O Taxidermista
By Enrique Laso
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About this ebook
Enrique, um adolescente inquieto, conhece José, um velho taxidermista que vive alheado e afastado de todo o tipo de atividades. A pouco e pouco, nascerá entre os dois uma sólida amizade. O taxidermista ensina ao jovem a arte de dissecar, mas também outros aspetos não menos importantes da vida.
Rapidamente, esta amistosa relação enfrentará um obstáculo. Enrique está prestes a desvendar um obscuro segredo que José guarda ciosamente há anos...
Um romance curto, mas muito intenso que deixa um sentimento difícil de esquecer. Uma atmosfera que nos vai capturando e dois personagens que cativam leitores adolescentes e adultos. A paixão pela arte, a devoção pelo mestre e os retorcidos segredos da mente sabiamente conjugados numa história que tem fascinado leitores de todo o mundo.
Mistério, amor, arte, desenvolvimento pessoal e reflexões profundas...
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O Taxidermista - Enrique Laso
O Taxidermista
"E tem de morrer contigo o mundo teu,
A velha vida na tua e nova ordem?
Trabalham as bigornas e os cadinhos da tua alma
para o pó e para o vento?"
Antonio Machado
Não faço a menor ideia daquilo que pode impelir um jovem dos dias de hoje a querer ser taxidermista e a minha única certeza é que desde a infância tinha manifestado uma paixão desmedida pela preservação dos corpos dos insetos mais comuns. Imagino que uma explicação poética poderia ser aquela que, em certa ocasião, me foi dada pela pessoa a quem dedico este relato: somos simplesmente almas destinadas a preservar a beleza deste mundo, irremediavelmente condenado à decadência e, finalmente, à imundície
. Pode ser, sem dúvidas, apesar de a minha própria interpretação privilegiar como verdadeira motivação uma curiosidade irreprimível pelo conhecimento aprofundado no interior dos corpos e, indo mais longe, a sensação algo infantil de imenso poder, de domínio quase divino, proporcionada pela suspensão do processo de putrefação que a natureza tem reservado para todos os seres vivos.
Encontro a origem desta vocação no passado, quando tinha apenas cinco ou seis anos e me dedicava com afincada devoção a caçar libélulas que, alegre e inocentemente, pousavam na margem do rio onde costumava tomar banho no verão, durante as férias. Lembro-me de estar com um caça-borboletas a aguardar, sem o menor vislumbre de compaixão, que um daqueles pobres insetos tivesse o infortúnio de cair perto do meu reduzido espaço de manobra. Depois regressava ufano com os meus tesouros, três ou quatro libélulas, e passava o resto da tarde, até ao anoitecer, a analisá-los com paciência, a classificá-los e, por fim, a cravar-lhes uma agulha no tórax para os fixar firmemente a um grande quadro de cortiça branca.
Mas não sou eu o objeto desta narrativa. Na realidade, quero falar do meu mentor, mestre, precetor, ou como o queiram chamar. Agora que nos deixou posso falar dele, sinto-me obrigado a falar dele. Poderia fazê-lo de forma simples e breve, mas isso seria absolutamente injusto para com a pessoa que tanto me deu e que forjou de forma definitiva o meu espírito para o resto da vida. E é preciso que tu, leitor, leias estas páginas antes de conheceres o verdadeiro motivo que me levou a escrevê-las, porque de outro modo poderias ficar com uma ideia completamente errada acerca do homem mais fascinante que já conheci e que, provavelmente, algum dia conhecerei.
I
A primeira vez que cheguei a casa dele eu devia ter dezasseis ou dezassete anos e ele devia já rondar os setenta. Para mim era uma verdadeira honra que um homem do seu prestígio tivesse aceite a minha proposta de lhe fazer uma breve entrevista, a fim de concluir um trabalho de liceu que tinha intencionalmente centrado na taxidermia. Tinha-lhe telefonado na semana anterior e ele, prontamente, tinha marcado um encontro comigo para o sábado seguinte, ao meio-dia, mostrando um certo interesse. Na verdade, imagino que não fosse habitual receber telefonemas de jovens interessados em conhecer o seu trabalho mais de perto, e talvez isso tenha despertado a sua curiosidade.
Lembro-me que estávamos no início de novembro e que, apesar de na semana anterior ter chovido quase todos os dias, aquele sábado tinha amanhecido resplandecente, com um sol quente e brilhante, daqueles que tanto se agradecem no outono. Tive de apanhar um autocarro, uma vez que a casa dele ficava a cerca de dez quilómetros da cidade Ao chegar à última paragem, o condutor indicou-me que deveria subir a pronunciada encosta que levava ao cemitério, de onde irrompiam as montanhas, e que a casa que procurava era a penúltima a contar do campo-santo. Subi a ladeira com um andar pesado, enquanto tentava escolher as minhas primeiras palavras para causar uma boa impressão e espreitava para o interior das habitações unifamiliares dispersas por ambos os lados da mal asfaltada estrada. Estranhei não ver ninguém e, por momentos, tive a sensação de estar a entrar num terreno baldio onde os homens tinham deixado de existir. Pouco a pouco o desassossego foi-me invadindo e só a visão de uma placa reluzente com bonitas letras gravadas fez desaparecer os meus medos num abrir e fechar de olhos.
