A Sombra Sorridente
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"Fora agente secreto de Salazar em Luanda. Todas as semanas enviava ao presidente do Conselho um extenso relatório das atividades subversivas dos oficiais do Exército Português. Graças a ele, conseguiram evitar-se conspirações de arrepiar. O seu lema: Destruir os inimigos da pátria. Uns dias após o 25 de Abril, "essa revolução vergonhosa para a nação", foi encarcerado e dado como louco por um médico do MFA. Meteram-no em Rilhafoles à força como se isso fosse paga digna para um cidadão que dedicara toda a sua vida em defesa da terra onde nascera. Graças à família, conseguira transferência para o Telhal, onde era tratado com deferência devido à sua posição. Embora inativo, continuava afinal a ser inspetor da DGS... E tinha a certeza de que, quando o senhor presidente do Conselho recuperasse da queda que sofrera, tudo voltaria à normalidade e esses bandidos do MFA seriam exilados para o Tarrafal."
José Leon Machado
José Leon Machado nasceu em Braga no dia 25 de Novembro de 1965. Estudou na Escola Secundária Sá de Miranda e licenciou-se em Humanidades pela Faculdade de Filosofia de Braga. Frequentou o mestrado na Universidade do Minho, tendo-o concluído com uma dissertação sobre literatura comparada. Actualmente, é Professor Auxiliar do Departamento de Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde se doutorou em Linguística Portuguesa. Tem colaborado em vários jornais e revistas com crónicas, contos e artigos de crítica literária. A par do seu trabalho de investigação e ensino, tem-se dedicado à escrita literária, especialmente à ficção. Influenciado pelos autores clássicos greco-latinos e pelos autores anglo-saxónicos, a sua escrita é simples e concisa, afastando-se em larga medida da escrita de grande parte dos autores portugueses actuais, que considera, segundo uma entrevista recente, «na sua maioria ou barrocamente ilegíveis com um público constituído por meia dúzia de iluminados, ou bacocamente amorfos com um público mal formado por um analfabetismo de séculos.»
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A Sombra Sorridente - José Leon Machado
CAPÍTULO I
Quiseste conhecer-me porque há muito que eu me andava a insinuar. Naquelas tardes de início de primavera com o sol a mostrar-se tímido sobre as árvores ainda nuas dos jardins e dos campos, as pessoas saíam à rua, olhavam-se pasmadas e achavam que eram belas. Quantas vezes passámos um pelo outro e nos olhámos? Já não era um mero acaso. Eu sabia a que horas passavas sob a minha janela. E aí esperava que os teus cabelos aparecessem na curva da rua, o sorriso que se distinguia lá de cima. Perdi a minha janela e perdi-te num jogo de cartas com um amigo. No princípio era simpatia a transformar-se em interesse. E um dia, quando nos cruzámos na rua cheia de gente e os teus olhos viram os meus, estremeci por dentro como quem ama. Mas eu não te conhecia e ignorava o teu nome. A iniciativa para te falar nunca viera, talvez por achar-te muito longe das minhas perspetivas futuras. É que tu não encaixavas nos meus projetos.
Andava metido num curso de fotografia no Instituto da Juventude. Uma tarde ou outra em que os estudos não apertavam, entretia-me a focar algumas cenas da cidade, conforme as técnicas aprendidas no curso. Até que certo dia, estando com duas conhecidas na rua a combinar uma altura para tirarmos umas fotografias juntos, passaste e disseste-lhes olá. Perguntei se te conheciam. «Então não haveríamos de conhecer a Margarida?! Vivemos todas no mesmo lar», disse a Magda. Foi quando fiquei a saber o teu nome e esta revelação repentina começou logo a fermentar na minha cabeça dura. Decidimos então tirar as fotos no domingo seguinte se houvesse sol, mas com uma condição: elas teriam de convidar-te também. Olharam-me de soslaio a inquirirem a minha ambígua intenção. A Magda falar-te-ia no assunto, mas tinha quase a certeza de que não aceitarias o convite. Ir agora assim por aí posar para um desconhecido! Porém, talvez não fôssemos tão desconhecidos como a Magda estaria a pensar. De qualquer modo convidasse e logo se veria.
Saí na tarde do domingo combinado de máquina a tiracolo. O tempo, sempre instável, brindara-nos com uma chuveirada e o ambiente estava feio e soturno para a objetiva. Não me dissuadi e fui ao Pasolini, o café frequentado pela Magda e as amigas. Aí a encontrei com mais duas colegas a tomarem café. Acompanhei-as num pingo para à noite não perder o sono, o que, mesmo assim, seria difícil não acontecer. A primavera dava-me volta ao miolo, avizinhava-se uma qualquer mudança radical na minha vida. As noites passava-as em claro a pensar, a sentir.
– Furtado – rompeu a Magda –, falei com a Margarida acerca das fotos e ela disse que talvez apareceria.
– Ah, sim? E não estranhou o convite?
