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Rastros de Tinta
Rastros de Tinta
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Ebook446 pages6 hours

Rastros de Tinta

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About this ebook

Uma história de segredos e mentiras familiares que afetarão o futuro de uma nação.

Após a morte de seu avô, Jonas recebe como herança uma imprensa abandonada junto a uma nota misteriosa. Apartir desse momento, se verá envolvido em uma rede de conspirações que abarca várias gerações e um segredo que está enterrado desde a ditadura.

LanguagePortuguês
PublisherBadPress
Release dateJun 22, 2018
ISBN9781547525720
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    Rastros de Tinta - Antonio J. Fuentes García

    À minha mãe,

    que me pôs um livro nas mãos

    quando apenas sabia ler,

    eme fez descobrir novos mundos

    NOTA DO AUTOR

    Neste romance foram modificados nomes, lugares e fatos, portanto nada é preciso... exceto alguma coisa.

    PRÓLOGO

    Madri, 1965

    Palacete do Marquês de Alella, rua Villanueva

    Apesar da mansão ser enorme, ele soube encontrar a porta que dava acesso ao salão, onde duas estátuas repulsivas de gesso com formato de mulheres seminuas e em atitude lascívia o receberam entre olhares congelados de luxúria. Ainda que José María adorasse a arte, nunca havia entendido a satisfação dos ricos da Espanha deteriorada que incessantemente se rodeavam de obras que beiravam o mau gosto. Ao seu encontro veio uma criada – que era apenas uma menina –, enrolada em um uniforme espantoso e humilhante, coroado por um boné que inclinava em sua pequena cabeça, conferindo à mulher um aspecto mais cômico do que formal.

    —Me permite ajudá-lo, senhor? — Ofereceu submissa com um fio de voz

    —É claro, me chamo José María Millán — se apresentou — E estou aqui pelo Marquês.

    —Se refere ao Dom Júlio de...?

    —O próprio — interrompeu, temendo que a pobre recitasse toda a série adjacente de títulos e menções adicionadas ao nome — Se me fizer a gentileza de o avisar, esperarei aqui mesmo.

    Se postou de forma militar – um tanto teatral – e esboçou um enorme sorriso que esperava que tranquilizasse a impúbere garota. Pareceu surtir efeito, pois a menina saiu dali, talvez para cumprir sua obrigação, talvez para escapar dos olhos daquele velho com bigode de morsa que a olhava daquela forma tão gozada. Enquanto esperava, José María passeou com os olhos pelo imenso salão, que acabava em impressionantes escadas de mármore que ascendiam em meia espiral até o segundo andar. Mais uma vez, o ocorreu aquela desigualdade entre classes daquela Espanha do pós-guerra.

    Meia-hora depois da donzela tê-lo deixado esperando no vasto espaço desprovido de cadeiras onde sentar-se do salão, apareceu Júlio Munhoz, Marquês de Alella – e outros tantos sobrenomes –, tentando imitar o porte digno dos que verdadeiramente tinham nascido na alta sociedade. Vestia uma camisa marrom de seda, finalizada com um maravilhoso colete de cor de vinho aguado, e tudo isso completo com calças excepcionais de corte impecável e mocassins italianos. Um bigodezinho fino e ridículo imitava a moda emergente na Europa, mas que para a opinião de José María, ficava horrivelmente ruim em uma cara tão pouco graciosa como a de Dom Júlio. Vendo-o caminhar com suas pernas arqueadas e sem nenhum tipo de graça, José María disse a si a frase de sua queridíssima mãe; ainda que a macaca se vista de seda...

    —Um muito bom dia, querido Millán — saudou o Marquês, ainda que somente houvesse visto José María uma única vez — O que te traz à minha humilde morada em um dia tão esplêndido?

    José María se sentiu tão mal quanto no dia em que o conheceu, ainda que em seu trabalho devesse aparentar cordialidade. Disso dependiam suas lentilhas.

    —Bom dia, Dom Júlio — correspondeu — Apenas queria te fazer umas perguntas acerca do caso do Jarabo.