José Vaquerizo Yepes
Taxidermista
A placa estava firmemente soldada a uma cerca pintada de verde que rodeava a casa: uma construção sólida, seguramente com uns quarenta anos de existência, cujos grossos muros mostravam um certo descuido, pois a cal que os devia rebocar estaba a desfazer-se em algumas zonas, atacada pela humidade. Não encontrei uma campainha à qual pudesse tocar e, por isso, passei um bom bocado de tempo em frente à porta gradeada até descobrir que não tinha qualquer tipo de chave ou cadeado. Tentei abri-la com o maior cuidado, mas as dobradiças estavam um pouco enferrujadas e a porta apenas cedia à força de empurrões para a frente seguidos de curtos puxões para trás. Foi então que pude aperceber-me do precário mecanismo que tinha sido concebido como alerta para a presença de estranhos: um comprido cabo de arame grosso unia a cancela ao extremo superior de uma campainha que começava a tocar, forçada pelos movimentos bruscos que eram precisos fazer para atravessar a vedação. Assustado pela estridência do rudimentar sinal de aviso, fiquei petrificado, apenas com um pé no interior daquela propriedade alheia que tinha invadido sem autorização. Não tardou a surgir uma mulher de estatura média, entroncada, de movimentos torpes e algo mecânicos que, um pouco aborrecida, me perguntou bruscamente a partir de umas escadas que conduziam à habitação:
- O que queres? Vens-nos incomodar?
Demorei a responder, emudecido pela surpresa e lamentando que a primeira impressão que iria causar fosse aquela. Estive tentado a correr pela encosta abaixo e a nunca mais regressar, inventando uma série de respostas arquetípicas para o questionário que devia apresentar na semana seguinte mas, nesse momento, aquela mulherona que, inicialmente, me tinha parecido severa e rude, lançou-me um cálido sorriso.
- Tinha-me esquecido... Tu deves ser o jovem estudante de quem don José está à espera, certo? – disse-me, suavizando significativamente o seu tom de voz.
- Sim...sou eu – respondi, gaguejando.
- Então vá, entra e não fiques aí pasmado.
Segui a mulher, que circundou a casa através de um estreito caminho de gravilha delimitado, à direita, por um muro da habitação e, à esquerda, por um jardim um pouco selvagem no qual cresciam árvores de fruto como laranjeiras, limoeiros, nespereiras e até uma alta figueira, que dava uma generosa sombra sobre uma pequena piscina de águas esverdeadas nas quais flutuavam inúmeras folhas secas.
- Só limpamos a piscina no verão. Gostaria de a esvaziar, mas don José diz-me que a prefere assim... - comentou a mulher, que se tinha informado sobre as minhas pesquisas.
Chegámos ao limite da casa e, nesse momento, virámos ligeiramente à direita, contornando-a. Fiquei surpreendido, pois o lote abria-se para um espaço com uns mil metros quadrados, escondido por trás da habitação, no qual existiam diversos caminhos estreitos de gravilha que penetravam no terreno, até ao fundo da vedação, circundando arbustos e altíssimos pinheiros. Parecia que tinham querido trazer para ali um pedacinho do monte que irrompia apenas uns metros mais acima ou, pelo contrário, que a habitação se tinha levantado do interior dele, sendo o único elemento dissonante no seio da agreste natureza.
- Que bonito – afirmei, quase sem pensar.
A mulher lançou-me um olhar inclassificável, como se o meu comentário a tivesse surpreendido, e continuou a caminhar com aquele andar mecânico, que dava a impressão de se dever a uma impossibilidade de fletir corretamente os joelhos. Então pude ver que as árvores rodeavam uma área livre, revestida com mosaicos hidráulicos, no centro da qual tinha sido colocada uma bonita fonte de mármore da qual emanava um discreto jorro de água. Junto desta amontoavam-se algumas cadeiras reclináveis e um par de pequenas mesas de ferro forjado. Numa dessas cadeiras descansava um homem que, apesar de segurar um jornal em frente aos olhos, parecia dormitar. Parámos a cerca de cinco metros dele.
- Don José, don José, chegou o jovem por quem esperava.
O homem levantou a cabeça, coberta por um simples gorro de tecido castanho-dourado que apenas deixava adivinhar um cabelo revolto e grisalho, abundante apesar da idade. Pousou muito lentamente o jornal em cima de umas das pequenas mesas e dirigiu-me um olhar amável e cheio de curiosidade. Tinha os olhos pequenos, mas de um azul tão intenso que pareciam inundar o resto do seu rosto, enrrugado e bronzeado.
- És o Enrique?
- Sim, senhor – assenti, lacónico e nervoso.
- Está bem, senta-te, por favor. Tinha vontade de te conhecer – disse, fazendo uma longa pausa. Depois olhou para o céu, como se se tentasse lembrar de algo-. Claro...Queres tomar alguma coisa? Café, chá, limonada...
- Não queria incomodar – respondi, enquanto me sentava.
- Oh...Não incomodas nada. Por favor...
- Então pode ser uma limonada.
- Adela, peço-te que nos prepares uma boa limonada e que nos tragas também alguns bolos.
Adela retirou-se, não sem antes me piscar um olho, num gesto de simpática confiança que, apesar de não saber interpretar, tenho de reconhecer que me reconfortou.
- É curioso, não é? – disse don José, quando Adela já tinha desaparecido para o interior da casa.
- Desculpe, o que é curioso?
- Que a taxidermia te interesse. Tinha a impressão que já não interessava a ninguém, muito menos a uma pessoa tão jovem como tu.
- Bem, senhor, para ser sincero consigo...
- Não, não, não... - interrompeu, agitando as mãos no ar -. Por favor, nada de formalismos. Chama-me simplesmente José, prefiro. Eu tratar-te-ei por Enrique. Creio que será mais cómodo para ambos.
José tinha