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Jardim sem Muro
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Jardim sem Muro

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"Jardim sem Muro" é uma colectânea de dezanove contos. As personagens baseiam-se nalguns dos tipos da sociedade portuguesa actual, aparecendo vendedores de automóveis em segunda mão, comerciantes de tintas e vernizes, empreiteiros, serralheiros, canalizadores, carpinteiros, electricistas, professores do ensino secundário, funcionários das Finanças, estudantes de Psicologia, reformados, emigrantes, agentes de segurança, viciados na Internet, coleccionadores de selos e moedas, especialistas em ciências ocultas, frequentadores de casas de alterne e respectivas funcionárias. Os políticos, por evidente falta de utilidade na sociedade, são das poucas figuras com que o autor não perdeu tempo nem gastou papel. Os contos, escritos num tom divertido, deixam transparecer o sorriso sarcástico de Eça de Queirós e o piscar de olho malandro de David Lodge. Transcreve-se uma passagem:

"Os manuais de jardinagem explicavam que um jardim sem muro era mais propenso ao ataque das ervas daninhas. Com um muro alto, era mais difícil as sementes disseminarem-se pela ação do vento. Por outro lado, a sombra do muro impedia a proliferação dessas ervas que, por serem endémicas, preferiam o sol. Havia espécies de plantas ornamentais que se davam bem à sombra e os manuais aconselhavam o seu plantio. Nada disto, porém, era exato. Apesar do muro, no jardim do sr. Lindolfo proliferavam os dentes-de-leão, as leitugas, as macelas e os beldros. Enquanto isso, as rosas, as petúnias e os amores-perfeitos, se não fossem constantemente vigiados, estiolavam. O jardim humano, mesmo assim, era bem mais complexo. Os muros que a sociedade foi construindo para salvaguardar uma pretensa moral iam desabando. Nenhum herbicida, nenhuma monda seria capaz de expurgar os dentes-de-leão da sociedade. Simplesmente porque deixaram de ser considerados ervas daninhas. São ervas entre outras, com a sua especificidade, as suas características próprias, fruto dos mil caprichos da natureza."

LanguagePortuguês
PublisherEd. Vercial
Release dateJan 30, 2018
ISBN9789897001710
Jardim sem Muro
Author

José Leon Machado

José Leon Machado nasceu em Braga no dia 25 de Novembro de 1965. Estudou na Escola Secundária Sá de Miranda e licenciou-se em Humanidades pela Faculdade de Filosofia de Braga. Frequentou o mestrado na Universidade do Minho, tendo-o concluído com uma dissertação sobre literatura comparada. Actualmente, é Professor Auxiliar do Departamento de Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde se doutorou em Linguística Portuguesa. Tem colaborado em vários jornais e revistas com crónicas, contos e artigos de crítica literária. A par do seu trabalho de investigação e ensino, tem-se dedicado à escrita literária, especialmente à ficção. Influenciado pelos autores clássicos greco-latinos e pelos autores anglo-saxónicos, a sua escrita é simples e concisa, afastando-se em larga medida da escrita de grande parte dos autores portugueses actuais, que considera, segundo uma entrevista recente, «na sua maioria ou barrocamente ilegíveis com um público constituído por meia dúzia de iluminados, ou bacocamente amorfos com um público mal formado por um analfabetismo de séculos.»

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    Jardim sem Muro - José Leon Machado

    A olhar para a chuva

    Um sábado à tarde, o Santos levou o filho ao tai kondo e, enquanto esperava, foi dar um passeio pelo parque junto ao rio. Para se distrair, comprou uma revista de Informática num quiosque perto do local onde estacionou o carro. Chovera bastante durante a manhã, as árvores e a relva estavam húmidas e nalguns pontos havia poças de água. O céu mantinha-se acinzentado, com as nuvens a correr ligeiras para o interior.

