Destinos divididos
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Sobre este e-book
AUTORA DO BEST SELLER DIVERGENTE
O destinou uniu-os. E agora vai separá-los.
As vidas de Cyra Noavek e Akos Kereseth são regidas pelos seus destinos, ditados à nascença pelos oráculos. Uma vez pronunciados, os destinos são incontornáveis.
Akos está apaixonado por Cyra, apesar do seu destino: morrer ao serviço da família de Cyra. E quando o pai de Cyra, Lazmet Noavek, um tirano desalmado dado como morto, reivindica o trono de Shotet, Akos acredita que o seu final está mais próximo do que nunca.
Quando Lazmet desencadeia uma guerra bárbara, Cyra e Akos tentam desesperadamente pôr-lhe um fim, a qualquer custo. Para Cyra, isso pode implicar arrebatar a vida ao seu hipotético pai. Para Akos, pode implicar sacrificar a própria vida. Numa estonteante reviravolta, os dois vão descobrir como os destinos definem as suas vidas de formas tão inesperadas.
Na sequela de GRAVAR AS MARCAS, Veronica Roth introduz duas poderosas novas vozes, numa narrativa de esperança, humor, fé e resiliência.
Veronica Roth
Veronica Roth is the No. 1 New York Times bestselling author of Divergent, Insurgent, Allegiant, and Four: A Divergent Collection. Ms. Roth and her husband live in Chicago. You can visit her online at www.veronicarothbooks.com
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Destinos divididos - Veronica Roth
Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.
Núñez de Balboa, 56
28001 Madrid
Título original: The Fates Divide
© 2018,
© 2018, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.
Tradutor: Ana Filipa Velosa
Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.
Imagem da capa tm & © 2018 Veronica Roth. Imagem da capa de Jeff Huang.
Desenho da capa: Erin Fitzsimmons. Usado com permissão. Todos os direitos reservados.
ISBN: 978-84-9139-268-2
Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.
Sumário
Página de título
Créditos
Sumário
Dedicação
Prólogo. Eijeh
Primeira parte
Capítulo 1. Cyra
Capítulo 2. Cisi
Capítulo 3. Cyra
Capítulo 4. Akos
Capítulo 5. Cisi
Capítulo 6. Akos
Capítulo 7. Cisi
Capítulo 8. Cisi
Capítulo 9. Cyra
Capítulo 10. Akos
Capítulo 11. Cyra
Capítulo 12. Cisi
Capítulo 13. Akos
Capítulo 14. Cyra
Capítulo 15. Cyra
Capítulo 16. Akos
Capítulo 17. Akos
Capítulo 18. Eijeh
Capítulo 19. Cyra
Capítulo 20. Cisi
Segunda parte
Capítulo 21. Cisi
Capítulo 22. Cyra
Capítulo 23. Akos
Capítulo 24. Cyra
Capítulo 25. Cisi
Capítulo 26. Akos
Capítulo 27. Cyra
Capítulo 28. Akos
Capítulo 29. Eijeh
Capítulo 30. Cyra
Terceira parte
Capítulo 31. Cyra
Capítulo 32. Cyra
Capítulo 33. Akos
Capítulo 34. Akos
Capítulo 35. Cyra
Capítulo 36. Cisi
Capítulo 37. Akos
Capítulo 38. Cyra
Capítulo 39. Cisi
Capítulo 40. Cisi
Quarta parte
Capítulo 41. Akos
Capítulo 42. Cyra
Capítulo 43. Akos
Capítulo 44. Cyra
Capítulo 45. Cyra
Capítulo 46. Akos
Capítulo 47. Cyra
Capítulo 48. Cisi
Capítulo 49. Akos
Capítulo 50. Cyra
Capítulo 51. Akos
Capítulo 52. Cyra
Quinta parte
Capítulo 53. Cisi
Capítulo 54. Cyra
Capítulo 55. Akos
Capítulo 56. Cyra
Epílogo. Eijeh
Agradecimentos
Glossário
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Para o meu pai, Frank, o meu irmão, Frankie, e a minha irmã, Candice: podemos não partilhar o mesmo sangue, mas sou imensamente afortunada por sermos família.
Prólogo. Eijeh
— PORQUÊ TÃO ASSUSTADOS? — perguntamo-nos.
— Ela vem matar-nos — respondemos.
Em tempos, sentimo-nos assustados devido a esta sensação de estar em dois corpos em simultâneo. Acostumámo-nos a ela, nos ciclos que passaram desde que ocorreu a transformação, desde que ambos os nossos dons-correntes se dissolveram neste novo e estranho dom. Agora, sabemos como fingir que somos duas pessoas em vez de uma (embora prefiramos, quando estamos sós, viver calmamente a verdade). Somos uma pessoa em dois corpos.
Não estamos em Urek, como estávamos da última vez que soubemos da nossa localização. Estamos à deriva no espaço, com a curva do fluxocorrente rosado como única interrupção da negritude.
