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A Cativa
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Ebook642 pages7 hours

A Cativa

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About this ebook

Selvagem, druida, assassino, rei... Wulfric teve muitas vidas. É o Mestre mais antigo, dono de um antiquário contíguo a uma igreja, um ponto de convergência entre mundos, o que faz dele também porteiro. Uma rebelião ameaça abrir uma passagem entre a Terra e o Inferno, e ele provavelmente terá de assassinar o responsável. Lúcifer. Teria sido mais simples matar a Cativa, duzentos anos atrás.

Esta história tem anjos, demónios, fadas, lobisomens, marinheiros russos, traições, pedras preciosas que são mais do que jóias, um crucifixo que sangra, pelo menos uma sociedade secreta, Lúcifer, Mefistófeles, um marquês que foi para o Inferno e se transformou num demónio nu e, é claro, Wulfric, o Mestre que vive com uma maldição aprisionada no sangue.

LanguagePortuguês
PublisherManuel Alves
Release dateDec 29, 2014
ISBN9781311710659
A Cativa
Author

Manuel Alves

https://www.patreon.com/manuelalves--O autor só fala de si mesmo na terceira pessoa quando tem de falar do autor ou, é claro, quando pratica a extraordinária arte da feitiçaria imaginativa — há quem lhe chame Escrita. Se houvesse na minha vida lugar para gatos, teria dois e um seria um Gremlin disfarçado. Tenho um furão e uma hiena — ambos imaginários.--The author only speaks of himself in the third person when he has to speak about the author or, of course, when he conjures the extraordinary art of imaginative sorcery—some call it Writing. If there was any place for cats in my life, I would have two and one of them would be a Gremlin in disguise. I have a ferret and a hyena—both imaginary.

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    A Cativa - Manuel Alves

    1598

    Londres, Inglaterra.

    Ele está no meio de nós

    A peça começou, os espectadores aplaudiram e Lúcifer aplaudiu no meio deles. As paredes do Curtain Theatre devolveram a vibração dos aplausos e aprisionaram o calor humano da multidão, as tábuas um espartilho apertado em corpo com excesso de peso. A sessão de estreia acolheu os espectadores com vontade de rir, alheios ao incómodo do pouco espaço e comprimidos no ocasional encontrão sem intenção.

    Lúcifer esquinou o olhar, observação casual do homem que lhe raspou no ombro em busca de vista privilegiada para o palco. Não cabia mais um corpo naquela bancada lateral, a estrutura sobrecarregada no limite de resistência e o ar espesso com cheiro de pele que nunca conheceu sabão. O mundo estava a ficar com excesso de pessoas, a cultura intensiva de uma espécie que acabaria por arruinar o solo. Era apenas uma questão de tempo, ganância e estupidez.

    O homem que lhe acertou o encontrão foi empurrado, por alguém, contra a protecção da bancada, um contacto nada amigável, e voltou-se com intenção de reclamar com o causador do embate. Perdeu a vontade numa hesitação e decidiu procurar outro lugar.

    Lúcifer sorriu para o responsável, um homem pequeno, com magreza suficiente para passar por rapaz esfomeado, mas uma frieza no olhar que o tornava gigante capaz de esfaquear o céu e a terra no mesmo golpe. Aprovou o aspecto descuidado do emaranhado de pêlos negros afunilados no queixo, uma pêra digna de bode montês, e as duas pontas de cabelo seboso sobre as têmporas, um par de chifres simbólico.

    — Perdeste o início da peça, Tomás.

    Arrastou a última sílaba do nome, o s sibilado em domínio natural do sotaque espanhol.

    — Senhor, esse já não é o meu nome.

    Lúcifer chegou-se ao ouvido, intimidade descontraída, e fez uma pausa de lábios entreabertos.

    — A discrição é a melhor ilusão — disse ele. — Não queremos assustar ninguém com o teu nome, pois não, Mefistófeles?

    O nome foi apenas um sussurro de pensamento.

    Mefistófeles firmou as mãos na protecção da bancada e fingiu apreciar a peça desenrolada no palco.

    — O propósito da nossa presença, senhor… Alguém para colectar?

    Lúcifer colocou as mãos na protecção e deslizou a esquerda para cima da direita de Mefistófeles. Deu duas palmadinhas, um gesto de paciência.

    — Ainda não. Estão presentes dois sujeitos de particular interesse, mas nenhum deles é o propósito da nossa presença. A peça é intitulada Cada Um no Seu Humor, e escolhi-a como gentileza para ti.

    Mefistófeles observou os actores em palco, a calma necessária para diluir a irritação da suspeita de estar ali apenas para divertimento de Lúcifer.

    — Falho em ver o paralelismo, senhor.

    — Não é imediatamente perceptível — disse Lúcifer, sorriso no canto do olhar. — Sabes que sou um estudioso atento da natureza sempre mutável dos futuros possíveis. É uma ferramenta indispensável para a prospecção de negócios favoráveis. Antes do fim deste ano, o autor da peça, Ben Jonson, provavelmente matará um homem em duelo e escapará da execução às custas de um pequeno milagre de influências. Se a ocorrência do duelo e a respectiva consequência legal se concretizarem, será algo que lhe custará a parte imaterial do ser. E um actor em cena, William Shakespeare, é sujeito de interesse maior, o paradigma de como os pactos podem ser proveitosos para ambas as partes envolvidas. Certamente lembras-te dele, o pobre William que queria ser mais do que um pai de família que viveria e morreria no anonimato. Mais uma das tuas excelentes aquisições.

    — A minha acção é um mero instrumento da sua vontade, senhor.

    Lúcifer esquinou um sorriso afirmativo, sem desviar a atenção do palco. A falsa modéstia de Mefistófeles era ilusão cada vez mais credível, prova do progresso alcançado no longo caminho percorrido. O instrumento estava finalmente afinado para executar o seu propósito maior.

