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Austrália Meu Amor: Consultores & Cia, #1
Austrália Meu Amor: Consultores & Cia, #1
Austrália Meu Amor: Consultores & Cia, #1
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Austrália Meu Amor: Consultores & Cia, #1

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About this ebook

Um contrato comum para mediação na venda de uma mega safra de cereais, levou essa empresa de consultoria a parcerias inesperadas e letais. Executivos arrogantes, corruptos, paramilitares linha-dura e aventureiros do mundo todo vão de uma normal negociação de grãos às situações desesperadas por céus e desertos australianos.
 

E bem no meio de tudo, o grande amor da bela e especial Laura, que apesar de leal e verdadeira, tem seus sentimentos desprezados. O que ela pode fazer? Correr atrás? Terá forças para resistir e se impôr como mulher e como profissional?

Enquanto isso o tempo se esgota para seus sócios e queridos amigos, Ismael e Terramath, que tentam sobreviver às terríveis condições do deserto e a um pelotão feroz de mercenários armados até aos dentes.


Ótima leitura com fortes emoções e surpresas, onde adversidades fatais farão o espírito humano se sobressair em amor e honra, ou afogar-se num mar de vaidades, ódio e ganância.
 

LanguagePortuguês
PublisherHerbert Hette
Release dateAug 9, 2018
ISBN9781386113188
Austrália Meu Amor: Consultores & Cia, #1
Author

Herbert Hette

Dono de um estilo único, este escritor brasileiro, de Minas Gerais, Nova Lima, depois de alguns títulos publicados, se consolidou e surpreendeu pelo olhar aguçado nas nuances de cenários em que poucos garimpariam alguma coisa válida para falar além do óbvio. O lirismo, a ousadia experimental, a força e a dinâmica de sua narrativa nos elevam a outros patamares do prazer de uma boa leitura. É despojado e elegante ao aplicar formas simples a sofisticadas e telúricas magias inexplicáveis da técnica de escrever. A complexidade psicológica da alma humana e de todas as coisas, os conflitos, as ideologias, as guerras, o crime, as flores, as esquinas e os mundos agora são infiltrados em suas essências sem formalidade e profundamente. Na Literatura, seus Contos, Romances e Crônicas abrem grades, portas e janelas à novos ares à arte de escrever.  

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    Austrália Meu Amor - Herbert Hette

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    Dois homens, óculos escuros, ternos pretos, depositam flores em um túmulo neste cemitério militar de Chek Chue, ilha que os ingleses chamavam de Stanley quando Hong Kong pertencia à rainha. Flores brancas, vermelhas, azuis, de todas as cores, e fitas amarelas entrelaçadas finalizam o arranjo. Não se oferecem buquês festivos aos mortos, a menos que o morto os exija, o que não é o caso neste dia morno ao sol do meio-dia.

    O arranjo, já murchando, é jogado à laje sem respeito. Há heróis enterrados aqui. Eles expulsaram invasores japoneses na 2ª Guerra Mundial. Mas não há respeito. Esses caras de ternos sob medida e relógios de grife não vieram pelos heróis de Chek Chue.

    Um deles abre a valise revestida de couro. Dúzias de pequenas gemas lapidadas correm soltas pelo forro de seda. Diamantes e Rubis. Maços de cédulas de dez mil dólares, dois passaportes com a mesma foto, uma Walther 9mm e silenciador. O homem entrega a valise, recebe um envelope pardo. Coloca-o no bolso interno do paletó sem abri-lo.

    Sai do cemitério às pressas. Um helicóptero de turismo na baía o aguardava. Levanta voo assim que senta a bordo. De cima, observa um Mercedes prata deixar o cemitério rumo ao centro de Stanley, ou Chek Chue.

    Milhares de caixas, algumas caminhonetes e veículos blindados são transportados por guindastes ao cargueiro Nisnk, atracado no porto de Díli, capital de Timor Leste, a mais de 3500 kms de Hong Kong.

    Há poucas horas um incêndio fora debelado, não antes de destruir por completo o prédio da aduaneira junto ao porto. Ardeu por dezesseis horas. Bombeiros timorenses mal iniciaram o rescaldo, boatos já varriam o pequeno país, incêndio criminoso.

