A inserão de "a gente" no quadro pronominal do português
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O livro destina-se a um público amplo. Atende, em primeiro lugar, a pesquisadores interessados em conhecer um pouco da história da língua portuguesa, mas visa sobretudo a despertar a curiosidade de todos aqueles que vêem a língua como uma atividade dinâmica e criativa, em pleno processo de variação e mudança. Atende ainda aos que se interessam pelo fenômeno da gramaticalização, pelo estudo dos pronomes pessoais, pelas razões sócio-históricas da mudança lingüística...
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A inserão de "a gente" no quadro pronominal do português - Célia dos Santos Lopes
Televisão).
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho visa ao estudo da inserção de a gente no sistema pronominal do português, inserção essa vista como um processo de mudança em tempo real de longa duração (do português arcaico ao português contemporâneo).
Diversos estudos (cf. Omena, 1986; Freitas et alii, 1991; Monteiro, 1991; Lopes, 1993) mostraram que o substantivo gente cristalizado na forma a gente passou a fazer parte do nosso sistema pronominal como indicador da primeira pessoa do plural, em variação com o pronome nós. Falta, entretanto, identificar o que determinou este processo de gramaticalização (cf. Heine & Reh, 1984; Lehmann, 1982; Traugott & Heine, 1991; Hopper & Traugott, 1993; Martelotta et alii, 1996, entre outros), que será aqui chamado, para sermos mais específicos, de pronominalização, uma vez que um nome passa a pronome.
O interesse pelo tema justifica-se, em um nível mais amplo, pela necessidade de melhor conhecer e descrever a história da língua portuguesa e, em um nivel mais específico, pela necessidade de explicitar as causas das mudanças ocorridas no nosso sistema pronominal, identificando os fatores de ordem discursivo-pragmática e os de natureza sintático-semântica que atuam na alteração categorial de nome para pronome, mais precisamente, na mudança de gente, como sinônimo de as pessoas, para a gente, variante de nós.
O simples levantamento dos dados na amostra diacrônica utilizada possibilitou verificar que houve perdas e ganhos em termos de propriedades formais e semânticas dos dois itens. Assim, neste trabalho, propõe-se um levantamento dos fatores lingüísticos e extralingüísticos que poderiam dar conta do processo de gramaticalização do substantivo gente. Cabe ressaltar que serão adotados alguns pressupostos da teoria gerativa e da teoria funcionalista para a definição de nossas hipóteses e para a explicação dos resultados, fazendo-se uso ainda da técnica variacionista¹ - Pacote de Programas computacionais VARBRUL - (Sankoff, 1988), dentro da perspectiva teórico-metodológica da Sociolingüística quantitativa laboviana.
Este estudo, que ora se apresenta, está dividido em cinco seções. Na primeira e na segunda, introdutórias, faz-se uma breve revisão bibliográfica dos estudos sobre o percurso evolutivo de gente → a gente.
Na terceira, apresentam-se os modelos teóricos adotados para a formulação das hipóteses, discutindo-se a possibilidade de se adotar urna proposta teóricometodológica eclética. Defende-se que flexibilizar a aplicação de diferentes correntes lingüísticas (Funcionalismo, Gerativismo e Teoria da Variação) pode contribuir, no que tange à inserção de novas formas no sistema pronominal, para uma descrição mais eficaz da gramática do português.
Nos pressupostos funcionalistas, sub-item desse terceiro capítulo, por exemplo, discutem-se alguns noções básicas sobre gramaticalização. Ao pressupor que houve mudança categorial, apresentam-se também alguns pressupostos estruturalistas, que auxiliam na identificação de características básicas e essenciais para a distinção dos nomes substantivos e dos pronomes, em particular, os pessoais.
Definem-se, nos pressupostos formalistas, as propriedades formais e semânticas do substantivo gente e da forma pronominal a gente, na tentativa de formalizar um sistema de traços primitivos mínimo que dê conta desse processo evolutivo.