Apenas uma das nossas duas celas tem janela. É um espaço estreito, com um colchão fino no interior e uma garrafa de água. A outra cela é uma arrecadação que cheira a desinfetante, corrosivo e acre. A única luz vem dos respiradouros da porta, agora fechada, mas que ainda assim não impede completamente o vislumbrar do brilho oriundo do corredor atrás dela.
Esticamos dois braços (um mais curto e moreno, o outro comprido e pálido) ao mesmo tempo. O primeiro parece mais leve, o segundo desajeitado e pesado. As drogas desvaneceram-se num dos corpos, mas não no outro.
Um coração palpita intensamente e o outro mantém um ritmo constante.
— Matar-nos — dizemos a nós próprios. — Estamos certos disso?
— Tão certos como os destinos. Ela quer ver-nos mortos.
— Os destinos. — Aqui, existe dissonância. Tal como uma pessoa pode amar e odiar uma coisa ao mesmo tempo, amamos e odiamos os destinos, acreditamos e não acreditamos neles. — Qual era a palavra que a nossa mãe costumava… — Temos duas mães, dois pais, duas irmãs. E, contudo, apenas um irmão. — Aceita o teu destino, ou suporta-o, ou…
— «Sofre o destino», dizia ela — respondemos. — «Pois tudo o resto é ilusão.»
Primeira parteCapítulo 1. Cyra
LAZMET NOAVEK, MEU PAI e antigo tirano de Shotet, fora dado como morto há mais de dez estações. Na primeira peregrinação após o seu falecimento, tínhamos feito um funeral em sua honra e lançado a sua velha armadura para o espaço, pois não havia corpo.
E, contudo, o meu irmão Ryzek, encarcerado no ventre desta nave transportadora, dissera: Lazmet ainda está vivo.
Por vezes, a minha mãe chamava «Laz» ao meu pai. Mais ninguém se atreveria a fazê-lo salvo Ylira Noavek. «Laz», dizia ela, «esquece isso». E ele obedecia-lhe, desde que ela não lhe desse demasiadas ordens. Ele respeitava-a, embora não respeitasse mais ninguém, nem sequer os próprios amigos.
Com ela, demonstrava alguma suavidade, mas com todos os outros… bom…
O meu irmão (que começara a vida sendo brando e só mais tarde endurecera para se tornar alguém que torturaria a própria irmã) aprendera com Lazmet a extirpar olhos às pessoas. E também a guardá-los, em conservante, para não apodrecerem. Antes de ter entendido verdadeiramente o que continham os frascos do Salão de Armas, fora até lá para os observar, em prateleiras altas, bem acima da minha cabeça, reluzentes sob a luz ténue. Íris verdes, castanhas e cinzentas, a flutuar como peixes que sobem à tona de um aquário em busca de comida.
O meu pai nunca cortara um pedaço de alguém com as próprias mãos. Também não ordenara a outra pessoa que o fizesse. Usara o seu dom-corrente para controlar os corpos das pessoas, obrigando-as a fazê-lo a si próprias.
A morte não é o único castigo que uma pessoa pode infligir a alguém. Também lhe pode impor pesadelos.
Mais tarde, quando Akos Kereseth veio ao meu encontro, fê-lo no convés de navegação da pequena nave transportadora que nos levava para longe do meu planeta natal, onde o meu povo, os Shotet, estava agora prestes a iniciar uma guerra contra a nação natal de Akos, Thuvhe. Eu estava sentada na cadeira do capitão, a girá-la de um lado para o outro para me acalmar. Pretendia dizer-lhe o que Ryzek me dissera, que o meu pai (se é que era meu pai, se é que Ryzek era mesmo meu irmão) estava vivo. Na verdade, Ryzek parecia ter a certeza de que eu e ele não partilhávamos o mesmo sangue, de que eu não era realmente uma Noavek. Fora por esse motivo, dissera ele, que eu não conseguira abrir a fechadura de genes que mantinha os seus aposentos seguros, que eu não fora capaz de assassiná-lo da primeira vez que tentara.
Mas não sabia como começar. Com a morte do meu pai? Com o corpo que nunca tínhamos encontrado? Com a sensação persistente de que eu e Ryzek possuíamos traços demasiado diferentes para alguma vez termos pertencido à mesma família?
Akos também não parecia querer falar. No chão, entre a cadeira do capitão e a parede, estendeu um cobertor que encontrara algures na nave, e esticámo-nos sobre ele, lado a lado, fitando o nada lá fora. As sombrascorrentes (o meu agitado e doloroso talento) envolviam-me os braços como cordel negro, projetando uma dor profunda até às pontas dos meus dedos.