    Porém Díli, a capital, já ressurgiu das cinzas tantas vezes que ela própria seria uma Fênix.

    Na 2ª Guerra foi totalmente devastada pelos japoneses, que arrasaram também o porto. Depois subsistiu por décadas à crônica incompetência de sucessíveis governos portugueses para nos dias atuais ser invadida pela Indonésia que se aproveitando dessa fragilidade enviou suas hordas milicianas e o exército para se apossarem ou destruírem não apenas a capital, mas o país inteiro. Uma dominação brutal que durou infinitos 20 anos.

    Conta-se que as tropas do terror, para vingar a independência do Timor Leste, às portas do século XXI, saíram pelas ruas do país atirando em quem encontrassem, fossem da guerrilha ou não. Teriam enchido vários caminhões de moradores das cidades invadidas, dos quais não se teve mais notícia. Hoje velhos boatos, à revelia da inoperância da ONU, denunciam a existência de sobreviventes escravizados no interior das muitas ilhas da Indonésia.

    Contudo, o fogo na aduaneira desta vez - continuam as más línguas - foi causado pelo próprio governo de Timor Leste legalmente eleito, mas que se retirava após perder as eleições. Queima de arquivo.

    Independente das intempéries Humanas, a vida segue, a natureza persiste, esse dia se vai. As luzes do porto vão se acendendo. Hoje, calor forte quase o tempo todo. Foi muito quente, mas o fim da tarde nublado trouxe um leve frescor. A noite prometia ser agradável. As coisas acalmaram agora, se é que se pode dizer isto.

    O porto é sempre inflamado de gente, barcos grandes e pequenos, inclusive os gigantes que transportam três mil ou mais passageiros entre as tantas ilhotas fazendo do porto de Díli um formigueiro de cheiro apodrecido 24 horas por dia.

    Há todo tipo de gente entre as milhares de almas que diariamente passam por aqui, exceto poucos turistas europeus e raríssimos americanos.

    Mesmo assim, com as amarras na doca ao fundo, o Nisnk de tripulação caucasiana não atrai atenção nesta última parada antes do seu destino final. Segredo conhecido apenas por um homem a bordo. Seus marujos em uniformes militares sem identificação ou patente, uns trezentos, fazem o embarque de material com sincronismo e rapidez. Falam pouco e usam pouca luz na delicada penumbra do anoitecer. Acenos de braços e curtos assovios orientam o embarque de contêineres, sacos e caixas.

    Em menos de três horas encheram os porões e o convés do Nisnk. Agora pela murada do barco vigiam a escuridão do mar e arredores da doca. A maioria cochicha em russo reclames apreensivos com impaciência pouco disfarçada.

    Há uma expectativa aflita no ar e um afã que os fazem esticar o dedo apontando a bruma das espumas que se quebram em alto mar no limite escuro das águas, onde a visão humana não penetra, e o negrume da noite cai definitivamente. Não é nada. Decepcionados, voltam aos cochichos.

    De súbito, do lado mais escuro do porto, um navio buzina grave e melancólico indo em direção ao Nisnk. Os marinheiros se agitam suados, abrem larguíssimos sorrisos. Talvez fosse o que esperavam.

    Uma vez mais a trombeta taciturna retumba e surge um casco do negrume rompendo as cristas da maré. O inconfundível Antenor Gomes pede passagem. Furtivo, luzes apagadas. Um barco médio, casco de madeira vermelha e verde, vem no escuro com sua preciosa carga. A algazarra explode no Nisnk, revela o valor do carregamento.

    O Antenor Gomes com bandeirolas e lábaros desfraldados entra glorioso cheio de meretrizes russas, latinas, chinesas, canadenses e americanas. Belas, altas e baixas, quase nuas, brancas e negras, escolhidas a dedo. Seguem pelo píer alegres, em passos de dança e gritinhos a distribuírem beijinhos e sorrisos. As bocas lindas, dentes maravilhosos.

    Os marinheiros, em frenesi, urram e assobiam. Lançam-se às moças cobrindo-as de abraços, beijos e notas de 50 e 100 dólares. Daí, numa urgência febril, as arrastam às cabines e beliches onde alguns casais já se atiravam em gemidos e juras eruptivas de prazer.