    O nobre fez uma careta de desagrado que não passou despercebida por José María.

    —Um acontecimento trágico, eu diria funesto.

    —Sim.

    —Tu não sabes bem o que representa para... gente como nós — José María sentiu revirar seu estômago — Que um cavalheiro de certa linhagem cometa essas atrocidades. Quero dizer, a gente de classe inferior e os vilões se matam diariamente entre eles por uma crosta de pão, mas nós... não consigo compreender.

    —As motivações de Jarabo temo que não fossem monetárias — explicou — Mais precisamente foram de outra índole — José María havia soltado o anzol e o Marquês havia mordido a isca como tinha esperado. Agora só faltava puxar a linha de pesca — Mas de toda maneira, não queria lhe falar do Jarabo.

    O aristocrata vaidoso levantou uma sobrancelha sem compreender. Aquele gesto lhe enfeiou ainda mais o rosto, se aquilo era possível.

    —Como bem sabes, houve um tempo em que trabalhei para o Jornal El País — Munhoz assentiu — Mas de uns anos para cá meu comprometimento se dirigiu para outras, digamos...intrigas.

    —Não vejo aonde queres chegar, senhor Millán — Munhoz começava a ficar nervoso e uma fina gotinha de suor escorreu até seu bigode brilhante — Mas estou muito ocupado, então se me permites...

    —O nome Carmen Broto te é familiar? — Lançou categoricamente — Temo que o caso do Jarabo me leve a reabrir a norte da senhorita Broto.

    O Marquês mudou radicalmente de postura e deixou de lado a formalidade. José María pôde ver finalmente o tipo de pessoa com quem estava tratando, e de nenhuma maneira se tratava de um cavalheiro.

    —Ouve bem, não sei de que asqueroso tabloide tu surgiste, mas deixa de meter o nariz onde não foste chamado — se aproximou ameaçador — Ou pode ser que o cortem.

    —Estás me ameaçando, senhor Munhoz?

    —Nós cavalheiros não ameaçamos — recompôs o rosto e deu a volta para ir embora —; pagamos a outros que o façam.

    Dito isso, se foi por uma das portas que abarrotavam o lobby em direção das entranhas da mansão, e como se estivesse esperando por esse momento, apareceu a donzela à toda velocidade. Se plantou diante do convidado com uma extrema timidez, e o indicou o caminho até a porta.

    —Não se incomode, querida, sei sair tal como entrei — cravou o olhar na jovem, que não teria mais do que 16 anos e era de uma beleza indomável — Mas cuide-se de seu senhor, está bem?

    A moça cravou seus olhos amedrontados nos do jornalista pela primeira vez e José María viu algo neles que não soube identificar. Medo, talvez determinação...

    —Se me permite — ela acenou com um gesto da mão

    ****

    Apesar de não gostar da bebida, José María se deixara persuadir por seus companheiros da redação e tinham ido parar no El Tapete, se empanturrando de cerveja morna e tripas com tomate. Já de noite, se despediu meio embriagado de seus companheiros que cantavam cara ao sol com os jarros ao alto.

    —Fique um pouco mais, estraga-prazeres! —Insistiram, mas decidiu recusar a oferta quando se deu conta de que o custava focar a visão.

    —Estou indo, que os bêbados e eu não nos damos muito bem — brincou.

    Escutando as gargalhadas de seus companheiros saiu para a refrescante noite de meio de maio, que contrariamente a todas as previsões se apresentava tempestuosa. Andou indeciso por Severo Ochoa até Candilejas e de lá atravessou os becos escuros da Peleterías. Quando estava quase chegando na Gran Vía sentiu um tremendo empurrão nas costas que o fez tropeçar até cair no chão, e antes que pudesse se perguntar o que passara, duas mãos fortes o agarraram pela nuca e pelas costas e o meteram a empurrões a um beco em trevas. Recebeu socos de várias direções que lhe quebraram os dentes, o nariz e os lábios, e um pontapé no estômago que o fez soltar todo o ar acumulado pelo medo em seus pulmões. Cegado pelo terror, conseguiu distinguir dois rostos meio ocultos entre as sombras, vestidos com gorros. Um deles colocou a mão em uma das tiras que estavam penduradas em seu cinto, e uma centelha brilhos entre a escuridão. José María soube o que ia ocorrer antes de que acontecesse, mas isso não impediu que dez centímetros da lâmina de Toledo fossem incrustados em suas tripas. Contou uma, duas, três vezes...até que se encontrou estendido no chão, observando os sapatos daqueles esfaqueadores se afastarem rua abaixo. Depois daquilo, seus olhos se fecharam.