    — Tens percepção apurada para aquisições proveitosas — disse Lúcifer, elogio inequívoco. — A alma sonha e o corpo desafia os limites. Ah, a ambição do homem! O pobre William almejava ser o escritor de língua inglesa mais conhecido do mundo, e viver para gozar o proveito do seu sucesso. A pedir, não devemos ser gagos. Mas se há uma coisa que devemos é especificar aquilo que queremos, para obtermos exactamente o pretendido. Ele fará bom proveito do seu sucesso em vida, mas a notoriedade pretendida será apenas alcançada séculos após a sua morte. O paralelismo da minha escolha. Tal como tu, ele cometeu o erro de não especificar os termos do contrato. Gozaste, em vida, o poder de comandar a Inquisição, mas não especificaste as condições para adquirires o estatuto desejado na minha casa, após a cessação das tuas funções vitais. Todavia, provaste o teu valor, por esforço próprio, e estou disposto a reconhecê-lo.

    Mefistófeles desviou a atenção da peça e inclinou a cabeça numa vénia agradecida.

    — E o que me custará, desta vez, senhor? Já não possuo o pagamento exigido por norma.

    A plateia ondulou em risos com uma fala mais espirituosa entoada do palco, e Lúcifer mostrou os dentes em divertimento, perfeitamente capaz de repartir a atenção entre a conversa e a peça.

    Mefistófeles não riu. Não seria enganado, pela segunda vez, no mesmo esquema.

    Lúcifer assentou uma palmada amigável no ombro escanzelado de Mefistófeles e inclinou-se para um segredo.

    — Devolvo-te a alma.

    Mefistófeles tremeu em magreza de pele e osso, fraqueza de corpo vazio de essência.

    — Porquê, senhor? Para voltar a tirar-ma?

    — Não pretendo tal coisa. Quem dá e tira, para o Inferno gira.

    Lúcifer soprou um sorriso de dentes, e a plateia correspondeu em gargalhadas, como se todos rissem da piada fácil. Todos, menos Mefistófeles. Seria necessário apresentar razões persuasoras.

    — Está na altura de começares a tratar-me por tu. Já nos conhecemos há tempo suficiente para dispensar formalidades. Vamos regressar a casa. Quero mostrar-te uma coisa. Trinta e três, na verdade.

    Assentou a mão nas costas de Mefistófeles e sentiu as protuberâncias das vértebras da coluna, serpente morta de fome sob a camisa de linho e fossilizada entre as omoplatas. Conduziu-o para a retaguarda da bancada, o sentido oposto à atenção do público, até ficarem comprimidos pelas costas dos espectadores, com a cara quase na parede. Lúcifer tocou a madeira, uma carícia em descoberta de segredos que só ele desvendava com as pontas dos dedos, e sorriu. Uma convergência entre mundos.

    Mefistófeles sentiu o toque na espinha de uma ponta à outra do esqueleto, como se a mão de Lúcifer o apertasse contra a parede e lhe espremesse o corpo para fora da existência.

    Atravessaram a parede, ignorados pelos aplausos do público, dois fantasmas que deixaram as roupas para trás.

    Um instante, distâncias imensas percorridas. Mefistófeles saiu de um fresco pintado numa parede vermelha, e atravessou a figura de uma mulher seminua, em tamanho real, ajoelhada de frente para uma figura alada. De pé a um canto, a figura alada flagelava outra mulher de costas descobertas e debruçada no colo de uma terceira mulher, ambas pintadas na parede seguinte. Pisou a frescura do xadrez de mosaicos pretos e brancos. Estava descalço mas coberto pelo vermelho-vinho de uma túnica romana caída em desuso há mais de um milénio.

    Lúcifer saiu da figura alada, descalço e de túnica branca, lentidão satisfeita a saborear uma ironia que só ele parecia entender. Contemplou os frescos, um cerco de cores vivas nas paredes vermelhas, o pequeno momento resgatado de um passado enterrado em cinzas, memória com substância. Percorreu o lugar com um gesto de mão.

    — Em ocasiões especiais, a reminiscência de fragmentos preferidos do passado faz-me regressar a este lugar onde todos os momentos foram memoráveis, bons e maus. A Casa dos Mistérios, na saudosa Pompeia do século primeiro desta era deprimente. Este é o triclinium, a sala de jantar dedicada a um dos meus irmãos mais afeiçoados aos prazeres terrenos. Sempre pronto para a diversão, o Dionísio. Vinho e alegrias. Uma pena que demasiado vinho também origine tristezas. Divertimo-nos razoavelmente dentro destas paredes, mas palavras embriagadas possuem o condão de encurtar a diversão. Um mal-entendido infeliz obrigou-me, por muito que me desagrade admitir, a uma desmonstração de poder argumentativo. Em retrospectiva, suponho que terei cometido um pequeno excesso com a erupção do Vesúvio. Enfim, vinho e alegrias. Aprovas?

    — A minha resposta é relevante?

    Lúcifer suspirou aborrecimento.

    — Preferes uma sala de tortura da Inquisição?

    O lábio inferior de Mefistófeles tremeu irritação que era melhor saborear na acidez da saliva do que cuspir em palavras irreflectidas. Devia ter verbalizado a resposta adequada.

    — Um cenário soberbo.

    — Excelente! — disse Lúcifer, entusiasmo esquizofrénico de criança. — Eu sabia que gostarias. Senta-se e come uma tâmara.

    Mefistófeles sentou-se na ponta de um dos três leitos que cercavam, em U, a mesa a transbordar com exagero de fruta. A mão dele flutuou sobre uma travessa de tâmaras secas, em busca da menor. A fome que o consumia em magreza de pele e osso não era de corpo, mas de alma. Pegou numa tâmara e trincou sem convicção.

    Lúcifer esticou um sorriso breve e sentou-se no leito oposto. Bateu palmas, e música ondulou no ar, originada algures, em instrumentos de cordas que já não existiam, para lá dos véus de seda translúcida que tapavam as duas portas maiores da sala. Os véus desprenderam-se, flocos de tecido com leveza de penas a flutuar para o chão, e revelaram a nudez dos corpos femininos que entraram em duas filas unidas em meia-lua, movimentos contrariados comandados pela vontade superior que os colocou em exposição.

    Mefistófeles parou a mastigação enfastiada da tâmara e endireitou as costas em lentidão de cobiça disfarçada.

    Lúcifer observou a satisfação de Mefistófeles e sorriu o prazer de oferecer um presente envenenado.

