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Braços Quebrados
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Braços Quebrados

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About this ebook

Braços Quebrados conta a história de um jovem que fugiu de Timor após a invasão indonésia e se refugiou em Portugal. As recordações da família, do cheiro a sândalo e a tamarindo, a eucalipto branco e a maresia, levam-no a escrever um diário. Esse diário depressa ultrapassa a intenção inicial para se tornar num companheiro a quem o autor confia os sentimentos mais íntimos, os pesadelos que o perseguem, a relação com os outros, os amores e as desilusões, a angústia, o medo e a alegria. Retrato de Timor pós-colonial, por ele perpassam a guerra civil, a invasão, a luta da Resistência nas montanhas, a prisão de Xanana, o massacre no cemitério de Santa Cruz, o referendo, a reacção das milícias e do exército indonésio, a força de paz da ONU e a vitória da esperança.

LanguagePortuguês
PublisherEd. Vercial
Release dateJan 30, 2018
ISBN9789729903861
Braços Quebrados
Author

José Leon Machado

José Leon Machado nasceu em Braga no dia 25 de Novembro de 1965. Estudou na Escola Secundária Sá de Miranda e licenciou-se em Humanidades pela Faculdade de Filosofia de Braga. Frequentou o mestrado na Universidade do Minho, tendo-o concluído com uma dissertação sobre literatura comparada. Actualmente, é Professor Auxiliar do Departamento de Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde se doutorou em Linguística Portuguesa. Tem colaborado em vários jornais e revistas com crónicas, contos e artigos de crítica literária. A par do seu trabalho de investigação e ensino, tem-se dedicado à escrita literária, especialmente à ficção. Influenciado pelos autores clássicos greco-latinos e pelos autores anglo-saxónicos, a sua escrita é simples e concisa, afastando-se em larga medida da escrita de grande parte dos autores portugueses actuais, que considera, segundo uma entrevista recente, «na sua maioria ou barrocamente ilegíveis com um público constituído por meia dúzia de iluminados, ou bacocamente amorfos com um público mal formado por um analfabetismo de séculos.»

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    Braços Quebrados - José Leon Machado

    CADERNO I

    7 de dezembro de 1985 – Tenho os dedos inchados pelo frio. Não consigo habituar-me ao inverno desta terra e já passaram nove anos desde que cheguei. Os padres não permitem aquecedores porque a instalação elétrica, dizem, é antiga e não aguenta. No entanto, eles têm aquecimento no quarto. Mas quem passou pelo que eu passei também não se pode queixar muito.

    O padre Anselmo aconselhou-me a escrever o diário. Diz que desta forma melhoro o meu português escrito, que não é grande coisa. Eu escrevo, não tanto por causa disso, mas porque não sei a quem contar muitas coisas que me vão pela cabeça. Os outros seminaristas são bons companheiros e, desde que vim para aqui, têm sido muito simpáticos comigo e com os restantes timorenses. Mas eles não compreendem. Eles não viram o que nós vimos. E por mais que eu o conte, nunca deixarei de pensar nisso. Talvez este diário me ajude a dormir melhor. À noite acordo – como é que se diz? – subitamente, com um aperto na garganta e apetece-me gritar. Mas não consigo. Também seria mau, pois alarmaria os companheiros e os padres não ficariam nada satisfeitos.

    Comprei um caderno para escrever. Tem uma capa verde. Eu gosto do verde. É a cor da minha terra e além disso põe-me mais calmo, embora eu não seja agitado por natureza. Os meus companheiros até me gozam porque acham que eu sou um calmeirão e que nunca me aborreço com nada. Eu acho que sou assim porque fiquei insensível. Desde que vi o meu pai a ser morto pelos indonésios, fiquei sem reação às coisas. Pode-me cair o céu a um centímetro do nariz que eu nem pestanejo. Mas não quero falar disso agora. O caderno tem cento e oitenta páginas. Já as numerei. Escrevi o número no canto inferior direito e assinei ao lado. Se me roubarem uma folha, descubro logo. Não que eu desconfie que alguém me vá roubar alguma coisa. Os companheiros são gente decente e num seminário onde os rapazes se preparam para o sacerdócio não há, em princípio, ladrões. Mas pode haver sempre um espertinho a querer pregar uma partida. Porque, enfim, não passamos a vida a rezar e a estudar, como muita gente pensa.

