro, São Paulo–
SP, CEP 01008-000,

para que sejam acolhidos os pedidos ao final formulados em razão dos


fatos e fundamentos jurídicos a seguir aduzidos:
2

DOS FATOS

A Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital


instaurou inquérito civil (Procedimento nº 14.161.446/06-1 – autos
inclusos) com base em representação formulada pela Comissão dos
Representantes do Empreendimento Residencial Edifício “Torres da
Mooca” contra a Diretoria e os membros do Conselho Fiscal da
Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo Ltda. (BANCOOP).

Segundo a autora da representação (fls. 04/53), a


BANCOOP foi criada para ser uma cooperativa habitacional, sem a
intenção de obter lucro, “com a finalidade precípua de atender às
necessidades de moradia de seus associados (inicialmente pessoas
filiadas ao Sindicato dos Bancários)”. Para assegurar o princípio do
cooperativismo, previsto no artigo 174, § 2.º, da Constituição Federal,
“estabeleceu que cada empreendimento habitacional corresponderia a
uma Seção distinta, onde seriam inscritos os interessados, admitidos
como associados, segundo critérios previstos no próprio Estatuto Social”.
Em obediência ao princípio da dupla qualidade, “o qual prevê que todo
associado é simultaneamente sócio e usuário da organização, a
Cooperativa Habitacional estatuiu que seria mantido em sua contabilidade
registros independentes para cada Seção, de forma que os custos diretos,
despesas indiretas e receitas pudessem ser atribuídas especificamente
aos associados vinculados aos empreendimentos habitacionais
respectivos”. Para que nada faltasse e os prédios fossem bem
construídos, o então presidente da Cooperativa, Luiz Eduardo Saeger
Malheiro, e outros membros do Corpo Diretivo constituíram empresas
para a realização de inúmeros negócios jurídicos, “formando um complexo
grupo econômico”. Assim, constituíram as empresas Germany Comercial
3

e Empreiteira de Obras Ltda., Mirante Artefatos de Concreto Ltda. e


Master Fish Psicultura e Lazer Ltda., com a participação do então
presidente da Cooperativa, e outras empresas (Empreendimento
Planejamento, Assessoria e Participações; Vídeo Temple Ltda. Me;
Conservix Limpeza e Serviços Ltda., etc.), com a participação de
membros do corpo diretivo e do Conselho Fiscal.

Relata uma série de irregularidades que teriam sido


praticadas pelos dirigentes da cooperativa, que podem ser assim
sintetizadas: (i) embora a maioria dos adquirentes das unidades
residenciais tenha quitado os valores contratuais, as contas da seção
“Torres da Mooca” ficaram “negativas”, motivo pelo qual eles (os dirigentes
da cooperativa) pretendem obter um expressivo aporte financeiro dos
cooperados para concluir as obras do bloco “C”; (ii) os cooperados não
têm como confiar nas afirmações dos dirigentes da cooperativa, por
serem, concomitantemente, administradores, construtores e fiscalizadores
do empreendimento, sendo certo que “as empresas do Grupo Econômico
dos Dirigentes da Cooperativa foram co-responsáveis pela sangria dos
recursos”, em flagrante violação à Lei n.º 5.764/1971; (iii) a cooperativa -
juntamente com a Administradora de Fundos Planner Corretora de Valores
(gestora) e o Banco Itaú S/A (custodiante) - criou o Fundo de Direitos
Creditórios – FDIC BANCOOP I, com a finalidade de adquirir os contratos
de financiamento imobiliário por ela celebrados. Assim, estipulou-se que a
carteira do aludido fundo seria composta por direitos creditórios
decorrentes da construção de empreendimentos imobiliários pela
cooperativa e que os devedores dos créditos do fundo seriam
necessariamente os associados da BANCOOP. Referido fundo poderia
adquirir novos contratos designados pela cooperativa, tão-logo os
financiamentos fossem sendo quitados, bem como recebíveis de crédito e
outros títulos de renda fixa na carteira. Divulgou-se, por meio da Bolsa de
4

Valores de São Paulo (BOVESPA), que o citado fundo seria do tipo


condomínio fechado, com prazo de três anos, oferecendo aos seus
cotistas seniores um retorno equivalente ao rendimento do IGP-M/FGV,
mais um spread ou sobretaxa de 12,5% ao ano. Afiançou-se que, caso
houvesse descasamentos potenciais entre os ativos de crédito (contratos
atualizados monetariamente pelo índice CUB/SINDUSCON, sem qualquer
incidência de juros, durante a fase de obras) e o rendimento alvo das
cotas do fundo (IGP-M/FGV mais uma sobretaxa de 12,5% ao ano), a
cooperativa cobriria o investimento dos cotistas. Tal operação, no mercado
financeiro, captou 43 milhões de reais. Esse fundo foi criado em afronta à
Lei n.º 5.764/1971 e ao Estatuto da Cooperativa, pois estes proíbem esse
tipo de operação financeira. Os cooperados do Edifício “Torres da Mooca”,
sem terem dado consentimento à realização da mencionada operação
financeira na Bolsa de Valores de São Paulo, suportaram o pagamento de
R$ 163.627,03, sendo R$ 140.723,41 em julho de 2005 e R$ 22.903,62
em agosto do mesmo ano, de modo a serem “vítimas de um grande
engodo, engendrado pelos dirigentes da cooperativa”; (iv) a cooperativa
não apresenta isenção política, conforme exige o artigo 4.º, inciso IX, da
Lei das Cooperativas, em virtude de: ter sido fundada pelo então Diretor
Nacional do Partido dos Trabalhadores, Ricardo José Ribeiro Berzoini; o
ex-presidente da cooperativa (de 1996 a 2004), Luiz Eduardo Saeger
Malheiro, já falecido, ter sido presidente do Partido dos Trabalhadores na
cidade de Praia Grande, São Paulo, e candidato, no ano de 2004, a vice-
prefeito da mesma cidade, pela coligação PT, PRB e outros partidos; o
atual presidente da cooperativa, João Vaccari Neto, ter uma vida pública
extensa e ligada diretamente ao Partido dos Trabalhadores, sendo o
segundo suplente na chapa que elegeu Aloísio Mercadante senador de
São Paulo pelo PT. Demais, embora tenha sido conduzido ao cargo de
presidente da cooperativa após o falecimento de Luiz Malheiro, sempre
5

esteve ligado à direção da cooperativa, ora como conselheiro fiscal ou


administrativo, ora como membro da diretoria. Esse envolvimento político
levou à publicação de matéria na Revista Época, edição n.º 376, de
agosto de 2005, intitulada “Cooperativa dos companheiros – Sindicalistas
controlam a segunda maior incorporadora de imóveis de São Paulo”;
dessa reportagem consta que a BANCOOP “foi criada (...) pelo presidente
do Sindicato dos Bancários de São Paulo (...) mas cresceu muito além de
seu objetivo inicial. A cooperativa dos sindicalistas virou uma potência
empresarial. Hoje (...) não atende só bancários. Tem 15 mil cooperados,
movimenta R$ 150 milhões por ano (...) De acordo com a Amaral D’Ávila
Engenharia de Avaliações, a cooperativa dos bancários virou a segunda
maior incorporadora de São Paulo (...) Ao passar o chapéu no mercado, a
BANCOOP conseguiu R$ 43 milhões. Desse total, mais da metade veio
dos fundos de pensão de empresas estatais. A PETROS, dos funcionários
da Petrobrás, foi a primeira a apostar no produto e aplicou R$ 10,6
milhões – um quarto do total. A FUNCEF (empregados da Caixa
Econômica Federal) entrou com R$ 11 milhões e a PREVI (Banco do
Brasil) deu mais R$ 5 milhões. Outros quatro fundos de pensão estatais,
de menor porte, também compraram cotas do fundo da BANCOOP.
Fundos privados respondem pelo resto do investimento. Os grandes
fundos de pensão estatais são dirigidos por sindicalistas. Wagner
Pinheiro, da PETROS, e Sérgio Rosa, da PREVI, foram inclusive diretores
do Sindicato dos Bancários. O presidente da FUNCEF, Guilherme
Lacerda, é militante histórico do PT. Com ou sem dinheiro dos fundos, a
BANCOOP cresce num ritmo espantoso e é a menina-dos-olhos do
movimento sindical. Em 2004, lançou 52% mais imóveis do que em 2003.
O mercado caiu 15%. A BANCOOP tem obras em andamento no valor de
R$ 420 milhões”; (v) ausência de adequada convocação para as
assembléias e aprovação de contas. Com efeito, a direção da cooperativa
6

não envia aos cooperados carta de convocação para as assembléias


gerais e extraordinárias. Em virtude da ausência de informação ou
informação insuficiente, os cooperados não comparecem às assembléias,
de modo a não votarem. As decisões, em sua grande maioria, são
tomadas pelos votos dos presentes, que não correspondem a 10% (dez
por cento) do número de associados da cooperativa, de tal forma que os
assuntos principais não acabam sendo votados pela maioria dos
cooperados, o que fez com que, em várias oportunidades, fossem
lesados. A aprovação das contas não passa de mero cumprimento de
protocolo, porquanto os cooperados não têm acesso aos processos de
licitação, contratos, comprovantes de despesas, etc.; (vi) os documentos,
reportagens e jornais da própria cooperativa evidenciam que ela não se
enquadra mais no regime jurídico de cooperativa; os aportes financeiros
atualmente exigidos de diversos empreendimentos (chamados de seções)
demonstram que a BANCOOP pratica preços de mercado (cf. laudos
anexados aos autos), com indisfarçável intenção de lucro. Sob a
justificativa de estar autorizada, pela cláusula 16.ª do Termo de Adesão e
Compromisso de Participação, a cobrar dos cooperados os valores
devidos a título de apuração final, a cooperativa “recebe reforço de caixa
condizente com a estrutura operacional das incorporadoras imobiliárias.
Assim, utiliza o seguinte estratagema (ato ardiloso): faz a captação de
clientela (novos cooperados) pela atratividade do preço (40% abaixo do
preço de mercado, em virtude de gozar de benefícios e incentivos fiscais)
e, depois de concluída a obra, repassa a diferença aos adquirentes das
unidades habitacionais, chamada de saldo residual, prevista
contratualmente; (vii) diversos membros do Corpo Diretivo e do Conselho
Fiscal – que deveriam zelar pelos interesses legítimos dos cooperados –
atendem a inúmeros interesses pessoais, uma vez que “além de serem
beneficiários de diversas vantagens econômicas (pagamento de
7

prestação em condições facilitadas, aquisição de várias unidades


residenciais em diversos empreendimentos, etc.), ainda constituíram
diversas empresas, que prestam serviços para a cooperativa”, como antes
se mencionou.

Em face de todas essas irregularidades e distorções,


conclui a associação representante que a BANCOOP assemelha-se,
atualmente, a uma incorporadora imobiliária, com fins lucrativos, devendo,
por isso, os seus dirigentes, responder pelos atos praticados, para que
seja restaurada a credibilidade e a segurança jurídica dos negócios que
realiza. Com efeito, “a BANCOOP, ao ter transgredido inúmeros
dispositivos legais e estatutários, desviando-se do regime cooperativo,
ficou descaracterizada por sua própria iniciativa, tendo agido em inúmeras
situações como uma sociedade empresária com fins lucrativos,
concorrendo com inúmeras incorporadoras imobiliárias”, devendo, por
isso, sujeitar-se integralmente à Lei n.º 4.591/1964. Devem, assim, os
dirigentes da cooperativa, proceder ao registro da incorporação
imobiliária, na forma da lei, a fim de que aqueles que pagaram
integralmente o preço previsto no contrato e anunciado no lançamento do
empreendimento possam obter as respectivas escrituras de suas
unidades residenciais.