    — Trinta e três cativas — disse ele. — São tuas.

    Mefistófeles percorreu os trinta e três corpos nus, uma fila de prémios cobiçados.

    Cativas — disse ele, a palavra saboreada na língua em delícia maior do que a tâmara. — O meu senhor é…

    Lúcifer inclinou a cabeça sobre o ombro, um sorriso oblíquo de correcção.

    És generoso além da medida — disse Mefistófeles, cinismo transparente. — Devo perguntar como as conseguiste?

    — Não deves. Mas deves saber como as mantenho. Os medalhões.

    Mefistófeles observou os medalhões centrados nos peitos nus, discos de ouro idênticos, de acabamento tosco, como moedas antigas cunhadas com assimetria sem importância para o valor.

    — Estão vinculados a mim e a elas — disse Lúcifer. — Enquanto estiverem ao alcance do meu poder, são os grilhões que as impedem de regressar a casa. Ou, melhor, que as impedem de escapar daqui. Depois de… fazeres o que bem entenderes com elas, nunca poderão regressar a casa. Uma função dos medalhões é a de impedir que elas escapem antes da consumação da vossa união. Serão garantia do teu controlo sobre a vontade individual de cada uma.

    — E a razão de tamanha oferta?

    — A celebração do centésimo aniversário do teu nascimento — disse Lúcifer, ar de coisa óbvia. — E morte.

    Mefistófeles perdeu um pouco da satisfação. A existência anterior era recordação amarga. Especialmente a humanidade perdida e o preço que pagou pelo engano que o fez renascer na nova existência.

    — E algo mais — disse Lúcifer. — Convenhamos que nunca cheguei a compensar-te devidamente pelos anos em que conduziste a Inquisição com mestria admirável. Contornos artísticos, direi mesmo.

    — Outra existência. Feitos menores.

    Lúcifer sorriu em pensamento. Mefistófeles quase o convencera de que a recordação de triunfos era desprovida de vaidade.

    — Não podemos apagar a nossa origem, Mefistófeles. Aceitamo-la ou somos consumidos pela negação. Ademais, a tua modéstia é sempre falsa. Não há necessidade de embustes entre nós. Somos praticamente amigos.

    — Contemplas-me com demasiadas honrarias — disse Mefistófeles, cada palavra ensopada em fel que só ele provou.

    Lúcifer decifrou o cinismo e riu em pensamento.

    — Aumentaste em porção considerável a minha colecta de almas, e é apenas justo que eu retribua.

    — Justo?

    — Para mim — disse Lúcifer, um sorriso. — O teu benefício é indirecto. A humanidade está em expansão, e prevejo um aumento exponencial de almas nos próximos séculos. A dificuldade em governar a minha casa aumenta em proporção ao número de almas colectadas, e a regência do território é menos penosa se eu delegar responsabilidades. Estou a promover-te.

    Mefistófeles contemplou os trinta e três corpos nus, instantes necessários para camuflar as considerações mentais acerca das possíveis intenções escondidas de Lúcifer.

    — E recebo o pagamento antes de cumprir a tarefa?

    — Apenas a primeira prestação, Mefistófeles. Eu tenho poder para reger em plenitude inquestionável, mas tu não tens sequer o necessário para controlar o território que pretendo que administres. Em verdade, a tua existência física aqui, como a de todos os outros a quem permito a posse de corpos, é possível apenas porque estás vinculado a mim e escudado das condições inóspitas deste lugar. Os frutos que gerares com elas dar-te-ão as almas necessárias para adquirires o poder indispensável a uma existência autónoma, requisito imprescindível para o cumprimento da tarefa que te atribuo.

    Mefistófeles percorreu a fila de ventres nus, uma interrogação em pensamento.

    — Elas nunca me darão descendentes.

    Vivos — disse Lúcifer, inflexão esclarecedora.

    Mefistófeles entendeu sem necessidade de explicação. Nados-mortos. Interessava apenas a criação das almas. Era irrelevante que os corpos concebidos para elas não sobrevivessem ao parto.

    — Exigiu um pequeno esforço — disse Lúcifer. — A reformulação de uma ou duas leis básicas da biologia celestial. Mas haverá gravidez suficiente para a formação do feto até ao ponto relevante para aquisição de alma. A partir de agora, são responsabilidade tua. Transfiro para ti o vínculo, o meu sangue.

    Lúcifer apoiou o pulso esquerdo na mão e massajou as veias com o polegar. Levou o pulso à boca e encostou a pele aos lábios, o pulsar das veias no compasso de vida quente. Olhou Mefistófeles nos olhos, e a segunda dentição deslizou das gengivas em lentidão silenciosa, agulhas de marfim evoluídas para furar sem rasgar. Mordeu o pulso e ofereceu-o para beber.

    Mefistófeles segurou o pulso com as duas mãos, delicadeza de toque proibido na divindade mais elevada, e bebeu. Quase um beijo na pele. O sangue percorreu-o, e as presenças das trinta e três escravas surgiram como pontos fixos no pensamento, ancoradas à percepção dele. Engoliu mais sangue, a percepção expandiu-se, e sentiu as presenças de demónios antes ocultados para além da ilusão criada da memória de Lúcifer. Mais sangue. Sentia tudo o que o rodeava, como se o lugar fosse ele e ele fosse o lugar. A ilusão da vivenda romana evaporou-se num sopro de ar quente, que tornou as formas transparentes e revelou a verdadeira paisagem durante um instante, a desolação do horizonte de rocha vulcânica vidrada pelo calor e esmagada pela pressão de dezenas de atmosferas. Mais sangue, e…

    Lúcifer afastou o pulso e passou a língua na dentada, ferida selada sem cicatriz. Observou os sintomas de privação no vício com que Mefistófeles lambeu todo o vermelho dos queixos.