    O Santos gostava de caminhar junto à margem do rio, onde havia um passeio empedrado. Ia levantando uma vez por outra os olhos das páginas da revista para olhar o rio, naquele dia bastante caudaloso e de águas barrentas. Os patos e os gansos que costumavam ser um ponto de atração estavam na outra margem, aninhados e olhando desconsolados a corrente acastanhada.

    Havia pouca gente por ali. Cruzou com um senhor idoso, encolhido numa gabardina, um par de rapazes de fato de treino a fazer corrida de manutenção, uma senhora que andava a passear o cão vestido de casaco impermeável, e um homem que procurava trevos de quatro folhas na relva mal tratada. Mas o que mais lhe chamou a atenção foi uma rapariga que se dirigia apressadamente para o rio. Viu-a de perfil, a uns vinte metros. Vestia uma saia ligeiramente comprida, branca e de um tecido leve e esvoaçante. A blusa era preta e combinava com o branco da saia num contraste que fazia ora lembrar um tabuleiro de xadrez, ora o ying e o yang. Parou a observá-la.

    A rapariga aproximou-se da margem e desceu até um pequeno ancoradouro de madeira suspenso nas águas onde no verão se podia alugar um pequeno barco de passeio. Depois sentou-se num dos degraus, tirou as botas, arregaçou a saia e meteu os pés na água.

    O Santos retomou a marcha e foi-se aproximando. Estava agora a uns dez metros. Ela olhava para a outra margem. Estaria a sentir-se bem?, perguntou-se o Santos. Estava demasiado frio para alguém se pôr ali a molhar os pés. Sempre com a rapariga debaixo de olho, foi andando para cima e para baixo ao longo da margem.

    Os dois rapazes da corrida de manutenção viram-na e dirigiram-se para o ancoradouro a armarem-se em galãs. A sua entrada abrupta e barulhenta fez estremecer o ancoradouro, mas ela manteve-se imóvel e alheada. Eles deram meia volta e afastaram-se.

    O Santos pôs-se a refletir no comportamento da rapariga. Por que iria ela lembrar-se de meter os pés na água? Se fosse num dia de calor, ainda se poderia compreender. Mas num dia chuvoso e frio como aquele, era um disparate. Começava a pensar se a moça não estava transtornada com alguma coisa. Talvez se tivesse zangado com o namorado e fosse ali desafogar as mágoas. Mas molhar os pés no rio não era a melhor forma de desafogar mágoas de amor. O mais certo era apanhar um resfriado.

    A rapariga deve ter estado uns dez minutos sentada, de olhar ausente. O Santos viu-a por fim a tirar os pés da água e a limpá-los àquilo que lhe pareceu ser um lenço de papel que retirou da pequena bolsa que levava. Enquanto calçava as botas, pôde admirar-lhe a brancura das pernas e das coxas. A rapariga, ou pensava que estava ali sozinha, ou não se importava que alguém a estivesse a ver. Já com as botas calçadas, deixou-se estar mais alguns minutos a olhar em frente como se na outra margem, além dos salgueiros e dos patos, houvesse algo mais que lhe prendesse a atenção.

    Foi por essa altura que um tipo de bicicleta desceu o ancoradouro. Deve tê-la visto ao longe e decidiu exibir-se com umas piruetas. A manobra foi suficientemente arriscada para ele, ao dar a volta, quase cair ao rio. Ela ignorou-o.

    O Santos reduziu a distância das idas e vindas para poder tê-la debaixo de olho. A rapariga podia lembrar-se de se atirar ao rio e ele, embora não lhe agradasse ter de se meter na água barrenta e fria para a salvar, entendia ser esse o seu dever. Nas páginas abertas da revista sobre um artigo da nova versão do sistema Linux, descobriu entretanto duas pingas, depois três. Ali próximo havia um grande plátano e dirigiu-se para lá antes que a chuva começasse a cair a sério. Já sob a proteção da árvore, viu a rapariga a levantar-se, endireitar a saia e abandonar o ancoradouro. O Santos pensou que ela continuaria em frente, por onde viera. Mas ela acabou por voltar à esquerda em sua direção. Começou a chover intensamente e a rapariga dirigiu-se à pressa para debaixo do plátano com a pequena bolsa sobre a cabeça.

