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O Mito de Viriato na Literatura Portuguesa
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O Mito de Viriato na Literatura Portuguesa

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O mito de Viriato insere-se na tradição de se acreditar que há uma relação de continuidade entre os Portugueses e os Lusitanos. Estes são considerados por etnólogos e historiadores um conjunto de povos mais ou menos homogéneos na língua e nos costumes que habitavam uma grande parte do território atual português quando os Romanos iniciaram a conquista da Península Ibérica. Viriato já não é, como era há pouco mais de cem anos, apanágio do conhecimento de alguns. Graças à educação escolar, passou a pertencer ao imaginário de todos os Portugueses. Resta saber se, com as sucessivas reformas do ensino, com o crescente desinteresse pela leitura e com a gradual deterioração da identidade cultural, o rasto não se perderá nos mais novos.

LanguagePortuguês
PublisherEd. Vercial
Release dateJan 29, 2018
ISBN9789898392046
O Mito de Viriato na Literatura Portuguesa
Author

José Barbosa Machado

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    O Mito de Viriato na Literatura Portuguesa - José Barbosa Machado

    INTRODUÇÃO

    Hoje por tudo e por nada se fala de mito a ponto de o termo se ter banalizado. É o uso e abuso do termo que faz com que seja difícil encontrar com exatidão uma definição abrangente.

    René Wellek e Austin Warren, na obra Teoria da Literatura, concordam que o termo mito «não é fácil de precisar: atualmente indica uma área de significado. Ouvimos falar de pintores e poetas em busca de uma mitologia; ouvimos falar do mito do progresso e da democracia. Ouvimos falar de O Regresso do Mito na Literatura Mundial. Todavia, ouvimos também dizer que uma pessoa não pode originar um mito, nem decidir acreditar num mito» (Wellek e Warren, 1976: 237).

    Num mundo em que o racional e o tecnológico são vitais para a sobrevivência económica das sociedades modernas, a problemática do mito tornou-se uma verdadeira obsessão para filósofos, antropólogos, psicólogos e escritores. Quanto mais se aperfeiçoam novas tecnologias, se descobrem os segredos da Natureza, se inventam formas de estar e de entender, mais o homem se problematiza e procura o seu lugar no universo. Muitos são os autores que têm teorizado sobre o mito e nunca como hoje houve tantas ideias, conceções, interpretações, tentativas de explicação a serem discutidas.

    A reflexão considerada científica da mitologia só começou verdadeiramente no século XIX. Ph. Buttmann e K. O. Müller foram os primeiros a tomar consciência da importância do estudo do mito. Reagiram contra a ideia racionalista da época representada, entre outros, por Dupuis, segundo a qual os mitos pertenciam «unicamente ao erro e à impostura» (apud Jesi, 1977: 60), e defendiam a doutrina do mito como manifestação de verdade. Ph. Buttmann, na sua obra Mythologus publicada em 1828, «reconhecia na mitologia a forma de expressão, peculiar porque espontânea, não intencionalmente elaborada, de uma fase antiquíssima da cultura humana: os homens de então teriam exprimido na mitologia, com toda a espontaneidade, o que viam e sabiam» (Jesi, 1977: 56). K. O. Müller identifica a essência da mitologia com o pensar mitológico «que une indissociavelmente conteúdo e forma, material e arte de modelá-lo» (Ibid.: 57).

    Buttmann e K. O. Müller subdividiram a orientação do pensamento em relação à mitologia: «Aceitar ou explicar; ou melhor, estudar o material mitológico com a consciência de que o estudo deve em última instância promover a aceitação da mitologia, o beber na fonte, segundo palavras de Kerényi, ou então, com a consciência de que o estudo deve fazer-se através da explicação das razões que levaram o material mitológico a plasmar-se em determinadas formas» (Ibid.: 79).

    Furio Jesi define em dois pontos os contributos de Buttmann e de K. O. Müller para os estudos da mitologia que viriam a desenvolver-se no século XX: em primeiro lugar, «Buttmann deixou como herança aos estudiosos posteriores a ele (como refere K. Kerényi em Die antike Religion) a consciência de que os mitos originalmente pulularam e circularam em quantidade ilimitada, e que era necessário procurar compreender cada um dos mitologemas como unidade com um sentido próprio» (Ibid.: 58). Em segundo lugar, «K. O. Müller foi mais além ao afirmar de modo bastante claro (Prolegomena) que é mítico pensar indissoluvelmente unidos a imagem e o seu significado. Deu, por conseguinte, um contributo fundamental para a superação da exegese puramente alegórica do material mitológico» (Ibid.: 58-59).