    Capítulo 1

    ––––––––

    Deu o sinal, e de imediato a luz vermelha o confirmou que estava sendo gravado. Compôs o gesto mil vezes ensaiado, e começou a falar. Se movia devagar – para que o câmera pudesse segui-lo –, mas sem perder uma atitude de fingida naturalidade. Quando acabou de falar suspirou com cansaço e se dirigiu ao homem que se encontrava junto a ele.

    —Se imaginava na faculdade cobrindo as merdas de um acobertamento de políticos? — perguntou asperamente. O câmera, um sujeito formado com mais pelo na barba do que na cabeça fez uma careta.

    —Sempre se esquece, Jonas, que eu não fui à universidade como vocês, os ricos — brincou — Então essa merda é glória para minhas parcas expectativas.

    —Os meninos maus não dizem coisas como parcas — contestou, o golpeando no antebraço — Então se vai dar uma de duro, modifica sua linguagem.

    Ambos se afastaram da porta do congresso entre risadas, onde haviam estado cobrindo a notícia de um novo encontro entre os grupos políticos que não se decidiam a unir seus recursos para governar a Espanha. Como quase sempre que cobriam uma notícia em Madri, deixaram os utensílios de trabalho no pequeno furgão Nissan Vanette, e enviaram uma mensagem para a redatora da cadeia prometendo levar a entrevista uma hora mais tarde, para eliminar os minutos que sobravam e corrigir as falhas. Se por acaso algo não tivesse ficado compreensível, Jonas realizaria uma locução no estúdio, que logo estaria em sobreposição com suas palavras na rua. Vantagens de não entrar ao vivo. Se aproximaram do El Templete – uma cafeteria que estava na moda entre os deputados por sua saborosa variedade de sobremesas – e pediram o de sempre.

    —Para mim um café com leite semidesnatado — demandou Juan Diego — E com adoçante, por favor.

    Jonas o olhou com gesto zombeteiro, e seu amigo decidiu não entrar de novo na mesma batalha. Há alguns meses, Juan Diego havia estabelecido para si mesmo umas normas dietéticas um tanto estranhas. Pedia o café com adoçante, jamais tomava com a comida outra coisa que não fosse água ou Coca Cola Zero e, ainda que o deixassem louco, não tocava nas tortas nem nos doces; no entanto, não vacilava em comer abundantemente um cozido madrileno com sua porção extra de grão de bico e bacon, argumentando que para um sujeito grande como ele aquilo eram as proteínas que seu corpo necessitava. Jonas contava com a imensa sorte de ser dessas pessoas que mantém a linha apesar de comer qualquer coisa, e zombava uma vez ou outra de seu companheiro.

    —Para mim, me veja um expresso com leite condensado — se virou a seu colega e o dedicou um sorriso cruel — E um desses pedaços de torta de chocolate que tema aí, pode ser, Clara?

    A moça o correspondeu com resplandecente sorriso das adolescentes e foi preparar o pedido. Juan Diego resmungou algo por entre os dentes.

    —Que disse?

    —Nada.

    —Sim, colega, você disse algo — insistiu Jonas — Venha, seja valente!

    O homem robusto se virou meio de lado no assento e dedicou uma expressão arisca a seu companheiro.

    —Eu disse — disse remarcando muito as palavras — que tomara que Deus me bendiga com a sorte de poder estar aqui no dia em que seu intestino pareça o de uma grávida de sete meses.