Ademais, escorada em lição doutrinária de Dora Bussab


Castelo,1 Promotora de Justiça e ex-Coordenadora do Centro de Apoio
Operacional das Promotorias de Justiça do Consumidor, afirma que “três
são os elementos básicos indispensáveis para se poder concluir pela
existência de verdadeira Cooperativa Habitacional: a) sua criação na
forma prevista na lei (art. 5º, inciso XV, da Constituição Federal,
observando-se os requisitos formais de constituição exigidos pela Lei nº
1
Ensaio publicado na obra Promotorias de Justiça do Consumidor: atuação prática, Ministério Público
de São Paulo, 1997, p. 169 e ss. Tal estudo foi publicado, posteriormente, com o título “Cooperativas
Habitacionais e Algumas Considerações sobre Associações”, na Revista de Direito Imobiliário, ano 22,
n. 46, janeiro-junho de 1999, p. 134-182.
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5.764/71); b) a subscrição de quotas-partes do capital social pelos


cooperados; e c) existência e o efetivo controle pelos cooperados, dos
três órgãos sociais internos básicos da Cooperativa. Como se observa
dos fatos anteriormente mencionados, os Cooperados não têm até hoje
efetivo controle sobre os três órgãos sociais, tanto que não foram
convocados, através de correspondência, para nenhuma assembléia, bem
como não tiveram conhecimento das práticas abusivas do Corpo Diretivo”.

Prossegue asseverando que “entre a verdadeira


Cooperativa Habitacional ou Associação e seus cooperados ou
associados poderá ou não existir relação de consumo, dependendo das
circunstâncias do caso concreto. Existirá relação de consumo se presente
estiverem os seguintes requisitos: a) houver remuneração dos serviços
prestados pela Associação ou Cooperativa (art. 44, inciso IV, da Lei nº
5.764/71); b) os serviços forem oferecidos para um público anônimo e
despersonalizado, admitidas restrições a grupos sem escolha prévia de
pessoas determinadas; c) os cooperados ou associados se encontrarem
em uma situação de vulnerabilidade frente à Cooperativa ou Associação;
d) a habitualidade e o profissionalismo (...)”.

Especificamente no que tange ao empreendimento


“Torres da Mooca”, alega a representante que: (i) as obras do Bloco C
estão paralisadas, em desrespeito ao contrato, que prevê que deveriam
ter sido concluídas desde abril de 2005, paralisação esta que não se
justifica, pois “foi possível identificar que as entradas totais de recursos
foram compatíveis com os preços anunciados pela BANCOOP ao lançar
esse empreendimento imobiliário; (ii) causa grande inconformismo nos
cooperados o fato de os dirigentes da Cooperativa serem – ou terem sido
– sócios das empresas beneficiadas pelas contratações e dos expressivos
lucros auferidos com a construção e administração do Condomínio (...)
para depois pleitear dos próprios Cooperados o “reforço de caixa para a
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conclusão das obras”; (iii) a comissão de representantes não confia nas


notas fiscais emitidas pela construtora Germany e pela BAN –
Administradora de Condomínios e Serviços S/C Ltda., ambas constituídas
no mesmo endereço da cooperativa, tendo por sócios os membros
diretores da BANCOOP, de modo a se tornar necessária a realização de
uma perícia para constatação da área total construída, materiais gastos,
custo global da obra a ser concluída, etc.; sem tal perícia, “é difícil para os
Cooperados aceitarem os balanços e despesas apresentados pelo Grupo
Econômico do Corpo Diretivo da BANCOOP”; (iv) “se forem exigidos dos
cooperados valores iguais ou superiores aos do mercado imobiliário, qual
a vantagem de ter sido cooperado? Qual a razão de terem firmado o
Termo de Adesão? Onde encontrar as premissas do cooperativismo?”; (v)
a construção e a prestação de serviços feitas pelas empresas dos
dirigentes da Cooperativa apresentam vícios de qualidade por
inadequação e insegurança; (vi) a BANCOOP não cumpriu as normas que
regem a habitação e urbanismo, especialmente o artigo 32 da Lei n.º
4.591/1964, em virtude de haver lançado o empreendimento imobiliário
sem ter a aprovação do projeto na Prefeitura do Município de São Paulo e
o registro do memorial de incorporação imobiliária.

A essa representação seguiram-se outras, de


associações de adquirentes de outros empreendimentos (seções), de
cooperados isolados e de grupos de cooperados, de tal forma que, entre
os cooperados organizados em associações, os agrupados em comissões
e os individuais, representaram ao Ministério Público os adquirentes de
unidades residenciais nas seções “Torres da Mooca”, “Diana Tower”,
“Recanto das Orquídeas”, “Vila Mariana”, “Saint Phellipe”, “Colina Park”,
“Torres de Pirituba”, “Solar de Santana”, “Casa Verde”, “Cachoeira/Parque
Mandaqui”, “Horto Florestal”, “Ilhas d’Itália”, “Vilas da Penha, “Mar
Cantábrico-Guarujá” e “Vila Inglesa”. O conteúdo dessas representações,
10

mutatis mutandis, identificam-se com o da representação daquela


associação (Edifício “Torres da Mooca”).

Os representados defenderam-se argumentando, em


síntese, que: (i) a cooperativa foi constituída em 1996, por iniciativa do
Sindicato dos Bancários, tendo por finalidade propiciar aos cooperados a
construção de apartamentos a custos mais baixos que os de mercado; (ii)
as adesões à cooperativa se fizeram – e se fazem – pelo sistema de
preço de custo, pois não há finalidade de lucro; (iii) no lançamento de
cada obra é divulgado um custo estimado, estando fixada em contrato - e
na conformidade dos estatutos – cláusula de “apuração final”, segundo a
qual, ao final de cada obra, será apurada a diferença entre o custo
estimado e o realizado, promovendo-se o rateio das sobras ou perdas
verificados no cotejo. Como, atualmente, há saldo devedor, está sendo
exigido o rateio dessa perda dos cooperados; (iv) a cooperativa chegou a
ter 49 (quarenta e nove) empreendimentos em construções, dos quais já
foram entregues mais de cinco mil apartamentos, havendo cerca de três
mil em fase de construção; (v) a atual diretoria, sob a presidência de João
Vaccari Neto, constatou dificuldades na administração, decorrentes do
crescimento da cooperativa, e deliberou “profissionalizar” a gestão,
emprestando-lhe maior controle, eficiência e transparência, sendo
contratadas empresas para as áreas de planejamento construtivo,
engenharia e tecnologia e, também, organização administrativa e
financeira; (vi) os cooperados sempre foram informados sobre as
atividades da cooperativa, por meio de boletim mensal, sendo que as
convocações para as assembléias foram feitas mediante ampla
divulgação em jornal de grande circulação, afixação de circular na sede
da cooperativa, comunicação no portal eletrônico na Internet e publicação
no jornal Folha Bancária, por ser a maioria dos cooperados constituída
por bancários; (vii) foi comunicada, nas assembléias das seccionais (dos
11

empreendimentos), a existência de déficit a ser rateado entre os


cooperados, os quais, inconformados, reagiram de forma intensa e
agressiva; (viii) atualmente, há várias obras atrasadas, em virtude de
insuficiência de recursos, decorrente da mora e inadimplência dos
próprios cooperados; (ix) não existiu nenhum superfaturamento nas
obras, estando toda a escrituração contábil à disposição dos interessados
em examiná-las.

DO DIREITO

De início, cumpre consignar que, pelas inúmeras


irregularidades apuradas nos autos do inquérito civil, não há como afirmar,
com a necessária segurança, que a BANCOOP é uma verdadeira
cooperativa habitacional. Ao reverso, parece ser temerária tal assertiva,
diante dos abusos praticados pelos seus administradores, em detrimento
de inúmeros cooperados.

Se a BANCOOP foi constituída, em meados de 1996,


como uma autêntica cooperativa habitacional, nos moldes da Lei n.º
5.764/1971, como parece ter ocorrido e perdurado por determinado
período, acabou perdendo essa característica ao longo de sua existência
– mais de 11 anos, chegando a ter 55 (cinqüenta e cinco) seccionais ou
empreendimentos, incluindo prédios e casas -, em razão do desvio de sua
finalidade,2 traduzido nas irregularidades e nos abusos praticados pelos
seus dirigentes no exercício de sua administração, os quais redundaram -
ou em muito contribuíram - para a situação caótica em que ela se

2
De acordo com a Cláusula 1.ª do Termo de Adesão e Compromisso de Participação, “o objetivo da
COOPERATIVA é proporcionar a seus COOPERADOS a aquisição de unidades habitacionais, através
do sistema de autofinanciamento, a preço de custo”.
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encontra atualmente, com diversos imóveis não construídos e vários


outros com as construções paralisadas, de modo a suscitar uma série de
demandas judiciais, por cooperados e associações ou comissões de
cooperados de diversos empreendimentos ou seccionais.

De acordo com o apurado no inquérito civil, estas são as


principais irregularidades imputadas aos administradores da cooperativa:
(i) embora a maioria dos adquirentes de unidades residenciais de diversas
seccionais tenha quitado os valores previstos nos contratos (Termos de
Adesão e Compromissos de Participação), as suas contas se revelaram
deficitárias, motivo por que os dirigentes da cooperativa pretendem obter
um expressivo aporte financeiro dos cooperados para concluir as obras,
sem a devida e isenta justificação da cobrança desses valores; (ii) vários
administradores e conselheiros da cooperativa participaram dos quadros
sociais de várias empresas que prestaram serviço ou forneceram produtos
à BANCOOP, havendo indícios de que, agindo dessa forma irregular,
foram co-responsáveis pela sangria dos recursos da cooperativa, em
prejuízo da massa de cooperados; (iii) a cooperativa - juntamente com a
Administradora de Fundos Planner Corretora de Valores (gestora) e o
Banco Itaú S/A (custodiante) - criou o Fundo de Direitos Creditórios –
FDIC BANCOOP I, com a finalidade de adquirir os contratos de
financiamento imobiliário por ela celebrados, na forma descrita acima. Tal
operação captou a vultosa quantia de 43 milhões de reais no mercado
financeiro. Esse fundo foi criado em afronta à Lei n.º 5.764/1971 e ao
Estatuto da Cooperativa, pois estes proíbem esse tipo de operação
financeira. Os cooperados de diversos empreendimentos, como o Edifício
“Torres da Mooca”, sem terem dado consentimento à realização dessa
operação na Bolsa de Valores de São Paulo, suportaram o pagamento de
vultosas importâncias, sendo forte os indícios de desvio de eventuais
receitas dos empreendimentos, de sorte a serem vítimas de um grande
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engodo; (iv) ausência de adequada convocação dos cooperados, na


forma exigida pela lei, para as assembléias, inclusive as de aprovação de
contas e da criação do fundo sobredito. Com efeito, a direção da
cooperativa não enviou – como não envia - aos cooperados cartas de
convocação para as assembléias gerais e extraordinárias. Em virtude da
ausência de informação ou informação insuficiente, os cooperados não
comparecem às assembléias, de modo a não votarem. As decisões, em
sua grande maioria, são tomadas pelos votos dos presentes, que não
correspondem a 10% (dez por cento) do número de associados da
cooperativa, de tal forma que os assuntos principais não acabam sendo
votados pela maioria dos cooperados; (v) a aprovação das contas não
passa de mero cumprimento de protocolo, porquanto os cooperados não
têm acesso aos processos de licitação, contratos, comprovantes de
despesas, etc.; (vi) a cooperativa atua no mercado como se fosse
verdadeira incorporadora, como se depreende de seus anúncios
publicitários, relativos ao lançamento de empreendimentos imobiliários, e
de outras práticas comerciais, de modo a se afastar do regime jurídico de
cooperativa, ainda que de forma culposa; (vii) os aportes financeiros
atualmente exigidos em diversos empreendimentos demonstram que a
BANCOOP pratica preços de mercado (cf. laudos anexados aos autos),
com indisfarçável intenção de lucro. Sob a justificativa de estar autorizada,
pela cláusula 16.ª do Termo de Adesão e Compromisso de Participação, a
cobrar dos cooperados os valores devidos a título de apuração final, a
cooperativa recebe reforço de caixa que seria condizente com a estrutura
operacional das incorporadoras imobiliárias. Para tanto, utiliza o seguinte
estratagema ou ato ardiloso: faz a captação de clientela (novos
“cooperados”) pela atratividade do preço (40% abaixo do preço de
mercado, em virtude de gozar de benefícios e incentivos fiscais) e, depois
de concluída a obra, repassa a diferença aos adquirentes das unidades
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habitacionais, chamada de saldo residual, prevista no Termo de Adesão;


(viii) não-construção de edifícios ou paralisação das obras em vários
empreendimentos, sob alegação de falta de recursos financeiros; (ix)
fusão das contas dos empreendimentos - que devem ser separadas, de
acordo com o estatuto da cooperativa -, em uma só conta, de modo a
dificultar a prestação de contas das receitas e despesas de cada um
desses empreendimentos; (x) repasse de unidades residenciais a
construtoras – que não podem associar-se à BANCOOP, como
cooperados - como parte do pagamento de seus serviços. Tal permuta,
para os dirigentes da cooperativa, é comum, “para que seja possível
lançar novos empreendimentos com bons preços”, sendo certo que o seu
conhecimento e eficiência “fizeram com que a construtora procurasse a
Bancoop para prestar esse serviço”, no que foi imitada por outras
construtoras (fls. 2485).