    — Um detalhe relevante — disse ele, indicador a requisitar atenção. — Para as impedir de regressar a casa, tive de criar os medalhões com elementos vinculados a dois mundos que não podem coexistir no lugar de onde as tirei. O meu sangue, elemento daqui, e ouro, elemento da Terra. Em reforço do cativeiro, tive de vincular cada medalhão à respectiva portadora, torná-los parte dos corpos, para possibilitar a passagem dos objectos entre mundos e, naturalmente, para preservar a integridade do metal neste ambiente propenso à corrosão. Enquanto o poder do vínculo se mantiver, elas não poderão tirar os medalhões. Mefistófeles, uma advertência… as vontades individuais delas estão condicionadas mas não, de todo, dominadas. A manutenção da propriedade é responsabilidade tua.

    — Serei vigilante.

    — Serás mais do que isso, ou haverá consequências. Não há absolutos, e nenhum vínculo de obediência é irreversível. As possibilidades de fuga são mínimas, e os mundos onde elas poderão viver em segurança razoável são limitados, mas a Terra recebê-las-ia e ofereceria sustento para as fortalecer. Com o tempo, o vínculo seria quebrado, perderias o controlo sobre elas, e ficarias cego e insensível para a sua presença. Depois de perdidas, o custo para as trazer de volta é proibitivo. Isto.

    Lúcifer fechou a mão vazia, um punho breve a exigir atenção, e abriu-a. O vermelho vivo tingiu a transparência do pequeno frasco de vidro na palma da mão.

    — Sangue de Cristo — disse ele, o mau gosto do nome a azedar na língua. — A única maneira de trazê-las para cá. Os medalhões não são apenas a âncora a este mundo. O sangue mestiço, de um filho de dois mundos, derramado sobre o metal nobre dos medalhões vinculados ao meu sangue menos nobre, subverteu as proibições antigas e permitiu abrir a passagem para elas. Gastei mais de metade para trazer as trinta e três. É um custo que não poderei voltar a suportar. O meu irmão bastardo não sangra há mais de um milénio e meio. Por isso, Mefistófeles, cuidarás bem do meu investimento.

    — Serei mais do que vigilante. Não pensei que ainda restasse porção do sangue.

    Mefistófeles cobiçou o conteúdo do frasco com olhar de sede insaciável.

    Lúcifer fechou a mão, deslizou o polegar sobre o indicador e o dedo médio, uma pausa premeditada de ilusionista experiente. Abriu a mão vazia e, no seguimento do gesto, pegou numa tâmara seca.

    — Segredo meu — disse ele, uma dentada generosa. — Agora, nosso. Espero não ter desperdiçado, nas tuas Cativas, a boa parte do que me restava. De todas as suas propriedades, a mais valiosa é a permissão de travessia entre mundos. É, em muitos sentidos, a chave-mestra que abre todas as passagens possíveis, desde que encontremos as fechaduras que as encerram. No caso particular dos medalhões, o sangue do bastardo, derramado sobre um elemento puro da Terra vinculado ao meu sangue, permite a abertura de uma passagem duradoira num local de convergência excepcional entre mundos, que se manterá aberta enquanto o sangue permanecer em contacto com o elemento. Permite, em caso de necessidade extrema, subverter a primeira regra da colecta de almas.

    Mefistófeles arredondou os olhos, uma surpresa que gostaria de ter disfarçado melhor.

    — Sem morte ou pacto? — disse ele, a surpresa revestida de curiosidade razoável.

    Lúcifer saboreou a tâmara, delícia de suspense premeditado. Era preciso dosear a oferta de informação gratuita, ou Mefistófeles desconfiaria de tanta generosidade antecipada ao cumprimento da tarefa para a qual foi promovido. Pequenas pausas de reflexão ajudavam a digerir a informação. E a tâmara. Lúcifer chupou os dedos doces do fruto.

    — O que seria das regras sem a transgressão? — disse ele, descontracção de conversa entre amigos de sempre. — Podemos trazer os corpos físicos directamente para cá e colectar as respectivas almas sem a ocorrência de morte biológica, na Terra, que acontecerá, como é óbvio, no primeiro instante em que chegarem. Como a separação das partes, material e imaterial, ocorre aqui, não há necessidade de obter a permissão espontânea decorrente de um pacto. O poder das almas fluirá directamente para a vontade prevalecente neste lugar. A minha. Estamos limitados às almas que inevitavelmente seriam colectadas em resultado de qualquer uma das duas circunstâncias permitidas, morte com pecados por expiar ou pacto. Por uma razão que ainda me ilude, não é possível forçar as almas inocentes à travessia. Mas não é aspecto relevante. Em qualquer época, o número de almas culpadas é sempre oferta suficiente para suprir qualquer necessidade a esse nível. A limitação mais lamentável das passagens é o sentido único da travessia. Se queremos trazer algo da Terra, a passagem terá de ser aberta lá. De momento, os únicos artefactos existentes, constituídos por um elemento puro colhido na Terra vinculado ao meu sangue, são os medalhões. Trinta e três fechaduras para as quais apenas eu possuo a chave.

    — E o resultado da abertura da passagem deste lado?

    Lúcifer estudou a curiosidade no rosto encovado de Mefistófeles, entrelaçou os dedos e tocou os polegares em repetição pensativa. Dosear a informação gratuita.

    — Os elementos constituintes dos medalhões estão vinculados à Terra e a este lugar. Como tal, qualquer passagem aberta através deles ligará sempre, e apenas, os dois mundos. Se for aberta deste lado, permitirá, se assim o quisermos, a travessia directa para a Terra de um número considerável de demónios. Um número bastante superior àquele possível através das passagens formadas pela convergência natural entre mundos, e daquelas que criamos pelos nossos próprios meios. Mas nós não queremos isso, Mefistófeles. Não tenho planos, num futuro próximo, para o uso desse pandemónio.

    Mefistófeles sorveu toda a informação e contabilizou, em agilidade de pensamento, a infinidade de demónios que seriam originados pelas almas dos nados-mortos. Uma legião nascida tábua rasa, sem memórias conflituosas de existências anteriores, obediência exclusiva à vontade do seu criador. Observou as Cativas, cada uma pertença dele, e, cada uma, com um medalhão detentor de possibilidades tentadoras.

    1832

    Ávila, Espanha.

