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De Nampula ao Porto
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De Nampula ao Porto

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About this ebook

Devido à situação de insegurança que se vivia em Moçambique logo após a independência, muitos dos ex-colonos portugueses veem-se obrigados a abandonar o país. No meio da confusão, dois miúdos perdem-se dos pais em frente ao aeroporto de Loureço Marques. Juntam-se a duas meninas suas conhecidas e a partir daí iniciam uma longa e alucinante aventura. De barco, de comboio, de carro, de avião e a pé, os quatro miúdos atravessam florestas, savanas, montanhas e desertos até finalmente chegarem a Portugal.

LanguagePortuguês
PublisherEd. Vercial
Release dateFeb 5, 2018
ISBN9781386172260
De Nampula ao Porto
Author

Francisco Martins

Francisco Martins was born in Santarém, Portugal. He wrote and directed his first play when he was twelve, and got curious about the effect it produced on people. Bearing that in mind, he began experimenting with essays and short stories that he only showed to a small group of friends. When he was fourteen, he started conjecturing about the underpinnings of human nature, and wrote a series of stories about significant historical events. It was only after spending a month in New York City that he started writing in English. The Salmon under the Soulberry Tree is his debut novella.

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    De Nampula ao Porto - Francisco Martins

    Capítulo I

    Em Luanda, Benguela, Luso, Nova Lisboa, Lourenço Marques, Bissau, Praia e em todas as grandes cidades das ex-colónias portuguesas a festa durou até altas horas da madrugada, com a população a sair à rua para comemorar com alegria o dia oficial da independência de Angola e o fim do regime colonialista português em África.

    No calor da emoção, de muita bebida e euforia, cometeram-se os maiores exageros possíveis e as festas ficaram ensombradas pela morte de centenas de pessoas e milhares de feridos.

    De manhã, na cidade de Nampula, Moçambique, praticamente não se via ninguém nas ruas e pairava no ar um sentimento de medo e incerteza.

    A família Barbosa tomava o pequeno almoço na sala de jantar em silêncio. Moram numa habitação individual, no número dezassete da rua Mouzinho de Albuquerque.

    O senhor da casa chama-se Manuel Barbosa e a esposa Etelvina. Têm dois filhos. O mais velho, com doze anos, chama-se Alexandre e o mais novo, com dez anos, chama-se Lucas.

    A empregada, jovem e mestiça, entrou na sala e anunciou:

    – Sr. Barbosa, consegui arranjar a edição do jornal que me pediu.

    – Ora deixa ver.

    A empregada entregou o diário ao patrão e este acrescentou:

    – Obrigado, Antónia!

    Nas primeiras cinco páginas vinha um especial sobre a cerimónia da independência oficial da Angola ocorrida no dia 11 de novembro de 1975.

    Viu a notícia sobre o fuzilamento de colonos portugueses, que se recusaram a abandonar as suas fazendas no distrito de Cabo Delgado e passou as páginas à frente. Parou apenas em alguns títulos para ler as letras gordas. A Etelvina perguntou:

    – E então, Manuel, há novidades?

    – Haver, há! Por causa da Revolução de Abril, os políticos não se entendem na Metrópole e a independência das colónias é um facto consumado.

    – Esses acontecimentos prejudicam-nos em alguma coisa?

    – Diria que mudam tudo na nossa vida.

    Os pequenos ficaram preocupados com a revelação do pai e prestaram atenção à conversa.

    – E agora, quem manda aqui? – quis saber a esposa.

    – Como sabes, no dia 25 de junho, Moçambique tornou-se oficialmente independente. E ficou acordado com o governo da Metrópole entregar o poder à FRELIMO gradualmente. O Samora Machel assumiu a presidência, mas pelo visto alguns dirigentes da FRELIMO desentenderam-se com ele, por permitir a entrada dos soviéticos e coreanos no país.

    – Referes-te à resistência anticomunista?

    – Sim. Dizem que eles têm o apoio da África do Sul e da Rodésia e eu temo que isso dê em guerra civil como em Angola.

    – O governo da Metrópole não entrega a colónia à FRELIMO enquanto não resolverem as quezílias entre eles.

    – Enganas-te! Ontem foi dada a independência oficial a Angola, com o arriar da bandeira nacional e a partida dos nossos representantes para Portugal. Aqui está a acontecer o mesmo.