Essas anomalias ou irregularidades na gestão da


cooperativa, entre outras, praticadas pelos seus administradores à revelia
dos cooperados, são suscetíveis de tornar lícita a dedução de que ela
vem sendo utilizada para encobrir o exercício de atividade econômica com
o fim de lucro, própria das sociedades empresariais – e não das
sociedades simples, como são as cooperativas -, assemelhando-se a
empresas incorporadoras de bens imobiliários – e com a vantagem de
não se submeter às exigências legais que estas estão obrigadas a
cumprir, como o registro da incorporação imobiliária, nos moldes do artigo
32 da Lei n.º 4.591/1964,3 de modo a restar descaracterizada a sociedade
3
Como foi salientado pelo Doutor Ademir Perez, culto e combativo Promotor de Justiça que atuou nos
autos do inquérito civil e interveio, como custos legis, em algumas ações coletivas promovidas por
associações de adquirentes de unidades residenciais de seccionais da BANCOOP, esta “atuou como
verdadeira incorporadora, com a obrigação de registrar no cartório imobiliário a incorporação, nos
moldes do artigo 32 da Lei n. 4.591/64, o que não fez”. Adverte que “os associados da autora estão em
situação de risco em relação aos imóveis adquiridos, visto que a ausência da incorporação impede que
os adquirentes possam inscrever o negócio jurídico no registro público, com todas as conseqüências daí
decorrentes, sobretudo a impossibilidade de serem titulares de direito real sobre os imóveis e a
possibilidade do terreno onde os prédios foram edificados ser objeto de negociação, penhora ou de
qualquer outra restrição ou constrição judicial ou extrajudicial” (fls. 2829).
15

cooperativa. Viola, com isso, a norma residente no artigo 3.º da Lei n.º
5.764/1971, que estatui que “celebram contrato de sociedade cooperativa
as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou
serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito
comum, sem objetivo de lucro”.4

Documentos juntados aos autos, na forma de portfólio de


lançamentos e empreendimentos, apontam a BANCOOP como uma
organização que tem “um grande poderio empreendedor” (típico de
empresas), como está consignado numa das ações judiciais aforadas por
adquirentes de apartamentos na seccional “Parque do Mandaqui” (fls.
2783).

Nessa ação, foi muito bem observado, pelo patrono dos


seus autores, com base em farta documentação, que “a própria
BANCOOP se intitula como uma ‘EMPRESA SÓLIDA’, na divulgação e
publicidade de seus empreendimentos, na medida em que realiza
propaganda com os dizeres comerciais de que:

‘(...) a BANCOOP, cada vez mais, vem se destacando no mercado


como uma das melhores empresas na garantia do investimento’”.

A publicação de fls. 2475, intitulada Bancoop ganha o


Top Imobiliário, mostra, de modo indisfarçável, a cooperativa como uma
empresa do ramo imobiliário (incorporadora, construtora ou vendedora):

“Pelo segundo ano consecutivo, a Bancoop – Cooperativa


Habitacional dos Bancários de São Paulo conquistou o Top
Imobiliário. Concedido às empresas construtoras, incorporadoras
4
Bem ilustra esta situação o texto publicado no site www.bancoop.com.br: “Na sua criação, a
BANCOOP – Cooperativa Habitacional dos Bancários encerrou o ano com três empreendimentos
lançados (...). De lá para cá não para de trabalhar e crescer. Hoje, são 55 empreendimentos com a marca
BANCOOP que totalizam 8.794 imóveis, sendo 5.196 entregues e 3.598 em produção”.
16

e vendedoras mais atuantes, o Top Imobiliário é considerado o


prêmio mais importante da produção de imóveis do País. A Bancoop
ficou em 6º lugar entre cerca de 2 mil empreendedoras do Estado de
São Paulo. No ano anterior conquistou o 9º lugar. Desta maneira, por
dois anos consecutivos, a Bancoop está entre as dez maiores
empreendedoras do Estado de São Paulo” (grifos nossos).

Os anúncios publicitários dos empreendimentos da


cooperativa juntados aos autos são próprios de uma empresa de
incorporação imobiliária que oferece ao público consumidor unidades
residenciais em edifícios a serem construídos. Vejam-se, por exemplo, os
prospectos de publicidade encartados a fls. 2469/2474 e 2495/2497.
Esses folhetos publicitários são do mesmo estilo daqueles distribuídos
pelas incorporadoras, construtoras e vendedoras de imóveis. Neles está
aposto o logotipo da BANCOOP, seguido da expressão “Seu sonho, nosso
trabalho”. De alguns deles constam, também, os seguintes dizeres
chamativos: “Venha associar-se à maior Cooperativa do Brasil”. Procura,
com isso e outras publicações acostadas aos autos, passar a impressão
de que se trata de uma verdadeira sociedade cooperativa, de modo a
ilaquear a boa-fé dos futuros compradores de unidades residenciais, pois
o seu modus operandi é característico de uma incorporadora.

Num desses anúncios (cf. sofisticado encarte de fls.


2498/2501), relativo ao empreendimento “Jardim Anália Franco”, a
BANCOOP, embora se intitulando uma cooperativa, revela atitude própria
de uma empresa incorporadora ou vendedora de imóveis ao público
consumidor, como se dessume do texto abaixo transcrito:

“Há 5 anos, a Bancoop vem provando que a sua filosofia de trabalho


é baseada na evolução, tradição, determinação e administração
eficiente, com a qualidade e segurança de entrega acima de tudo. A
17

empresa já provou que é pontual na entrega de seus


empreendimentos, cumprindo os prazos em tempo hábil, sempre
com alta qualidade de material e de profissionais e com a mais
moderna tecnologia, totalmente compatível com as mais novas
tendências mundiais. A Bancoop tem um grande leque de atuação,
está presente em quase 30 obras, com 5.500 unidades das quais
1.500 já entregues (grifo nosso). Atuando com solidez e segurança
tão distintas e com transparência e preço extremamente competitível
(sic) em relação ao mercado, a Bancoop se orgulha de estar
presente na vida de milhares de pessoas que procuram uma
qualidade de vida melhor, para que as suas realizações pessoais
sejam uma realidade, sempre”

A sociedade cooperativa, segundo João Batista Brito


Pereira, “é uma associação de pessoas que se organizam com o
propósito de se ajudarem mutuamente, e tem por finalidade a prestação
de serviços a seus associados, de tal modo que possibilite o exercício de
uma atividade econômica comum que, na oferta de bens e serviços,
minimize custos, elimine o intermediário, etc. É, em resumo, a união de
esforços em proveito comum, sem finalidade lucrativa”.5

O autor acrescenta que “um dos pilares materializado na


cooperativa como associação autônoma de pessoas é a ajuda mútua,
consistente na busca do atendimento das necessidades reais dos
cooperados ou associados, permeado por um ideal vivamente ético e
baseado em valores como responsabilidade, democracia, igualdade,
eqüidade e solidariedade, enfim uma espécie de aliança traduzida na
expressão ‘um por todos, todos por um’, na busca da melhoria da situação
socioeconômica de todos quantos individualmente não podem realizar um

5
Cooperativa, uma alternativa. In: Marcus Elidius Michelli de Almeida e Ricardo Peake Braga.
Cooperativas à luz do Código Civil. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2006, p. 101.
18

certo objetivo e assim a cooperativa visa alcançar os objetivos dos


cooperados”.6

Nessa magistral descrição de uma verdadeira sociedade


cooperativa, sem margem para dúvida, não se enquadra a BANCOOP,
pois nela não se opera nenhuma ajuda mútua, visando ao “atendimento
das necessidades reais dos cooperados ou associados”. Não se pode,
cogitar da existência, por parte dos administradores da cooperativa, de um
“ideal ético e baseado em valores como responsabilidade, democracia,
igualdade, eqüidade e solidariedade”, com vista à melhoria da situação
socioeconômica dos cooperados, os quais, individualmente, não podem
alcançar o objetivo de ter a casa própria. Daí a necessidade de se
associarem sob a forma de sociedade cooperativa.

A ilustrar essa constatação, tem-se a frustração de


número acentuado de cooperados cujas unidades residenciais não foram
construídas ou tiveram sua construção paralisada. E com o gravame de
que não foram devolvidos, integralmente, pela BANCOOP, os valores
desembolsados pelos primeiros e estão sendo exigidas diferenças de
preços exageradas dos segundos. E a BANCOOP, de forma cínica, ainda
chegou a afirmar, em anúncio publicitário (fls. 2501), que “já provou que é
pontual na entrega de seus empreendimentos, cumprindo os prazos
em tempo hábil (...)” (grifos nossos).

Outra conduta dos dirigentes da BANCOOP que a


descaracteriza como sociedade cooperativa consiste na violação da
norma do artigo 4.º, inciso IV, da Lei n.º 5.764/71, que estabelece que as
sociedades cooperativas distinguem-se das demais sociedades pela
“incessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros estranhos à
sociedade”. Como se viu no rol das irregularidades acima relacionadas, a
BANCOOP negocia, na Bolsa de Valores de São Paulo, as cotas seniores
6
João Batista Brito Pereira. Cooperativas, uma alternativa, cit., p. 101.
19

do Fundo de Investimento em Direitos Creditórios – FIDC BANCOOP.


Referido fundo tem, como lastro, direitos creditórios de contratos de
financiamento imobiliário celebrados pela cooperativa. Os investidores do
aludido fundo possuem, em caso de dissolução ou liquidação da
BANCOOP, direito de preferência sobre todo o patrimônio da massa, o
que engloba, inclusive, os imóveis onde estão os empreendimentos,
conforme apurado nos autos.

Isso revela indubitável descaso com o patrimônio dos


cooperados - que depositaram confiança na direção da cooperativa e
investiram seu dinheiro com base nessa confiança - e falta de
responsabilidade e solidariedade com o alter, representado por cada um
dos que fizeram, a duras penas, tal investimento e, agora, batem à porta
do Ministério Público e do Judiciário, em busca de providências que
redundem na tutela de seus direitos. Tal assertiva se faz, evidentemente,
em vista daqueles que aderiram à cooperativa pensando que, de fato, se
tratava de autêntica cooperativa – e não de uma cooperativa aparente (ou
“de fachada”, numa linguagem vulgar), que encobre uma atividade
empresarial, com fins outros que não aqueles buscados por uma
verdadeira cooperativa.

No caso vertente, como se vê do que já foi exposto,


existe uma atividade empresarial sendo exercida sob o manto de
cooperativa habitacional, consistindo ela, praticamente, em atividade de
incorporação imobiliária (compra e venda de unidades residenciais em
construção ou a serem construídas). Os serviços da Bancoop são
oferecidos a um público anônimo e despersonalizado, constituído por
“cooperados” que se encontram em situação de vulnerabilidade diante do
Órgão de Administração (Diretoria ou Conselho de Administração) e do
Conselho Fiscal, que, junto com a Assembléia Geral dos cooperados,
constituem a estrutura interna da cooperativa.
20

Segundo o ensinamento de Dora Bussab Castelo, “três


são os elementos básicos indispensáveis para se poder concluir pela
existência de verdadeira Cooperativa Habitacional:

a) sua criação na forma prevista na lei (...), observando-se os


requisitos formais de constituição exigidos pela Lei 5.764/71;
b) a subscrição de quotas-partes do capital social pelos cooperados;
e
c) a existência e o efetivo controle, pelos cooperados, dos três
órgãos sociais internos básicos da Cooperativa”.7

Indubitavelmente, no caso em exame, não está presente


o terceiro dos elementos acima enumerados, pois os cooperados não têm
nenhum controle sobre os “três órgãos sociais internos básicos da
Cooperativa”, quais sejam, o Órgão de Administração (Diretoria ou
Conselho de Administração), o Conselho Fiscal e a Assembléia Geral dos
cooperados (como já foi assinalado, não foram e não são regularmente
convocados para as assembléias). Dessa forma, não podem ser
responsabilizados pelas despesas, prejuízos e dívidas assumidas pela
cooperativa perante terceiros.