    O velhote, a senhora do cão e o coletor de trevos tinham desaparecido. Os dois rapazes da corrida de manutenção aceleraram por entre as árvores do parque e o da bicicleta pedalava num sprint ao longo da margem para fugir à borrasca.

    Enquanto a rapariga se aproximava, o Santos pôde vê-la de frente. Tinha a cara miúda, os lábios eram carnudos e estavam pintados de vermelho escuro. O cabelo, castanho, era não muito longo e apresentava caracóis nas pontas. Não devia ter mais de vinte anos e era, segundo os padrões e gostos do Santos, uma bela rapariga.

    Quando ela chegou ao plátano, o Santos desviou-se um pouco para lhe dar espaço e estiveram os dois por alguns momentos a olhar para os ramos que impediam a água de passar. À volta, a chuva desabava em grandes bátegas. Daí a pouco, o plátano começou a escorrer água e as pingas caíam nas cabeças de ambos. O Santos cobriu a dele com a revista. A rapariga encolheu-se, com os braços cruzados no peito. A bolsa era inútil e tinha-a posto ao ombro. Por gentileza, o Santos decidiu separar a revista em duas partes e ofereceu-lhe uma. Ela aceitou e cobriu a cabeça, agradecendo com um sorriso discreto.

    – Nestes dias, é um erro sair de casa sem guarda-chuva – comentou o Santos.

    – Esse é um erro pequeno e sem grande importância – acrescentou a rapariga.

    – Sempre se pode apanhar uma gripe – contrapôs o Santos.

    – Há erros de consequências bem mais graves.

    As suspeitas do Santos pareciam confirmar-se. A moça tinha um problema qualquer e fora até ali para desanuviar. Gostaria de perguntar-lhe o que se passava. Mas não lhe pareceu ser a melhor estratégia. Ela podia muito bem dizer-lhe que não era da sua conta. Por isso, optou pelo comentário.

    – Os erros têm remédio. Veja a menina que nos esquecemos do guarda-chuva e acabámos por solucionar o problema abrigando-nos debaixo desta árvore e improvisando um resguardo com a revista que eu trazia para ler.

    – Devemos parecer ridículos com isto na cabeça.

    – A menina a mim não me parece ridícula. Pareço-lhe eu ridículo?

    – Parece – respondeu ela com um breve sorriso.

    – Deve ter razão. Os chapéus nunca me ficaram bem. Especialmente os que têm forma de telhado.

    Ambos riram discretamente da piada.

    O Santos reparou que a roupa que ela trazia vestida era de cerimónia. A blusa, a saia, as botas, a bolsa, o colar, as pulseiras e os anéis não eram coisas para andar no dia a dia. Como era sábado, considerou o Santos, era provável que tivesse ido a um casamento.

    – Hoje está um dia péssimo para casamentos – comentou, dando um tiro no escuro.

    – A quem o diz! – respondeu ela.

    Bingo!, disse para consigo o Santos. Depois voltou-se para ela e acrescentou:

    – Diz-se que casamento com chuva é felicidade até à morte.

    – Tanto quanto sei, isso aplica-se aos noivos, não aos convidados.

    – Sim, deve aplicar-se aos noivos. Mas a felicidade dos noivos, parece-me, também é a felicidade dos convidados.

    – Depende. Pode haver entre os convidados alguém que não queira bem aos noivos.

    O Santos preferiu não comentar. Seria ela uma das convidadas que não queria bem aos noivos? Talvez a noiva fosse sua irmã ou prima e ela estivesse apaixonada pelo noivo e houvesse ali um caso de ciúmes. Desse modo se explicava o estranho comportamento da rapariga, que foi até ao rio desafogar as mágoas e o ressentimento.