Não tinha medo do vazio. Fazia-me sentir pequena. Dificilmente merecedora de um primeiro olhar de relance, muito menos de um segundo. E isso proporcionava-me conforto, pois preocupava-me, tantas vezes, ser capaz de causar demasiada destruição. Pelo menos, se fosse pequena e me mantivesse reservada, não causaria mais estragos. Desejava apenas o que estava ao alcance dos meus braços.
O dedo indicador de Akos enganchou-se à volta do meu mindinho. As sombras desapareceram, enquanto o seu dom-corrente contrariava o meu.
Sim, definitivamente, o que estava ao alcance dos meus braços era suficiente para mim.
— Podes… dizer alguma coisa em Thuvhesit? — perguntou.
Virei a cabeça na sua direção. Ele continuava a olhar para cima, com um sorriso ténue a curvar-lhe os lábios. Tinha o nariz pintalgado de sardas, bem como uma das pálpebras, mesmo junto à linha das pestanas. Hesitei, com a mão a pairar pouco acima do cobertor, desejando tocar-lhe, mas também desejosa de manter o desejo durante um momento. Depois, segui a linha da sobrancelha que lhe atravessava o rosto com a ponta do dedo.
— Não sou um pássaro amestrado — disse eu. — Não chilreio quando me ordenam.
— Isto é um pedido, não uma ordem. Um pedido modesto — disse ele. — Diz só o meu nome completo, pode ser?
Ri-me.
— A maior parte do teu nome é Shotet, lembras-te?
— Certo. — Atacou a minha mão com a boca, fazendo os dentes chocarem uns contra os outros, o que provocou em mim uma gargalhada sobressaltada. — O que é que era mais difícil de dizer, quando começaste a aprender?
— Os nomes das vossas cidades, que complicados — disse eu, enquanto ele soltava uma das minhas mãos para agarrar na outra, segurando-me pelo mindinho e polegar com todas as pontas dos seus dedos. Deu-me um beijo apertado na palma da mão, onde a pele estava calejada de segurar em espadascorrentes. Era estranho, que algo tão simples, dado a uma parte tão endurecida de mim, pudesse inundar-me tão completamente, levando vida a todos os nervos.
Suspirei, aquiescendo.
— Está bem, vamos a isso. Hessa, Shissa, Osoc — disse eu. — Houve uma chanceler que chamou a Hessa o coração de Thuvhe. O seu apelido era Kereseth.
— A única chanceler Kereseth da história Thuvhesit — disse Akos, levando a palma da minha mão até à maçã do seu rosto. Ergui-me sobre um cotovelo e debrucei-me sobre ele, com o cabelo a escorregar para a frente, emoldurando os rostos de ambos, comprido num dos lados, mas agora coberto de pele de prata no outro. — Isso, pelo menos, eu sei.
— Durante muito tempo, houve apenas duas famílias predestinadas em Thuvhe — disse eu — e, no entanto, salvo essa singular exceção, a liderança pertenceu única e exclusivamente aos Benesit, quando os destinos nomearam um chanceler de tudo. Isso não te parece estranho?
— Talvez não sejamos bons a liderar.
— Talvez o destino vos favoreça — disse eu. — Talvez os tronos sejam maldições.
— O destino não me favorece — disse ele delicadamente, tão delicadamente que quase não percebi o que queria dizer. O seu destino (o terceiro filho da família Kereseth morrerá ao serviço da família Noavek) era trair a sua casa pela minha família, servindo-nos, e morrer. Como é que alguém poderia ver isso senão como um infortúnio?
Abanei a cabeça.
— Desculpa, não estava a pensar…
— Cyra — disse ele. Depois, fez uma pausa, franzindo o sobrolho na minha direção. — Acabaste mesmo de pedir desculpa?
— Eu conheço as palavras — repliquei, devolvendo-lhe a expressão carrancuda. — Não sou completamente mal-educada.
Ele riu-se.
— Conheço a palavra Essanderae para «lixo», mas isso não significa que soe bem dizê-la.
— Tudo bem, retiro o meu pedido de desculpa. — Dei-lhe um piparote no nariz, com força, e quando ele se encolheu, ainda a rir, disse-lhe: — Qual é a palavra Essanderae para «lixo»?
Ele disse-a. Soou como uma palavra refletida num espelho, dita uma vez para a frente e outra para trás.
— Descobri a tua fraqueza — disse ele. — Só preciso de te provocar com conhecimento que não possuis e distrais-te imediatamente.
Refleti sobre isso.
— Suponho que estejas autorizado a conhecer uma das minhas fraquezas… considerando que tens tantas para explorar.
Ergueu as sobrancelhas em sinal de interrogação e eu ataquei-o com os dedos, espetando-lhos no flanco esquerdo, mesmo por baixo do cotovelo, no flanco direito, logo acima da anca, no tendão atrás da perna direita. Aprendera estes pontos fracos enquanto treinávamos (pontos que ele não protegia suficientemente bem, ou que o faziam encolher-se mais do que o habitual quando atingidos), mas, agora, brincava com ele com mais delicadeza do que me achara capaz de possuir, arrancando-lhe gargalhadas em vez de recuos.