A vulnerabilidade da posição dos cooperados diante do


corpo diretivo da cooperativa, in casu, é evidente. Afigura-se, inicialmente,
no momento da publicidade ou oferta das unidades residenciais pela
cooperativa, uma vez que estas são feitas após a constituição da entidade
e fixação das linhas básicas da prestação dos serviços pelo grupo
fundador. Revela-se, depois, no momento da conclusão do contrato
(termo de adesão), cujas cláusulas foram elaboradas unilateral e
previamente pelo corpo diretivo, sem que os cooperados tivessem a

7
Dora Bussab Castelo. Cooperativas habitacionais e algumas considerações sobre associações. Revista
de Direito Imobiliário, n. 46, ano 22, janeiro-junho de 1999, p. 179.
21

oportunidade de discutir ou modificar qualquer uma dessas cláusulas.


Limitaram-se, pura e simplesmente, a aderir a essas cláusulas contratuais
gerais. Finalmente, como observa Dora Bussab Castelo, “após a
assinatura do contrato, durante o transcurso da prestação dos serviços, tal
vulnerabilidade mais uma vez se faz sentir em face do real distanciamento
existente entre a massa dos associados ou cooperados e o respectivo
grupo dirigente”.8

Somente se a sociedade cooperativa se formar pela


reunião de um pequeno grupo de pessoas, em que haja entre elas e os
dirigentes da cooperativa uma evidente proximidade, “que possibilite a
todos os integrantes dessas entidades ter maior controle sobre o que está
ou será feito, assemelhando-se a um condomínio”, é que se poderá
afirmar que eles não se encontram em real inferioridade ou
vulnerabilidade diante da cooperativa.9

Aplicação da teoria da aparência: a oferta como aparência e a


aceitação baseada na confiança; a responsabilidade civil derivada da
confiança despertada por uma situação objetiva de aparência

Na espécie, é inteiramente aplicável a teoria da


aparência, com vista à tutela da confiança dos cooperados que
ingressaram na BANCOOP de boa-fé, acreditando tratar-se de uma
verdadeira cooperativa – e sentem-se enganados, pois passaram a
enxergá-la como ela realmente é, ou seja, uma organização que atua
como uma incorporadora. É lícito afirmar que eles foram iludidos por uma
aparência suscetível de razoavelmente enganar terceiros. Aceitaram as
8
Dora Bussab Castelo, ob. cit., p. 163. A autora acrescenta que o requisito “da vulnerabilidade do
associado ou cooperado, em geral, anda junto com o requisito da oferta da prestação de serviços para
um público anônimo e despersonalizado, posto que é justamente a partir da coleta de adesões por um
público anônimo que se formam Cooperativas ou Associações, com a característica do distanciamento
para com os cooperados ou associados, distanciamento esse a lhes colocar em uma situação de
vulnerabilidade” (ibidem).
9
Dora Bussab Castelo, ibidem.
22

propostas da Bancoop baseados na confiança despertada pela aparência


gerada por esta última, de que é uma verdadeira cooperativa, e, assim,
poderiam adquirir a casa própria por preço de custo, abaixo do de
mercado.

Sobre a teoria da aparência, cabe assinalar, em sucinta


digressão, que ela tem sido consagrada em todos os países,
“especialmente no Direito comercial,10 embora sejam diferentes alguns
dos fundamentos invocados pela doutrina e jurisprudência em cada um
dos sistemas jurídicos”.11 Vejamos, de forma sintética, como ela é
fundamentada na França, Itália, Alemanha e Espanha, pois, em linhas
gerais, os fundamentos adotados por esses países são utilizados pela
doutrina e jurisprudência brasileiras na aplicação da teoria da aparência.12

Na França, os efeitos da teoria da aparência são


justificados tanto pela velha parêmia error communis facit jus (à letra, “o
erro comum faz o direito”), aplicada pelos romanos, quanto pela
construção feita em torno da boa-fé subjetiva (boa-fé crença).13 Nesse
país, “desde Josserand e Saleilles, a aparência foi considerada como
fonte de direito, quando o erro de terceiro de boa-fé se justifica ou quando
nele foi induzido, dolosamente, pela outra parte”.14 A teoria da aparência é
10
Ver, a propósito, Jean Calais-Auloy. Essai sur la notion d’apparence en droit commercial, Paris, 1959.
11
Arnoldo Wald. A teoria da aparência e o direito bancário. Revista de Direito Mercantil, n. 106, ano
XXXVI, abril-junho de 1997, p. 10.
12
Para uma análise mais aprofundada sobre a teoria da aparência, consultar, no Direito brasileiro, entre
outros: Arnold Wald, ob. cit., p. 7-19; Álvaro Malheiros. A aparência de direito. Revista de Direito Civil,
Imobiliário, Agrário e Empresarial, ano 2, outubro-dezembro de 1978, p. 41-77; David Cury Júnior. A
teoria da aparência no direito sucessório. Dissertação de mestrado. PUC-SP, 2000; Arnaldo Rizzardo.
Teoria da aparência, cit., p. 222-231; Hélio Borghi. Ausência e aparência de direito, erro e simulação.
Revista dos Tribunais, v. 734, ano 85, dezembro de 1996, p. 763-771; Vicente Ráo. Ato jurídico. 4.ed.
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, passim; Orlando Gomes. Transformações gerais do direito
das obrigações. 2.ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1980; Carlos Nelson Konder. A proteção
pela aparência como princípio. In: Maria Celina Bodin de Moraes (Coord.). Princípios do direito civil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 111-133. No Direito estrangeiro (onde há extensa
bibliografia), além das obras citadas neste voto, vejam-se as referidas por Paulo Mota Pinto, in
Aparência de poderes de representação e tutela de terceiros. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra,
vol. LXIX, 1993, p. 602, nota 23, segundo parágrafo.
13
Cf., entre outros: Arnoldo Wald, ob. cit., p. 10; Álvaro Malheiros. Aparência de Direito, cit., p. 60;
David Cury Júnior. A teoria da aparência no direito sucessório, cit., p. 29.
14
Mazeaud e Mazeaud. Leçons de droit civil, 5.ed., t. II, n. 51, cit. por Arnoldo Wald, ob. cit., p. 10.
23

uma criação da jurisprudência,15 que, numa evolução construtiva, a partir


de decisões da Corte de Cassação, tem admitido a sua incidência sempre
que o erro cometido por terceiros de boa-fé, em face da aparência, seja
legítimo, isto é, razoável e justificado pelas circunstâncias específicas do
caso, e não invencível (erro inevitável para a coletividade), 16 como se
entendia originalmente.

Há consenso entre os doutrinadores franceses de que


deve haver uma vinculação entre a aparência e a boa-fé, embora possa
haver divergência quanto à prevalência de uma ou outra, como se verifica
na afirmação feita por Jean Calais-Auloy (autor do Projet de Code de la
Consommation): “c’est la bonne foi qui devient efficace en s’appuyant sur
l’apparence et non l’apparence en s’appuyant sur la bonne foi”.17

E é de um renomado autor francês, Henri Mazeaud, a


precisa observação de que a evolução do Direito, nesse particular, resulta
“da complicação cada vez maior das relações jurídicas, pois, por não se
poder ir até o fundo das coisas, somos cada vez mais forçados a confiar
na aparência: é preciso, sob pena de perturbar a ordem social, que a
aparência razoável do direito produza, nas relações com os terceiros, os
mesmos efeitos que o próprio direito produziria”.18

Na Itália, os efeitos da teoria da aparência são


justificados pela tutela da confiança (la tutela dell’affidamento). Repele-
se o princípio do erro comum – tão difundido na França -, por reputar
necessária “uma situação jurídica objetiva que a justifique”.19 Ao seu lado,
“deve existir um elemento moral, qual seja, a boa-fé do terceiro, que é
induzido a erro quanto à existência de uma dada situação jurídica, na qual
15
Cf. Jacques Ghestin e Gilles Goubeaux. Traité de droit civil: introduction générale. Paris: LGDJ, 1994,
p. 845.
16
Arnoldo Wald, ob. cit., p. 11.
17
Cf. Arnoldo Wald, ob. cit., p. 11.
18
Citado por Arnoldo Wald, ob. cit., p. 11.
19
Orlando Gomes. Transformações gerais do direito das obrigações. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 1980, p. 118.
24

o homem médio, de normal diligência e prudência, diante das


circunstâncias do caso, também incidiria, de tal modo a tornar esse erro
escusável”.20 Ocorre a conjunção de dois elementos: um material,
representado pela situação objetiva de aparência jurídica, e outro moral,
consistente na boa-fé do terceiro.

Na aparência de direito, a postura ou o comportamento


do sujeito que a cria é a causa de engano do terceiro, consoante ensina
Mariano D’Amelio.21 E quem age de boa-fé, confiando na aparência criada
por manifestações alheias, deve ser protegido.22 “No direito moderno,
entende-se, majoritariamente, que criar a aparência, ou deixar que essa
se forme, implica a constituição de uma situação que deve ser apreciada
em vantagem daquele que, no tráfego jurídico, necessariamente deve
confiar naquilo que parece crível. A tutela da confiança se baseia
especialmente nessa consideração objetiva da situação, quando o
interessado tinha motivos para crer na aparência. Por isso, em vez de
atribuir à responsabilidade o mesmo valor da vontade, prefere-se recorrer
ao conceito de risco ao qual se expõe quem tenha causado em terceiros
confiança não-culposa”.23

Na precisa observação de Arnoldo Wald, baseada em


Ferrara, citando-o, “ciò chè nel commercio appare come vero, deve valere
come vero” (“o que no comércio aparece como verdadeiro, deve valer
como verdadeiro”).24

Sintetizando a posição do Direito italiano, que se aplica


também no Direito brasileiro, Orlando Gomes, inspirado em D’Amelio,
assim pontifica:

20
David Cury Júnior, ob. cit., p. 41.
21
Apparenza del diritto. Novissimo digesto italiano, 3.ed., Torino, 1957, v. 1, p.716-717.
22
Alberto Trabucchi. Instituzioni di diritto civile, 16.ed., p. 206, cit. por Arnoldo Wald, ob. cit., p. 11.
23
Trabucchi, Instituzioni di diritto civile, p. 206, cit. por Arnoldo Wald, ob. cit., p. 12.
24
Ob. cit., p. 12.
25

“São exigências sociais que justificam a adoção do princípio (da


aparência) nos amplos termos que lhe empresta parte da doutrina
moderna, desde que Oertmann abriu o caminho para sua
generalização. Segundo D’Amelio, deve-se permitir que tomem a
aparência como realidade por três razões principais: 1.ª – para não
criar surpresas à boa-fé nas transações do comércio jurídico; 2.ª -
para não obrigar os terceiros a uma verificação preventiva da
realidade do que evidencia a aparência; 3.ª – para não tornar mais
lenta, fatigante e custosa a atividade jurídica. A boa-fé nos contratos,
a lealdade nas relações sociais, a confiança que devem inspirar as
declarações de vontade e os comportamentos exigem a proteção
legal dos interesses jurisformizados em razão da crença em uma
situação aparente, que tomam todos como verdadeira”.25

Em resumo, na Itália, o que se quer, com a aplicação da


teoria da aparência é a proteção da confiança (affidamento) de terceiros
que foram induzidos a erro em razão da situação de aparência criada pelo
comportamento da outra parte. É assim que, no Direito brasileiro, tem
sido, modernamente, entendida a aludida teoria, como mais à frente se
verá. E o Direito do consumidor, tal como o Direito comercial, é um campo
fértil para a sua aplicação, na tutela da confiança de consumidores
enganados por situações de aparência de fornecedores de produtos e
serviços.