Nos pressupostos variacionistas, discute-se a concepção de mudança formulada pela sociolingüística laboviana (Weinreich et alii, 1968; Labov, 1994). Defende-se, pois, que toda mudança implica um período de variação e que, quando implementada, acaba por produzir reflexos no sistema lingüístico e social. Para se chegar a resultados mais confiáveis, no que diz respeito à análise da mudança lingüística em curso, torna-se imprescindível observar os dados em tempo real de longa e de curta duração e em tempo aparente.
Apresentam-se, no item 3.5., os corpora diversificados que foram utilizados nas diversas análises parciais sobre
1) o uso do vocábulo homem como pronome indefinido no português arcaico
2) o percurso histórico de gente → a gente em tempo real de longa duração e
3) a variação entre nós e a gente em tempo real de curta duração.
A partir da discussão dos pressupostos teóricos e das hipóteses levantadas em outros trabalhos, são apresentados, no capítulo 4, as análises na longa duração. Primeiramente, procura-se estabelecer uma relação entre a perda, no português arcaico, da forma homem como pronome indefinido e o uso pronominal do substantivo gente, cristalizado na forma a gente, mostrando resultados de uma análise quantitativa. Em um segundo momento, apresenta-se, com base nos corpora de escrita (século XIII ao XX) e de fala (século XX), a descrição e interpretação dos resultados relativos aos traços de gênero, número e pessoa, verificando a atuação dessas propriedades no processo de gramaticalização do substantivo gente. Ainda no capítulo 4, é descrita a análise quantitativa do percurso histórico de gente para a gente em tempo real de longa duração, junto com a discussão de outros fatores lingüísticos e extralingüísticos que teriam interferido na mudança categorial.
Por fim, no capítulo 5, apresentam-se os resultados da análise lingüística e social da variação entre nós e a gente em tempo real de curta duração, com base em um corpus constituído por entrevistas do Projeto NURC-RJ feitas na década de 70 e na década de 90, com os mesmos informantes e com informantes diferentes. Conjugam-se, nessa seção, os estudos de painel (análise do comportamento dos mesmos individuos) e o de tendências (análise do comportamento da comunidade) em dois períodos de tempo dentro da proposta de Labov (1994). E só.
2. REVISÃO HISTÓRICO-DESCRITIVA
Em um estudo intitulado Sobre Formas de Tratamento
na Língua Portuguesa, Cintra (1972), embora não faça comentários sobre a forma a gente – considerada por muitos gramáticos como forma de tratamento
– discute alguns aspectos históricos que podem auxiliar na identificação das possíveis causas da pronominalização do vocábulo gente em português, e no seu enquadramento como uma mudança interna e externamente encaixada.
Segundo o autor (1972:13), uma característica peculiar ao sistema do português atual é a extraordinária variedade e freqüência de emprego dos tratamentos de tipo nominal
. Em outras línguas também é possível identificar, num emprego ocasional, formas nomináis de tratamento, mas a sua utilização, no português, é regular e abundante:
O francês cobre com um simples vous, o espanhol com um usted, o italiano com um lei quase todo o campo dentro do qual empregamos os tratamentos nominais, e ainda a maior parte daquele em que nos servimos dos pronominais você e V.Ex.a (eles próprios antigos tratamentos nomináis, hoje decaídos semânticamente e total ou quase totalmente gramaticalizados. (Cintra, 1972:14)
Para ele, as formas de tratamento do português europeu atual dividem-se em 3 níveis (formas de intimidade, como tu; formas do tratamento igualitário ou de superior para inferior, sem intimidade, você, e formas de cortesía, V. Exa., o senhor, etc.), ao passo que em outros sistemas, como o francês, o italiano ou o castelhano, opõem-se dois planos: formas de intimidade x formas de cortesía.
Cintra mostra ainda que o atual sistema de tratamento difere daquele encontrado nas primeiras fases da língua portuguesa, fases estas em que não havia tratamentos do tipo nominal – pelo menos não localizáveis nos textos. A oposição se estabelecia basicamente deste modo: tu/vós (plano da intimidade) vs. vós(plano de cortesía ou distanciamento), como até hoje em francês.
