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Contos para passar o tempo
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Contos para passar o tempo
Ebook59 pages34 minutes

Contos para passar o tempo

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About this ebook

Este livro apresenta 18 pequenos contos escritos entre 1980 e 1983. São contos que tematizam, através de uma linguagem poética, o cotidiano de personagens fictícios, embora muitos tenham surgido de personagens reais.

LanguagePortuguês
Release dateOct 8, 2017
ISBN9781370098668
Contos para passar o tempo
Author

Hilda Magalhães

Hilda Magalhães é uma pesquisadora brasileira.Doutora em Teoria da Literatura pela UFRJ, com pós-doutoramento na Université de Paris III e na EHESS(França), é autora de dezenas de obras na área de Literatura.

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    Contos para passar o tempo - Hilda Magalhães

    TESSITURA

    Naquela manhã, o sol quente, a rua deserta, se quisessem poderiam tomar o caminho do infinito. A força do dia e da luz era tamanha que parecia não ter fim. Os dentes de Ulisses eram bem mais brancos que marfim e deles vieram duas brochuras para prender o manto de deusa e o cetro de rainha. Ulisses mais doce que a ambrosia. O cavalo alado do rei exalava faíscas para todos os lados.

    Três dias depois, Ulisses era ainda terno, mas já distante. Por ele, com ele, empreendera o horizonte, mas agora o mar o levava para os monstros e as ninfas e ela teria que ficar para sempre enferrujada numa cidade enferrujada, porque aquele reino já estava irremediavelmente velho. Uma tarde chuvosa, triste e inesquecível. De mãos dadas, não podiam sentir a chuva e nem as lágrimas. Aquela tarde era um choque para ambos e, se não andassem, talvez não pudessem suportar o peso do mar.

    Na esquina, olharam-se novamente. Houve um beijo, teriam mesmo se beijado? Um forte gosto de sal invadindo a boca e as narinas. Ulisses marinheiro ainda balbuciou, balbuciou… mas chovia e os cabelos da mulher estavam entristecidos. E quando já não podiam mais ver, as mãos afrouxaram e tombaram, vazias. Ulisses, Ulisses, de barquinho de papel, o mundo, até onde ele vai? A chuva caía de mansinho encharcando os cabelos da mulher, o trançado inútil, desolamento de mar sem ilhas.

    E durante todo o ano ela aprendeu a tessitura e então tece. Tece o mar e quando Ulisses rei aparece no noticiário das oito ela ainda está tecendo. Tece um e dois filhos, o dia após a noite, tece. A comida de René, a rua infinita, tece. Não há nada mais doído do que o tempo que se vai, a letra de chumbo no meio do papel. Mas precisa tecer. Tece. A tessitura do escuro da noite. Tece. Tece a tinta, tece a hora. O cotidiano, a plebe e o vinho. Tece. Para não ser tão só, tece. Ulisses é rei e terno. Tece. Muitos sustos, um dia o portão bem que bateu, mas era mentira. Tece.

    René, sem o brilho dos deuses, chega com um ramalhete de malmequer. E ela tece um tabuleiro branco, dia e noite, noite e dia. As crianças chamam-na para curar-lhes os joelhos ralados, desentortar a bicicleta e comprar-lhes chicletes, também precisa tecer o tecido delas. Tece. Poderia entrar para a política, fotografar um nu ou pedir o divórcio, mas tem de tecer e esperar as rugas virem uma a uma, um tecido sempre igual para manter os olhos secos. Tece. Quase madrugada, desmancha-se em prantos por causa da cor da lua, ou foi o redondo que desandou? Tece. Em cada ponto, uma história, sempre a mesma, o mesmo Sísifo, o sentido suspenso no ar, a casa insuportavelmente vazia. Então, tece.

    René é quase rei. Uma rima imperfeita, não a solução.

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