    – Então agora somos um país livre, como o Brasil?

    – Não me parece. E da forma como as coisas estão, mais tarde ou mais cedo teremos de abandonar Moçambique. Já ninguém garante a nossa segurança.

    – Os militares e a polícia têm a situação controlada.

    – Os nossos militares regressaram quase todos a Portugal. Ficaram apenas alguns, para ajudar a evacuar os funcionários do Estado.

    – Mas eu tenho visto por aqui soldados pretos, de uniforme igual ao dos nossos.

    – São soldados das forças especiais, fiéis ao antigo regime. Mas os guerrilheiros da FRELIMO já lhes ordenaram que depusessem as armas.

    – E eles estão a acatar a ordem?

    – Mais ou menos. Muitos aliaram-se à FRELIMO. Outros recusam-se entregar as armas e juntaram-se ao movimento anticomunista.

    – Isso ainda vai dar problemas.

    – Já está a dar. Para teres uma ideia: Em Angola os portugueses ainda não tinham saído, já estavam a entrar os soviéticos e os cubanos para ajudar o MPLA a tomar conta do poder.

    – Por falares em Angola... O que é feito da família Machado, os nossos amigos que vivem no distrito do Huambo?

    – Falei com o Machado pelo telefone a semana passada. Ele contou-me que levou a família para a Metrópole durante a ponte aérea e que regressou em meados de outubro. Mas, pelo visto, na fazenda as coisas estão complicadas. Os trabalhadores têm medo de ir trabalhar para a machamba, e ele não tem quem lhe forneça produtos agrícolas nem pesticidas para tratar as culturas.

    – E os trabalhadores têm medo de quem?

    – Dos militares do MPLA.

    – A UNITA não lhes faz frente?

    – Fazer, faz. Mas os militares do MPLA estão melhor armados. Têm tanques de guerra, helicópteros, a aviação e os cubanos a combater do lado deles.

    – Quer dizer: os angolanos expulsaram os portugueses, para mudar apenas de colonizador.

    – Foi precisamente isso que aconteceu.

    – Achas que os pretos daqui também nos vão obrigar a ir embora?

    – Julgo que sim, embora existam laços de amizade entre nós e a população local há muito tempo. Para os políticos e altas patentes militares, nós continuamos a ser um problema. Por isso, tu e os pequenos deveriam aproveitar o voo que a Força Aérea portuguesa está a organizar para a próxima quarta-feira e seguirem para a Metrópole em segurança.

    – E tu?

    – Eu não posso ir já com vocês.

    – Porquê?

    – Não quero perder tudo o que conseguimos construir até agora, com tanto esforço.

    – Vendemos a casa e o armazém e mudamo-nos de vez para o Porto.

    – Neste momento não é fácil vender nada e, mesmo que consigamos, depois não nos deixam levar o dinheiro para Portugal.

    – Ora essa! Porquê?

    – O governo provisório não permite descapitalizar o país. E não sei se sabes: o nosso dinheiro agora não vale nada lá fora.

    – E então o que fazemos?

    – Eu já calculava que isto poderia acontecer e transferi algum dinheiro para uma conta que temos num banco em Macau.

    – Sendo assim, não vamos embora de mãos vazias.

    – Sim. De qualquer forma, a solução é vocês saírem no próximo voo. Eu fico por cá mais algum tempo, até vender tudo. Depois vou ter com vocês.

    – Sendo assim, ficamos os dois e mandamos os miúdos para a casa da minha mãe.

    – Eu não quero ir para a casa da avó Cândida! – protestou o Alexandre.

    – Nem eu! – atalhou o Lucas.

    – Posso saber porquê? – inquiriu a mãe.

    – O ano passado estivemos duas semanas em Portugal e foi uma seca – queixou-se o Alexandre.

    – Pois foi – concordou o Lucas. – E desde que o avô João morreu, a avó passou a ir todos os dias à missa e obrigava-nos também a ir

    – E lá não temos amigos como aqui – continuou o Alexandre.

    – Porque estiveram pouco tempo no Porto – explicou a mãe. – Mas quando forem para a escola, verão que arranjam depressa novos amigos.