    Ossos

    O Mosteiro de São Tomás acordou na escuridão de horas tardias, aflição de monges em correria cega e gritos a ecoarem nas galerias do pátio central. As chamas das velas riscaram trilhos de pouca luz sufocada na clausura de todas as passagens que levavam ao túmulo de Tomás de Torquemada. A repetição dos acontecimentos de duas noites atrás, quando o sepulcro foi saqueado e desapareceram os ossos do Grande Inquisidor. Com o declínio iminente da Inquisição, não era surpresa a profanação dos restos mortais. Os gritos vinham de lá.

    Os monges entraram na câmara tumular e murmuraram orações que fortaleceram a alma. Os gritos vinham de dentro do túmulo. Trocaram olhares. Alguns, estavam aliviados por se verem livres dos restos mortais de uma figura lamentável que seria sempre relacionada com as páginas mais negras da história da Igreja. Outros, consumiam-se em pensamentos de sacrilégio. Alguém estava dentro do túmulo, preso sob o peso da lápide, em gritos de rasgar garganta.

    Velas foram passadas de uns para outros, quatro monges ficaram com as mãos livres e empurraram a lápide. O grito libertou-se em eco de terror devolvido pelas paredes de pedra, e os monges recuaram como se empurrados pelo som, comprimidos em susto colectivo. A mão fumegante a sair do túmulo foi um arrepio de sangue escoado do corpo, e o cheiro de enxofre apertou-lhes a boca do estômago.

    Mefistófeles firmou os dedos trémulos no rebordo de pedra e ergueu-se em nudez fumegante, postura difícil de manter. A fraqueza empurrou-o sobre a borda do túmulo e ele desabou no chão de pedra.

    Os monges recuaram em instinto de fé posta à prova. A pele do homem transpirava fumo mas ele tremia em convulsões de alma gelada, fragilidade de corpo acabado de nascer.

    Mefistófeles fitou a mão trémula, cara colada à pedra e corpo derreado no chão. Há mais de dois séculos que não sentia aquela fraqueza de carne sem sustento. As almas dos nados-mortos das Cativas tinham-no fortalecido o suficiente para nunca mais ser afligido por debilidade física. Mas aquela dor…

    Um monge entrou na câmara e especou diante do homem nu caído no chão. Percorreu os restantes com um olhar rápido de interrogação e não esperou que lhe explicassem por que razão não prestavam auxílio. Agachou-se num repente mais rápido do que os gestos dos que tentaram impedi-lo, e tocou o homem. Arredondou os olhos, um sufoco de murro nos pulmões, e olhou para as mãos com remorso de assassino. Contemplou todos os pecados que cometera e todos aqueles que poderia cometer se tivesse oportunidade. Ergueu-se e correu em rota de colisão com a parede, um embate sufocado de corpo contra pedra, recuou com o impacto e caiu para trás, a testa esmagada em morte certa.

    Os monges fitaram a mancha de sangue a escorrer na parede, instantes de raciocínio a processar o medo. Afunilaram-se na saída, corpos comprimidos em pânico de morte sem salvação eterna, e fugiram em gritos de aviso pelo mosteiro.

    Mefistófeles continuou de olhar fixo na mão, nada de relevante a existir à volta dele, e a pele começou a ganhar bolhas de queimadura, a descolar da carne, camada após camada. A mão incendiou, os dedos acesos como cinco velas num candelabro.

    — Estão a queimá-los…

    O sussurro morreu na pedra do chão, um pensamento com som insuficiente para ser voz. O corpo inteiro pegou fogo. Mefistófeles abriu a boca e gritou dor num jorro de chamas. Uma mão tapou-lhe a boca, o fogo a passar entre os dedos sem queimar, e o grito perdeu o som. Ele olhou para cima e desistiu de suportar o tormento.

    Lúcifer curvou-se sobre o corpo ardente e afastou a mão da boca de Mefistófeles, que continuou aberta num grito sem som. Aproximou os lábios da boca incandescente e engoliu o grito mudo num sorvedouro de chamas. Observou o corpo queimado, um carvão em forma de homem, tormento fumegante que, se tivesse real substância, seria matéria morta. Uma pequena subversão das regras que separavam os organismos vivos dos mortos. O fogo nunca destruiria Mefistófeles. Não enquanto Lúcifer tivesse utilidade para ele.

    — Queimaram os meus ossos… — disse Mefistófeles, a pele descolada dos lábios em carne exposta.

    Lúcifer baixou a cabeça num aceno afirmativo.

    — Quero retribuição… — disse Mefistófeles.

    — A destruição dos teus restos mortais era uma inevitabilidade. É o destino de toda a matéria perecível. A tua essência já não é material, não estás verdadeiramente queimado. A destruição dos ossos pelo fogo perturbou o repouso da tua existência anterior e invocou a tua presença sem possessão de carne. És alma, Mefistófeles. Apesar da aparência sólida, este estado é apenas a tua projecção mental da dor decorrente do vínculo remanescente com os restos mortais. A simples memória da tua existência anterior não justifica o esforço.

    Mefistófeles estreitou os olhos em raiva de honra ferida, e cerrou os dentes com a dor da carne que imaginava ser.

    — Pela dor. Quero retribuição pela dor. Quero os responsáveis. Meus. Agora. Sem esperar pela morte deles nem correr o risco de receberem o perdão pelos actos. Quero-os para mim, em corpo físico. Quero espremer-lhes os ossos da carne e incinerá-los diante dos olhos deles.

    Lúcifer subiu o canto da boca, a subtileza de um sorriso a contemplar possibilidades criativas.

    — Ora aí está uma atrocidade que nunca presenciei. É óbvio que ainda persistem no teu subconsciente memórias da vida anterior como Grande Inquisidor. Estou disposto a considerar o pedido só pela curiosidade de saber como conseguirás mantê-los vivos o tempo suficiente para concretizares a tua intenção.

    — Não sentia dor desde que alcancei o meu estatuto presente. Dor verdadeira. Fui forçado a recordar a minha natureza perecível.

    — Mefistófeles, tudo é perecível. Mesmo eu. Depreendi que a retribuição seria pela dor e não pela afronta.

    — Para nós, dor é afronta.

    Lúcifer inclinou a cabeça em meio sorriso, sem concordar nem discordar.

    — Estás ciente da dificuldade em levar corpos vivos deste mundo.