Na Alemanha, a doutrina reconhece amplamente a teoria


da aparência, como assinala Arnoldo Wald.26 Traz a posição de
Enneccerus, no seu Tratado, que sintetiza a posição dominante:

“o ordenamento jurídico protege a confiança nos fatos exteriores,


proteção apenas concedida em determinadas direções aos que

25
Orlando Gomes. Transformações gerais do direito das obrigações, cit., p. 116.
26
Ob. cit., p. 12.
26

procedem de boa-fé e, ainda assim, unicamente quando a boa-fé se


apóia sobre bases de fato concretamente determinadas”.27

No mesmo sentido é a lição de Karl Larenz, ao


considerar que quem cria uma aparência capaz de enganar terceiros de
boa-fé tem o dever de garantir a segurança jurídica daqueles que
justificadamente acreditaram na realidade daquilo que só era aparente.28

Como bem sublinha Paulo Mota Pinto, “o problema da


protecção do terceiro que se suscita (…) é, no fundo, o problema da tutela
da confiança depositada nessa aparência jurídica”.29 O mesmo autor,
discorrendo sobre a representação aparente no Direito português, em
comparação com o Direito alemão, assinala que, em tal país, a aparência
jurídica foi elevada a princípio geral:

“É verdade que a tutela da aparência jurídica (Rechtsschein) tem na


Alemanha tradições de peso, e que foi tendencialmente erigida em
princípio geral, no que parece ser uma relevante diferença (é certo
que pelo menos de grau) em relação a direitos de matriz mais
acentuadamente romanística, como é o nosso (…)” (grifos nossos).

Estabeleceu-se, na doutrina tedesca, a


“responsabilidade pela aparência jurídica por força da criação consciente
de um Tatbstand de aparência”, como anota Claus-Wilhelm Canaris,30 e
também a “responsabilidade pela aparência jurídica como complemento
da responsabilidade derivada de negócios jurídicos”, como se extrai da
doutrina de Karl Larenz.31

27
Ob. cit., p. 12.
28
Karl Larenz. Derecho de obligaciones, t. II, p. 430, tradução espanhola, Ed. Revista de Derecho Priva-
do, 1959, cit. por Arnoldo Wald, ob. cit., p. 12.
29
Paulo Mota Pinto. Aparência de poderes de representação e tutela de terceiros, cit., p. 602.
30
Cf. Paulo Mota Pinto, ob. cit., p. 620, nota 56.
31
Cf. Paulo Mota Pinto, ob. e loc. cits. na nota anterior.
27

Canaris faz distinção entre “a proteção positiva da


confiança” (pela criação da situação correspondente a essa confiança) e
“a proteção negativa” (pela indenização do interesse negativo,
restaurando-se a situação que existiria sem ter havido confiança
justificada), dizendo que ela “é verdadeiramente constitutiva para a
responsabilidade pela confiança e pela aparência (falando, pois, na ‘dupla
via da responsabilidade pela confiança’ – Zweispurigkeit der
Vertrauenshaftung)”.32

A responsabilidade pela criação de situação de


aparência, correspondente à confiança despertada em terceiros (os
cooperados da Bancoop) – hipótese de “proteção positiva da confiança” -,
aplica-se ao caso sob exame. Daí a importância da doutrina alemã para a
solução do caso vertente, embora não seja necessário basear-se as
conclusões predominantemente em argumentos comparatísticos, pois
elas podem ser inferidas diretamente da doutrina e jurisprudência
brasileiras, já que elas – a exemplo da doutrina germânica – também têm
elevado a aparência jurídica a um princípio geral do direito.

Na Espanha, os autores adotam posição na mesma


direção (proteção da confiança de quem é induzido a erro por acreditar na
aparência). José Puig Brutau, por exemplo, ensina que a aparência se
apresenta quando os atos são realizados “por uma pessoa enganada por
uma situação jurídica que é contrária à realidade, porém que apresenta
exteriormente as características de uma situação jurídica verdadeira”.33 E
complementa afirmando que “quem tenha dado lugar à situação
enganosa, ainda que haja sido sem o propósito deliberado de induzir a
erro, não pode fazer com que seu direito prevaleça sobre o direito de
quem haja depositado sua confiança naquela aparência”.34
32
Cf. Paulo Mota Pinto, ob. cit., p. 632.
33
José Puig Brutau. Estudos de derecho comparado. La doctrina de los actos propios, Barcelona: Ed.
Ariel, 1951, p.103.
34
José Puig Brutau, ob. cit., p. 103.
28

Arnaldo Rizzardo35 traz à colação o seguinte


ensinamento de Luis Diez-Picazo e Ponce de Leon (La doctrina de los
actos propios, Barcelona, 1962, p. 65/66):

“Quien crea en otra persona una determinada situación aparente e in-


duce com ello a esta otra persona a obrar en un determinado sentido,
sobre a base de esta apariencia en la que ha confiado, no puede
después pretender que aquella situacón era puramente fictícia y que
debe valer a situación real”.

A doutrina argentina tem assinalado, também, que “a


proteção da aparência é um princípio jurídico e, como tal, pode ser
estendido além dos casos legalmente previstos. Para isso, é necessário
uma situação de fato que, por sua notoriedade, seja objetivamente idônea
para induzir a erro (ou engano) os terceiros acerca do estado real
daquela; e, ainda, que o terceiro não tenha logrado conhecer a verdadeira
situação, empregando uma diligência média” (grifos nossos).36 Por
derivação da segurança e confiança no comércio, existem situações
objetivas nas quais a aparência criada e a atuação com base na confiança
autorizam a imputar obrigações, onde o sujeito não as estabeleceu
expressamente.37

Para Ricardo Luis Lorenzetti, Ministro da Suprema Corte


Argentina, a aparência surge quando “há comportamento socialmente
típicos, o que importa dizer que têm uma certa reiteração no tempo e uma
generalidade que permite sustentar uma expectativa”, devendo “existir um
nexo causal entre a expectativa criada e o ato realizado pelo terceiro”.
Toda “a tendência atual se assenta nas expectativas de satisfação do
adquirente na compra e venda, do consumidor no direito do consumo, do
35
Arnaldo Rizzardo. Teoria da aparência. AJURIS, n. 24, ano IX, março de 1982, p. 224.
36
Ricardo Luis Lorenzetti. La oferta como apariencia y la aceptación basada en la confianza, cit., p. 22.
37
Ricardo Luis Lorenzetti, ob. cit., p. 23.
29

público indeterminado na aparência, de modo que não é um mero erro,


mas um interesse jurídico protegido em razão da confiança”.38

Na teoria do contrato, em que este resulta de um acordo


de vontades, o consentimento se apresenta como um princípio de raiz
histórica, de recepção sistemática na maioria dos ordenamentos, e, para
muitos, uma regra insubstituível da economia de mercado. Todavia, “a
consideração atual das relações negociais como operações econômicas
objetivas, a necessidade de proteger o tráfico jurídico, a confiança e a
aparência, obrigam a pensar no sentido da extensão da regra sobredita”.
Assim, “a regra é a autonomia da vontade e a aparência é uma exceção,
que tem sua base na responsabilidade extracontratual”.39

Karl Larenz “considera que, nos casos de aparência, se


trata de uma responsabilidade por uma atuação ou omissão no tráfico
jurídico negocial, estendida para além da responsabilidade pelas próprias
declarações de vontade; trata-se de uma responsabilidade pela confiança,
no âmbito da teoria do negócio jurídico, mas como complemento da
responsabilidade derivada dos negócios jurídicos” (grifos nossos).40

No Brasil, tal como no Direito comparado, a aparência


jurídica é vista como um princípio geral do direito, como afirma,
taxativamente, o grande civilista Arnoldo Wald:

“Embora não decorrendo de texto legal, a teoria da aparência


corresponde, no direito brasileiro, a um princípio geral que se deduz
das várias disposições legais que constituem o sistema jurídico

38
Ricardo Luis Lorenzetti, ob. cit., p. 25.
39
Ricardo Luis Lorenzetti, ob. cit., p. 27.
40
Karl Larenz. Derecho civil – Parte general. Edersa, 1978, p. 824, cit. por Lorenzetti, ob. cit., p. 28.
30

vigente em nosso país e que se impõe como fonte do direito, nos


precisos termos do art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil”. 41

Trata-se de um princípio que, a exemplo do que ocorre


no direito estrangeiro, como acima se mencionou, visa à proteção da
confiança de terceiros de boa-fé que acreditaram na aparência gerada
pelo comportamento da outra parte. No caso, tal comportamento consistiu
– como ainda consiste – na criação, pelos dirigentes da Bancoop, da
aparência de uma verdadeira cooperativa, aos olhos daqueles que nela
ingressaram ou ingressam.

Como, sob o pálio de cooperativa habitacional, a


Bancoop vem, de há muito, atuando como uma incorporadora imobiliária,
cabe afirmar que ela se enquadra no conceito de fornecedor previsto no
artigo 3.º do Código de Defesa do Consumidor. Por outro lado, como os
cooperados são verdadeiros adquirentes de unidades residenciais, nos
diversos empreendimentos da Bancoop, e ainda são nitidamente
vulneráveis em relação aos dirigentes desta última, é forçoso concluir que
se apresentam como consumidores, nos termos do artigo 2.º, caput, do
Código de Defesa do Consumidor: “Consumidor é toda pessoa física ou
jurídica que adquire ou utiliza produto como destinatário final”. Os
cooperados são os destinatários finais dos imóveis vendidos pela
fornecedora Bancoop, de sorte a se configurar, na espécie, relação de

41
Arnoldo Wald, ob. cit., p. 14. Na mesma direção, vide Álvaro Malheiros, A aparência de direito, cit., p.
74 e ss.: “A aparência se configura (…) como um verdadeiro princípio de direito, sendo uma verdadeira
forma de expressão do Direito, uma vez que, por seu intermédio, verificamos o aparecimento de um
direito subjetivo, novo, não existente, cujos titulares serão sempre os terceiros de boa-fé, induzidos em
erro escusável pela situação aparente”. O autor (ibid.) cita Falzea, que refere que a situação mais recente
da jurisprudência (italiana) é no sentido de “reconhecer a aparência como princípio geral aplicável
sempre que a causa da situação objetiva de que deriva a errônea inferência do terceiro de boa-fé seja um
comportamento doloso ou culposo do titular real”. Ver, também, entre outros, Carlos Nelson Konder, A
proteção pela aparência como princípio, ob. cit., p. 129-133. Este autor afirma que “a proteção daquele
que confia em uma aparência de direito por meio da conversão do negócio aparente em negócio jurídico
efetivo e regular pode ser considerada um princípio de nosso ordenamento, uma vez que encontra
fundamento da tutela da confiança e justificação entre os princípios constitucionais, em especial o da
solidariedade social” (op. cit., p. 133).
31

consumo, a justificar a aplicação do CDC na tutela de seus interesses,


como já vem sendo feito nas ações judiciais que foram aforadas por
cooperados e por associações ou comissões de cooperados, conforme
consta dos autos do inquérito civil.

Jurisprudência sobre a aplicação do Código de Defesa do


Consumidor às cooperativas habitacionais

A propósito da atuação de entidades que realizam


negócios jurídicos sob o disfarce de cooperativas, encobrindo verdadeiros
compromissos de venda e compra da casa própria, como ocorre na
espécie, veja-se o acórdão proferido na Apelação Cível n. 106.944-
4/Sorocaba, pela Colenda Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo, em que foi Relator o eminente
Desembargador Narciso Orlandi, j. 19/10/2000, v.u., LEX 236, p. 59, cuja
ementa oficial abaixo se transcreve:

“Cooperativa Habitacional – Descaracterização da cooperativa –


Disfarce de compromisso de venda e compra da casa própria –
Prazos longos de entrega, a critério exclusivo da cooperativa –
Abusividade, com rompimento do equilíbrio do contrato – Recurso
provido”.

Do corpo desse acórdão merece transcrição o seguinte


trecho, que bem se amolda ao caso sub examine:

“É preciso distinguir as verdadeiras cooperativas das pessoas


jurídicas que assumem essa forma, sem que tenham nada de
cooperativas. Na espécie dos autos, o que existe é um sistema de
32

autofinanciamento da construção da casa própria, a preço de custo


(...)”.