    – Mesmo assim, eu prefiro ficar cá – disse o Alexandre.

    – Não dá, filho – lamentou a mãe. – Vocês não ouvem as notícias?

    – Sim – ajudou o pai. – Depois, se as coisas por aqui acalmarem, voltam.

    – Como, se você vai vender a nossa casa? – interrogou o Alexandre.

    – Eu não sei se a conseguirei vender, e possivelmente também teremos de partir sem nada, como fez grande parte dos nossos vizinhos.

    – Depois de se irem embora, os pretos ocuparam as casas deles – disse o Lucas.

    – Em Cabo Delgado – murmurou o pai – ainda fizeram pior. As milícias, com o apoio dos guerrilheiros, invadiram as fazendas, mataram os donos e crianças à catanada, retalharam os corpos e no final queimaram-nos.

    – Que horror! – disse a Etelvina chocada. E perguntou com as mãos juntas ao peito: – Não chegava matar?

    – Não – disse o marido. – Os pretos acreditam que os brancos depois de morrer ressuscitam. É por isso que os cortam aos pedaços.

    – Ouviram o vosso pai... – alertou a mãe. – Vocês querem assistir a isso?

    – Pronto, convenceu-me – concordou o Alexandre. – Vamos para o Porto.

    A Etelvina telefonou para a mercearia da Alameda Basílio Teles, que pertencia ao primo dela. O merceeiro atendeu o telefone e, depois de uma breve conversa entre os dois, a Etelvina pediu-lhe para chamar a mãe, que precisa de falar com ela.

    – Liga-me daqui a dez minutos, que vou mandar o meu empregado chamá-la a casa – disse o primo.

    Alguns minutos depois a Etelvina voltou a ligar e foi a Dona Cândida que atendeu o telefone. A senhora mostrou-se muito preocupada com o que se estava a passar e comprometeu-se em dar guarida aos netos. Ficou combinado que os manos Barbosa seguiriam viagem na próxima quarta-feira para Portugal e que ela os iria buscar ao aeroporto de Pedras Rubras ao fim da tarde.

    Depois do almoço, os pais sentaram-se nos sofás da sala, com a ventoinha do teto a girar, para refrescar o ambiente, e a telefonia ligada. Aguardavam que dessem catorze horas para ouvirem as notícias da BBC. Os dois rapazes sentaram-se à mesa, a fazer os trabalhos da escola.

    Entretanto a campainha tocou. O Lucas levantou-se e foi a correr lá fora atender. Abriu o portão e viu a Patrícia, a filha dos vizinhos e colega da escola do Alexandre.

    – Boa tarde – cumprimentou-o a Patrícia.

    – Olá!

    – O Alex está?

    – Está. Entra.

    Encaminhou a amiga para casa. Ao entrem na sala, a Patrícia saudou:

    – Boa tarde, malta.

    – Boa tarde – responderam os pais e o Alexandre.

    – E então, Patrícia? – perguntou o Alexandre. – O que contas?

    – Venho-me despedir de vocês.

    – Despedir?! – exclamou a Etelvina.

    – Sim. Hoje vamos embora.

    – Para onde? – quis saber o Barbosa.

    – Vamo-nos encontrar com os meus tios em Lourenço Marques. Depois seguimos de avião para Lisboa.

    O Barbosa olhou para a esposa com cara de caso e perguntou:

    – Porquê tanta pressa?

    – O meu pai não quer ficar cá mais tempo. Diz que agora os pretos é que mandam em Moçambique e, como é magistrado, teme que a população se queira vingar de nós.

    – Compreendo – disse a Etelvina preocupada. – O Alexandre e o Lucas também vão embarcar na próxima quarta-feira. Nós os dois ainda ficamos por cá mais alguns dias.

    – Nós vamos hoje no avião da Força Aérea, com o representante do governador e os restantes funcionários judiciais do distrito.

    – O representante do governador também vai?! – admirou-se o Barbosa. – Pensei que continuaria a exercer o cargo até lhe arranjarem substituto.

    – Já foi destituído. E recebeu ordem de Lisboa para partir.