    Wilamovitz, o principal defensor do método histórico para o estudo da mitologia, entendia o mito «como efabulação que nunca representou a verdade» (apud Jesi, 1977: 76). Para ele, «o historiador das religiões enfrenta (relativas) verdades, enquanto o estudioso da mitologia se ocupa de fábulas, não-verdade, histórias que os homens contam» (Ibid.: 76). A sua visão do mito é muito estreita. Na viragem do século XIX para o século XX, «o peso do método histórico da filosofia alemã foi determinante e manteve relativamente na sombra a via de abordagem da mitologia que, tendo nascido como a ciência histórica do mito da crise pós-iluminista da relação com o Antigo, teria resultado da negação da legitimidade de qualquer conhecimento historicista do material mitológico» (Ibid.: 79).

    Victor Jabouille entende que «o mito, enquanto narrativa tradicional, mantém, ao longo dos tempos, um valor paradigmático, atualizado em cada realização singular» (Jabouille, 1993: 21). Ele surge como «o reflexo de cada época e, desse modo, afirma-se em contínua atualização» (Ibid.: 23). A mitologia, por sua vez, «pode ser encarada como um conjunto maior ou menor de mitos ou como o estudo desses mitos. Perdida a primitiva funcionalidade oral e a sua eficácia como veículo cultural, criativo e difusor, a mitologia, divulgada através de cristalizados processos de fixação escrita, serve a literatura como tema e como motivo de enriquecimento estético, como meio de materialização referencial, como elemento criativo e divulgador» (Ibid.: 41). O mito, para este ensaísta, «diz respeito àquilo que é intrínseco, essencial e definidor no homem» (Ibid.: 44).

    António Quadros foi, em Portugal, um dos autores que no século XX mais se debruçou sobre o mito. Na Introdução à Filosofia da História, explica que «a psique humana, como a analisa Jung, é uma incessante criadora de mitos. Sob o ponto de vista psicológico, a atividade mitogénica (atividade por certo superior, própria dos poetas e dos artistas) exerce uma importante função compensatória» (Quadros, 1982a: 215).

    Na obra Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, António Quadros segue de perto a definição que Mircea Eliade dá de mito: «o mito é uma história exemplar e simbólica que, pelos atos dos seus protagonistas e pelo sentido do seu enredo, testemunha de uma antiquíssima experiência humana, mais profunda, de certo modo, do que a imagem científica, moderna e oficial das culturas; é a arca ou o arcano de uma indizível e longa revelação ôntica; é a codificada suma de intuições e de iluminações, de poemas e de filosofemas espontâneos ou apreendidos na vasta gama que vai das formas de cultura e aculturação à inspiração pessoal do transmissor ou do rapsodo; e é o que traz ao presente os segredos antigos e restantes de velhas civilizações e culturas» (Quadros, 1983: 116). O mito exprime «o enigma de existir e ser, subjacente às próprias interpretações mais afirmativamente antimíticas. O mito é consubstancial aos comportamentos humanos – e negá-lo ou esquecê-lo tem apenas como consequências, as mais das vezes, conferir-lhe uma primazia vital, tanto mais imperiosa quanto é inconsciente» (Ibid.: 169).

    Claude Lévi-Strauss, em Mito e Significado, afirma que «as histórias de caráter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado, absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte» (Lévi-Strauss, 1989: 113). Na verdade, a ciência e a técnica não conseguiram erradicar o pensamento mítico das sociedades atuais. Criaram-se novos mitos, renovaram-se outros. Embora o mecanismo psíquico seja semelhante, a mitologia moderna diferencia-se das mitologias antigas pelo seu imediatismo. Descobrimos duas formas: os mitos da gente famosa e os mitos ligados a objetos e ideias.