    —É muito feio desejar o mal alheio.

    —Querido Jonas, você sabe que por natureza sou boa pessoa, mas você tira o pior que há em mim.

    Jonas soltou uma estridente gargalhada que ressoou pela deserta cafeteria e deu uma sonora palmada nas fornidas costas de seu amigo. Não tiveram que se preocupar em manter os bons modos, porque ainda que em menos de meia hora aquele local estaria cheio, naquele momento só se encontravam eles e os garçons.

    —Sabe, estou cansado disso — expressou Jonas mudando de tom e abrindo os braços — De tudo isso. Dos artigos de enchimento, dos passeios a toda velocidade para tirar algumas palavras do corrupto da vez, das meias verdades ou as correções politicamente corretas.

    —E o que esperava? É jornalista.

    Os cafés chegaram e Clara esperou mais do que o normal para o elogio matinal de Jonas que não chegou. Quando falava de seu trabalho perdia seus modos habituais.

    —Outra coisa, Juandi, esperava outra coisa! — Contestou lançando a voz, apaixonado — Quando me formei jornalista esperava, não sei, outro tipo de jornalismo.

    —Jonas, já não se faz o tipo de jornalismo que seu avô fazia — reestabeleceu seu amigo removendo o café, sabendo o que vinha na continuação. Aquela conversa havia saído muitas vezes já entre eles.

    —Qual? Jornalismo de investigação? — Seu ardor aumentou — Jornalismo real? Artigos de verdade?

    —Isso ainda se faz.

    —Sim, claro, em documentários sobre os bazares chineses ou os empresários que defraudam! — Se exasperou — Me refiro a pegar uma notícia, puxar o fio, cheirar e publicar sem restrições a trama.

    —Para isso há a polícia — interviu dando pequenos goles em sua xícara — Creio que se equivocou de profissão.

    Jonas deu um bufo de consternação ao notar como a mente obtusa de seu amigo começava a sair do controle. Agarrou o garfo e cortou um enorme pedaço de torta, assegurando-se de que seu companheiro o via bem antes de comê-lo. Aquele tema conseguia tirá-lo do sério, e Juan Diego não contribuía para sua melhora. Mastigou de forma exagerada e desfrutou com um suspiro de prazer. Seu amigo grunhiu ao seu lado.

    —E por que deixou o jornal? — Apontou o câmera em um alarde de aspereza, pois sabia que estava pondo o dedo na ferida.

    —Está falando sério? — Jonas se deteve, com a xícara de café no meio do caminho — Você está tirando sarro da minha cara?

    —Pagavam bem — se divertiu o outro. Ainda que gostasse de seu companheiro, às vezes gostava de cutucá-lo.

    —Sim, por escrever o que me ditavam.

    —Seu pai sabe melhor — Juan Diego estava usando todo o arsenal. O tema da torta o havia emburrado — Querendo ou não, o sobrenome pesa.

    Jonas acabou o percurso da xícara e tomou um grande gole. Notava como o calor começava a recorrer por suas entranhas, mas não queria dar esse gosto a seu colega.

    —Coisas de menino rico — disse com ênfase — Você mesmo disse.

    Com aquela frase, Juan Diego deu por concluída sua vingança. Conhecia seu amigo desde os anos da universidade, e sabia que se conter com aquele tema o estava exigindo um sacrifício enorme. Decidiu suavizar as águas.

    —Então, vai voltar a ver aquela boazuda?

    —A Mar? Creio que não — Jonas tinha mantido uma comentada relação com uma bela jornalista das notícias — Não terminamos muito bem.

    De repente soou o Iphone de Jonas – que o sacou do bolso de sua camisa de comando – e olhou a tela. O número que aparecia o deixou momentaneamente sem reação. Juan Diego o olhava atônito, como se temesse ter levado as coisas longe demais e dado um infarto a seu amigo.

    —E falando de invocar o Diabo — comentou em um sussurro. Apertou a tecla verde para atender a chamada — Diga, papai.