    — Temos meios. Só preciso do medalhão de uma Cativa e da Chave. Uma gota no metal será suficiente. Encara isso como retribuição justa por serviços prestados.

    — Suponho que é uma perspectiva tão válida como qualquer outra. De facto, tens desempenhado, sem mácula, as funções que te atribuí.

    — E cumprirei enquanto entenderes conceder-me o privilégio.

    Lúcifer estudou o rosto carbonizado. Privilégio. Mesmo através da máscara de pele esturricada, era evidente a falsa subserviência de Mefistófeles. O estado de espírito perfeito para avançar o plano.

    — Interessa-me que continues a desempenhar as tuas funções com entusiasmo. O mundo não tardará a experimentar uma explosão demográfica sem precedente e, sem o teu auxílio na gestão da expansão, ficarei com muito pouco tempo para actividades recreativas. A eternidade não é só triagem de almas, Mefistófeles. Há um Universo possivelmente infinito para experimentar. Se tens, de facto, necessidade de retribuição, disponibilizo os meios, para que regresses com brevidade às tuas incumbências.

    Lúcifer endireitou-se em postura recta, assentou as mãos no peito nu e inspirou uma pausa profunda, os sentidos concentrados no âmago do ser. Expirou e afastou as mãos para a frente, um corpo translúcido retirado de dentro dele.

    Mefistófeles contemplou a nudez materializada da Cativa, o círculo tosco do medalhão pendente no vale dos seios. As Cativas pertenciam-lhe, mas o vínculo delas com Lúcifer seria sempre superior e só ele podia movê-las entre mundos com aquela aparente facilidade.

    A Cativa olhou em redor, como se todo o corpo estivesse paralisado excepto os olhos, duas esmeraldas cristalinas emolduradas na pele clara riscada por fios ruivos de cabelo solto.

    Lúcifer encostou o peito às costas da Cativa, e o baixo-ventre às nádegas. Apoiou o queixo no ombro dela e inspirou o perfume dos seios. Encostou a face à dela e deslizou pele na pele, uma carícia de infidelidade sem consequência.

    — É toda tua — disse ele, um sorriso para Mefistófeles.

    Inclinou-se sobre Mefistófeles e estendeu-lhe a mão.

    Mefistófeles aceitou o auxílio que não podia recusar. Apertou a mão e ergueu-se. Sentiu algo duro e quente no aperto das mãos. Um calor inteiramente diferente das chamas que o queimaram. Agradável. Desejável. Um vício sem resistência. Afastou a mão da de Lúcifer e observou o frasco de vidro na palma, um contraste de brilho e cor vermelha com a negrura queimada da pele. Sentia o frasco como se a alma fosse tão material como o vidro. Ou talvez o vidro fosse tão imaterial como a alma.

    Uma gota — disse Lúcifer. — Mais, e saberei. Recompõe-te e resolve a questão sem demora. A guerra civil, em Portugal, está a progredir em bom ritmo e tens colectas a fazer.

    Lúcifer voltou-se para a Cativa, um olhar e um sorriso a um palmo de distância, e avançou, pele na pele, até desaparecer no corpo dela.

    A Cativa moveu-se, como regressada de um estado de vida suspensa, o peso do corpo tornado realidade e a respiração a ilusão de um sentimento que se parecia com liberdade.

    Mefistófeles aproximou-se da Cativa e deteve-se à distância de um segredo. Fez-lhe uma carícia no rosto, o rasto dos dedos em riscos negros de fuligem que apenas existia como projecção da dor sentida. Ajoelhou-se e abraçou-a pela cintura, rosto encostado à curva dos seios. Fechou os olhos e encontrou um mamilo com os lábios, o instinto de recém-nascido à procura de sustento. Mamou leite celestial, a nutrição necessária para a regeneração da alma queimada.

    O leite percorreu-o, seiva viva de árvore que sobreviveu ao pior incêndio, e expulsou a aparência da carne morta até restar apenas a fuligem negra, um fantasma a desaparecer na pele clara da Cativa.

    Mefistófeles ergueu-se, restabelecido de forças e determinado. Precisava de carne para permanecer na Terra o tempo necessário. Agachou-se junto do monge caído e observou o corpo sem vida, matéria desprovida de essência. A carne ainda estava quente. Era suficiente para um vínculo temporário. Deitou-se sobre o corpo, diluiu-se na forma e tomou posse. Abriu os olhos, frieza imperturbável a fitar um ponto infinito muito para além da solidez do tecto. Limpou o sangue que começava a colar a pálpebra direita e ergueu-se. O tecido do hábito abafou-o em clausura insuportável. O desconforto de vestir carne era necessário; o de vestir roupa não era. Despiu-se e caminhou nu para o sepulcro. Percorreu o rebordo com as pontas dos dedos, encostou o nariz à pedra e farejou o cheiro dos saqueadores, o suficiente para lhes encontrar o lugar no mundo.

    Os ossos tinham ardido como lenha chupada pelo deserto, um auto-de-fé breve mas satisfatório. Em ossos com mais de duzentos anos, não restava muito para arder. Havia mais cinza da lenha do que dos restos mortais do infame Tomás de Torquemada. Um detalhe que não diminuía a satisfação dos quatro homens de ascendência judia, cabeças baixadas em contemplação das poucas brasas ainda acesas nas cinzas fumegantes. A retribuição devida aos milhares de judeus perseguidos e mortos pela Inquisição.

    Um pé descalço calcou as cinzas e eles recuaram um salto, facas prontas nas mãos. Mediram o homem nu, parado sobre as brasas sem incómodo nem consequência.

    — Algum problema com o seu juízo? — disse um dos homens, em espanhol.

    — Vai queimar-se — disse outro.

    — O corpo habitua-se — disse Mefistófeles. — O meu. Os vossos, não.

    Os quatro homens trocaram olhares, a dúvida de considerarem o homem louco, bêbado ou ambos.

    — É do juízo — disse o primeiro que falara, um encolher de ombros para os restantes. — Se quer queimar-se…

    Mefistófeles percorreu os passos que o separavam do homem num borrão de vista desfocada e cravou-lhe os dedos na cara, a mão uma mordaça de asfixiar.