“Explanando sobre essa espécie de cooperativa, o Des. Olavo


Silveira, no julgamento da Apelação n. 166.154, nesta Câmara,
apontou com precisão suas características: ‘um tipo de associação
que muito mais se aproxima dos consórcios do que propriamente de
cooperativa, até porque, via de regra, nem sempre é o efetivo espírito
cooperativo que predomina nessas entidades’ (...)”.

Veja-se, também, o acórdão assim ementado:

“EMENTA: Ação declaratória e condenatória. Antecipação de tutela


para deferir o seqüestro de bens dos sócios das pessoas jurídicas
envolvidas na construção e venda do empreendimento conhecido
como Conjunto Residencial Barão de Mauá. Viabilidade da
desconsideração da pessoa jurídica e aplicação do art. 28 do Código
de Defesa do Consumidor. Hipótese em que se vislumbra
envolvimento malicioso das empresas e dos sócios comuns que
participaram do empreendimento, culminando com a construção de
condomínio com 56 prédios e mais de 5.000 moradores em área que
foi depósito clandestino de lixo industrial. Área com presença intensa
de gases tóxicos e inflamáveis, a gerar grande apreensão dos
moradores e grave risco de doenças cancerígenas. A existência de
cooperativa não influi na aplicação do CDC porque, além da
confusão entre sócios, não se trata propriamente de cooperativa no
seu sistema tradicional, como já decidido neste TJSP. Irrelevância da
existência de alvarás de órgãos públicos se a prova indiciária revela
com suficiência que era quase impossível não saber da origem do
terreno e de suas implicações futuras. Antecipação de tutela bem
concedida para arresto dos bens móveis das pessoas físicas e
ofícios à Receita Federal e Banco Central. Recurso improvido, com
rejeição de embargos declaratórios interpostos contra o despacho
que mandou o processo à mesa” (TJSP, Agravo de Instrumento nº
33

290.722-4-1/1–Mauá, Rel. Des. Maia da Cunha, DJ 24/06/2003, v.u.,


DOE 07/08/2003).

Independentemente da caracterização - ou não - da


sociedade como cooperativa, a jurisprudência predominante é no sentido
da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, com vista à tutela dos
interesses dos cooperados-consumidores. Senão vejamos:

Em caso de má administração da cooperativa, em detrimento dos


cooperados, com incidência do Código de Defesa do Consumidor, confira-se Recurso
Especial nº 255.947 – SP, STJ, 3ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j.
08/10/2001, v.u., D.J. 08/04/2002, p. 209, assim ementado:

“Ministério Público. Legitimidade ativa. Código de Defesa do


Consumidor. Cooperativa Habitacional. Administração em detrimento
dos cooperados apurada em inquérito civil. Precedentes da Corte.
1. Tem o Ministério Público, na forma de vários precedentes da Corte,
legitimidade ativa para defender interesses individuais homogêneos,
presente o relevante interesse social, assim, no caso, o direito à
aquisição de casa própria, obstado pela administração de
cooperativa habitacional em detrimento dos cooperados, como
apurado em inquérito civil.
2. Recurso Especial conhecido e provido”.

Cabe transcrever, pela sua importância e relação com


a matéria ora abordada, a seguinte decisão monocrática do E. Superior
Tribunal de Justiça, da lavra do ex-Ministro Ruy Rosado de Aguiar:

“Decisão.
Vistos, etc.
1. Cooperativa Habitacional do Bom Retiro Ltda. agravou da decisão
que negou seguimento ao seu recurso especial (...) interposto contra
34

acórdão da egrégia Sexta Câmara Cível do Tribunal de Alçada do


Estado de Minas Gerais, assim ementado:
‘Ação de nulidade de cláusulas contratuais e devolução de
contribuições quitadas – Cooperativa habitacional – Bem imóvel –
Cláusulas leoninas – Cooperado desistente – Pedido de restituição
imediata do valor pago – Restrição contratual – Cláusula – Nulidade.
Leonina se revela a disposição contratual que impõe ao consumidor,
que procura adquirir a baixo custo terreno para construção de sua
moradia própria, o recebimento desse bem urbanizado e pronto ao
uso sem um prazo determinado.
Desimporta qual a pessoa jurídica que está na respectiva relação
consumidora, seja qual for, até mesmo uma cooperativa poderá
ser alvo de corrigenda consumerista (CDC), cujo objeto é regular
as relações de consumo.
Nulas se vêem as cláusulas contratuais contrárias à boa clareza e,
de conseqüência, devido, de imediato, o reembolso de importâncias
adiantadas para o jaez’ (...).
2. O recurso não merece prosperar.
(...)
3. No que tange à devolução das quantias pagas pelo cooperado,
verifico que o acórdão recorrido fundamentou sua decisão no
Código de Defesa do Consumidor e no art. 5º, XXXII e XX, da CF.
Porém, não houve interposição de recurso extraordinário para
reformar o entendimento constitucional, suficiente por si só para a
manutenção do acórdão (...).
Ademais, era mesmo de aplicar-se o CDC à espécie, conforme o
fez o egrégio Tribunal a quo, porque senão o cooperado estaria
desprotegido da abusividade praticada pela outra parte.
Oportuna a transcrição do raciocínio do eminente relator da
apelação, quanto à real circunstância que envolve os ora litigantes:
‘Vejo no caso, é certo, uma cooperativa, mas subscrição e
integralização de cotas de capital para a aquisição de um bem a que
persegue o consumidor, ou cooperado, como queira, contudo, ainda
assim, contratação há que, deveras, deve pautar pela ampla clareza,
pena de intervenção estatal (art. 5º, XXXII, da CF/88) e quiçá
35

nulidade de ato. Mormente quando nesta cooperativa, para o


alcance de seu objetivo, há que contar com parceiros, o
empreendedor, fornecedor do terreno, e administradora. Pessoas
jurídicas outras, cujo intento não se pode dizer apenas
filantrópicos.
As cláusulas impugnadas na contratação, prazo de permissão de
utilidade da res após a necessária aprovação do loteamento pelo
município, indeterminadamente, e a devolução do integralizado
capital apenas após 60 meses da contratação respectiva e, ainda,
parceladamente, convenha-se, não afasta a intervenção do Código
de Defesa do Consumidor, lei afeita às necessidades e dignidade
do consumidor (art. 4º)’ (...).
Confiram-se ainda, no mesmo sentido, os seguintes julgados sobre a
aplicabilidade do CDC às relações de que participa uma
cooperativa:
‘Ministério Público. Legitimidade ativa. Código de Defesa do
Consumidor. Cooperativa Habitacional. Administração em
detrimento dos cooperados apurada em inquérito civil. Precedentes
da Corte.
1. Tem o Ministério Público, na forma de vários precedentes da Corte,
legitimidade ativa para defender interesses individuais homogêneos,
presente o relevante interesse social, assim, no caso, o direito à
aquisição de casa própria, obstado pela administração de
cooperativa habitacional em detrimento dos cooperados, como
apurado em inquérito civil.
2. Recurso Especial conhecido e provido’ (REsp 255947/SP, 3ª
Turma, rel. o em. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ
08.04.2002).
(...)
‘Cooperativa – Desligamento de cooperado – Devolução das
parcelas pagas.
I – Afim de evitar enriquecimento injusto de uma das partes deve a
cooperativa reter 10% do valor total das parcelas pagas,
monetariamente corrigido, para pagamento de encargos por ela
suportados.
36

II – Agravo regimental desprovido’ (AGA 387392/SP, 3ª Turma, rel. o


em. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 29.10.2001).
Colhe-se do voto proferido no acórdão acima citado:
‘Finalmente, não se pode ignorar que o contrato em questão está
sob a égide do Código de Defesa do Consumidor e que, sendo
assim, suas cláusulas deverão ser interpretadas de maneira mais
favorável ao cooperado’.
Afasto o dissídio pelos motivos acima expostos.
4. Isso posto, nego provimento ao agravo” (AG 505351, Rel. Min. Ruy
Rosado de Aguiar, j. 17.06.2003, DJ 04.08.2003) (grifos nossos).

Outros acórdãos em que foi aplicado o Código de Defesa


do Consumidor, cujas ementas seguem transcritas:

“COOPERATIVA – Empreendimento habitacional – Relações jurídicas


com cooperados – Incidência do Código de Defesa do Consumidor –
Artigos 2º e 3º do referido diploma legal – Preliminar rejeitada (...)”
(TJSP, Apelação Cível nº 237.276-2-São Paulo, Rel. Des. Ruy Cami-
lo, j. 21/06/1994).

“COOPERATIVA HABITACIONAL – Exclusão de cooperado de plano


habitacional para a sua aquisição de casa própria – Devolução de
imediato das parcelas pagas e não quando do encerramento do
plano – Recurso não provido” (TJSP, Apelação Cível nº 95.066-4-São
Paulo, 6ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Testa Marchi, j.
06/04/2000, v.u.).

“CONTRATO – Firmado por cooperativa habitacional para aquisição


de casa própria – Rescisão por mora dos compradores – Perda das
importâncias pagas em face da aplicabilidade do artigo 53 da Lei
8.078/90 – Recurso provido” (TJSP, Apelação Cível nº 268.104-2-
Santos, 3ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio Zuliani, j.
22/10/1996, v.u.).
37

“COOPERATIVA HABITACIONAL – Equiparação, no caso, a uma


relação de consumo decorrente de compromisso de compra e venda
de imóvel – Abusividade do dispositivo contratual que prevê a
retenção de 30% das prestações pagas, a título de despesas
administrativas – Necessidade de redução desse percentual para
10%, de modo a assegurar o equilíbrio do contrato – Recurso
parcialmente provido” (TJSP, Apelação Cível nº 307.727-4-São Paulo,
6ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Sebastião Carlos Garcia, j.
09/10/2003, v.u.).

“COOPERATIVA – Empreendimento habitacional – Desistência por


cooperado – Devolução das quantias pagas – Condicionamento ao
ingresso de novo associado na cooperativa – Inadmissibilidade –
Cláusula abusiva – Ofensa ao artigo 51, II, do Código de Defesa do
Consumidor – Ação procedente – Recurso não provido” (JTJ 271/64).

“CONTRATO – Cooperativa habitacional – Responsabilidade civil por


inadimplemento contratual – Competência do domicílio do
consumidor – Entendimento do artigo 101, I, do Código de Defesa do
Consumidor – Recurso não provido” (JTJ 273/281).

“COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA – Rescisão – Cooperativa


Habitacional – Atraso na entrega de unidade habitacional – Aplicação
do Código de Defesa do Consumidor – Inocorrência de caso fortuito
ou força maior – Mora caracterizada – Rescisão que deve se operar
por culpa da cooperativa – Restituição de uma única vez de todos os
valores pagos pelo autor, sem qualquer retenção – Correção
monetária a contar do desembolso de cada parcela – Cabimento –
Aplicação do ICC como índice de atualização – Inadmissibilidade –
Recurso improvido” (TJSP, Apelação Cível com Revisão nº 327.960-
4/0-00 – Guarulhos, 8ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Salles
Rossi, 27/07/06, v.u.).

Incidência da doutrina do “diálogo das fontes”: aplicação


coordenada do Código Civil, da Lei do Cooperativismo e do Código
38

de Defesa do Consumidor, numa relação de complementariedade e


subsidiariedade

Cláudia Lima Marques, amparada em Erik Jayme, seu


ex-mestre na Universidade de Heidelberg, discorre que, “em face do atual
‘pluralismo pós-moderno’ de um Direito com fontes legislativas plúrimas,
ressurge a necessidade de coordenação entre as leis no mesmo
ordenamento como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo.
Efetivamente, cada vez mais se legisla, nacional e internacionalmente,
sobre temas convergentes. A pluralidade de leis é o primeiro desafio do
aplicador da lei contemporâneo. A expressão usada comumente era a de
conflitos de leis no tempo, a significar que haveria uma ‘colisão’ ou conflito
entre os campos de aplicação destas leis. Assim, por exemplo, uma lei
anterior, como o Código de Defesa do Consumidor de 1990, e uma lei
posterior, como o novo Código Civil brasileiro de 2002, estariam em
‘conflito’, daí a necessária ‘solução’ do ‘conflito’ através da prevalência de
uma lei sobre a outra e a conseqüente exclusão da outra do sistema”42.