    No primeiro setor, temos gente ligada ao mundo do espetáculo (cinema, TV, música, desporto, artes). Veja-se o impacto público dos sex-symbols como Marilyn Monroe (1926-1962) e James Dean (1931-1955). Ligado ao mundo da política, sobressaem nomes como o de John Kennedy, Lenine e Hitler. – É interessante verificar que quase todos são construídos pelos meios de comunicação social. – Mitos de heróis são, por exemplo, o homem que subiu pela primeira vez o Everest, o homem que pisou pela primeira vez a lua, os inventores, as personagens de ficção que se tornaram parte do imaginário coletivo (Super Homem, Batman, Tintin, Asterix, etc.). Os pintores e os escritores, como Van Gogh, Picasso, Kafka ou Hemingway, transformam-se igualmente em mitos no momento em que se tornam famosos internacionalmente. Seria interessante estudar até que ponto Bocage, verbi gratia, está enraizado no imaginário popular português. É um facto que a grande parte da gente do povo, contando as suas anedotas de libertino, desconhece que ele foi um poeta.

    Os mitos modernos relacionados com pessoas andam à volta de figuras famosas, do domínio público. Verifica-se, todavia, o predomínio das figuras norte-americanas devido ao poder de influência sobre os restantes países da sua música, do seu cinema, dos programas televisivos e da sua importância no contexto da política internacional.

    Mitos que remetem para objetos ou ideias são, entre outros, o mito do dinheiro (ter muito, ser rico), geralmente ligado ao mito das aparências e do poder; o mito da moda (as coisas mudam tão rapidamente que não se tem tempo de gastar o que se compra); o mito comunista e o mito capitalista.

    Victor Jabouille entende que «o mito é uma presença constante na vida: deixou de pertencer à esfera exclusiva dos deuses e dos heróis e passou a impregnar o nosso quotidiano» (Jabouille, 1989: 7). O mito era inicialmente apanágio do panteão greco-romano, estendendo-se, com o desenvolver da etnologia, ao panteão dos chamados povos primitivos. Atualmente, «é vulgar os meios de comunicação de massas utilizarem o vocábulo referindo um jogador de futebol, uma atriz de cinema ou um político. Marilyn Monroe, Elvis Presley, Mick Jaegger, Eusébio ou, até, Marx, são os heróis desta mitologia. Mas o acontecimento, simples recordação de uma narrativa heroica, também pode ser assim qualificado. E o mito é, então, equivalente a façanha, ato corajoso ou atitude invulgar. Inicialmente história de um ser divino, o mito banalizou-se e desceu à rua, ao nível de todos nós. Mas não o esqueçamos, o mito, na origem, fala grego» (Ibid.).

    O mito, «reinventado ou, simplesmente, recordado, faz parte do nosso quotidiano como realidade ou, apenas, como referente. Mas o que é, de facto o mito?» (Jabouille, 1992: XX).

    Para Roger Caillois, um dos aspetos mais desconcertantes do problema dos mitos releva do facto de eles terem respondido «a necessidades humanas suficientemente essenciais», sendo «irrisório supor que desapareceram» (Caillois, 1980: 113). Na sociedade atual «é difícil ver-se de que se satisfazem tais necessidades, por que é assegurada a função do mito. Se se tomar o mito como categoria do imaginário, é-se imediatamente tentado, para responder a esta questão, a designar a literatura. Contudo, impõem-se consideráveis precauções. Se existe de facto um valor do mito tomado como tal, não é, de modo algum, de ordem estética» (Ibid.).

    René Wellek e Austin Warren consideram que há nas sociedades modernas um apelo constante ao mito. Este apelo depende de vários fatores que estão intimamente ligados à literatura e, por sua vez, são estudados pela teoria literária. Tais fatores são «a imagem ou quadro, o social, o sobrenatural (ou não naturalista ou irracional), a narrativa ou história, o arquétipo ou universal, a representação simbólica dos nossos ideais atemporais como eventos ocorridos no tempo, o programático ou escatológico, o místico. Adentro do pensamento contemporâneo, o apelo ao mito pode centrar-se em qualquer destes motivos, estendendo-se a outros» (Wellek e Warren, 1976: 236).

    Roland Barthes, no início do capítulo «O Mito, Hoje» da obra Mitologias, coloca uma questão, avançando em seguida uma resposta: «O que é um mito, hoje? Vou dar, desde já, uma resposta prévia muito simples, que está perfeitamente de acordo com a etimologia: o mito é uma fala» (Barthes, 1988: 181). É um sistema de comunicação complexo, não podendo, por isso, ser «um objeto, um conceito ou uma ideia; é um modo de significação, uma forma» (Ibid.). Sendo o mito uma fala, «tudo o que é passível de um discurso pode ser um mito. Este não se define pelo objeto da sua mensagem mas pela maneira como o enuncia: se há limites formais para o mito, não os há substanciais» (Ibid.).