    O Rocha diz que eu rezo mais do que devia. Como se rezar demais fosse um mal. Quando rezo, sinto-me menos triste. Imagino que estou na minha terra, dentro da capela feita de bambu e folhas de palmeira arenga com um crucifixo ao centro e uma Senhora de Fátima do lado. Foi ali que aprendi a catequese. Ia lá uma irmã todas as semanas ensinar as crianças. Mas as pessoas gostavam tanto dela, que toda a gente ia, os novos e os velhos. Padre só uma vez por mês. Celebrava a missa, batizava os que tinham nascido entretanto e casava os jovens. Para os mortos não havia padre. Era o sacristão, que por acaso era o meu pai, que dizia umas orações, depois de ele próprio abrir a cova numa encosta com vista para o mar. A família do defunto pagava-lhe o serviço com arroz. Mas ele quase nunca aceitava. Era bom homem, o meu pai.

    A minha mãe dizia que ele era temente a Deus e tinha muita pena de não ter ido estudar para o seminário em Dare. Mas os meus avós eram pescadores pobres e precisavam dele. Por ali ficou e, se não fosse o seu esforço, a gente da terra ter-se-ia entregado de novo aos deuses pagãos. O meu pai contava muita vez que a família sempre fora cristã. Já o bisavô, que morreu muito velho, o era, e esse dizia que o avô o tinha sido. O bisavô contava de um português que por ali ficara casando com uma do nosso povo. Foi ele que deu o apelido Noronha à família. Contava também que tinha sido uma pessoa importante em Lisboa, mas que cometera um crime e fora condenado ao degredo. Um dia passou na nossa aldeia, viu uma rapariga muito bela e pediu-a ao pai. O pai da rapariga não queria aceitar. Mas como ele não lhe largava a porta, cedeu. Terá começado com ele a história cristã da nossa família e da nossa aldeia.

    Mas do que eu queria falar era da fé do meu pai. Ele tinha uma Bíblia muito coçada que costumava ler aos domingos à tarde. Não sei onde a arranjou. Estava em português e foi por ali que ele me ensinou as primeiras letras. Sabia muitas passagens e gostava de contá-las de memória. Um dos livros de que ele mais gostava era o do profeta Isaías. Foi por isso que me pôs esse nome. Dizia ele que o profeta anunciou o Salvador e a paz para o mundo. Pôs-me pois esse nome, embora a minha mãe preferisse um mais simples, como Acúrcio, ou Olandino. Mas ele teimou e eu até nem desgosto.

    Quando eu fiz sete anos, deixou-me frequentar a escola, que ficava alguns quilómetros afastada da aldeia. Ia e vinha todos os dias a pé. Felizmente o frio não era tanto como aqui e eu ia com muita vontade de aprender. O professor, quando eu fiz dez anos, falou com o meu pai e disse-lhe que eu era um miúdo inteligente e seria uma pena não poder continuar os estudos. O meu pai ficou a pensar naquilo. Para eu continuar os estudos, tinha de ir para Díli. E ele não tinha dinheiro para me pôr a estudar numa escola. Numa visita da irmã missionária à nossa capela, pôs-lhe a questão e ela explicou-lhe que eu poderia ir para o seminário. Era gratuito. Ela mesma falaria com os responsáveis. O meu pai nesse dia chorou de alegria. Ia ter um filho sacerdote. Beijou os vizinhos e ofereceu à minha mãe uma coroa de flores brancas para ela pôr na cabeça. E foi assim que eu comecei a estudar para ser padre.

    Estou-me a sair bem, afinal, com o diário. Enchi cinco páginas do caderno. Pensei que era mais difícil escrever. Não sei é se o que escrevi está bem. Desconfio da gramática e da ortografia. Mas também não posso mostrar a ninguém, ou então isto não seria um diário. E se eu fizesse um resumo e mostrasse ao padre Anselmo?

    São horas de dormir. Ainda tenho de ir buscar um jarro de água para lavar os pés. Espero que os padres não tenham desligado o esquentador. De outro modo, deito-me com os pés sujos. Felizmente comigo não se nota a diferença. Os colegas dizem, a brincar, que eu nunca me lavei na vida. E que, se o fizesse, nem a água de um poço seria suficiente para me tirar a camada de sarro que dá afinal o tom escuro à minha pele. São uns exagerados.