    Juan Diego se engasgou com o último gole de café. Sabia muito vem que Jonas estava sem falar com seu pai desde que este deixara o jornal, fazia mais de três anos.

    —Ahan — assentiu sem dizer nenhuma palavra — E como está a mamãe?

    Escutou em silêncio mais alguns segundos, enquanto continuava assentindo. Depois, sem se despedir ou pronunciar uma sílaba, desligou o celular.

    —Que houve? — Se interessou seu amigo — Sua mãe está bem?

    Jonas tinha uma relação boa com a mãe, ainda que só se falassem em datas marcadas como nos aniversários ou em festas. A pesar de viver na mesma cidade, Jonas estava há mais de seis meses sem visitar a casa de seus país, e quando o fez pela última vez foi porque seu pai se encontrava numa viagem em Barcelona.

    —Hein? Sim, sim, minha mãe está bem — afirmou — É meu avô.

    Jonas parecia abatido e seu colega temeu o pior. Se a alguém seu amigo respeitava, esse era a seu avô.

    —Juandi, preciso que me faça um favor — pediu — Poderia se encarregar por mim da notícia do congresso?

    —Não tem problema, cara. Mas o que está acontecendo? — Se inquietou.

    —Colega, logo vou ligar para a Raquel, mas preciso tirar uns dias — agia como se já não estivesse ali — Diz isso a ela por mim?

    —Meu velho, você está sem tirar um dia de férias desde que começou, a Raquel vai inclusive ficar aliviada.

    Seu amigo concordou com um sorriso vago no rosto e chamou Clara para pedir a conta. Depois de pagar, deu um abraço em seu companheiro e deu meia volta.

    —Mas aonde vai? — Juan Diego ficou com um gosto amargo na boca. Talvez não devesse ter brincado tanto com ele — Devo me preocupar?

    —Não estou indo — tentou sorrir, mas não ficou bem — Estou voltando para casa, colega.

    Capítulo 2

    Decidiu pegar o trem na estação Novos Ministérios, ainda que a de Atocha estivesse mais próxima. Precisava se livrar, caminhar um pouco, e em Atocha o reboliço sempre era maior.

    Comprou um ticket na classe turista e recusou a oferta de um ticket de volta pela metade do preço. Apesar das recomendações da garota da mesa em referência ao AVE, preferiu tomar o trem Altaria, porque ainda que demorasse um pouco mais, o trazia muitas boas memórias. Também recusou a oferta de chegar diretamente a Lorca, pois uma gostosa melancolia se havia apoderado dele e queria recrear o mesmo trajeto que fazia todos os verões quando era menino. Recordava-se que, carregadíssimos de bolsas e malas, tomavam o trem até a estação do Carmen – em pleno centro de Murcia – e naquela pequena estação seus pais o permitiam escolher, por seu bom comportamento na viagem, um enorme sorvete com bolas de sabores. Aquele ritual chegou a se converter no único momento real que experimentou com seus pais. Não se lembrava de ter vivido jamais nada que lhe fizera tanta ilusão e provocara tanta excitação como essas viagens para a casa do avô. Ao menos nada em que tivessem participado os três jutos. Quando seu pai aceitou o cargo de redator-chefe do La Razón, o perderam para sempre.

    Quando deixaram a estação e no marcador luminoso desfilaram as seguintes estações nas quais parariam, Jonas puxou a bandeja de seu assento e conectou o portátil. Uma rápida olhada nas páginas dos principais jornais confirmou que todos se referiam ao mesmo tema; a reunião daquela manhã e a falta de consenso. Uma vez mais, odiou aquilo no que se convertia o jornalismo nesse país. Observou de novo o letreiro que indicavam que deixavam Madri para trás e a chegada estimada a Murcia em umas quatro horas e quatorze minutos. Recolheu o portátil, conectou o Ipod e dormiu.