    Neste âmbito, tudo pode ser considerado mito, uma vez que «qualquer objeto do mundo pode passar de uma existência fechada, muda a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade» (Ibid.). Daí o título do seu livro: Mitologias. Roland Barthes apresenta como mitos modernos a globalização do nome de certos atores de cinema, a publicidade, os marcianos, os brinquedos, a volta à França em bicicleta, uma marca de automóveis, a astrologia e muitos outros.

    Os mitos são contingentes: «podem conceber-se mitos muito antigos, mas não os há eternos, porque é a história humana que faz passar o real ao estado de fala, é ela e só ela que regula a vida e a morte da linguagem mítica. Longínqua ou não, a mitologia não pode ter senão um fundamento histórico, pois o mito é uma fala escolhida pela história: não poderia surgir da natureza das coisas» (Ibid.: 182).

    Diariamente e em todas as manifestações sociais e individuais, «o homem é detido pelos mitos, reenviado por eles a esse protótipo imóvel que vive em seu lugar, o abafa à maneira de um imenso parasita interno, e traça à sua atividade os limites estreitos em que lhe é permitido sofrer sem remexer o mundo» (Ibid.: 220).

    Hans-Georg Gadamer, na sua obra Verdade e Método, põe o problema da interpretação dos mitos. Considera que, no centro da hermenêutica histórica, surge um tema que até há pouco tempo ocupara um problemático posto fronteiriço: o tema do mito. Diz Gadamer que este é o mais obscuro de todos os problemas da metodologia histórica. Pergunta: «Como interpretar os mitos cientificamente? Qual é o conceito óbvio e fecundo que é preciso reconhecer neles? O sentido dos mitos e dos contos é o mais profundo. Que critério emprega a sua interpretação? Não se pressente aqui que não há um método para a interpretação de mitos e contos? E não significa isso, consequentemente, que somos incapazes de interpretar os mitos porque são estes os que nos interpretam a nós?» (Gadamer, 1992: 41).

    Para este hermeneuta, são os mitos que dominam o homem, que conhecem tudo aquilo que fala «no meio da escuridão» (Ibid.). Os mitos difundem uma espécie de «sabedoria primitiva que está no começo de todas as coisas, e sem dúvida possuem uma profundeza histórica própria. O espírito iniciado no segredo não é o espírito da nossa razão histórica. Por isso estamos tão indefesos como seres históricos, perante algo que as crianças sentem como seu. Contudo, também a nossa razão ilustrada continua ainda sob o poder do mito» (Ibid.). A história espiritual da humanidade não é, para Gadamer, um processo de dessacralização do mundo nem a dissolução do mito pelo racional. A razão humana não se compreende a si mesma e muito menos compreende a realidade mítica. O mito só será entendido para lá da fundamentação racional.

    José Marinho, filósofo português que meditou sobre a essência do mito, afirma que «o mito está antes do templo e além do tempo, ou marca, pelo menos, a relação daquilo que na própria Natureza ou na Alma persiste além do tempo» (Marinho, 1986: 15). Ele «vem da profundidade da Natureza, como da profundidade da Alma. E a consciência é mero espelho, em que ele, ora se concentra, ora se difrata» (Ibid.). «O mito é o sinal do que estava implícito ao ser e ao saber tais como outros homens o conceberam, ele é a advertência do que permanece implícito» (Ibid.: 9-10).

    Fernando Pessoa, no poema da Mensagem «Ulisses», definiu-o pelo paradoxo: «O mito é o nada que é tudo» (Pessoa, 1988: 25). Embora as aventuras de Ulisses tenham passado e os deuses já não desçam à terra a conviver com os homens, embora o tempo em que os animais falavam não passe de memória mágica longínqua, vivemos, todavia, rodeados pelo mito. O filme que vemos, as personagens públicas que admiramos, os heróis de que invejamos a coragem, o romance, o poema que lemos pertencem ao mundo que é governado pelo mito.

    I – VIRIATO COMO MITO LITERÁRIO

    1. Viriato como personagem histórica

    Roland Barthes entende que o mito «transforma a história em natureza» (Barthes, 1988: 198). Há uma metamorfização da história por parte do mito. Com efeito, «o que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido, remontando tão longe quanto seja necessário, pela maneira como os homens o produziram ou utilizaram; e o que o mito restitui é uma imagem natural deste real» (Ibid.: 209-210). Para este pensador, é em dois aspetos que o mito se presta à história: «pela sua forma, que é só relativamente motivada; pelo seu conceito, que é por natureza histórico. Pode, pois imaginar-se um estado diacrónico dos mitos, quer os submetamos a uma retrospeção (e trata-se, então, de fundamentar uma mitologia histórica) quer sigamos certos mitos do passado até à forma atual (e trata-se, então, de fazer história prospetiva)» (Ibid.: 205).