    9 de dezembro de 1985 – Ando enregelado. Ontem o Lopes foi apanhado no quarto pelo reitor com uma resistência ligada a um tijolo que lhe servia de aquecedor. O regulamento é claro: é expressamente proibido ter aquecedores nos quartos. Só os senhores padres os podem ter. E a razão já eu a tinha escrito acima: se todos os seminaristas tivessem o seu aquecedor, a instalação elétrica não aguentaria. Alguém por estes dias perguntou se, em vez de se obrigar os estudantes a aguentar o frio quase insuportável, não seria mais saudável e mais justo se a instituição decidisse substituir a velha instalação elétrica por outra mais moderna e com mais capacidade. Foi dito pelo ecónomo que não há dinheiro nem para substituir a instalação elétrica nem para pagar depois a conta da luz. E nós, os seminaristas timorenses, que somos afinal os que mais sofremos por não estarmos habituados a temperaturas tão baixas, não podemos protestar. É que estamos aqui à borla.

    Uma planta num vaso é como um pássaro numa gaiola. Nunca fui capaz de ter um vaso no meu quarto. Assim como um periquito. A maior parte dos colegas tem vasos. Os padres dizem que faz mal à saúde, que as plantas de noite respiram o oxigénio de que precisamos. O Angelino é, de todos, o que mais exagera. O quarto dele parece uma estufa. E, tanto quanto se vê, anda bem de saúde. Ele disse-me que me oferecia as plantas que eu quisesse. Só teria de arranjar os vasos. Eu agradeci, mas não aceitei. Ele explicou-me que lhe fazia bem estar rodeado de verdura. Que eram uma ótima companhia. Da minha parte, disse-lhe que não fui educado assim. Na minha terra as plantas, as árvores cresciam no chão, onde podiam estender as suas raízes. Expliquei-lhe até que o sândalo precisava de outra árvore de espécie diferente para poder sobreviver e que isso só era possível se as raízes de ambas se tocassem. É claro que não o convenci a acabar com a estufa improvisada no quarto. Uma vez por outra, quando vai passar o fim de semana a casa e está calor, pede-me que eu regue os vasos. Isso eu faço.

    O domingo é um dia especial no seminário. Além de estarmos reduzidos a cerca de metade, pois os de mais perto vão passar o fim de semana a casa, a campainha toca meia hora mais tarde e temos o dia praticamente por nossa conta. Às oito reunimo-nos na capela para rezar as laudes. Alguns não vão. Um deles é o Alcino, que fica na cama até às oito e meia e só se levanta porque o pequeno-almoço é a essa hora. Estes abusos devem-se ao facto de o reitor aproveitar o domingo para ir à pesca e o padre Teodoro, vice-reitor, ser um paz de alma, incapaz de censurar um aluno. Mas às vezes o reitor não vai, apanha os preguiçosos em flagrante e canta-lhas.

    Eu trabalho na paróquia de São Caetano com o Angelino. A missa costuma ser às nove e trinta. É uma igreja pequena, quase só frequentada por velhos e crianças. O reitor no início do ano costuma fazer uma reunião com os seminaristas e coloca-os nas diversas paróquias e capelanias da cidade a coordenar a catequese. Obviamente as melhores são para os que ele considera mais capazes. O refugo é para os outros. Como eu e como o Angelino. Mas tenho de reconhecer as minhas limitações. E afinal a paróquia até nem é assim tão má. As pessoas têm sido simpáticas e o pároco costuma dar-nos umas gorjetas de vez em quando. Não há, é claro, malta nova a ajudar-nos. As catequistas são senhoras já de certa idade, o que não sucede noutras paróquias, em que as catequistas são raparigas. É isso aliás que atrai os seminaristas mais capazes.

    22 de dezembro de 1985 – Cheguei há alguns dias ao Vale do Jamor para passar as férias do Natal. Como sempre, passo os períodos de férias em casa dos meus tios. Enfim, não é propriamente uma casa. De casa tem apenas o calor humano. Os timorenses instalaram-se no Vale do Jamor às portas de Lisboa e cada família desenrascou-se como pôde. Construíram-se barracas com restos de madeira e bidões de lata espalmados.

    Não me queixo em absoluto. Cada barraca tem o mínimo de conforto, com camas onde dormem duas pessoas, sofás, cozinha com fogão a gás e televisão. A casa-de-banho é comunitária. Que mais poderia eu desejar? Desde que não haja indonésios, os timorenses sentem-se no céu.