Puxou-me para cima dele, segurando-me pelas ancas. Alguns dos seus dedos deslizaram sob o cós das minhas calças, e foi um tipo de agonia desconhecida para mim, um tipo de agonia que eu não me importava nada de sentir. Apoiei-me sobre o cobertor com os braços de ambos os lados da sua cabeça e baixei-me lentamente para o beijar.
Só nos tínhamos beijado algumas vezes, eu nunca beijara ninguém a não ser ele, portanto, sempre que o fazia, ainda era uma descoberta. Desta vez, descobri a extremidade dos dentes, ao de leve, e a ponta de uma língua; descobri o deslizar de um joelho entre os meus e o peso de uma mão atrás do meu pescoço, incentivando-me para que me chegasse mais perto, mais longe, mais depressa. Eu não respirava, não queria perder tempo, portanto acabei rapidamente por me engasgar contra a parte lateral do seu pescoço, fazendo-o rir.
— Vou considerar isso como um bom sinal — disse ele.
— Não fiques convencido, Kereseth.
Não consegui evitar sorrir. Lazmet (e quaisquer questões que tivesse sobre a minha ascendência) já não me pareciam tão importantes. Aqui, a pairar numa nave no meio do nada com Akos Kereseth, sentia-me segura.
E eis que se ouviu um grito, vindo de algures das profundezas da nave. Parecia a irmã de Akos, Cisi.
Capítulo 2. Cisi
SEI O QUE É VER A NOSSA família morrer. Afinal, sou Cisi Kereseth.
Vi o meu pai morrer no chão da nossa sala de estar. Vi Eijeh e Akos serem levados por soldados Shotet. Vi a minha mãe desbotar como tecido ao sol. Há pouca coisa que eu não saiba sobre a perda. Simplesmente, não consigo expressá-lo do mesmo modo que as outras pessoas. O meu dom-corrente mantém-me bem presa, envolvendo-me completamente.
Portanto, tenho um pouco de inveja da forma como Isae Benesit, chanceler predestinada de Thuvhe e minha amiga, consegue permitir-se fazer o luto. Esgota-se de emoção e, depois, adormecemos, ombro com ombro, na cozinha da nave dos exilados Shotet.
Quando acordo, doem-me as costas de estar encostada contra a parede durante tanto tempo. Levanto-me e inclino-me para a esquerda, para a direita, enquanto reparo nela.
Isae não parece bem, o que suponho que faça sentido, uma vez que a sua irmã gémea, Ori, morreu apenas ontem, com uma arena repleta de Shotets a entoarem cânticos que clamavam pelo seu sangue.
Também não a sinto bem. A textura à sua volta está toda encrespada, como sentimos os dentes quando não os escovamos. Os seus olhos saltitam de um lado para o outro da divisão, dançando pela minha face e pelo meu corpo, e não de uma forma que pudesse fazer alguém corar. Tento acalmá-la com o meu dom-corrente, transmitindo uma sensação macia, como o desenrolar de uma meada de fio de seda. Não parece ser muito eficaz.
O meu dom-corrente é uma coisa estranha. Não consigo saber como ela se sente, não verdadeiramente, mas consigo senti-lo, como se fosse uma textura no ar. E também não consigo controlar como ela se sente, mas posso fazer sugestões. Por vezes, são necessárias algumas tentativas, ou uma nova maneira de pensar nas coisas. Portanto, em vez da seda, que não produziu qualquer efeito, tento água, pesada, ondulante.
É um fiasco. Está demasiado exaltada. Às vezes, quando os sentimentos de uma pessoa são demasiado intensos, é difícil para mim causar impacto.
— Cisi, posso confiar em ti?
É uma palavra engraçada em Thuvhesit, poder. É poder e dever e ter de; tudo esmagado numa só palavra, e só é possível compreender o seu verdadeiro significado a partir do contexto. Por vezes, leva a mal-entendidos, o que provavelmente explica por que motivo a nossa língua é descrita pelos forasteiros como «traiçoeira». Isso, e o facto de os forasteiros serem preguiçosos.
Portanto, quando Isae Benesit me pergunta, na minha língua materna, se pode confiar em mim, não sei, verdadeiramente, o que quer dizer com isso. Mas, seja como for, existe apenas uma resposta possível.
— Claro.
— Estou a falar a sério, Cisi — diz ela, naquela voz baixa que usa para transmitir gravidade. Gosto daquela voz, da forma como zumbe na minha cabeça. — Há uma coisa que tenho de fazer, e quero que venhas comigo, mas receio que não vás ficar…
— Isae — interrompo-a. — Estou aqui para ti, seja o que for que necessitares. — Toco no seu ombro com dedos delicados. — Está bem?