    A noite se fez esplendorosa decorando-se perfeita para o amor. Um vento mágico expulsou todas as nuvens. O céu de Timor Leste se enfeitiçou com milhares de estrelas. A luz da embarcação reduzida ao mínimo deixava a lua-cheia iluminar os barcos fundeados lado a lado. Tingia de prata todo o mar em volta.

    Um estranho Rock’nRoll russo mastigava dois alto-falantes no alto dos mastros. Costas e coxas de fora, saltos altíssimos, cigarros, garrafas, meia arrastão, bocas vermelhas, calcinhas enterradas. Enormes seios e ancas. Muitas já haviam se deitado com vários, outras ainda chegavam. Iam e vinham pulando de um marinheiro a outro, de beliche em beliche. Os homens endoidavam com cada uma.

    As mais ousadas provocavam frisson ao subirem no estrado envolto pela rede. Içadas ao convés por guindastes que as levitavam do Antenor Gomes ao Ninsk voavam em poses escandalosas, gritinhos e gargalhadas. A travessura excitava furor nos homens, e por si só, a volúpia em semiorgasmos.

    Ao descerem do estrado já a bordo eram as mais disputadas, mesmo a tapas e empurrões; também eram as mais caras. 

    Cinco marinheiros se abraçam ferozes. Socos, chutes, palavrões. Tudo para a glória da deliciosa afro que sorrindo e aos guinchos de Vodka! Vodka! sacudia os seios entre as tramas da rede direto nas bocas dos marujos antes mesmo de tocar o convés.

    Um extraordinário soco definiu quem iria desfrutar dos irresistíveis talentos da dama negra. O vencedor avançou sobre ela mordendo seus lábios grossos e as auréolas púrpuras dos enormes mamilos.

    Alucinado, queria beijá-la toda. A moça implorava por calma e sorria agoniada com as dentadas de amor, a lhe causarem dor e arrepios. Uma ordem do tombadilho tomou-lhe a moça dos braços. Enfurecido, armou os punhos. A silhueta do líder no alto da vidraça da ponte esfriou-lhe num estalo. A mulher sorriu aliviada, subiu correndo os degraus que levavam ao comando.

    Conformado, o rapaz teve que se contentar em colher outra que já tinha percorrido vários beliches...

    Na ponte, a dama arrebatada pelo líder conhecia perfeitamente o ritual a cumprir. Encontrou-o recostado num painel de instrumentos; os olhinhos apertados, as mãos calejadas, uma enfiada no bolso, a outra a alisar o bigode grisalho sobre um sorriso impreciso. Velhas cicatrizes, talvez de batalhas em esquecidas guerras, cingiam suas rugas.

    Graciosa, andava na ponta dos saltos, ela o pegou pela mão, dona do navio, saiu puxando-o através das escotilhas e corredores à cabine do comandante.

    A mulher com trejeitos de ardor insaciável e a língua massageando os próprios lábios empurrou a porta, passou a tranca, e o puxou contra si. Ele a abraçou bruto, com força. Um beijo longo.

    A moça caiu de joelhos, abriu-lhe o zíper. Sua cabeça, com as tranças dreads, começou a desenhar movimentos fortes para cima e para baixo. Ele rugiu, ela ronronou mudando o ângulo dos movimentos, agora suaves. Ele gemeu, abriu os olhinhos, admirou-a por instantes.

    Acendeu um charuto, apoiou uma perna sobre a cadeira abrindo maior espaço para a moça desenvolver sua arte, recostou-se na mesa e arrancou com uma mordida a rolha de uma garrafa. Sua respiração alterou-se e, entre um rugido e outro, ora tragava o charuto, ora bebericava a vodka, ora puxava a moça e a beijava indecente e a empurrava para baixo de novo, e de novo e de novo...

    Perfeito. Foi tudo perfeito numa noite perfeita. O Nisnk, o septuagenário couraçado russo da 2ª Guerra convertido em cargueiro comercial norueguês, por uma noite foi o Barco do Amor, com dezenas de lindas damas a bordo.

    O INFERNO AMANHECEU AQUI

    Gibson, deserto da Austrália.

    Em qualquer época do ano este deserto é duro, não importa se você está preparado ou não, ele não vai te perdoar.