    A Patrícia explicou-lhes o que se passava e porque é que os pais tomaram a decisão de partir tão depressa. Despediu-se dos vizinhos e o Alexandre acompanhou-a até casa. Pararam à frente do portão da casa dela. A Patrícia voltou-se para o amigo, com as lágrimas nos olhos, e disse:

    – Alex! Peço-te desculpa por tudo.

    – Desculpa de quê?

    – Por saber que tu gostavas de mim e eu ainda gozei contigo.

    – Deixa lá isso.

    – Perdoas-me?

    – Não tenho que te perdoar. Eu nunca me senti ofendido.

    – Porque tu és bom. Não sei se nos voltaremos a ver.

    – Claro que voltaremos. Depois vemo-nos no Porto.

    – Ficarei à tua espera.

    A Patrícia aproximou-se do Alexandre. Com receio que não viesse a cumprir-se o que combinaram, deu-lhe um beijo nos lábios e correu para casa a chorar. O Alexandre voltou destroçado.

    – Agora que nos dávamos tão bem é que nos vamos separar. E o pior é que decerto nunca mais a voltarei a ver – disse ele para consigo.

    Estavam a ouvir as notícias na rádio, quando pressentiram barulho de tambores a aproximarem-se. O Barbosa abriu a janela da sala para ver o que se passava na rua e deparou-se com uma fila de carros, carregados com malas, baús e caixas sobre os tejadilhos. Atrás deles vinham populares a cantar canções de liberdade, a dançar e a tocar instrumentos de percussão.

    A Patrícia acenou-lhes timidamente do carro dos pais e seguiram para os lados do aeroporto, escoltados por viaturas policiais.

    – Ficámos sozinhos – proferiu o Barbosa preocupado.

    – Agora somos os únicos brancos a morar no nosso bairro – suspirou a esposa.

    – Não – corrigiu-a o Lucas, a apontar para o fundo da rua. – O sr. Rafael também ficou.

    – O sr. Rafael ainda vai arranjar problemas – atirou o pai ao vê-lo à janela com cara de poucos amigos e com uma espingarda de caçar elefantes na mão.

    Os populares, ao passarem à frente da casa deles, começaram a insultá-los e atiraram-lhes pedras. O pai advertiu a esposa e os filhos:

    – Fechem todas as janelas e as portadas, depressa!

    A família Barbosa barricou-se em casa, enquanto a população se divertia na rua, a partir tudo e a insultá-los.

    Depois de os brancos abandonarem a cidade, as pessoas da terra invadiram as suas casas e festejavam com alegria, com tiros para o ar enquanto bebiam cerveja Cuca com fartura. Roubaram tudo o que havia de valor dentro das casas e das lojas, vandalizaram e por fim incendiaram algumas propriedades.

    Capítulo II

    Na manhã seguinte, a Etelvina ficou em casa com a empregada. O Barbosa foi trabalhar e aproveitou para levar os filhos à escola de carro. Na rua o ambiente era tenso. Havia militares da FRELIMO a patrulhar a cidade. As pessoas andavam com bastões e catanas nas mãos a cantar hinos e a provocar os fiéis ao antigo regime.

    O Barbosa fez um desvio, para evitar as ruas mais movimentadas. Deixou os filhos no Colégio Inglês e seguiu para o armazém de venda de tecidos que tinha no centro da cidade. Abriu a loja há hora do costume, mas os empregados não aparecerem para trabalhar, nem tão pouco havia fregueses para atender. Para se ocupar, pegou na lista das existências e andou pelas prateleiras a conferir o stock. Facilmente depreendeu que fora roubado pelos empregados e que estava a ficar sem mercadoria para vender. Pensou: «Agora que não tenho quem me abasteça, vou mas é aproveitar a boleia do avião da próxima quarta-feira e ir embora com a família, antes que seja tarde.»

    No Colégio Inglês, os dois manos Barbosa eram os únicos alunos brancos que ainda frequentavam a escola. Os outros tinham ido embora ou ficaram em casa. Enquanto esperavam no recreio pelo toque de entrada, conversavam com os amigos negros sobre a sua retirada. A Cesária viu-os e foi ter com eles. Perguntou ao Alexandre:

    – Viste a Patrícia?

    – Não. Ela foi ontem para a Metrópole.

    – Ai sim? Pensei que só iria na quarta-feira.

    – Nós é que vamos na quarta-feira – disse o Lucas pouco animado.