    – Eu sei no que está a pensar – disse ela depois de cerca de meio minuto de silêncio.

    O Santos mexeu o sobrolho interrogativamente.

    – O senhor...

    – André Santos. Mas pode tratar-me por André.

    – Matilde.

    – É um prazer, Matilde. Mas dizia...

    – Eu ia a dizer que sei no que estava a pensar.

    – E no que estava eu a pensar?

    – Que eu sou uma pessoa que quer mal aos noivos.

    – Longe de mim pensar isso de si, Matilde!

    – Pois fique o André a saber que eu realmente quero mal aos noivos.

    Houve mais meio minuto de silêncio. A chuva continuava a cair e as pingas que escorriam por entre a ramagem do plátano tornavam-se mais pesadas e frequentes.

    – Talvez tenha exagerado. Eu não quero mal ao noivo. Ele não tem culpa – continuou a Matilde olhando o chão molhado. – Mas ela... ela é uma traidora e uma ingrata.

    – A Matilde não precisa de se atormentar com isso. Homens há muitos. E bonita como é, de certeza que não terá dificuldade em arranjar um novo namorado.

    – Namorado? Eu quero lá um namorado!

    – Imagino que deve estar a passar um período difícil. Eu também já passei por isso, sabe?

    – Já?

    – Sim, já. Quanto eu tinha a sua idade, apaixonei-me por uma rapariga. Chegámos a namorar uns meses. Mas depois ela entrou para a universidade, passámos a ver-nos com menos frequência e ela arranjou outro. Eu sofri muito com isso. Mas acabei por esquecer. Conheci uma outra rapariga e casámos. É a mãe do meu filho.

    – É uma bonita história. Até parece das telenovelas. O problema é que não tem nada a ver comigo.

    – Mas a Matilde não disse?...

    – O André vai-me desculpar, mas não percebeu nada.

    – Pelos vistos não percebi.

    – Os homens nunca percebem nada. E é tudo tão simples...

    A rapariga retirou da cabeça as páginas da revista e sacudiu a água. Tinha as pontas do cabelo molhadas. O Santos, que não ficou ofendido com as maneiras dela, disse:

    – Estamos aqui a abrigar-nos da chuva e só por mero acaso é que começámos a falar. Logo que a chuva pare, cada um vai à sua vida. É bem provável que nunca mais nos encontremos. Se quiser contar-me o que lhe vai dentro, pode fazê-lo.

    – E para que haveria de contar?

    – Para se sentir melhor.

    – Mas eu não me quero sentir melhor.

    – A Matilde lá sabe. Fiquemos então calados a olhar para a chuva.

    Duas adolescentes passaram debaixo do mesmo guarda-chuva agarradas uma à outra. Pareciam divertir-se no meio da chuva. O Santos achou insólito o olhar que a Matilde lhes deitou e só então começou a compreender.

    As miúdas entretanto desapareceram. Eles devem ter ficado ali mais uns cinco minutos até que a chuva diminuísse de intensidade. Foi nessa altura que a Matilde estendeu ao Santos o pedaço da revista e lhe disse:

    – Obrigada. Tenho de ir.

    – Espere mais um pouco. A chuva ainda não parou e vai de certeza molhar-se.

    – Não tem importância. A festa da boda já deve ter terminado e eu vou para casa.

    – Se quiser que eu a acompanhe...

    – Está a atirar-se a mim?

    – Oh, não! Compreendeu-me mal.

    – Então quer dizer que eu não o atraio?

    – É claro que me atrai. É uma bonita rapariga, já lhe disse. Mas eu não me atiro a todas as raparigas bonitas que conheço. E muito menos às que estão com problemas. O que eu queria dizer era que poderia acompanhá-la. Tenho de ir buscar o meu filho à aula de tai kondo e talvez o meu caminho seja o seu.

    – Não creio.