Esporadicamente, já no século XV, são identificadas algumas formas nominais, entre elas, Vossa Mercê. Essa última, recolhida nas atas das cortes de 1331, só aparece nas crônicas de Fernão Lopes na boca de estrangeiros, principalmente, castelhanos. Outras formas como Vossa Alteza (1455) e Vossa Senhoria (1442) são empregadas ainda com o valor de uma expressão substantiva e por castelhanos que se dirigem ao rei de Portugal.
O autor atribui a expansão das expressões nomináis como formas de tratamento, e sua especialização, à hierarquização da sociedade portuguesa a partir da Alfarrobeira (1449), que representa a vitória da facção palaciana de D. Afonso V; o triunfo da corrente senhorial sobre os principios da centralização régia
(Serrão, 1985:97). Cintra (1972:21) esclarece que há uma tendência a considerar a utilização de cada um deles (tratamentos nomináis) como apropriada só para determinada ou determinadas camadas de entre aquelas em que se dividia a referida sociedade
.
As formas nominais de tratamento sofrem um processo de especialização já nos fins do século XIV. O autor descreve esse processo de mudança o correlacionando a um processo de hierarquização cada vez maior da sociedade. Vossa mercê, que aparece como tratamento para o rei por volta de 1460, deixa de sê-lo em 1490. A degradação hierárquica – ou a ascendência da nobreza? – é progressiva, e a expressão passa a referir-se a duques, depois a infantes, a fidalgos e, no século XVI, já é usada por Gil Vicente para patrões burgueses. Vossa Senhoria também sofre, em menor escala, o mesmo processo de perda gradativa de reverência. Começa como tratamento ao rei, passa a ser empregado para fidalgos da nobreza e se estabelece num nível superior a Vossa Mercê. Vossa Alteza se especializa como tratamento ao rei no século XV.
A especialização dos vários tratamentos, nessa época, não é exclusiva a Portugal e ocorre em diversas regiões da Europa. Entretanto, na Península Ibérica, tal fenómeno é regulamentado no governo de Filipe II pelas leis das cortesías
, que estabelecem os limites do emprego de cada tratamento e são publicadas, na Espanha, em 1586 e depois, em Portugal, em 1597.
A marcação cronológica desse processo de gramaticalização das formas nomináis de tratamento é o que mais interessa no estabelecimento de correlações.
Em primeiro lugar, a forma vós como tratamento cortês universal e único, apto para ser utilizado em qualquer circunstância, mesmo em alocuções dirigidas ao rei, só esteve em Portugal em vigor até aos principios do século XV
(Cintra, 1972:46). A partir dessa época, surgiram, ao lado de vós – para a referência ao rei, depois aos fidalgos e, por fim, a qualquer pessoa – diversas formas nominais que sofreram uma acelerada degradação semântica, mas acabaram por ocupar o plano das formas de cortesia.
No século XVIII, vós, empregado para um único interlocutor, tido como traço arcaizante – fala de pessoas velhas e provincianas – praticamente cai em desuso.
Para o lugar que o vós deixou vago no sistema, apresentou-se o você (…) semelhante pelas origens às referidas fórmulas, mas muito mais evoluído dos pontos de vista semântico e fonético, estava o caminho aberto para a progressiva invasão e expansão das outras formas substantivas que levam o verbo para a 3a pessoa. (Cintra, 1972:35-38)
As causas da degradação do vós como forma de cortesia precisam ser identificadas em termos das modificações operadas no sistema. Depreende-se, na implementação dessa mudança, tanto um encaixamento social quanto lingüístico. A ampliação e especialização do emprego de formas nominais como tratamento de cortesia está intimamente ligada, num primeiro momento, à consolidação de uma sociedade dividida em grupos. Tal propagação, em um estágio inicial, foi impulsionada pela corte e a nobreza a ela ligada (ambas saídas da revolução de 1383-1385) que adotaram e degradaram o emprego inicial das formas nominais de tratamento cortês. Em termos lingüísticos,
a perda do tratamento por vós e a sua substituição por um tratamento que conduzia o verbo para 3 a pessoa foi certamente favorecida por uma tendência para simplificar, num sector em que a gramática portuguesa se apresenta particularmente complexa: a flexão verbal, extremamente rica em formas bem diferenciadas. (Cintra, 1972:36)
Redirecionando a revisão histórico-descritiva mais particularmente para o nosso objeto de estudo, resgatamos aqui a etimologia da forma gente. O substantivo gente origina-se do substantivo latino gĕns, gĕntis: raça
, família
, tribo
, o povo de um país, comarca ou cidade
. Meyer-Lübke (1935), no verbete 3.735, gens, – ĕnte faz referência a homo gentis (pessoa da família). Em Corominas (1980), encontram-se abonações desde o século XIII até o século XV, havendo predomínio do uso plural (las yentes) no espanhol.