    Quando o megafone do trem anunciou o final do trajeto, acordou de supetão. Havia dormido durante toda a viagem, coisa imprópria dele, que quando muito costumava piscar uns minutos encostado na janela. Os chiados de freio apitaram com uma respiração audível por cima do murmúrio das pessoas, e ainda sonolento deixou que o resto do vagão se esvaziasse antes de levantar. Quando se pôs em pé para pegar sua mala se deu conta de que estava dolorido pela má posição durante as quatro horas de viagem, e lhe custava focar a visão com clareza; é possível que eu tenha dormido tanto tempo? Estou ficando velho disse a si mesmo.

    A estação do Carmen havia mudado muito desde que pisara nela pela última vez com doze anos. Pouco ou nada restava daquela pequena parada, e ainda que estivesse muito longe de ser uma das grandes estações de ferrovia, a de Murcia tinha cuidado de seu aspecto em relação a outras muito maiores, mas muito menos reformadas. Um pouco desorientado, se dirigiu à linha de guaritas aonde se expediam os bilhetes das proximidades e comprou um para o trem seguinte em direção a Águilas. Segundo informava um letreiro luminoso gigante onde desfilavam os horários, seu trem saía às 15:45, de forma que ele tinha adiante uma hora e vinte e cinco minutos de espera. Decidiu comer algo, pois desde o café da manhã à base de café e torta não havia comido nada e estava faminto. Buscou um tanto inquieto a sorveteria e notou com decepção que a tinham substituído por um pequeno bazar que dizia em seu slogan se nós não temos, não existe. Entrou em um Pans&Company e comeu um delicioso sanduíche de presunto, bacon e queijo derretido. Checou seu celular duas ou três vezes enquanto devorava a bocada, mas nem rastro de ligações ou mensagens. Melhor assim pensou, ainda que por algum motivo que não soube adivinhar, se sentiu decepcionado. Dez minutos antes de um trem local efetuar sua saída, Jonas estava sentado olhando com tristeza e melancolia pela janela.

    ****

    De tamanho tinha crescido um pouco, mas o alojamento da estação de Águilas tal e qual Jonas recordava de infância. A diminuta cantina, o final do trajeto com aquelas vias em desuso e com seus vagões – que tinham cumprido já de sobra seu serviço – esperando ser eliminados para cobrir máquinas mais modernas.

    Jonas não esperava um comitê de boas-vindas, mas tampouco aquele desamparo. Foi o único que deixou o trem, a pesar de que aquela era a última parada. Não havia sequer uma alma viva na plataforma, como tampouco na cantina, com exceção do entediado dono que nem se dignou a levantar o olhar do Marca. Fora, um sol de justiça o golpeou de imediato, e se surpreendeu de não ver sequer carros estacionados. Era certo que em Murcia às quatro da tarde em junho, não se pode esperar ver multidões pelas ruas, mas não esperava tamanho abandono. Passou pela frente da estação de ônibus e pediu um táxi na para próxima. O adormecido taxista o perguntou de má vontade a direção, e quando Jonas a disse pareceu escutar como o maldizia baixinho. Quando chegou na residência Vida Plena se formou um nó no estômago ao ver ali estacionado o Mercedes de seus pais.

    Capítulo 3

    ––––––––

    A residência era uma moderna estrutura de ladrilho pintado de cor óssea, rodeada por uma impressionante extensão ajardinada que se perdia à distância. Jonas se sentiu estupefato diante da enorme superfície que ocupava a mansão e suas modernas instalações.

    Ligou no interfone da entrada, e após dizer seu nome e a quem vinha visitar, abriram a porta. Seguindo as setas, atravessou um caminho de pedra que serpenteava entre uns esbeltos eucaliptos e chegou na entrada principal. Ali teve que repetir a cena do interfone e Jonas não pôde reprimir a sensação de estar adentrando uma prisão de segurança máxima e não uma residência para idosos.