    – Então estás com sorte – proferiu o Kiko.

    – Sorte? Sorte porquê?

    – Porque assim podes ver o Eusébio a jogar no Estádio da Luz.

    – O estádio do Benfica é em Lisboa e nós vamos para o Porto.

    – Ai sim? Não sabia.

    – Eu também gostava de conhecer a Metrópole – disse a Cesária.

    – Aquilo não tem nada que ver – desvalorizou o Alexandre.

    – E não podes – continuou o Anselmo. – Só os brancos é que podem embarcar.

    – Alguns pretos também embarcaram – lembrou-o Kiko.

    – Os cobardes e os medricas – declarou o Jonas com desdém.

    A resposta do Jonas deu em discussão, porque os amigos não concordavam com o ponto de vista dele e estiveram a falar sobre o assunto até dar o toque para dentro.

    Nesse dia também faltavam os professores brancos e os professores negros que compareceram para trabalhar davam as aulas com pouco empenho por não receberem vencimento há vários meses.

    Como havia poucos alunos, os professores juntaram-nos por idades. As aulas decorriam com alguma normalidade. De repente sentiram uma forte explosão, que abanou com o edifico, seguida de pequenas explosões em vários locais da cidade e disparos de armas automáticas.

    Os professores mandaram os alunos deitarem-se sob as mesas para se protegerem e aguardaram por instruções do diretor da escola.

    O Lucas e o colega de carteira estavam todos contentes com o sucedido. O Kiko disse:

    – Pá, as aulas deviam ser sempre assim.

    – Pois é. Divertimo-nos à brava.

    – Olha para a professora, cheia de medo!

    – Sim. Está tão pálida que até parece branca – riu o Lucas.

    – Vou gatinhar até à janela, para ver o que se passa lá fora.

    – Não te aconselho. Nos confrontos da semana passada uma moça foi à janela e levou um tiro.

    – Eu sei. Era a minha vizinha Marlene.

    – Ai sim? E o que é feito dela?

    – Morreu no hospital.

    – Então deixa-te estar aqui quietinho, para não te acontecer o mesmo.

    Os confrontos foram interrompidos com a entrada de marinheiros e fuzileiros da Armada portuguesa na cidade. Nas ruas havia mais de uma dezena de cadáveres, de civis, das milícias, dos soldados da FRELIMO e dos guerrilheiros anticomunistas.

    Por causa da insegurança, a vice-diretora da escola mandou os professores interromper as aulas e aguardar no polivalente pela ordem dos militares para mandarem os alunos para casa.

    Os soldados portugueses ocuparam posições defensivas nas ruas principais da cidade e deram ordens aos colonos, através de megafones, para abandonarem as suas casas e reunirem-se no átrio da Sé Catedral de Nampula. Dali seguiriam em coluna militar para a Ilha de Moçambique. À medida que os brancos abandonavam as suas casas, a população negra vinha atrás e tomava conta do território desocupado.

    Quando os dois manos Barbosa chegaram a casa de boleia dos fuzileiros, os pais já tinham as malas deles feitas para partir.

    – O que se passa? – inquiriu o Alexandre surpreso.

    – Vamos todos embora para Portugal – respondeu a mãe.

    – Mas nós só íamos na próxima quarta-feira – lembrou-a o Lucas.

    – Mudança de planos – declarou o pai. – Os militares têm ordens expressas dos políticos da Metrópole para ajudarem a evacuar em segurança todos os brancos que ainda quiserem partir. Eu não vou arriscar mais.

    – E tem de ser hoje? – interrogou o Alexandre.

    – Tem. Agora despeçam-se da Antónia, que já estamos atrasados – disse a mãe.

    Os miúdos abraçaram a empregada e cobriram-na de beijos. Depois foi a vez de a dona da casa se despedir dela.

    – Adeus, Antónia – disse a Etelvina com as lágrimas nos olhos.

    – Adeus, minha senhora. Não se preocupe, que eu tomarei conta da sua casa e, quando regressar, encontrará tudo como está.

    – Não cries ilusões, rapariga.