– Claro que estranhou! Pu-la com um pé atrás e outro à frente. Deu-me a impressão de que aceitou só para ser simpática. Creio que não virá.
– Se não vem, o problema é dela. Eu convidei, não convidei? E nós, vamos aproveitar e ver se a chuva parou?
– Sim. Deixa estar que eu pago o teu pingo. Amanhã pagas tu o café. Quero que nos fotografes na frente do lar, naquele jardim com o João Penha.
– Sabes que foi um grande poeta bracarense...
– Pois olha, não sabia quem era o homem. Também colocam ali uma estátua e nem explicam quem é e que fez!... Ninguém adivinha. Quando é que em Braga vão apostar na cultura?
Levantámo-nos e descemos as escadas onde a Magda caíra uma vez depois de um fino, quando usava pirolitos nos pés. Salvou-a o ser roliça e baixa. Caso contrário já cá não estava ou teria a coluna num trapo. E foi à entrada do edifício, ao sairmos, que me vieste falar.
Ias com mais duas colegas, reconheceste-me e, de lábios muito vermelhos – nunca mais os pintaste – e o sorriso da altura do sol, aproximaste-te perguntando:
– O convite para as fotografias era mesmo a sério?
O que te haveria de responder? Nunca esperaria que viesses falar-me assim, cheia de à vontade. Volvi os olhos para a Magda a ganhar coragem e fôlego, medindo as palavras que iria dizer.
– Realmente era a sério. Aliás tenho aqui a câmara... O convite ainda está de pé, se desejarem.
– Agradecemos muito, mas desta vez não será possível. Temos umas voltas a dar. Fica para outra altura, está bem?
– Certo. Depois combinamos.
– Sim. Então adeus.
E seguiram para o interior do edifício. Quanto a nós – a Magda, as duas amigas e eu –, descemos a rua em direção ao jardim à frente do lar. Não chovia e o sol despontava vago pelas nuvens. Deambulava muita gente e os automóveis roncavam ao de leve. Eu não dizia nada. Sentia-me ligeiramente incomodado com o teu assalto de surpresa à minha vida. Há tanto tempo que desejava sentir-te mais perto, falar-te e foste tu a destruir barreiras e receios. Não sabia se isso era uma paixão nascente ou interesse superficial. Estavam os caminhos abertos para um maior conhecimento, uma relação futura de amizade e de entendimento.
Quando foi que descobri que tu existias?
No tempo presidia à República o Eanes. Gozava os derradeiros momentos do poder eleito segundo a vontade do povo. Depois, tudo mudou para o mesmo esquema político de antes da mudança, que essa será para depois do ano 2000, se ainda houver Portugal e portugueses. Não se fala dos Estados Unidos da Europa? Seremos finalmente europeus...
Tinha vindo à cidade o Freitas do Amaral na campanha das presidenciais. O teatro Circo abarrotava de apoiantes e curiosos. Preparava-se a primeira volta das eleições e era mais que certa a vitória do progresso. «P'rá frente Portugal!», gritava-se a toda a hora. Afinal não houve a tão falada vitória nem Portugal foi para a frente, não tivessem os comunistas votado no Mário Soares de olhos vendados. Eu fui, com os colegas de curso, ao tal comício, mais como curioso do que como apoiante, pois sempre preferia ser observador a ator. Os padres aconselharam-nos vivamente aquele comício e abertamente nos alertaram para a desgraça comunista do Zenha ou o perigo socialista do Mário Soares. Os que votassem tinham o dedo já guiado pela chama do Espírito Santo e a cruzinha ficava no quadrado do Freitas. Afinal não haveria muita diferença em votar de olhos tapados ou de dedo guiado pelo Espírito Santo
Durante o comício, numa daquelas confusões de sobe e desce escadas, cruzámos contigo e disseste olá a um dos meus companheiros. Quando algum conhecido nosso cruza com uma mulher bonita, há sempre a tentação de olhar. Passaste e eu voltei os olhos para trás a reconfirmar a primeira impressão. Sim, eras uma miúda bem feita, um belo cabelo e uns dentes muito direitos num sorriso franco. Ficara-me o retrato e nunca mais o esqueci.
O caso passara-se, nunca mais pensei nele até que, findo o inverno, te revi, agora nas ruas da cidade, sempre que saía para passear ou para as aulas de condução, sempre que olhava abaixo da minha janela. Já não era apenas eu a notar a tua presença. Também tu já notavas a minha e não te era indiferente. O instrutor de condução, coitado, é que me aturava as desatenções na estrada, as asneiras crassas nos cruzamentos e nas inversões de marcha. Até chumbei o exame duas vezes! Começava o meu coraçãozinho a descontrolar-se, a bater dissonante. Claro que a culpa era minha, pois sentia alguma coisa de novo a acontecer e eu queria que acontecesse.
Por essa altura haveria uma festa no Seminário de Braga onde eu estudava