    Conforme o indicaram na recepção, devia atravessar o atalho de sua direita e subir no elevador até o quarto andar, onde se encontravam os quartos. Em várias ocasiões teve que desviar o olhar incômodo ante os inquisitivos estudos dos anciãos, que vagavam pelos corredores ao mais puro estilo de um filme de zumbis. Cometeu o erro de olhar dentro de uma sala que se encontrava perto dos elevadores e onde os enfermos de mobilidade reduzida se apinhavam repousando em suas cadeiras à espera de que viessem as enfermeiras para lhes levar a um passeio ou servir comido. A visão produziu em Jonas um calafrio só de pensar que seu avô podia se encontrar naquela sala.

    O quarto andar era totalmente distinto das instâncias inferiores, pois as cores escuras e apagadas tinham sido substituídas por uma paleta de rosas e verdes que davam ao lugar um aspecto mais vivo. O desenho dos móveis se assemelhava mais a um hotel art-decó do que a uma casa, e o ar cheirava a flores frescas, provavelmente procedentes dos ambientadores colocados ao longo do corredor a cada três ou quatro metros. O quarto ao qual havia remetido a moça da informação era o 246, que estava situado ao final do corredor. No caminho, deu de cara com um par de anciãos que o saudaram com uma leve inclinação da cabeça. Estavam vestidos de forma elegante e aparentavam trocar um segredo, pois ambos riam entre cochichos e se mandavam calar um ao outro. Quando apenas faltavam um par de metros para chegar ao quarto de seu avô, uma opressão se formou nos testículos e foi subindo pelo estômago até se deter no peito. Ali de pé, no corredor de uma casa de repouso na região onde cresceu, sentiu o pânico mais atroz que havia sofrido em toda sua vida. Desde lá pôde sentir o cheiro caro e conservador do perfume de sua mãe; à moda de Marilyn, ela brincava. Ali, agarrando o peito com desespero, lhe pareceu que escutava as gargalhadas de seu avô quando Jonas tentava lançar o anzol para pescar e se enrolava entre as rocas. Por um instante pensou que estava tendo um infarto, até que aquela bola pegando fogo que havia se instalado em seu peito continuou sua subida até chegar na garganta. Faltou o ar, e as cores chamativas das paredes foram se tomando de sombra. De repente, lembrou-se que aquilo já havia sucedido alguma vez e tentou relaxar. Deixou os braços inertes ao lado do corpo e levantou um pouco a cabeça ao mesmo tempo que fechava os olhos. Inspirou pelo nariz ruidosamente, e expulso o ar lentamente pela boca. Repetiu a mesma operação várias vezes, tentando não pensar que a poucos metros, naquele quarto da casa de repouso estavam reunidos seus medos mais potentes. Por alguma estranha razão que o incomodava de forma inquietante, seu pai exercia sobre ele um efeito devastador. Não se davam bem, e a Jonas aquilo devia importar bem pouco, mas de uma forma curiosamente inexplicável, Antônio José Ulhoa conseguia retrocedê-lo à idade de seis anos com um só olhar. A isso se somava a inquietação sobre o estado de seu avô, o único homem no mundo ao qual havia amado de verdade e que havia respeitado ao extremo. Cada recordação que atesourava daquele homem era um rastro de felicidade em sua infância.

    Pouco a pouco foi recuperando a calma; notava o ar fluir de novo até seus pulmões. Aqueles acessos de pânico não eram habituais, mas tampouco inéditos. Havia sofrido um quando estudava para o vestibular, o final do diploma, sua primeira entrevista e, como não, depois de alguma discussão especialmente forte com seu pai quando trabalhava no jornal. Foi durante uma daquelas brigas quando decidiu se inscrever na yoga, e até o dia de hoje não havia feito da meditação um de seus costumes. Abriu os olhos e seu pulso voltou a se acelerar. Deu um grunhido e até um saltinho para trás. Ali mesmo, a somente um metro, um homem o olhava com dureza. Em seus olhos escuros como a noite brilhava também uma fagulha de desgosto.

    —Jonas.

    —Antônio José.

    Durante uns segundos se estudaram mutuamente, e Jonas observou como seu pai continuava se incomodando que o chamasse pelo nome. Os finos lábios de seu progenitor se curvaram em uma careta e ele deu a volta sem dizer uma palavra. Jonas, com a sensação de que tinha perdido a primeira batalha sem saber muito bem o porquê, o seguiu. Antes de entrar no quarto seu pai se voltou e pondo uma mão no peito o deteve.