Ela anui.
Conduz-me para fora da cozinha, e eu tento não pisar nenhuma faca. Depois de se ter fechado aqui, arrancou todas as gavetas, partiu tudo o que conseguiu agarrar. O chão está coberto de pedaços de tecido rasgado, fragmentos de vidro e plástico partido e ligaduras desenroladas. Suponho que a consigo perceber.
O meu dom-corrente impede-me de fazer ou dizer coisas que eu saiba que irão provocar desconforto nas pessoas. O que significa que, depois de o meu pai ter morrido, não conseguia chorar a não ser que estivesse sozinha. Durante meses, não podia falar de muitas coisas com a minha mãe. Portanto, se tivesse podido destruir uma cozinha, como Isae fez, provavelmente tê-lo-ia feito.
Sigo Isae até ao exterior, em silêncio. Passamos pelo corpo de Ori. Está cuidadosamente amortalhada com um lençol, portanto só é possível distinguir o declive dos seus ombros e a saliência do nariz e do queixo. Apenas uma impressão de quem era. Isae para junto dela, inspira profundamente. Sinto-a ainda mais áspera do que antes, como grãos de areia contra a minha pele. Sei que não consigo sossegá-la, mas estou demasiado preocupada com ela para não tentar.
Envio delicados tufos de esparto, e madeira dura e polida. Envio óleo quente e metal arredondado. Nada funciona. Irrito-me com ela, frustrada. Porque é que não consigo fazer nada para a ajudar?
Penso, por um instante, em pedir ajuda. Akos e Cyra estão por perto, no convés de navegação. A mãe está algures lá em baixo. Até a amiga rebelde de Cyra e Akos, Teka, está logo ali, esticada sobre o banco comprido com um lençol de cabelo louro-esbranquiçado estendido atrás de si. Mas não posso chamar nenhum deles. Por um lado, simplesmente não consigo (não consigo, conscientemente, causar aflição, graças ao meu dom-maldição) e, por outro, o instinto diz-me que é melhor conquistar a confiança de Isae.
Isae conduz-me à parte inferior da nave, onde existem duas arrecadações e uma casa de banho. A mãe está na casa de banho, consigo perceber pelo som dos salpicos de água reciclada. Numa arrecadação (a que tem janela, assegurei-me disso) está o meu outro irmão, Eijeh. Magoou-me vê-lo novamente, tanto tempo depois do seu rapto, e tão pequeno, comparado com o pilar pálido de Ryzek Noavek ao seu lado. Pensamos que, quando as pessoas envelhecem, supostamente ficam mais fortes, mais gordas. Eijeh não.
Na outra arrecadação (onde estão armazenados todos os produtos de limpeza), está Ryzek Noavek. O simples facto de saber que ele está tão próximo, o homem que ordenou o rapto dos meus irmãos e a morte do meu pai, faz-me estremecer. Isae detém-se entre as duas portas e, nesse momento, percebo subitamente que vai entrar num dos dois quartos. E não quero que entre no de Eijeh.
Sei que, tecnicamente, foi ele que matou Ori. Ou seja, tinha na mão a faca que o fez. Mas conheço o meu irmão. Nunca seria capaz de matar ninguém, muito menos a sua melhor amiga de infância. Tinha de haver outra explicação para o que aconteceu. Tinha de ser culpa de Ryzek.
— Isae — digo eu. — O que é que estás…
Ela toca nos lábios com três dedos, dizendo-me para me calar.
Está exatamente a meio dos dois quartos. A decidir alguma coisa, aparentemente, a julgar pelo zumbido ténue à sua volta. Retira uma chave do bolso (deve tê-la roubado a Teka, quando esta saiu para se assegurar de que estávamos a dirigir-nos para a sede da Assembleia) e enfia-a na fechadura da cela de Ryzek. Estico-me para lhe agarrar na mão.
— Ele é perigoso — digo eu.
— Eu aguento — responde. E depois, suavizando-se em redor dos olhos: — Não vou deixar que te faça mal, prometo.
Solto-a. Há uma parte de mim que está ávida por vê-lo, por conhecer o monstro, finalmente.
Ela abre a porta e ele está sentado contra a parede do fundo, mangas arregaçadas, pés esticados. Tem pés compridos e esguios, e tornozelos estreitos. Pisco os olhos, observando-os. Será suposto os ditadores sádicos terem pés de aspeto vulnerável?
Se Isae está, de todo, intimidada, não o deixa transparecer. Fica de pé, com as mãos unidas à frente e a cabeça levantada.
— Ora vejam só… — diz Ryzek, passando a língua sobre os dentes. — A semelhança entre gémeos nunca deixa de me chocar. É exatamente igual à Orieve Benesit. Com exceção dessas cicatrizes, claro. Quantas estações têm?
— Duas — diz Isae, rígida.