    – Então leve o pedaço da revista. Sempre resguarda a cabeça.

    – Se a molhar um pouco mais, talvez aclare as ideias.

    – Não vai fazer nenhum disparate, pois não?

    – Por que diz isso?

    – Pela conversa que tivemos, não me parece que a Matilde esteja bem.

    – O facto de não estar bem não quer dizer que eu faça um disparate. E para o tranquilizar, digo-lhe o que penso fazer quando chegar a casa: vou despir esta roupa e meter-me na banheira com a água bem quente a dar-me pelo queixo.

    – É uma boa ideia. Mas sugiro que não se deixe adormecer. Pode afogar-se.

    A Matilde disse com um ar atrevido e pouco sincero:

    – Se o André quiser fazer-me companhia, não me importo de partilhar a banheira consigo. De certeza que assim não adormeceria.

    – Tenho de ir buscar o meu filho... – respondeu o Santos com algum embaraço.

    – E se não tivesse, fazia-me companhia? – perguntou ela desafiadora.

    O Santos ponderou alguns segundos e depois respondeu:

    – Não, acho que não.

    – E porquê?

    – Porque a minha companhia não era aquela que a Matilde gostaria de ter. Especialmente numa banheira.

    Ela sorriu e disse:

    – Obrigado por me ter feito companhia debaixo desta árvore. Não é a mesma coisa que numa banheira. Mas não deixou de ser interessante.

    – O prazer foi meu.

    A rapariga afastou-se e caminhou apressada ao longo da margem. A cerca de cem metros, parou, olhou o rio e o Santos pensou o pior. Iria atirar-se à água barrenta? Viu-a estender o braço e a atirar qualquer coisa à água. Devia ser um objeto pequeno. Talvez um dos vários anéis que levava nos dedos ou qualquer coisa do mesmo tamanho. Depois voltou-se para o lado do plátano, levantou a mão a dizer adeus, atravessou o parque e desapareceu entre as árvores.

    A nova gestora

    A Betandrade era uma das maiores empresas de construção civil da cidade e, apesar da crise que afetava o setor, conseguia sobreviver graças aos contratos que tinha com o governo angolano na construção de pontes, escolas, mercados municipais e aquartelamentos. A Soproferro, uma empresa de menor dimensão, costumava ser subcontratada pela Betandrade para realizar os trabalhos de serralharia nas obras que tinha a seu cargo.

    O Calheiros, dono e gerente da Soproferro, passou dois anos em Angola a coordenar os trabalhos de gradeamento num dos mercados municipais construídos pela Betandrade. Foi com regozijo que aceitou o encargo. Tinha estado na ex-colónia portuguesa trinta e três anos antes a cumprir o serviço militar. Malgrado a guerra, que é má em todas as circunstâncias, ficara nele o desejo de um dia voltar.

    Longe da mulher, uma senhora com imensos problemas de saúde, arranjou como cozinheira uma mocinha de quinze anos a quem ele iniciou na arte amatória. Foi por causa dela que teve de largar o trabalho e sair à pressa do Muambo. Constou-se nos escritórios da Betandrade que ele tinha engravidado a moça, e o pai, os irmãos e os tios queriam capá-lo.

    Para que o serviço em Angola não ficasse ao deus-dará, pois, dizia ele, não se podia confiar nos pretos, enviou o filho mais velho para o substituir. O filho não só fez um bom trabalho de serralharia, como compôs a questão com a moça e com os familiares. Readmitiu-a como cozinheira e, quando a criança nasceu, ofereceu-se como padrinho. Afinal era do seu sangue. O pai, que lhe telefonava amiúde para saber do andamento dos trabalhos, pediu-lhe encarecidamente para que não contasse nada à mãe acerca da moça e da criança. Era um segredo só deles. O filho prometeu, mas, em contrapartida exigiu que o pai lhe desse carta branca para administrar a serralharia em Angola. Queria expandir o negócio. O pai deu-lha, contrariado, pois tinha quase a certeza de que não conseguiria desenrascar-se, ainda para mais em terra de pretos burros e preguiçosos.