Prossegue a autora afirmando que “os critérios para


resolver os conflitos de leis no tempo seriam assim apenas três:
anterioridade, especialidade e hierarquia, a priorizar-se, segundo Bobbio,
a hierarquia. A doutrina atualizada, porém, está à procura hoje mais da
harmonia e da coordenação entre as normas do ordenamento
jurídico (concebido como sistema), do que da exclusão. É a
denominada ‘coerência derivada ou restaurada’ (‘cohérence dérivée ou
restaurée’), que um momento posterior a decodificação, a tópica e a
micro-recodificação, procura uma eficiência não só hierárquica mas
funcional do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a
evitar a ‘antinomia’, a ‘incompatibilidade’ ou a ‘não-coerência’ (...) Nestes
42
Cláudia Lima Marques. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil: do
“diálogo das fontes” no combate às cláusulas abusivas. Revista de Direito do Consumidor, n. 45, Ano
12, janeiro-março de 2003, p. 71-72.
39

tempos, a superação de paradigmas é substituída pela convivência dos


paradigmas (...)”,43 havendo, por fim, “a convivência de leis com campos
de aplicação diferentes, campos por vezes convergentes e, em geral,
diferentes, em um mesmo sistema jurídico, que parece ser agora um
sistema (para sempre) plural, fluido, mutável e complexo”.44

Segundo a ilustre jurista, Erik Jayme “propõe então a


convivência de uma segunda solução ao lado da tradicional: a
coordenação destas fontes. Uma coordenação flexível e útil (effet utile)
das normas em conflito no sistema a fim de restabelecer a sua coerência,
isto é, uma mudança de paradigma: da retirada simples (revogação) de
uma das normas em conflito do sistema jurídico (ou do ‘monólogo’ de uma
só norma possível a ‘comunicar’ a solução justa), à convivência destas
normas, ao diálogo das normas para alcançar a sua ratio, a finalidade
‘narrada’ ou ‘comunicada’ em ambas”.

“Na belíssima expressão de Erik Jayme, é o atual e


necessário ‘diálogo das fontes’ (dialogue de sources), a permitir a
aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes
legislativas convergentes. ‘Diálogo’ porque há influências recíprocas,
‘diálogo’ porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo
e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja
permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente (...) ou
mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato. Uma
solução flexível e aberta, de interpretação ou mesmo a solução mais
favorável aos mais fracos da relação (tratamento diferente dos
diferentes)”.45

Ainda de acordo com Cláudia Lima Marques, o chamado


“diálogo das fontes” pode operar-se de três maneiras: (i) pela aplicação
43
Cláudia Lima Marques, ob. cit., p. 72-73.
44
Cláudia Lima Marques, ob. cit., p. 73.
45
Cláudia Lima Marques, ob. cit., p. 73-74.
40

simultânea das leis (diálogo sistemático de coerência): “uma lei pode


servir de base conceitual para outra, especialmente se uma lei é geral e a
outra especial; se é uma lei central do sistema e a outra um microssistema
específico, não completo materialmente, apenas com completude
subjetiva de tutela de um grupo da sociedade”; (ii) pela aplicação
coordenada das leis (diálogo sistemático de complementariedade e
subsidiariedade): “uma lei pode complementar a aplicação da outra, a
depender de seu campo de aplicação no caso concreto, a indicar a
aplicação complementar tanto de suas normas, quanto de seus princípios,
no que couber, no que for necessário ou subsidiariamente (...) Este
‘diálogo’ é exatamente contraposto ou no sentido contrário da revogação
ou ab-rogação clássicas, em que uma lei era ‘superada’ e ‘retirada’ do
sistema pela outra”. Aqui há escolha, pelo juiz, no caso concreto, da lei
que irá “complementar” a ratio da outra; e (iii) pelo diálogo das influências
recíprocas: é a “influência do sistema especial no geral e do geral no
especial, um diálogo de double sens (diálogo de coordenação e
adaptação sistemática).

No caso dos autos, afigura-se inteiramente aplicável o


“diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade” das
fontes legislativas: o “diálogo” entre o Código Civil de 2002, a Lei do
Cooperativismo e o Código de Defesa do Consumidor.

A aplicação apenas da Lei do Cooperativismo é


insuficiente para a tutela dos direitos dos cooperados, contra as diversas
práticas abusivas desenvolvidas pelos dirigentes da Bancoop, já
descritas, todas contrárias aos princípios e regras estabelecidos no
Código de Defesa do Consumidor. Daí a necessidade de sua aplicação
complementar ou subsidiária às normas da Lei do Cooperativismo, num
diálogo sistemático entre os dois microssistemas, que resulte na proteção
integral dos cooperados, indiscutivelmente vulneráveis na relação com a
41

direção da cooperativa, que nem sequer os convoca regularmente para as


assembléias.

No Brasil, o cooperativismo possui regime jurídico


detalhado na Lei nº 5.764, de 16.12.1971 e, em realce do prestígio
constitucional adquirido, no novo Código Civil, que dedica um capítulo à
sociedade cooperativa, objeto dos artigos 1.093 a 1.096. Isso não impede,
de acordo com a teoria do “diálogo das fontes”, na regulação das relações
jurídicas entre a cooperativa e os cooperados, a aplicação complementar
ou subsidiária do Código de Defesa do Consumidor, tanto de suas normas
quanto de seus princípios, no que couber. Assim, visando à proteção dos
cooperados – os mais fracos ou vulneráveis nessa relação – aplicam-se
os princípios enumerados no artigo 4.º, caput (princípio da transparência
nas declarações negociais para o consumo, pela informação eficiente), e
nos incisos I (princípio do reconhecimento da vulnerabilidade do
consumidor no mercado de consumo) e III (princípio da boa-fé e equilíbrio
nas relações entre consumidores e fornecedores), do Código de Defesa
do Consumidor. Aplicam-se, também, as demais normas de proteção do
consumidor, com ênfase para a norma do artigo 51, inciso IV, do CDC,
que contém, em matéria contratual, a cláusula geral da boa-fé objetiva
(impõe deveres de lealdade, de probidade, de não abusar nem prejudicar
a parte contrária, de corresponder às expectativas criadas, de proteger a
confiança despertada, etc.) e da eqüidade (justiça no caso concreto).

Discorrendo sobre a possibilidade de aplicar-se, em


determinadas situações, o Código de Defesa do Consumidor em favor do
cooperado, Fábio Henrique Podestá, pontifica que “a criação, existência e
funcionamento da cooperativa faz surgir uma gama de relações jurídicas,
daí porque mesmo considerando que o seu tratamento legislativo envolva
diplomas de cunho geral (novo Código Civil) ou mesmo específico (Lei nº
42

5.764/71), as atividades desenvolvidas encontram respaldo na aplicação


subsidiária (ou complementar) do Código do Consumidor”.46

O mesmo autor assinala que “as cooperativas estão


inequivocamente inseridas no sistema de mercado e na própria noção de
empresa, não sendo por outro motivo que expressiva doutrina adverte
para que ‘não se estranhe a caracterização das cooperativas como
empresas, pois, certamente, depois da evolução operada no campo
jurídico, referente à compreensão da empresa como atividade econômica
organizada destinada a produção de bens e serviços para o mercado (cf.
art. 2092 do Codice Civile italiano), o termo ingressou no plano jurídico
sem maiores dificuldades’”.47 Diz ainda, com bastante propriedade, que “a
cooperativa se caracteriza pela adesão e pela demissão livres, de modo
que se o associado, que decide ingressar na cooperativa, adere
necessariamente à estrutura que encontra, esta mesma estrutura e não
pode tornar-se uma espécie de anteparo para afastar a aplicação de
normas de natureza pública (art. 1º do CDC), ou seja, as regras ou
condições estipuladas no Estatuto e no contrato celebrado não podem
violar o principio da igualdade dos cooperados e devem ser norteados
pelos critérios de racionalidade e razoabilidade, de tal forma que a
Cooperativa não provoque por qualquer titulo prejuízo aos seus
cooperados”.48

No caso em comento, como se depreende das


irregularidades e abusos perpetrados pelos dirigentes da cooperativa,
anteriormente referidos, não existe igualdade entre estes e os cooperados
que não integram o corpo diretivo (cerca de 15 mil), o qual, mercê dessas
condutas abusivas, vem causando prejuízo aos cooperados, consistentes,

46
Fábio Henrique Podestá. Sociedades cooperativas e relações de consumo. Marcus Elidius Michelli de
Almeida e Ricardo Peake Braga (coord.). Cooperativas à luz do Código Civil. São Paulo: Quartier
Latin, 2006, p. 147-148.
47
Fábio Henrique Podestá, ob. cit., p. 150-151.
48
Fábio Henrique Podestá, ob. cit., p. 152.
43

entre outros, na não-construção ou paralisação da construção de edifícios


e cobrança de resíduos exagerados, de modo a comprometer o objetivo
de promover a construção de empreendimentos a baixo custo.

Relevância social da defesa dos direitos dos cooperados-


consumidores pelo Ministério Público e conseqüente legitimatio ad
causam (artigos 127, caput, e 129, III, ambos da CF, e artigo 82, I, do
CDC)

No caso em apreço, é evidente a legitimação do


Ministério Público para tutelar, mediante o ajuizamento de ação civil
pública, os direitos dos inúmeros cooperados prejudicados – ou que
poderão vir a ser prejudicados - pelas práticas abusivas ou irregulares
desencadeadas pela Bancoop. Com efeito, existem mais de três mil
cooperados que ainda não receberam seus imóveis, em virtude da
paralisação e abandono das obras, e ainda estão sujeitos ao pagamento
de resíduos exagerados, que não guardam relação com os custos dos
empreendimentos. Esse resíduo também vem sendo exigido de número
acentuado de cooperados que já receberam seus imóveis, sob pena de
perda dos mesmos e ainda de envio de seus nomes para serem inscritos
em cadastros negativos.

Como afirmar, diante desse quadro, que não existe


relevância social a justificar a intervenção do Ministério Público? Seria
muita falta de sensibilidade social e de comprometimento com a tutela de
uma pletora de cooperados-consumidores que vem sendo vítimas de
práticas abusivas. O fato de existirem ações judiciais promovidas por
associações ou comissões de alguns empreendimentos e de cooperados
isoladamente considerados, não significa que eles, na sua maioria,
estejam sendo devidamente tutelados em seus direitos. Com efeito, há
muitos cooperados que se encontram totalmente sem assistência,
44

havendo, por isso, procurado o Ministério Público em busca da tutela de


seus interesses, conforme se depreende das representações por eles
ofertadas, e que instruem os autos do inquérito civil.

Os direitos dos cooperados em verem construídas as


unidades residenciais que adquiriram é de natureza coletiva, nos termos
do artigo 81, parágrafo único, inciso II, do Código de Defesa do
Consumidor, uma vez que, na dicção desta disposição legal, são direitos
“transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria
ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma
relação jurídica base”. Com efeito, todos os cooperados estão ligados
entre si e com a cooperativa por uma relação jurídica-base, materializada
nos termos de adesão que subscreveram. São interesses transindividuais
de um grupo acentuado de pessoas plenamente determinado, havendo,
sem dúvida, interesse social na sua defesa.

Por outro lado, são individuais homogêneos, a teor do


artigo 91, parágrafo único, inciso III, do CDC, os interesses de um sem-
número de cooperados cujos imóveis não foram construídos, ou estão
com as obras paralisadas, e desejam retirar-se da cooperativa e receber a
devolução das quantias pagas. São interesses divisíveis, de que são
titulares pessoas determinadas. Pode ser promovida, em favor desses
cooperados, ação coletiva para a defesa de interesses individuais
homogêneos, com o escopo de ressarcimento dos danos individualmente
sofridos, nos termos do artigo 91 e seguintes do Código de Defesa do
Consumidor.

E existe relevância social na defesa desses interesses,


caracterizada: (i) pela grande dispersão de lesados (mais de três mil
pessoas), (ii) porque o bem jurídico a ser tutelado na espécie é relevante
para a sociedade, qual seja, o direito constitucional à moradia (a baixo
custo), e (iii) porque a sua defesa pelo Ministério Público convém à
45

coletividade, por visar a assegurar o pleno funcionamento da ordem


jurídica, nas suas perspectivas econômica e social, na medida em que se
busca garantir um sistema econômico e social, representado pelo
cooperativismo, de gênese constitucional e disciplinado por legislação
infraconstitucional (Código Civil e Lei n.º 5.764/1971).