Está a falar com ele. Está a falar com Ryzek Noavek, o seu maior inimigo, o raptor da sua irmã, com uma longa fila de assassinatos tatuada na parte exterior do braço.
— Ainda vão esmorecer, então — diz ele. — É uma pena. Criam uma forma maravilhosa.
— Sim, sou uma obra de arte — diz ela. — O artista foi um verme devorador de carne Shotet que tinha acabado de vasculhar um monte de lixo.
Observo-a fixamente. Nunca a ouvi dizer nada tão odioso sobre os Shotet. Não parece dela.
«Verme devorador de carne» é o que as pessoas chamam aos Shotet quando estão a tentar insultá-los da pior forma possível. Os vermes devoradores de carne são coisas cinzentas serpenteantes que se alimentam dos vivos, de dentro para fora. Parasitas, quase absolutamente erradicados pela medicina Othyrian.
— Ah… — O seu sorriso torna-se mais rasgado, forçando o aparecimento de uma covinha na maçã do rosto. Há algo nele que atiça a minha memória. Talvez algo que tenha em comum com Cyra, embora não sejam nada parecidos, à primeira vista. — Então este rancor que tem contra o meu povo não lhe está meramente no sangue.
— Não. — Ela agacha-se, pousando os cotovelos sobre os joelhos. Faz o movimento parecer gracioso e controlado, mas estou preocupada com ela. Tem uma constituição longa e esbelta, nem de perto nem de longe tão forte quanto Ryzek, que é grande, embora magro. Um movimento errado e pode atacá-la, e o que é que eu faria para o deter? Gritar?
— Calculo que saibas bastante sobre cicatrizes — diz ela, apontando com a cabeça na direção do braço dele. — Vais marcar a vida da minha irmã?
O interior do seu antebraço, a parte mais suave, mais pálida, não tem qualquer cicatriz: estas começam no exterior e dão a volta, fila a fila. Tem mais do que uma fila.
— Porquê, trouxe-me uma faca e um pouco de tinta?
Isae contrai os lábios. A sensação de lixa que transmitia há pouco torna-se tão afiada como uma pedra partida. Por instinto, recuo na direção da porta atrás de mim e descubro o puxador nas minhas costas.
— Reivindicas sempres assassinatos que, na verdade, não executaste? — diz Isae. — Porque, pelo que sei, a pessoa com a faca na mão, naquela plataforma, não eras tu.
Os olhos de Ryzek cintilam.
— Pergunto-me, na verdade, se alguma vez assassinaste alguém, ou se todo esse trabalho é feito por outros. — Inclina a cabeça. — Outros que, ao contrário de ti, têm, realmente, coragem para o fazer.
É um insulto Shotet. O tipo de insulto que um Thuvhesit nem sequer se aperceberia de que era insultuoso. No entanto, Ryzek entende-o e os seus olhos perfuram os dela.
— Menina Kereseth — diz ele, sem olhar para mim. — Parece-se tanto com o mais velho dos seus dois irmãos. — Então, olha para mim, avaliando-me. — Não tem curiosidade de saber o que lhe aconteceu?
Quero responder friamente, como se Ryzek não fosse nada para mim. Quero enfrentar o seu olhar com força. Quero que mil fantasias de vingança ganhem vida subitamente, como flores do silêncio na Floração.
Abro a boca, mas nada sai.
Está bem, penso, e solto um estampido do meu dom-corrente, como um bater de palmas. Com o tempo, percebi que nem toda a gente consegue controlar o seu dom-corrente como eu consigo. Desejava, apenas, conseguir dominar a parte que me impede de dizer o que quero.
Vejo como ele relaxa quando o meu dom o atinge. Não tem qualquer efeito em Isae (pelo menos, que eu consiga observar), mas talvez solte a língua dele. E, seja qual for o plano de Isae, ela parece precisar que ele fale primeiro.
— O meu pai, o grande Lazmet Noavek, ensinou-me que as pessoas podem ser como espadas, se aprendermos a empunhá-las, mas a nossa melhor arma devemos continuar a ser nós próprios — diz Ryzek. — Sempre levei isso a peito. Alguns assassinatos ordenados por mim foram executados por outros, chanceler, mas, asseguro-lhe, essas mortes continuam a ser minhas.
Ele curva-se para a frente, sobre os joelhos, unindo as mãos no meio deles. Ele e Isae estão apenas a um sopro de distância.
— Vou marcar a vida da sua irmã no braço — diz ele. — Será um belo troféu para adicionar à minha coleção.
Ori. Lembro-me do chá que ela bebia de manhã (casca de harva, para obter energia e clareza) e de como odiava a lasca no seu dente da frente. E ouço os cânticos dos Shotet nos meus ouvidos: Morre, morre, morre.
— Está esclarecida a questão — diz Isae.
Estende a mão na sua direção para que ele retribua o gesto. Ele olha-a com estranheza, e não admira: que tipo de pessoa quer apertar a mão do homem que acabou de admitir ter ordenado a morte da sua irmã? E estar orgulhoso disso.
