O Cirurgião
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Primeiro, inventou a imortalidade. Da noite para o dia, todos que eram jovens se esforçavam para não aparentá-lo: ninguém queria ser vítima dos caça-corpos. Depois, criou os corpos artificiais: ninguém mais teve que temer. Agora, o Cirurgião foi mais além.
Gilberto é um espião corporativo e seu objetivo é roubar o segredo do reengate corporal e os corpos artificiais. No entanto, tudo se desmorona quando é descoberto pelo próprio Cirurgião. Para surpresa de Gilberto, não o entrega às autoridades nem ordena seu assassinato; em seu lugar, sai fugindo. Por quê?
A surpresa dá lugar à intriga; a intriga, à suspeita. A perseguição dura pouco. Agora o criador da imortalidade jaz imóvel sobre o asfalto. Suas últimas palavras são uma súplica para que não o recordem como um monstro que condenou a humanidade.
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O Cirurgião - Carlos Pérez Casas
1
O criador da imortalidade jazia imóvel sobre o asfalto. Comovido pelo que acabara de contemplar, Gilberto guardou sua eletrovara no interior de sua jaqueta e percorreu a distância que o separava do corpo em dez pernadas. O som de uma buzina se misturava com o estrondoso serpentear dos tubotrens que devolviam os trabalhadores a suas casas. Os motoristas detinham seus veículos e colocavam a cabeça para fora, tentando averiguar o que havia acontecido. As placas de dados tirando retratos do acidente não tardaram em aparecer nas mãos excitadas dos pedestres. Alguém havia sido atropelado na Ponte Europa.
Os olhos do ferido se moviam confusos e seus lábios só se despregavam para emitir fracos gemidos de dor. Seu tornozelo retorcido se apoiava no Sander Omega. Gilberto se ajoelhou para verificar seu estado. Ao inclinar sua cabeça, alguém se deu conta da identidade da vítima.
—É o Cirurgião!
O interesse cresceu entre os presentes. Mais e mais placas de dados apareceram para tomar imagens do que estava ocorrendo. Assim como muitos outros motoristas, o dono do Sander Omega havia saído de seu veículo para contemplar a cena. Suas roupas o apontavam como sacerdote, suas mãos tremiam de espanto e as pernas pareciam incapazes de sustentá-lo em pé. O forte vento procedente do rio Ebro não ajudava. Aproximou-se arrastando os pés e deteve-se a uma distância prudente.
—Ficará bem? —perguntou o sacerdote com voz atormentada.
Gilberto engoliu saliva. Não tinha dúvida de que o Cirurgião morreria ali mesmo, apesar dos gritos histéricos dos que reclamavam um médico que não chegava. Só os curiosos acudiam ao lugar do acidente.
—Gilberto... —sussurrou o ferido.
O sacerdote conteve o alento, esperançoso.
—Estou aqui, senhor —disse Gilberto pegando a mão do Cirurgião—. Como ele está?
—É melhor que ele não fale —sugeriu alguém.
Gilberto concordou, havia algo de antinatural na forma do crânio e o sangue jorrava em abundância.
—Há quanto...? —perguntou o Cirurgião. Seus lábios tremiam e seus olhos o olhavam assustado—. Há quanto tempo está na polícia?
Aquilo foi uma surpresa e Gilberto não soube o que responder.
—Você é da polícia? —perguntou o sacerdote—. Você viu o que aconteceu, não viu? Ele atravessou e não pude frear. Era impossível!
Gilberto fingiu não escutar. Sou espião. O que o faz pensar que sou um azul?
. No outro extremo da ponte, a elegante sede da New Life se erguia por cima de qualquer outro edifício de Saragoça. O último sol da tarde brilhava em suas janelas superiores e bastava olhar aquela estrutura para perceber seu poder e influência sobre aqueles que estavam sob sua sombra. Os olhos de Gilberto percorreram sua fachada envidraçada até a planta cinquenta e quatro, onde havia começado aquela inesperada perseguição.
Por que fugiu? Por que não avisou aos seguranças quando me surpreendeu em seu computador?
. Apenas uns poucos segundos antes o cérebro de Gilberto havia se esforçado em inventar uma desculpa com a esperança de ganhar tempo antes de que os guardas com eletrovaras o caçassem. Agora se esforçava em compreender o que havia acontecido. Por que um pânico atroz havia se apoderado do Cirurgião ao ver Gilberto na frente daquela tela, o mesmo pânico que o havia levado até as vias da Ponte Europa.
O para-choque do Sander Omega gotejava sangue.
Aqui tem mais do que me contaram
, refletiu Gilberto virando-se para o ferido. Novas perguntas sobre o que realmente se escondia por trás dos êxitos do Cirurgião o invadiram.
—Diga ao mundo que eu não quis fazer aquilo. —suplicou o moribundo enquanto seu olhar se perdia entre os rostos dos que se agrupavam para vê-lo. Rostos aflitos e surpresos—. Me empurraram, Gilberto. Disseram que podia, então eu fiz.