Em português, há exemplos do substantivo, tanto no singular, quanto no plural, em textos do século XIII ao XV, como se pode ver nestes trechos extraídos das Cantigas de Santa Maria (século XIII):
A partir do século XVI, a forma singular ganha terreno, e o plural entra, gradativamente, em desuso, embora ainda se encontrem exemplos do tipo até o século XIX.
Coraminas (1980) afirma que a forma plural do substantivo, no espanhol, fica relegada ao estilo eclesiástico (el apóstol de las gentes).
Vasconcellos (1906), Huber (1986) e Nascentes (1953), ao comentarem as particularidades da concordância no português arcaico, referem-se a casos de concordância semântica, quando o sujeito, formalmente no singular – mas com significado plural ou coletivo –, leva o predicado para o plural:
Corominas (1980) referenda esse aspecto ao afirmar que tal uso era corrente na Idade Média. A concordância com o plural pode, segundo Vasconcellos (1906), ser um recurso, entre tantos outras no português arcaico, para expressar a impessoalidade do sujeito.
Aparentemente, a concordância semântica não se processava apenas com relação às propriedades de número, mas também no que se refere ao gênero, uma vez que "também gentes se liga por vezes, no sentido de homens, a predicado masculino" (Huber, 1986:280). Observe-se ainda o exemplo:
A relação com o vocábulo homem, seja funcionando como substantivo, seja como pronome indefinido, no português arcaico, é tema recorrente nas gramáticas históricas, principalmente quando se apresentam os recursos possíveis de indeterminação do sujeito. Essa transição nome → pronome é mencionada também por Said Ali (1971:116):
Têm de comum estes dois pronomes [Homem – uso comum no português primitivo até o séc. XVI e a gente – usado principalmente na linguagem da atualidade] o mostrarem visivelmente que se originaram cada qual de um substantivo; ou melhor, são nomes que assumem caráter pronominal quando usados, não já na acepção própria, mas para indicar agente vago e indeterminado.
Mais recentemente, as gramáticas normativas, que raramente explicam fenómenos já consagrados na linguagem coloquial, não apresentam uma posição coerente e única quando se referem à forma a gente. A classificação é, em geral, controvertida, pois ora consideram a gente como fórmula de representação da 1a pessoa
(Cunha & Cintra, 1985:288), ora como forma de tratamento (Bechara, 1967:117; Almeida, 1985:172), ou ainda como pronome indefinido (Said Ali, 1971:116 e Melo, 1980:122), comentários apenas em notas de rodapé.
O caráter genérico e globalizante que a gente herdou do substantivo gente levou diversos pesquisadores a analisar esse uso da forma como um recurso para indeterminar o sujeito (Rollemberg et alii, 1991 e Cunha, 1993). Entretanto, não se pode, no atual estágio evolutivo, considerar a gente como pronome indefinido, mas sim como pronome pessoal, uma vez que, como aponta Nascentes (1953:170), nas classes incultas no Brasil, o verbo deixa de estabelecer a concordância formal para fazer concordância semântica com a primeira pessoa do plural, pois a pessoa que está falando tem em mente a sua pessoa e as mais, com ela associadas
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