    —Não se altere — ordenou — Ele não precisa de suas tolices.

    Sem dar-lhe opção para réplica desapareceu pela porta.

    O quarto era tão acolhedor e cálido como podia ser o quarto de uma casa de repouso, por mais moderna que essa fosse. A ausência de motivos pessoais confirmava que aquela, ainda que mais bonita que a de um hospital, era uma moradia de passagem. No meio do pequeno aposento se encontrava uma cama – não muito grande –, mas que parecia um campo de futebol em proporção ao corpo que a ocupava. A ambos os lados do leito se encontravam pequenas mesinhas de noite atoladas de medicamentos e vasos de plástico. Junto da cama estava sua mãe, sentada em uma incômoda cadeira de madeira. Ao vê-lo, se pôs em pé de supetão e correu para abraçá-lo. Jonas se deixou envolver nos braços daquela mulher enquanto notava o familiar cheiro de frescor que sempre tinha, e não pôde evitar observar seu avô estendido naquela cama e reduzido à metade de sua essência. Aquela vitalidade da qual Jonas se lembrava tão bem tinha se esvaído junto com sua saúde, e naqueles olhos nos quais antes vira segurança e otimismo, só reinava um sofrimento mal dissimulado. Sentiu uma vontade irreprimível de chorar, mas a frase de seu pai acudiu a sua cabeça Ele não precisa de suas tolices; mordeu a língua com força para se conter.

    —Meu filho! — Exclamou sua mãe entre sussurros — Está muito lindo.

    —Obrigado, mamãe.

    —Quando você chegou?

    —No trem — respondeu, ainda incapaz de se articular muito bem devido à angustia — Faz uns minutos.

    —Deveria ter vindo conosco — replicou secamente seu pai do outro lado do quarto — Na Mercedes demoramos somente quatro horas.

    Ele não precisa de suas tolices, se lembrou.

    Quando conseguiu se desembaraçar suavemente do abraço de sua mãe, se aproximou devagar até a borda da cama, como se temesse acordar o ancião apesar de que se via claramente que não dormia. Sentiu uma pulsão de dor quando o homem se girou no leito para vê-lo melhor.

    —Como está, vô? — Perguntou com a voz quebrada.

    —Esperando que me deixem sair dessa gruta para ir pescar com você, capitão.

    Jonas se alegrou de perceber que a doença não tinha diminuído o sarcasmo e a sutileza de seu avô. Quase começou a chorar quando a voz grave e imponente do ancião se quebrou e começou a tossir de forma descontrolada.

    —Quantas vezes eu o disse que deveria ter deixado de fumar? — Repreendeu seu pai enquanto o velho ainda se debatia entre tosses.

    Jonas levantou o olhar até seu pai e cravou seus olhos nos dele. Antônio, percebendo-se observado, compôs o gesto digno e decoroso que adotava para fazer-se ver como um íntegro membro da sociedade de intocável influência. Jonas desejou socá-lo naquela cara ilustre até que desaparecesse essa careta de petulância.

    —Meu filho — contestou o velho em voz baixa — Vai tomar no cu um pouquinho!

    A Jonas quase se escapou uma gargalhada, enquanto sua mãe soltou um gritinho e levou a mão à boca, se fingindo escandalizada. O avô sempre tinha sido o único capaz de botar seu pai no lugar que o correspondia.

    —Está bem — disse com o olhar de um condenado — Vou na cafeteria. Me chame se precisar de algo.

    —Não tenha dúvidas — acalmou o velho.

    Quando abandonou o quarto, o velho se voltou para Jonas e sua mãe e fezum gesto de perdão.

    —Perdoem — se desculpou — É meu filho e o amo, mas é que às vezes é um chato de galochas.

    Já sem a presença de seu pai, Jonas não pôde se reprimir e explodiu

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