    Mircea Eliade fala de uma anamnesis historiográfica. Em Aspetos do Mito, considera que «a anamnesis historiográfica do mundo ocidental está apenas na sua fase inicial. É necessário aguardar, pelo menos, algumas gerações para avaliar as suas repercussões culturais» (Eliade, 1986: 117). Essa anamnesis prolonga de certo modo «a valorização religiosa da memória e do esquecimento» (Ibid.), já não se tratando, todavia, de mitos ou de exercícios religiosos. Subsiste, no entanto, um elemento comum: «a importância da rememoração exata e total do passado. Rememoração dos acontecimentos míticos, nas sociedades tradicionais; rememoração de tudo o que se passou no Tempo histórico, no Ocidente moderno. A diferença é demasiado evidente para ser necessário insistir. Mas os dois tipos de anamnesis historiográfica desembocam também num Tempo primordial, o Tempo em que os homens estabeleceram os seus comportamentos culturais, acreditando que esses comportamentos lhes eram revelados por Seres Sobrenaturais» (Ibid.).

    Para Mircea Eliade, «os mitos recordam constantemente que acontecimentos grandiosos tiveram lugar na Terra, e que esse passado glorioso é, em parte, recuperável. A imitação dos gestos paradigmáticos tem também um aspeto positivo: o rito leva o homem a transcender os seus limites, obriga-o a situar-se ao lado dos Deuses e dos Heróis míticos, a fim de poder realizar os seus atos» (Ibid.: 123).

    Numa outra obra, O Mito do Eterno Retorno, Eliade diz que «o guerreiro, seja ele qual for, imita um herói e procura aproximar-se o mais possível desse modelo arquetípico» (Eliade, 1978: 51). E pergunta-se: «Em que medida a memória coletiva recorda um acontecimento histórico?» (Ibid.). Através da metamorfose: «De certo modo assiste-se à metamorfose de um personagem histórico em Herói mítico» (Ibid.: 57). Para ele, a historicidade das personagens da poesia épica «não resiste durante muito tempo à ação corrosiva da mitificação. Seja qual for a sua importância, o acontecimento histórico em si só perdura na memória popular e a sua recordação só inspira a imaginação poética na medida em que esse acontecimento histórico se aproxima de um modelo mítico» (Ibid.).

    Concorda com Chadwick quando este afirma: «Myth is the last – not the first – stage in the development of a hero» (apud Eliade, 1978: 58). No entender de Mircea Eliade, a recordação de um acontecimento ou de uma personagem histórica «não perdura por mais de dois ou três séculos na memória popular. Isso deve-se ao facto de a memória popular ter dificuldade em reter acontecimentos individuais e figuras autênticas. Ela recorre a outras estruturas: categorias em vez de acontecimentos, arquétipos em vez de personagens históricas. A personagem histórica é assimilada ao modelo mítico (herói, etc.) e o acontecimento é integrado na categoria das ações míticas» (Eliade, 1978: 58). Essa memória modifica-se ao fim de dois ou três séculos para «poder participar no modelo da mentalidade arcaica, que não pode aceitar o individual e só conserva o exemplar» (Ibid.: 59). É nesse âmbito que Eliade encara a memória coletiva como a-histórica.

    Claude Lévi-Strauss, em Mito e Significado, refere que «nas nossas sociedades, a História substitui a Mitologia e desempenha a mesma função, já que para as sociedades sem escrita e sem arquivos a Mitologia tem por finalidade assegurar, com um alto grau de certeza – a certeza completa é obviamente impossível –, que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao passado» (Lévi-Strauss, 1989: 63).

    António Quadros, numa posição ainda mais polarizadora, diz que o mito se opõe à história, «em primeiro lugar pelo seu transcendentalismo radical, em segundo lugar pelo seu irrealismo e antinaturalismo, em terceiro lugar pelo seu circularismo e pela sua conceção de tempo e espaço sagrados; tempo quantificado e espaço mensurável dependem fundamentalmente de um

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