    As duas abraçaram-se. No final, a Etelvina pegou numa malinha e saiu a chorar. O Barbosa, ao despedir-se da empregada, declarou com um nó na garganta:

    – Antónia, eu desconfio que nós partimos para nunca mais voltar. Se isso se confirmar até ao final do ano, a casa e tudo o que tem cá dentro ficarão para ti.

    – Não se dê por vencido, patrão. A situação há-se melhorar.

    – Não acredito. Bem, agora adeus!

    – Adeus!...

    Deram um aperto de mão com emoção. O Barbosa saiu e a empregada acompanhou-o até à porta. Meteram-se no carro e seguiram atrás de uma Berliet dos fuzileiros. Pelo caminho, a população apedrejava-os e metiam-se à frente da viatura, com bastões e catanas a ameaçar que os iriam linchar. O Barbosa ficou abalado com o sucedido, porque descobriu no meio da multidão um empregado que ele tanto estimava e considerava como se fosse da família a comportar-se como os outros.

    Foi necessário os fuzileiros abrirem fogo para o ar, para a população se afastar. Depois seguiram em alta velocidade para a Sé Catedral. Os carros chegavam à praça, carregados com malas, baús e tudo o que os colonos conseguiram levar.

    O tenente Diogo Pires, que comandava a força de fuzileiros, preparava a retirada com o apoio da polícia e do futuro governador de Nampula. Ao ver que não vinha mais ninguém, deu ordem aos fuzileiros para abandonarem as posições defensivas e partirem.

    O Barbosa alertou-o:

    – Ainda falta muita gente, sr. tenente.

    – Bem sei. Mas não podemos esperar mais tempo.

    – Porquê?

    – Acabámos de receber ordem do comando da FRELIMO para irmos embora. Agora siga para o seu carro, que já vamos partir.

    Os soldados e os civis entraram nas viaturas à pressa e arrancaram em coluna militar na direção da costa. Um carro da polícia seguia à frente deles, a abrir caminho pelo meio da população. Ao todo eram três Berliets, um Unimog e nove viaturas civis. Pelo caminho a população insultava-os.

    O Alexandre voltou-se para trás e proferiu com uma tristeza profunda:

    – Adeus, Nampula!

    Ao chegarem à saída da cidade, o carro da polícia encostou na berma da estrada e o agora comandante das forças de segurança de Nampula saiu e despediu-se do tenente Pires com um aperto de mão.

    – Faça boa viagem, camarada – desejou o polícia, com pena de os ver partir assim.

    – Obrigado, Sebastião. Desejo-te sucesso na carreira.

    – Obrigado. Um dia voltaremos a ver-nos num ambiente melhor.

    – É o que todos desejamos.

    Depois da despedida, os veículos seguiram devagar. Percorreram mais de vinte milhas sem incidentes, até começarem a ser alvejados por trás.

    O condutor da Berliet que fechava a coluna militar informou o comandante pelo rádio:

    – Sr. tenente, estamos a ser seguidos por dois carros de combate.

    – Manda os fuzileiros abrirem fogo sobre eles e abranda, para dar tempo de nos afastarmos de vocês.

    – Sim, senhor.

    Depois de passarem uma zona com muitas curvas, entraram numa reta que atravessava um vale agrícola a perder de vista. Os motoristas aceleraram a fundo e, logo que o vale terminou, entraram na floresta. As viaturas militares abrandaram, os fuzileiros desceram em andamento e esconderam-se no mato da berma da estrada. Os carros militares e civis seguiram e pararam a pouco mais de quinhentos metros à frente.

    O Pires ordenou ao cabo Pessegueiro:

    – Evitem atirar para matar!

    – Sim, senhor.

    Puseram-se todos a postos. Pouco depois, passou por eles a Berliet em alta velocidade. Ao passarem os veículos dos seus perseguidores, os fuzileiros abriram fogo sobre eles. Dispararam essencialmente contra os pneus.

    Uma viatura saiu desgovernada da estrada e embateu violentamente contra uma árvore. O outro jipe parou a poucos metros, com os pneus furados. Os guerrilheiros saltaram para o terreno e, como sabiam que havia ordens expressas do governo português para os militares não repostarem, abriram fogo sobre eles. Os fuzileiros ignoraram a ordem do tenente Pires e defenderem-se. Os guerrilheiros, ao verem que não tinham hipótese contra o poder de fogo inimigo, largaram as armas

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