    Nas férias, que costumam fazer os seminaristas timorenses? O Alcino, o Nunes e eu ficamos em barracas diferentes. O Alcino vive com os pais – o único, aliás, a ter essa sorte –, e o Nunes vive com um irmão mais velho casado. Logo pela manhã, juntamo-nos e vamos à missa na paróquia mais próxima. O padre já nos conhece e costuma pedir-nos colaboração, como ler as leituras, ajudar à missa ou acolitá-lo em batizados, casamentos e festas religiosas. Costuma dar-nos uma gorjeta que muito nos ajuda, pois dinheiro para gastos pessoais praticamente não temos. O Nunes, que toca órgão, é muitas vezes solicitado para tocar noutras igrejas, especialmente em casamentos, e pagam-lhe bem. Uma vez por outra, acompanhamo-lo com as nossas violas. Isso não acontece sempre, porque há padres que não gostam que se toque viola dentro da igreja.

    O resto do dia, ora o passamos em Lisboa a passear, ora no café em conversas, ora a jogar futebol ou ver treinar alguma equipa no Estádio Nacional. À noite, é costume haver encontros de confraternização entre timorenses do Vale do Jamor. Normalmente são na barraca do Diamantino, filho de um liurai de uma aldeia perto de Baucau. A barraca é bastante espaçosa. Tem uma pista de dança e um mini-bar. Ali passamos grande parte dos serões a ouvir música, a conversar sobre Timor e a beber. Eu por mim bebo uma cerveja de vez em quando. O Nunes é que às vezes abusa e temos de o levar em braços para casa a chorar como um menino de coro pela mãe e pelo pai que foram assassinados pelos indonésios.

    Aos sábados à noite, costuma haver discursos. É nessa altura que o Diamantino pega no microfone e lembra aos presentes as atrocidades cometidas pelo invasor à nossa terra e a necessidade de todos se empenharem na sua libertação. Quem quiser falar, também o pode fazer e há sempre alguém a contar pormenores dos últimos acontecimentos no território, geralmente recebidos por carta e enviados por familiares a viver ainda no território ou na Austrália.

    Depois dos discursos, em que às vezes se travam diálogos nem sempre amistosos entre os defensores da UDT e da Fretilin, o disc jokey põe música timorense, entra um grupo de mulheres na pista e executa uma dança tradicional. É um momento emocionante e há até quem deite uma lágrima. Em dias mais especiais, alguns rapazes vestem o tais, o traje tradicional timorense, e executam uma dança, com um diadema na cabeça constituído por uma meia-lua de metal enfeitada de plumas, o belak – uma roda em metal que representa também a lua – pendurado ao peito e a catana na mão. No ano passado, entrei numa dessas danças com o Alcino. É preciso ensaiar muito e ter um autodomínio, ou lá como se diz, bastante grande. Como eu não tinha os apetrechos necessários, o Diamantino emprestou-me os dele. Quando depois os fui devolver, ele ofereceu-me o diadema com a meia-lua emplumada. Eu não quis aceitar, mas ele insistiu. Oferecia-mo por causa, disse ele, da minha excelente atuação. Ainda o tenho. Deixei-o no seminário, sobre o armário. Quando olho para ele, vejo Timor.

    O resto do tempo de férias, cada um passa-o na barraca com a família. Os meus tios são gente pacata e piedosa. Costumamos rezar o terço às sextas-feiras. A minha tia é a irmã mais nova da minha mãe. Conseguiu escapar-se com o noivo em 1976. Casaram em Portugal e têm um miúdo de nove anos. É muito rebelde e nas férias a minha tia recomenda-me que tente guiá-lo para o bom caminho. O que tenho conseguido é muito pouco. O miúdo estraga-se no bairro de lata e a única forma de o encaminhar é tirá-lo daqui. Já aconselhei os pais a metê-lo no seminário.

    A minha tia trabalha num restaurante como cozinheira e o meu tio numa fábrica de plásticos. Não ganham grande coisa e planeiam partir qualquer dia para a Austrália, onde há melhores condições de vida. Se eles partirem, ficarei cá sem ninguém da família.

    Quando vão para o trabalho, fico eu e o meu primo em casa. Cozinho para ele e vou-o entretendo como posso. Mas ele gosta mais de ir para o largo jogar a bola com os outros miúdos ou atirar pedras para os telhados de chapa das barracas dos vizinhos. É, diz ele, muito divertido, pois faz um estardalhaço dos diabos e assusta os que estão dentro.

