Os Olhos de Astrid
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Obcecado pela carreira, filho de um pai dominador, Francis, um milionário viciado no trabalho, recentemente falido, está à beira do suicídio. A fim de compreender esses assuntos e ponderar um divórcio iminente, descobre-se a si mesmo sem querer numa praia remota, conversando com uma total desconhecida chamada Astrid. A conversa toma a forma de lição de vida, quando Astrid o ajuda a identificar os seus reais problemas e o guia para um novo caminho rumo à felicidade que na realidade sempre estivera ao seu alcance.
As últimas páginas do livro oferecem ao leitor uma surpreendente reviravolta do destino.
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Os Olhos de Astrid - Jean-Marie Kassab
UM DIA ENSOLARADO
Recordo aquela manhã como se fosse ontem. Porém já se tinham passado vários anos desde o momento em que travara conhecimento com ela, numa praia adormecida debaixo de um sol caloroso, vazia de qualquer presença humana ou quase. O seu rosto, a sua voz, a imagem, o cenário, as suas palavras, estão hoje profundamente gravados na minha memória. Após ter decidido acabar definitivamente com todos os meus problemas, iniciara uma demanda de solidão para melhor reflectir, antes de passar ao acto. Se muitas vezes tomara decisões fundamentais na minha carreira debaixo do duche, ou apanhado no meio do tráfico automóvel, ou num elevador apinhado, desta vez a necessidade de isolamento parecia-me obrigatória, dado o que estava em jogo. Troçara inúmeras vezes daqueles que exigiam um período de reflexão e adoptavam a posição do Pensador de Rodin para assim consagrarem supostamente o esforço que era necessário. Um cliché fútil que muito me divertia. Para mim, decidir deveria ser imediato, sem demoras. A não ser, obviamente, que os dados fossem suficientemente claros e bem expostos num resumo reduzido a uma simples tabela de «Prós» e «Contras». Os «Prós» à esquerda, os «Contras» à direita. Como num balanço contabilístico. Se os «Prós» excedessem os «Contras» em número, devotava-me ao projecto, senão, eliminava-o e não pensava mais nele, ao mesmo tempo que começava à procura de outra vítima. Praticava esta abordagem na minha vida profissional e privada. O sistema mostrou-se infalível até há bem pouco tempo.
Este modo de decisão tornou-se a minha doutrina de vida. Requerer um suplemento de informação parecia-me perfeitamente legítimo. Colocar todas as questões do mundo, claro, mas reflectir? Não, nunca.
Ou as conclusões vinham instantaneamente a lume, ou bem não apareceriam nunca, dizia a mim próprio amiúde.
Apologista do preto e branco, o cinzento era uma não-cor para mim: não existia. E mesmo que o encontremos por todo o lado, é porque ou é um branco sujo ou um negro baço. A única vantagem do cinzento é que agrada aos indecisos. Nele se abrigam, se aninham com toda a segurança. Para mim o cinzento pertencia aos medrosos. Em diversas ocasiões fora acusado, por próximos sobretudo, de ser um predador implacável. Raros eram os que ousavam dizer-mo na cara, mas lia-o nos olhares silenciosos de toda a multidão que me rodeava.
Se detectava uma certa complacência naqueles que se exprimiam livremente, já as acusações silenciosas, dissimuladas, me afectavam profundamente. Criticavam o meu método de pensamento, censuravam os meus actos brutais. Diziam-me que a vida era demasiado importante para ser reduzida a uma simples equação binária com dois simples resultados: «Ou bem sim ou bem não». Tantas vezes ouvira, da boca de amigos e de inimigos confundidos, que a vida não podia ser reduzida a uma série de zeros e de uns como é o caso nos programas informáticos que animam os computadores. Ora para mim era a única realidade, o fundamento justificador do meu comportamento. Mesmo correndo o risco de ser considerado um robô sem coração em diversas ocasiões, ignorava as críticas. A minha resposta, sempre a mesma, surgia invariavelmente: «Deixemos o coração para os poetas e os números para os financeiros e o mundo será um lugar melhor».