    Não quero. Ninguém quer. O fogo é dor de alma, e a minha já sofreu a punição justa por todos os meus pecados.

    Enterrou as unhas na cara do homem e olhou-o nos olhos, a certeza de um castigo muito pior do que o fogo.

    O homem sentiu as unhas a vazar a carne, lentidão de lâminas de cirurgião, as pontas a raspar os dentes e a lacerar a língua. O pânico subiu dos pulmões e libertou-se pelos buracos em sangue esparrinhado.

    Os restantes três homens acreditaram na aparição de um demónio, o castigo do Inferno pela profanação do túmulo, e desistiram de empunhar as facas. Voltaram costas ao camarada, pernas a reunir forças para a cobardia de fugir, e estacaram os três em susto único, uma luminosidade dourada a luzir-lhes nos olhos redondos. Terror e espanto, a visão congelada numa fracção de tempo que os imobilizou em leveza subaquática, corpos a flutuarem no meio de um gesto.

    A Cativa olhou os três homens, a expressão serena de uma estátua de mármore, e cativou-os com a nudez sem pudor, uma força que emanava de algo mais profundo do que a beleza superficial.

    Mefistófeles sorriu para a Cativa. Um quase afecto que quase aprendera a sentir. Caminhou para ela, por entre os três homens imobilizados em desequilíbrio de corpos inclinados para a frente no início da corrida. O homem suspenso na mão era um peso carregado sem esforço, a deixar dois trilhos de pés arrastados na terra.

    Abriu a mão livre e contemplou o frasco com o sangue. Tirou a rolha com os dentes e o perfume exalou do vidro, o desejo avassalador de beber até à última gota. Afastou o frasco em rejeição quase impossível. Só uma gota. Mais, e Lúcifer saberia. Verteu uma gota aquosa sobre o medalhão da Cativa e fechou o frasco em suspensão de respiração.

    A Cativa tremeu em arrepio de corpo disputado por mais almas do que seria possível conter, e perdeu consistência recuperada em duas batidas de coração. Avançou um passo e deixou para trás uma cópia translúcida do próprio corpo, um fantasma atravessado pela luz de dois mundos que se tocavam. Afastou-se para o lado, a confirmação silenciosa de obediência à vontade do captor.

    Mefistófeles jogou o homem de cara esburacada na direcção da cópia translúcida da Cativa e quase se permitiu o primeiro esgar satisfeito.

    O homem atravessou o fantasma e sentiu o tempo abrandar para uma eternidade contida num instante, a lentidão de um mergulho em profundeza de oceano escaldante.

    Mefistófeles apreciou, através do fantasma, esse instante interminável, o primeiro de uma eternidade vingativa. Mas o tempo avançou para o instante seguinte, e a satisfação não durou o suficiente para fazer subir o canto da boca. O homem desmoronou sob o peso do próprio corpo e desfez-se numa implosão de combustão ácida. Mefistófeles precipitara-se. Uma falha motivada pela emoção das circunstâncias. Uma falha a não repetir. Tinha de fazer a travessia com os homens e escudá-los das condições hostis à biologia humana, ou não conseguiria mantê-los vivos o suficiente para os torturar até à morte.

    Pegou nos três homens imobilizados, fardos de carne puxados pela roupa, arrastou-os para o fantasma e fez a travessia com eles. Uma falha pior. Voltou-se para trás, o olhar de quem se apercebeu demasiado tarde de uma estupidez inqualificável. Fitou a Cativa, a presença dela apagada do pensamento. Mefistófeles precipitou-se para a passagem e esbarrou numa barreira invisível. Sentido único.

    A Cativa aproximou o medalhão da boca, olhou o captor através da passagem, e lambeu o sangue do metal. O fantasma apagou-se na escuridão da noite, e ela esboçou o primeiro sorriso em mais de dois séculos.

    Actualidade

    Londres, Inglaterra.

    Predadores

    Al reviveu o momento repetido incontáveis vezes num passado em que a prostituição ainda possuía jogo de sedução. Lembrava-se nitidamente desses tempos, antes da diáspora pornográfica da internet, mas esquecera-se de quando foi, ao certo, que aceitara aquele diminutivo de convivência social e começara a pensar em si mesmo como Al. Nem sequer um nome, apenas duas letras. Um som de língua curva, com a ponta a tocar os incisivos superiores. Língua. Teve quase a certeza de que o calor húmido era a ponta de uma língua a desenhar-lhe círculos no umbigo, um trilho de saliva que subiu ao mamilo direito. Devia ser uma língua. Esperava que fosse. A escuridão do quarto desafiou os sentidos que não dependiam dos olhos, e ele entregou-se a cada estímulo num jogo de palpites.

    A pele dele tocou outra, uma troca de calor entre corpos colados com suor. Cheirou-a. Um vício imediato. Ela cheirava a fruta fresca. Não. Flores regadas pela manhã. Também não. Cheiro de… qualquer coisa boa que dava vontade de a comer.

    As pontas do cabelo dela deslizaram no rosto dele, o aroma de terra preta acabada de molhar por chuva de Verão. Também podia ser café moído naquele instante. Não importava. Tinha a cara no meio das mamas dela e ouvia-lhe no ritmo do coração a chegada de uma trovoada distante. O galope do sangue nas veias era o tremor de cavalos selvagens ouvidos ao longe, de orelha encostada ao chão.

    Al chupou um mamilo e provou a vida. A vida só podia ter sabor de mulher. Há muito tempo que não estava num quarto de hotel com uma prostituta. Há muito tempo mesmo. Da última vez que permitira que uma mulher o amarrasse à cama, aprendera uma coisa ou duas acerca dos limites da confiança e prometera a ele mesmo que nunca mais. Promessas. Coisas frágeis. Uma prostituta chamada Candy, capaz de usar a língua com habilidade criativa que não cabia nas palavras, só podia resultar em coisas boas.

    — Diz-me, Al, tens-te portado bem? — disse Candy, apenas uma voz no escuro, malícia pronta a castigar pecados. — Tens sido um menino bom?

    Al sorriu satisfação invisível. O hálito dela humedeceu-lhe a pele na virilha, um calor afrodisíaco, e a ponta da língua viajou de uma virilha à outra num trilho de saliva que arrefeceu em arrepio.