    Enquanto ele anda nestes divertimentos, sento-me a ler os meus livros, que não são muitos, verdade se diga. O que mais leio é a Bíblia, pois é enorme e tem sempre coisas interessantes para descobrir. Gosto especialmente do Novo Testamento, mas também leio com prazer os cinco primeiros livros, chamados o Pentateuco, onde se conta a origem do mundo, a história do povo de Israel, a escravidão no Egito e a fuga para a Terra Prometida. A cena de todos aqueles milhares de pessoas fugindo ao longo do deserto com o exército do faraó em sua perseguição faz-me lembrar a invasão indonésia. Quando é que o mar se abrirá, o povo atravessará o mar a salvo e as águas engolirão o invasor?

    15 de janeiro de 1986 – Ando com frieiras nas mãos. Parece lepra. O padre Teodoro recomendou-me que fosse a uma farmácia pedir uma pomada. Talvez resolvesse o problema. Um colega disse-me para mijar nos dedos. Segundo dizia, a urina é o melhor remédio para as frieiras. O padre Mendes, por sua vez, aconselhou-me a não andar de luvas e a evitar meter as mãos nos bolsos. As diferenças de temperatura é que me causam as frieiras. E nesse caso o melhor era andar sempre com as mãos ao ar. O que é o mesmo que dizer andar com elas congeladas. O Alcino e o Nunes, curiosamente, apesar de se ressentirem do frio, não ganham frieiras. Os outros, a gozar, dizem que isso se deve ao facto de eu abusar do vício solitário.

    Mas não foi isto o que me levou a pegar no diário para escrever. Comecei por falar do problema das frieiras porque não sabia bem como entrar no assunto propriamente dito e que é o que se segue:

    Quando ajudo à missa – todos temos de o fazer, à vez, e hoje foi a minha –, levanto-me dez minutos mais cedo, trato da higiene pessoal – os outros dizem, a brincar, que eu não vejo água desde que nasci –, visto a batina e desço à capela com a sobrepeliz debaixo do braço. Hoje fui o primeiro a chegar à sacristia. Não estava nem o sacristão, que é um dos seminaristas mais velhos, nem o colega que me iria acolitar, pois somos sempre dois. Estive por ali a ver se tudo estava convenientemente preparado, até que os outros aparecessem, coisa que só aconteceria daí a alguns minutos.

    Na sacristia há um espelho enorme por cima da cómoda onde se guardam os paramentos. Não tenho muito a mania de me olhar. Olho-me ao espelho para cortar a barba uma vez por semana e para pentear o cabelo diariamente. Não me considero por isso um... – Como é que se chamam àqueles que adoram a sua própria imagem? – Bem, não me lembro. Mas quero eu dizer que não sou um desses.

    Como estava para ali sozinho, pus-me a olhar ao espelho. Nunca me tinha visto a mim próprio de batina e em corpo inteiro. O espelho que tenho no quarto é minúsculo e só a muito custo consigo fazer com que a cabeça caiba toda nele. Pois ali fiquei a observar-me, de todos os ângulos, e considerei que a batina preta me dava um aspeto de corvo. Coloquei então a sobrepeliz branca e a coisa melhorou. O branco sobre o preto fazia um contraste curioso.

    Mas o que mais me impressionou foi o facto de eu ver ao espelho, não a minha cara, mas a de meu pai. Sim, era o meu pai ali vestido de batina e sobrepeliz, a olhar-me com aqueles olhos negros dele. Não enregelei de susto ou coisa parecida, porque eu sabia que era eu, embora visse o meu pai no que era eu. Não acredito em fantasmas ou almas penadas e tenho a certeza de que o meu pai está em paz. E então compreendi aquilo que a minha mãe me tinha dito, antes de eu partir de Timor: «Tu és a cara do teu pai. Enquanto estavas aqui e eu te via, era a ele que eu via. Agora deixarei de vos ver aos dois».

    Ouvi passos à entrada da sacristia e disfarcei a pose pegando na agenda litúrgica e folheando as páginas à toa. Não queria que ninguém me visse a olhar o meu pai na minha imagem refletida.

    23 de janeiro de 1986 – Tenho as mãos praticamente limpas de frieiras. O remédio certo era mesmo o recomendado pelo padre Mendes: andar com as mãos ao ar.