As pessoas iam se aproximando mais e mais à medida que os carros paravam. Os esforços de um bot de circulação para restabelecer o tráfego eram inúteis.
É o Cirurgião, não deixavam de repetir enquanto rodeavam o ferido, como vidros proporcionando calor a uma agrocúpula.
—Não quero ser um monstro —soluçou o Cirurgião.
Chorava, não por causa da dor ou da iminência de sua morte, mas porque tinha medo. Medo de quê? O que ele fez?
. O sacerdote se ajoelhou lentamente sobre o moribundo.
—Você não é um monstro —alegou com voz solene—. Você salvou meu pai duas vezes: primeiro quando descobriu como enganar a morte, e depois quando o livrou dos caça-corpos. Ninguém fez tanto por nós como você.
—Seu pai vai morrer —disse o Cirurgião ao sacerdote. Fechou os olhos por tanto tempo que Gilberto pensou que não abririam de novo, mas abriram—. Todos vão, quando chegar a hora. Condenei toda a humanidade.
Está a ficar pálido
.
—Mas graças a você nossos filhos podem viver sem a ameaça dos caça-corpos.
Gilberto apertou os dentes, irado porque muitos acreditaram nas doces mentiras da imprensa. Os caça-corpos continuavam operando, mas ficaram mais sofisticados. Os orfanatos fecharam porque já não haviam mais órfãos. E nos campos de refugiados só haviam anciãos. Acabar com os caça-corpos era um dos fatores que havia incentivado Gilberto a aceitar aquele trabalho, mas agora o Cirurgião estava morrendo em frente aos seus olhos. Preciso de seu segredo dos corpos
.
Embora ali houvessem muitas testemunhas, o espião buscou nos bolsos do Cirurgião algo que pudesse ser de utilidade. Encontrou um cartão de chaves, um arcaico relógio de bolso, sua placa de dados pessoal e alguns papéis. Guardou o cartão no bolso e ligou a placa de dados, o vento não tardou em fazer desaparecer os papéis.
A multidão o olhava com expressão de censura.
—O que está fazendo?
—Quem é você?
Perguntas demais
, pensou Gilberto olhando ao seu redor. Alguns apontavam seu uniforme de guarda de segurança da New Life. Sentia-se encurralado e precisava que aquela gente o deixasse tranquilo enquanto pensava no que faria a seguir. Extraiu seu identificador pirata e pressionou a tecla de criação de novo perfil.
—Sou inspetor de delitos econômicos para o Ministério da Fazenda. —O aparelho foi gerando uma identidade falsa conforme falava—. Estava a trabalhar numa operação encoberta para combater a evasão de impostos da New Life quando presenciei este acidente. —Tão logo sua nova identidade ficou pronta, a levantou para que todos pudessem vê-la—. Não se preocupem, os serviços médicos estão a caminho.
Gilberto percebeu que apesar da grande quantidade de congregados, ninguém havia se oferecido a atender as feridas. Já o consideram perdido
. Olhou a placa de dados do Cirurgião, onde se projetava uma barra de carga.
Projeto_NM/protocolo/apagado_safra/.
Progresso: 4,1 %.
—São dados a se apagar? —perguntou ao Cirurgião.
Não respondeu, continuava observando os rostos das pessoas. Haviam os que afastavam o olhar como se sentissem vergonha, uns poucos se mantinham em respeitoso silêncio, outros choravam e muitos falavam com seus comunicadores. Em poucos minutos a notícia se propagaria por todo o sistema solar.
O religioso murmurava em voz baixa.
Progresso: 4,3 %.
A lentidão com que a barra avançava e o calor que o aparelho desprendia eram provas de que se tratava de algum processo de grande envergadura.
—O que é o projeto NM, senhor? —perguntou.
Os olhos do Cirurgião deixaram de vagar confusos e se focaram em Gilberto. Está aterrorizado
.
—Uma brincadeira. Foi uma brincadeira —soluçou—. Tínhamos bebido muito e alguém propôs botar uma data de validade, como foi feito com a água. —O cirurgião fechou as pálpebras lentamente, um movimento tão simples parecia ser uma tortura—. Foi uma brincadeira... só uma brincadeira.
O medo se apoderou de Gilberto. Contemplou uma vez mais a barra de progresso, tentando descobrir seu significado.
—O que fez, senhor?
—Já não importa —gemeu com uma voz quase inaudível. Sua mão apontava a placa de dados—. Estamos a salvo. Ela apagará tudo.
—Ela? Quem?
O Cirurgião não respondeu. Fechou os olhos outra vez e não voltou mais a abrir.
2
Progresso: 5,1 %.
Naqueles primeiros instantes o mundo seguia seu curso. Gilberto via os zepelins publicitários sobre a cidade; os desempregados caminhavam pela margem do rio, observando com inveja os tubotrens repletos de trabalhadores; e o sol projetava as sombras alargadas dos que rodeavam o cadáver do Cirurgião.
Agora eram muitos os que choravam. Outros teclavam em seus comunicadores tentando vender manchetes