    Mas enganou-se. O filho não só expandiu o negócio, conseguindo contratos de várias empresas além da Betandrade, como construíra várias oficinas de serralharia num imenso estaleiro, com mão de obra constituída por alguns operários portugueses e por cinquenta angolanos que depressa aprenderam o ofício de trabalhar o ferro.

    O Calheiros foi administrando a Soproferro em Portugal sem grande motivação. Ganhou algum ressentimento ao filho por ele ter conseguido fazer mais do que ele fora capaz e, principalmente, por lhe ter roubado a cozinheira. Tinha vagamente considerado a hipótese de mandar vir a moça para Portugal e instalá-la a ela e à criança numa casa que visitaria quando lhe apetecesse. O filho acabou-lhe com esse sonho, metendo-a dentro de casa e, ao que tudo parecia indicar, fazendo dela sua amante. Isso o pai não lhe podia perdoar.

    Passava pelos escritórios da Betandrade de vez em quando para se informar de novas empreitadas e para receber cheques por trabalhos já realizados. Numa dessas vezes, foi encontrar nos escritórios uma cara nova. Era uma rapariga dos seus vinte e poucos anos que estava sentada a uma secretária a olhar para o monitor do computador que tinha à frente. O Calheiros encostou a barriga ao balcão e esteve alguns segundos a observá-la antes de dar sinal de si. As outras funcionárias deviam ter ido tomar café.

    O Calheiros por fim tossiu e disse bom dia, menina. A rapariga desviou os olhos do monitor e dirigiu-os ao balcão, respondendo:

    – Bom dia. Em que posso ajudá-lo?

    – O sr. Andrade está?

    – Saiu para ir ver uma obra. Não deve demorar, acho eu.

    – Mas então a menina não tem a certeza?

    – O sr. Andrade, ao sair, disse que não demorava. Mas não sei bem o que isso queria dizer. É que já passou uma hora e ele ainda não voltou.

    O Calheiros sorriu.

    – A menina é nova por aqui, não é?

    – Sou, sim. Comecei a trabalhar na segunda-feira.

    – O sr. Andrade, quando sai – começou a explicar o Calheiros –, costuma dizer sempre que não demora. E é até provável que ele pense em não demorar. Mas saiba a menina que isto de administrar obras é muito complicado e nem sempre as coisas correm como a gente quer. O sr. Andrade muitas vezes acaba por demorar mais tempo do que aquele que pretendia. Há dias em que chega a não voltar.

    – Não sabia.

    – As suas colegas não lhe explicaram?

    – Explicaram-me algumas coisas. Mas disso não me falaram.

    – Talvez achassem que a menina viesse a aprender com a experiência.

    – Talvez. De qualquer forma, agradeço-lhe a informação. Se eu puder ajudá-lo nalguma coisa...

    – Uma vez que o sr. Andrade não está, não poderá ajudar-me. Mas poderei ajudá-la eu a si, se precisar de alguma coisa. Eu sou o Miguel Calheiros, patrão da Soproferro.

    – Da Soproferro? – perguntou ela. – Estava mesmo agora a fazer um balancete com as contas respeitantes aos serviços que a Soproferro tem feito para a Betandrade.

    Levantou-se da cadeira com mecanismo giratório, aproximou-se do balcão e estendeu a mão.

    – Eu sou a Vânia Preciosa.

    – Vânia Preciosa? Um bonito nome que combina com a pessoa que o tem – retorquiu o Calheiros apertando a mão da rapariga com um salamaleque dos tempos da Monarquia.

    – Muito obrigada – disse ela corando um pouco.

    – E que faz aqui a menina, se é que se pode saber?

    – Sou estagiária. Estou no último ano do curso de Gestão na universidade. Eu contactei a empresa,

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