    E lá estou eu de novo a não saber como entrar no assunto que me levou a pegar no caderno que me serve de diário. Enfim, tem de se começar por qualquer coisa, mesmo – como é que se diz? – insípida. Hoje decidi, porque estou calmo e sem qualquer sentimento de tristeza, de ódio ou de alegria, relatar a morte do meu pai. É difícil, eu sei, e tenho adiado isso, não só pelo receio da lembrança, mas principalmente por considerar que não sou capaz de expressar por palavras, ainda por cima numa língua que não é propriamente a minha, aquilo que aconteceu, ou que eu vi acontecer, o que não é bem a mesma coisa.

    Quando os indonésios invadiram Timor em 1975, o território encontrava-se profundamente dividido em duas fações principais: os da UDT, moderados, e os da Fretilin, de tendências de esquerda. Houve uma guerra civil travada entre as duas fações, guerra que ainda hoje ninguém entende. Os indonésios, que espreitavam há muito tempo o território, aproveitaram a oportunidade e invadiram-no.

    Em dezembro de 1975, chegou ao nosso suku, ou povoação, um pelotão de para-quedistas indonésio guiado por um timorense traidor. De armas apontadas, obrigaram todos os homens a sair das casas e juntaram-nos no largo da aldeia. Diziam que era para os levar para um lugar mais seguro, pois os da Fretilin podiam chegar e matá-los a todos. O meu pai encontrava-se na capela a arranjar o telhado com folhas novas de palmeira. Eu estava com ele. Ia-lhe passando as folhas compridas uma a uma e ele, em cima, ia-as acamando. Sete militares rodearam a capela e um deles, que devia ser o chefe, pôs-se aos gritos para o meu pai. Como não percebia o que dizia, o meu pai manteve-se imóvel. O outro apontou a arma e começou a fazer gestos para que descesse e ele acabou por obedecer.

    Três dos militares entraram dentro da capela e começaram a escavacar tudo à coronhada: as jarras de loiça que adornavam o altar, as lamparinas de azeite, os castiçais, os bancos e tudo o que havia dentro. Trouxeram para fora ao pontapé a pequena imagem da Nossa Senhora de Fátima e dois deles arrastaram o crucifixo, atirando-o para os pés do chefe. Este puxou a cavilha de segurança da espingarda e descarregou sobre a imagem de Cristo quinze ou vinte tiros seguidos. Só parou quando o carregador ficou vazio. Como ainda não estivesse satisfeito, acabou de destruir a imagem esmagando-a com as botas.

    O meu pai, perante semelhante atitude, tentou reagir, mas dois dos militares agarraram-no um de cada lado e o chefe deu-lhe um soco na barriga com a coronha da espingarda, o que lhe causou uma forte dor, obrigando-o a ajoelhar-se. Foi então que o chefe lhe descarregou um pontapé na cara que o atirou ao chão. Deve ter-lhe rebentado os lábios e partido os dentes, pois começou a sair-lhe sangue da boca. Eu pus-me a chorar e corri em direção ao meu pai para o ajudar a erguer-se. Mas um dos militares prendeu-me os braços atrás das costas e não me deixou avançar. Parecia que todos se divertiam muito.

    Até que o chefe, puxando um cigarro, disse qualquer coisa e dois deles ergueram à força o meu pai e puseram-lhe às costas o crucifixo com o Cristo espatifado. A mim meteram-me nas mãos a imagem da Nossa Senhora de Fátima. Depois apontaram as armas e seguimos por onde eles nos indicavam. O caminho ia dar a um despenhadeiro com o mar ao fundo a bater contra as rochas. Primeiro mandaram-me pôr de costas para o mar, com a imagem da Senhora nas mãos e quatro deles puseram-se em linha e apontaram-me as espingardas. O meu pai poisou a cruz e caiu de joelhos diante do chefe deles, pedindo-lhe que me poupasse, pois eu ainda era um miúdo. O indonésio mudou o carregador da espingarda e apontou-me a arma. Ouvi vários tiros a assobiar à minha volta mas nenhum me acertou. Ou era mau atirador, ou fez de propósito. Nesse momento, eu devo ter molhado os calções. O indonésio riu-se e os outros acompanharam-no.

    Entretanto, ele pôs-se sério e com um gesto pediu que eu atirasse a imagem da Senhora para

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