Este raciocínio foi, durante muito tempo, a minha arma secreta, «La botte de Nevers[1]», a que adoptou «Lagardère[2]» fazendo girar a sua espada para trespassar a fronte do inimigo de forma imparável e mortal. Sonhava com isso na minha infância, sentado no chão em frente da televisão. Queria encontrar a minha «arma secreta», imparável, que me faria triunfar sempre. Após tê-la descoberto e testado abusara dela sem limites. Depois de uma longa série de sucessos, virou-se contra mim e mergulhou em cheio no meu coração. A minha procura de vitórias transformara-se numa cupidez ilimitada.
Não podia tolerar mergulhar num projecto sem me investir totalmente, desde que o considerasse suficientemente válido. Necessitava atirar-me de corpo e alma com todos os recursos disponíveis no momento. Tinha sempre de jogar o meu póquer até ao fim, empurrando com mão segura todas as fichas para o centro do tapete verde. A sensação era inebriante, confesso.
O «tudo ou nada» que transformara num lema de vida, num trunfo de vitória, transformou-se progressivamente numa maldição sem que eu me apercebesse. Tornara-me num jogador de casino, que espera ganhar, ou pelo menos recuperar o investimento jogando mais uma partida, e em seguida uma outra, e depois blasfemando aos grandes deuses que seria a última vez, só que nunca era a última, até ao esgotamento. E foi esgotado, moído, arruinado, que tomei o caminho dessa praia do fim do mundo, firmemente decidido a acabar com os meus problemas de uma vez por todas. Teria de decidir se acabar com a vida era melhor do que prosseguir com a luta. A ideia do suicídio que me parecera sempre absurda e estúpida, infiltrara-se insidiosamente no meu espírito. Acabar com a minha vida tornara-se uma opção e não uma impossibilidade. Devendo supostamente desembocar a um fim, essa viagem revelou paradoxalmente ser um renascimento. Tomar o leme é coisa fácil; alcançar o seu destino é outra história.
Sabia perfeitamente que hesitaria em carregar no gatilho no último momento. Tirara o meu revólver do cofre na manhã do meu périplo e limpara-o apressadamente antes de me fazer à estrada. Usá-lo para terminar com a minha própria vida parecia-me absurdo, irreal na altura, no entanto o pequeno brinquedo introduzira-se viciosamente no bolso da minha gabardina, pronto a libertar-me do meu inferno.
SMITH AND WATSON E EU
Era um calibre 38, cromado, presente de um velho oficial de polícia, amigo íntimo do meu pai, que me amava como a um filho. Quando mo ofereceu, acrescentou, com a sua mão nodosa carinhosamente pousada no meu ombro: «Espero que nunca necessites de te servir dele. A melhor arma é aquela que nunca precisamos utilizar. "Tudo reside no self-control[3]"». Esta frase deixou-me perplexo durante todo o jantar.
Os comensais eram numerosos como era habitual. Sentia que o velho homem tinha qualquer coisa a confiar-me mais tarde. Tomei nota e conversei com os meus convidados, ao mesmo tempo que esperava pelo momento em que um frente a frente se revelasse possível.
A bebida escorria abundantemente e a música era demasiado barulhenta para poder esclarecer essa frase que o pobre velho lançara para o ar. Era o dia do meu quinquagésimo aniversário.
O presente em si mergulhara-me em estupefacção. Pacifista por natureza, apesar do meu ar machão, nunca possuíra uma arma ou mesmo sentira a necessidade de ter uma.
Receber uma à laia de presente, mesmo vinda de um ex-polícia, pareceu-me absurdo. Certamente que não o imaginava a oferecer-me botões de punho como é muitas vezes o caso. Contudo esbocei um agradecimento cortês.
Após todos os convidados terem saído, os músicos arrumado os instrumentos, as mesas levantadas, instalados diante da grande lareira do meu salão privado, um balão de cognac na mão, de olhos semicerrados, ele iniciou o seu relato, começando por uma enigmática abertura de contador: «Esta arma tem a sua história».
Revelou-me sem transição que nunca, nos seus trinta anos de serviço na polícia, matara ninguém com esse Smith and Watson em particular ou com qualquer