— É realmente uma pessoa estranha — diz ele. — Não devia amar muito a sua irmã, para agora me oferecer a sua mão.
Observo a pele da sua outra mão a esticar-se, a que não está estendida na direção dele. Ela abre o punho e move lentamente os dedos na direção da bota.
Estou demasiado atordoada para perceber o que está a acontecer até já ser demasiado tarde. Com a mão esquerda, puxa uma faca da bota, que estava amarrada à sua perna. Com a direita, puxa-o para a frente. Faca e homem unem-se, e ela empurra. O som do seu gemido gorgolejante transporta-me para a minha sala de estar, para a minha adolescência, para o sangue que esfreguei das tábuas do soalho enquanto soluçava.
Ryzek cai, e sangra.
Golpeio o puxador da porta com a mão e saio aos tropeções para o corredor. Estou a lamuriar-me, a chorar, a esmurrar as paredes; não, não estou, o meu dom-corrente não me deixa.
A única coisa que me permite fazer, no final, é soltar um único grito fraco.
Capítulo 3. Cyra
CORRI NA DIREÇÃO DO GRITO DE CISI Kereseth, com Akos no meu encalço, sem sequer me importar com os degraus da escada que conduzia para baixo do convés (saltei, simplesmente, para o andar inferior). Dirigi-me imediatamente para a cela de Ryzek, sabendo que, evidentemente, era ele a origem provável de qualquer coisa que causasse gritos nesta nave. Vi Cisi apoiada contra a parede do corredor, com a porta da arrecadação aberta do lado contrário. Atrás dela, Teka desceu da extremidade oposta da nave, atraída pelo mesmo som. Isae Benesit estava de pé, imóvel, no interior da cela de Ryzek e, abaixo dela, num emaranhado de braços e pernas, estava o meu irmão.
Havia uma certa dose de poesia, supunha, no facto de, tal como Akos vira o pai derramar a sua vida no chão, eu ver, agora, o meu irmão fazer o mesmo.
Demorou muito mais tempo a morrer do que eu antecipara. Foi intencional, presumi; Isae Benesit ficou o tempo todo de pé, imóvel, sobre o seu corpo, com a faca ensanguentada na mão e o olhar vazio, mas vigilante. Queria desfrutar do momento com calma, do seu momento de triunfo sobre o homem que assassinou a sua irmã.
Bom, um dos homens que assassinaram a sua irmã, porque Eijeh, que empunhara efetivamente a espada, continuava no quarto ao lado.
Os olhos de Ryzek descobriram os meus e, quase como se me tivesse tocado, fui arrastada para uma memória. Não uma memória roubada por ele, mas uma memória que eu quase ocultara de mim própria.
Estava numa passagem atrás do Salão de Armas, com o olho encostado à fenda no painel de parede. Tinha ido ali para espiar a reunião do meu pai com um proeminente empresário Shotet convertido em senhorio explorador, porque espiava frequentemente as reuniões do meu pai quando me sentia aborrecida e curiosa em relação aos acontecimentos desta casa. Mas esta reunião tinha azedado, o que nunca acontecera nas ocasiões anteriores em que eu espreitara. O meu pai esticara uma mão, com dois dedos no ar, como um ascético Zoldan prestes a fazer uma bênção, e o empresário sacara a sua própria faca, com movimentos erráticos, como se estivesse a lutar contra os próprios músculos.
Levou a faca até ao canto interior do seu olho.
— Cyra! — sibilou uma voz atrás de mim, fazendo-me dirigir a atenção para trás. Um Ryzek jovem, coberto de acne, ajoelhou-se suavemente junto de mim. Envolveu-me o rosto com as mãos. Não me apercebera, até esse momento, de que estava a chorar. Enquanto os gritos na sala ao lado começavam, pressionou as palmas das mãos abertas contra os meus ouvidos e conduziu o meu rosto para o seu peito.
Resisti, no início, mas ele era demasiado forte. Tudo quanto conseguia ouvir era o bater desenfreado do meu próprio coração.
Finalmente, afastou-me, limpou-me as lágrimas do rosto e disse:
— O que é que a mãe costuma dizer? Aqueles que procuram a dor…
— Encontram-na sempre — respondi, completando a frase.
Teka agarrou-me pelos ombros e abanou-me um pouco, dizendo o meu nome. Então, olhei para ela, confusa.
— O que foi? — disse eu.
— As tuas sombrascorrentes estavam… — Abanou a cabeça. — Esquece.