    — Sou um menino mau. Muito mau.

    Inspirou um ssssss entre dentes e conteve o Au! que soaria a queixume efeminado num homem. A primeira dentada na parte interior da coxa foi agradável. A segunda deixou a impressão de que os dentes queriam furar a pele. Ficaria marca. Aguentou. Fazia parte. Era para isso que estava ali. Negócios e prazer.

    — Sabes o que faço com meninos maus, Al?

    Al susteve a respiração. A dentada foi demasiado perto da virilha. Talvez estivesse a arriscar para além do razoável.

    — O quê?

    O corpo nu de Candy era uma luva de veludo que acariciava Al e deslizava sobre ele como cobra a despir-se da pele. Al sorriu a sua satisfação invisível. As metáforas inconfessáveis que passavam pela cabeça de um homem quando tinha uma mulher nua em cima. Luva de veludo. Sinceramente.

    Devoro-os — disse Candy.

    Uma pequena explosão de calor alastrou no peitoral direito de Al, junto ao mamilo, e ele teve a certeza de que a dentada fez sangue. Talvez fosse a altura certa para libertar as mãos.

    — É melhor pararmos — disse ele.

    A única resposta que obteve foi a pressão do corpo de Candy sobre o dele, um aperto de pernas que o envolveu pela cintura. O sexo dela humedeceu calor excitante no baixo-ventre de Al, mas a excitação durou apenas o instante antes de ela lhe cravar as unhas no peito com brutalidade inimiga do prazer.

    — Parar é morrer — disse Candy, um segredo ao ouvido.

    Um arrepio de coisa estranha subiu a espinha de Al. Não conseguiu afastar do pensamento a ideia de que a voz dela cheirava a botões de rosa acabados de florir, e isso desequilibrou o raciocínio. Sentiu-se saboreado, a língua dela a percorrer o contorno do maxilar como se realmente o provasse antes de o devorar a sério.

    — Quero parar — disse ele.

    — Lamento, Al, mas o meu querer é mais forte. Tenho fome.

    Al cerrou os dentes e arranhou a garganta num grunhido. O som esponjoso de alguém a mastigar de boca cheia preencheu o quarto, e o sexo de Candy molhou-o com mais calor. A dentada arrancara carne. Forçou os pulsos nas fivelas presas à cabeceira da cama, e as tiras de couro rangeram na armação de madeira. Limite de tolerância ultrapassado.

    O quarto iluminou-se numa claridade verde de casa de strip. Candy parou de mastigar, a boca entreaberta numa surpresa parva a pingar sangue para as mamas. Sorriu de boca cheia, moveu as ancas em vontade de sexo e massajou as mamas com o sangue, melaço espesso e luzidio na pele negra. Cuspiu o pedaço de carne com desinteresse saciado e fitou o brilho da esmeralda no anel do indicador esquerdo de Al.

    — Al, seu malandro, isso é um anel mágico?

    — Queres vê-lo de perto?

    Al concentrou a força do tronco no peito e ombros, partiu a cabeceira da cama contra as costas e, no seguimento do movimento, estourou um murro de esquerda no queixo de Candy.

    Candy voou de costas contra o espelho da cómoda, que ficou a reflectir a claridade verde numa rosácea de estilhaços.

    Al desenrolou as fivelas dos pulsos e esticou os braços para desatar os tornozelos. Parou a meio do movimento com uma guinada no abdómen. O pedaço de carne que faltava. A puta da Candy. Forçou a dor, desatou as fivelas e saltou da cama em meia-volta desnorteada.

    Candy ergueu-se contra a cómoda, costas a pingar cacos de vidro ensanguentados, e lambeu o sangue do queixo com um comprimento de língua que não devia caber na boca.

    — A tua carne tem sabor exótico, Al. Quem és tu?

    — Disse-te. Um menino muito mau.

    — Eu sou pior — disse Candy, o sorriso com excesso de dentes.

    Al lambeu a palma da mão direita e pressionou-a no buraco da dentada. Ardeu como lixívia nos intestinos mas a ferida deixou de sangrar. Muito.

    — Não és — disse ele.

    Mostrou a palma ensanguentada e, como mágico que insinua com uma mão para enganar com a outra, revelou junto à perna esquerda uma bengala antiga que chegava ao cimo da coxa.

    — De onde tiraste isso, Al? De certeza que não foi do meio das nádegas. Eu sei que não tinhas aí nada escondido. Quem és tu?

    Al subiu a bengala e mostrou o castão, uma cabeça de lobo esculpida em aço.

    Candy estreitou os olhos, ferveu um silvo de réptil e aumentou a boca num rasgão de dentes até às orelhas.

    — És um filho da puta dum Mestre!

    Al sentiu a primeira tontura de uma agonia que só ia piorar. Merda.

    — Não podes andar por aí a comer pessoas, Candy, como se a tua dieta fosse um hábito sem importância.

    Candy esparrinhou saliva numa chicotada de língua.

    — Sou uma canibal do mundo velho, Mestre. A única coisa que me importa na comida é que seja tenra. E tu és.

    Al agoniou-se num piscar de visão desfocada. A ferida tinha parado de sangrar mas o veneno ficaria algumas horas no corpo. Antes de melhorar, a agonia ia piorar muito. E a luz oscilante da esmeralda, a fazer dançar sombras pelo quarto, não ajudava a controlar a náusea.

    — Tens passado demasiado tempo no escuro, Candy. Devias sair mais. Irias perceber que, lá fora, existe um mundo novo.

    — O mundo será sempre velho, e ambos sabemos, Mestre.

    — O mundo é o que as pessoas quiserem que seja. Hoje, as pessoas querem acreditar que é uma coisa civilizada, o contrário de uma coisa como tu. Amanhã, as pessoas podem querer outra coisa mais parecida contigo, mas hoje não. Hoje decides se a tua refeição anterior foi a última em liberdade ou a última em vida.

    — Os Mestres e as suas escolhas de merda. Cativeiro eterno ou morte. Hum, deixa-me pensar na hipocrisia…

    — O mundo é uma merda, Candy. As pessoas são uma

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