In casu, a legitimação do Ministério Público para a


defesa dos interesses individuais homogêneos49 dos cooperados-
consumidores encontra suporte na Súmula n.º 7 do E. Conselho Superior
do Ministério Público, in verbis:

“Súmula n.º 7 – O Ministério Público está legitimado à defesa


de interesses individuais homogêneos que tenham expressão para a
coletividade, tais como: a) os que digam respeito a direitos ou
garantias constitucionais, bem como aqueles cujo bem jurídico a ser
protegido seja relevante para a sociedade (v. g., dignidade da pessoa
humana, saúde e segurança das pessoas, acesso das crianças e
adolescentes à educação); b) nos casos de grande dispersão de
lesados (v. g., dano de massa); c) quando a sua defesa pelo
Ministério Público convenha à coletividade, por assegurar a
implementação efetiva e o pleno funcionamento da ordem jurídica,
nas suas perspectivas econômica, social e tributária”.

A jurisprudência, hoje pacífica, construída à luz do artigo


127, caput, da Constituição da República, é no sentido de que, havendo
relevância social, está o Ministério Público legitimado à defesa dos
interesses individuais homogêneos.50 E tal relevância, como se
demonstrou, está presente na espécie. Permitimo-nos reproduzir, aqui,

49
Ver, a respeito da matéria, artigo “A defesa dos interesses individuais homogêneos dos consumidores
pelo Ministério Público”, autor: Marco Antônio Zanellato, publicado na Revista do Advogado, nº 89,
dezembro de 2006, p. 96-105.
50
Vide, sobre a legitimidade do Ministério Público para a defesa dos interesses individuais homogêneos,
jurisprudência colecionada no artigo citado na nota anterior.
46

ementa de acórdão do STJ que cai como uma luva no caso sub examine,
já transcrita neste voto, em outra passagem:

“Ministério Público. Legitimidade ativa. Código de Defesa do


Consumidor. Cooperativa Habitacional. Administração em detrimento
dos cooperados apurada em inquérito civil. Precedentes da Corte.
1. Tem o Ministério Público, na forma de vários precedentes da
Corte, legitimidade ativa para defender interesses individuais
homogêneos, presente o relevante interesse social, assim, no
caso, o direito à aquisição de casa própria, obstado pela
administração de cooperativa habitacional em detrimento dos
cooperados, como apurado em inquérito civil.
2. Recurso Especial conhecido e provido” (grifos nossos).

Ademais, em razão da disposição do artigo 5.º, XVIII, da


Constituição Federal, que veda a interferência do Estado no
funcionamento das cooperativas, “cresce em importância a atuação do
Promotor de Justiça nesta área, como uma das únicas formas de se fazer
cessar o mal que esteja ou possa ser eventualmente causado à
coletividade por tais entidades (cooperativas)”.51 É exatamente o que se
pretende com a intervenção do Parquet na espécie: tutelar, de forma
coletiva, os interesses dos inúmeros cooperados que contrataram com a
Bancoop – e eventualmente virão a contratar - mediante simples adesão a
formulário padronizado elaborado (e também alterado) unilateralmente
pelos dirigentes da cooperativa, e, como restou sobejamente
demonstrado, estão sendo prejudicados pela atuação ilícita (contrária às
regras da Lei do Cooperativismo e do Código de Defesa do Consumidor)
de tais dirigentes.

Cumpre salientar, por fim, que somente os pedidos


constantes dos subitens (iii) e (vi), abaixo descritos, dizem respeito à
51
Dora Bussab Castelo, ob. cit., p. 138.
47

tutela dos interesses individuais homogêneos dos cooperados, uma vez


que têm natureza reparatória ou indenizatória.52 Os pedidos dos subitens
(i), (ii), e (v), por seu turno, estão relacionados com a proteção de
interesses coletivos dos cooperados que aderiram à cooperativa,53 por se
traduzirem em obrigações de fazer e não fazer, a serem impostas com
objetivo de prevenção de danos aos cooperados. Já o pedido do subitem
(iv), diz respeito à obrigação de não fazer com vista à proteção de
interesses difusos de futuros contratantes ou aderentes, cuja
quantificação não é possível determinar-se de antemão, sendo interesses
ou direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que serão titulares
pessoas indeterminadas. O Código de Defesa do Consumidor designa-os
como interesses ou direitos difusos (artigo 81, parágrafo único, inciso I).
Neste caso, o efeito da sentença será erga omnes, na forma do artigo
103, inciso I, do mesmo diploma legal.

Em abono desse posicionamento, encontra-se a lição do


eminente NELSON NERY JUNIOR, um dos redatores do Código de
Defesa do Consumidor, assim vazada:

“É difuso o direito ou interesse que atinge número indeterminado de


pessoas, ligadas por relação meramente factual, enquanto que
seriam coletivos aqueloutros interesses e direitos pertencentes a um
grupo ou categoria de pessoas determináveis, ligadas por uma

52
Aplica-se aos pedidos indenizatórios a norma do artigo 91 do Código de Defesa do
Consumidor, que estatui que “os legitimados de que trata o artigo 82 (entre eles o Ministério Público)
poderão propor, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil coletiva de
responsabilidade pelos danos individualmente sofridos”, observando-se as normas dos artigos 94 e ss.
do mesmo Codex.
53
No que tange ao enorme contingente de consumidores que contratou
com a Bancoop, podemos falar na defesa de interesses ou direitos transindividuais, de natureza
indivisível, de que é titular um grupo ou categoria de pessoas determinadas, ligadas com a parte
contrária por uma relação jurídica básica (relação jurídica obrigacional), que o Código de Defesa do
Consumidor denomina de interesses ou direitos coletivos (artigo 81, parágrafo único, inciso II). A
sentença, em relação a esse contingente de contratantes, produzirá efeito ultra partes, na forma do artigo
103, inciso II, do mesmo diploma legal.
48

mesma relação jurídica base. Assim, a indeterminação dos titulares


seria a característica básica dos interesses difusos, enquanto que a
determinabilidade acusaria de coletivo o direito ou interesse. Ambos
seriam de natureza indivisível.54

MEDIDA LIMINAR

Considerando que a continuidade das práticas ilícitas


cometidas pela Bancoop e por seus dirigentes significa o agravamento da
violação dos direitos dos cooperados - consumidores, necessária a
concessão de medida liminar para obrigar a Ré a (i) registrar, no prazo
de 60 (sessenta) dias, os memoriais de incorporação imobiliária dos
empreendimentos lançados pela empresa, de modo a impedir
constrições judiciais sobre as unidades dos cooperados, (ii) realizar
a separação das contas dos empreendimentos (uma para cada
empreendimento, com CNPJ próprio), como estabelece o Estatuto da
cooperativa, (iii) efetuar, no tocante aos imóveis não construídos, a
devolução de todas as importâncias pagas, sem nenhuma retenção,
aos cooperados que solicitarem sua retirada da cooperativa,
devolução esta que deverá ser feita em valores atualizados
monetariamente e no máximo em 6 (seis) parcelas.

Por outro lado, a concessão da medida liminar deverá


determinar à Ré que se abstenha de: (i) realizar o lançamento de
empreendimentos enquanto não forem registradas as incorporações
de todos os empreendimentos lançados, bem como separadas suas
respectivas contas e concluídas as obras dos edifícios paralisadas,
(ii) cobrar as parcelas de reforço de caixa e apuração final dos
empreendimentos, enquanto não demonstrada a necessidade de sua
cobrança, de acordo com os cronogramas físico-financeiros dos

54
O processo civil no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Processo, n.º 61, janeiro-março de
1991, p. 25-26.
49

empreendimentos em construção e concluídos, devidamente


aprovados pela Caixa Econômica Federal.

DOS PEDIDOS

Diante do exposto, o Autor requer a concessão de


medida liminar, nos termos acima expostos.

Requer, ainda, prolação de sentença, de modo a tornar


definitiva a liminar concedida, acolhendo-se todos os seguintes pedidos
cumulativos:

a) Condenação do réu às obrigações de fazer, consistentes em (i)


registrar, no prazo de 60 (sessenta) dias, os memoriais de
incorporação imobiliária dos empreendimentos lançados pela
empresa, de modo a impedir constrições judiciais sobre as unidades
dos cooperados, (ii) realizar a separação das contas dos
empreendimentos (uma para cada empreendimento, com CNPJ
próprio), como estabelece o Estatuto da cooperativa, (iii) efetuar, no
tocante aos imóveis não construídos, a devolução de todas as
importâncias pagas, sem nenhuma retenção, aos cooperados que
solicitarem sua retirada da cooperativa, devolução esta que deverá
ser feita em valores atualizados monetariamente e no máximo em 6
(seis) parcelas;
b) Condenação do réu às obrigações de não fazer, consistentes em
(i) não realizar o lançamento de nenhum empreendimento enquanto
não forem registradas as incorporações de todos os
empreendimentos lançados, bem como separadas suas respectivas
contas e concluídas as obras dos edifícios paralisadas, (ii) abster-
se de cobrar as parcelas de reforço de caixa e apuração final dos
empreendimentos, enquanto não demonstrada a necessidade de
sua cobrança, de acordo com os cronogramas físico-financeiros dos
50

empreendimentos em construção e concluídos, devidamente


aprovados pela Caixa Econômica Federal;
c) Sujeição da Ré a multa cominatória diária, fixada em R$ 20.000,00
(vinte mil reais), corrigida monetariamente, a ser recolhida ao Fundo
de Reparação de Interesses Difusos Lesados, previsto no art. 13 da
Lei nº 7.347/85, na hipótese de violação de qualquer das
obrigações impostas, sem prejuízo de outras medidas cabíveis; e
d) Desconsideração a personalidade jurídica da sociedade
cooperativa, nos termos do artigo 28 do Código de Defesa do
Consumidor e, em conseqüência, sejam os dirigentes da Bancoop
condenados genericamente a indenizar os danos (materiais e
morais) causados aos cooperados, nos termos do artigo 95 do
Código de Defesa do Consumidor.

O Autor requer ainda:

a) seja determinada a citação e intimação postal da Ré no endereço


acima fornecido, a fim de que, advertido da sujeição aos efeitos da
revelia, a teor do art. 285, última parte, do Código de Processo Civil,
apresentem, querendo, respostas aos pedidos ora deduzidos, no prazo de
15 (quinze) dias;

b) a condenação da Ré ao pagamento das custas processuais, com as


devidas atualizações monetárias;

c) a dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos,


desde logo, em face do previsto no artigo 18 da Lei nº 7.347/85 e do art.
87 da Lei nº 8.078/90;

d) sejam as intimações do Autor feitas pessoalmente, mediante entrega


dos autos com vista na Promotoria de Justiça do Consumidor, situada na
Rua Riachuelo, 115, 1º andar, Sala 130, Centro, nesta Capital, em razão
51

do disposto no art. 236, § 2º, do Código de Processo Civil e no art. 224,


inc. XI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26.11.93 (Lei Orgânica
do Ministério Público de São Paulo).

Protesta provar o alegado por todos os meios de prova


admitidos em direito, especialmente pela produção de prova testemunhal
e pericial, e, caso necessário, pela juntada de documentos, e por tudo o
mais que se fizer indispensável à cabal demonstração dos fatos
articulados na presente inicial, bem ainda pelo benefício previsto no art.
6º, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor, no que tange à inversão
do ônus da prova, em favor da coletividade de consumidores substituída
pelo Autor.

Acompanha esta petição inicial os documentos que


instruem o inquérito civil registrado sob nº 14.161.446/06-1 na Promotoria
de Justiça do Consumidor.

Atribui à causa, para fins de alçada, o valor de


R$50.000,00 (cinqüenta mil reais).

Termos em que,

P. Deferimento.

São Paulo, 30 de outubro de 2007

João Lopes Guimarães Júnior


1º Promotor de Justiça do Consumidor
Designado por meio da Portaria PGJ 6038/2007

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