Sabia o que ela queria dizer. Provavelmente, o meu dom-corrente tinha-se descontrolado, espraiando linhas negras pelo meu corpo todo. As sombrascorrentes tinham mudado, desde que Ryzek tentara usar-me para torturar Akos no bloco de celas debaixo do anfiteatro. Agora, pairavam sobre a minha pele, em vez de se embrenharem debaixo dela como veias escuras. Mas continuavam a ser dolorosas, e consegui perceber que este episódio fora pior: a minha visão estava enevoada e havia marcas de unhas nas palmas das minhas mãos.
Akos estava ajoelhado no sangue do meu irmão, com os dedos na parte lateral da garganta de Ryzek. Observei, enquanto a sua mão caía e ele se curvava, apoiando-se nas coxas.
— Está feito — disse Akos, com as palavras a soarem espessas, como se tivesse a garganta coberta de leite. — Depois de tudo o que a Cyra fez para me ajudar… depois de tudo…
— Não vou pedir desculpa — disse Isae, desviando, finalmente, o olhar de Ryzek. Examinou todos os nossos rostos: Akos, rodeado de sangue; Teka, de olhos arregalados ao meu lado; eu, com os braços listrados de negro; Cisi, agarrada ao estômago perto da parede. O ar tinha um odor pungente a vómito.
— Ele assassinou a minha irmã — disse Isae. — Era um tirano, um torturador e um assassino. Não vou pedir desculpa.
— Não tem a ver com ele. Achas que eu não desejava vê-lo morto? — Akos ergueu-se bruscamente. Tinha sangue a escorrer pela parte da frente das calças, dos joelhos aos tornozelos. — Claro que desejava! Tirou-me mais coisas do que a ti! — Estava tão próximo dela que me indaguei se iria atacá-la, mas fez um movimento espasmódico com as mãos e mais nada. — Mas, antes disso, queria que corrigisse o que fez, queria que fizesse o Eijeh voltar ao normal, queria…
Pareceu tomar consciência subitamente. Ryzek era, fora, meu irmão, mas o luto era dele. Akos não baixara os braços, orquestrara cuidadosamente todos os elementos do salvamento do irmão, apenas para dar por si repetidamente bloqueado por pessoas mais poderosas do que ele. E, agora, conseguira tirar o irmão de Shotet, mas não o salvara, e todo o planeamento, toda a luta, todas as tentativas… tinham sido em vão.
Akos caiu contra a parede mais próxima para se manter de pé, fechou os olhos e abafou um gemido.
Eu consegui encontrar a saída do meu estado de transe.
— Vai lá para cima — disse eu a Isae. — Leva a Cisi contigo.
Durante um momento, pareceu que poderia opor-se, mas não durou. Em vez disso, deixou cair a arma do crime (uma simples faca da cozinha) exatamente onde se encontrava e colocou-se ao lado de Cisi.
— Teka — disse eu. — Podes levar o Akos para cima, por favor?
— Vais… — Teka começou e deteve-se. — Está bem.
Isae e Cisi, Teka e Akos, deixaram-me ali, sozinha, com o corpo do meu irmão. Morrera ao lado de uma esfregona e de uma garrafa de desinfetante. Que conveniente, pensei, e abafei uma gargalhada. Ou tentei. Mas não iria permanecer abafada. Momentos depois, os meus joelhos fraquejavam de riso e eu procurava atabalhoadamente na minha cabeça o lado que era, agora, pele de prata, para recordar a mim própria como ele me cortara aos pedaços para entretenimento de uma multidão, como introduzira fragmentos de si dentro de mim, como se eu fosse, simplesmente, um campo improdutivo para semear dor. Todo o meu corpo carregava as cicatrizes que Ryzek Noavek me infligira.
E agora, finalmente, estava livre dele.
Quando me acalmei, comecei a limpar a balbúrdia de Isae Benesit.
O corpo de Ryzek não me assustava, nem o sangue. Arrastei-o pelas pernas até ao corredor, com o suor a gotejar na parte de trás do meu pescoço enquanto o levantava e puxava. Era pesado, na morte, como estava certa de que o fora em vida, por mais esquelético que fosse. Quando a mãe oráculo de Akos, Sifa, apareceu para me ajudar, não lhe disse nada, limitei-me a observar enquanto ela passava um lençol debaixo dele para o amortalhar. Trouxe linha e uma agulha da arrecadação e ajudou-me a coser o saco funerário improvisado, fechando-o.
Os funerais Shotet, quando tinham lugar em terra, envolviam fogo, tal como na maioria das culturas do nosso diversificado sistema solar. Mas era uma honra especial morrer no espaço, na peregrinação. Cobríamos totalmente os corpos, à exceção da cabeça, para que os entes queridos de quem quer que se tivesse perdido pudessem ver e aceitar a sua morte. Quando Sifa puxou o lençol para trás, afastando-o do rosto de Ryzek, soube que, pelo menos, estudara os nossos costumes.
— Vejo tantas possibilidades para o desenrolar as coisas — disse Sifa, finalmente, arrastando o braço pela testa para limpar parte do suor. — Não pensei que esta possibilidade fosse