    Ao longo de milhares de quilômetros não se vê viva alma. Em certas áreas a temperatura passa de 64 graus. Nem aranha, nem lagarto, nem canguru.

    Um homem caminha nas cristas dessas ondas arenosas, arma no coldre, mochila às costas. Anda solitário, areia aos joelhos. Boné com protetor cobre-lhe a nuca. Face coberta por uma máscara de visor transparente; a franja fumê, autoacionada, protege os olhos. O bafo escaldante do vento apaga suas pegadas em segundos.

    Há três horas caminha pelas dunas, sob um sol de 55 graus à sombra. Seu destino é oeste, onde uma cortina avermelhada de vento e areia sobe ao céu. Não há como evitá-la. Vai em sua direção.

    No último contato com o satélite foi alertado, mas tinha de prosseguir. A única providência que tomou foi proteger o helicóptero pousando-o alguns kms atrás para livrá-lo da tormenta. Talvez escape. Ninguém desafia o Gibson nestas condições sem pagar as consequências. Seria um louco ou desesperado? Provavelmente um pouco de cada.

    Este homem é Ismael Torres Ivonlova, a alma da Consultores & Cia.

    Com o braço vergado para trás corrige a posição dos velcros que prendem dois cilindros compactos de oxigênio. Uma aba térmica nos bolsos laterais da mochila abriga o sistema, que captura o ar, filtra e o comprime nos pequenos cilindros, resfriando-o e injetando-o gentilmente na máscara. As pequenas baterias se renovam com o sol.

    Talvez esse homem confie demais em seu equipamento.

    Na pele o chicote das primeiras rajadas da cortina de vento e areia. Esse fenômeno aquece ainda mais o sistema de filtragem podendo inutilizar o ar. Ismael apoia um joelho na areia, ajusta o tubo no encaixe por baixo da máscara, sente o frescor do ar filtrado e enriquecido sobre o dorso do nariz, repuxa os elásticos que a prendem e firmam o visor no lugar, afivela as alças da pesada mochila, desdobra as mangas, calça as luvas, curva o tronco contra os ventos e segue. Está determinado, mesmo que já não enxergue cinco metros à frente.

    O véu do anoitecer se debruça sobre o Gibson. A temperatura cai vertiginosa. Se apertar o passo, em trinta minutos chegará à região das rochas onde poderá se abrigar. Ao aproximar-se das pedras vermelhas e gigantescas tem a sensação de caminhar para o olho da tempestade.

    Procura abrigo sob ventos nervosos silvando entre os vãos das pedras. Depara-se com uma pintura aborígine. De onde estava não podia vê-la claramente, afastou-se um pouco. Há outras figuras também, mas a criatura central em listas brancas e ocres intimida a ponto de todas as outras figuras e objetos menores pintados ao redor quererem se afastar dessa entidade de expressão perversa.

    Ismael interpreta que o lugar é protegido pelo mundo espiritual aborígine. O lugar certo para esperar os ventos se acalmarem. Acocorou-se num canto, abriu a mochila, catou o GPS. Refez cálculos revisando gráficos na memória do aparelho. Sob essas condições os sinais dos satélites são desviados sem atualizarem os bancos do aparelho.

    Deduziu a distância e direção do destino avaliando o ponteiro da bússola mecânica, os minutos e quilômetros caminhados. Puxou o cobertor térmico da mochila, afundou o chapéu camuflado na cabeça, jogou o cobertor por cima e se enroscou num canto com o rosto sob o visor virado para a parede de rochas. Sorveu um pouco de água no canudinho, minimizou a entrada do oxigênio regulando a válvula dos pequenos cilindros e se aconchegou esperando descansar um pouco.

    Uma mão firme e grande agarra seu braço. No sobressalto é impelido por seu condicionamento militar a sacar a arma, mas se detém com um riso na cara.

    — Além de atrasado quer me matar de susto?!

    Era o gigante Terramath, que nada disse, pegou-o firme pelo pulso e saiu puxando-o em meio à tempestade.

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    Ismael passa pela porta com a boca aberta bocejando.

    Um azul imenso abre-se no arco de seus braços. Inacreditável! O céu está limpo. A tormenta se fora... Por toda aldeia areia acumulada ao meio das paredes, em todas as casas. No deserto quase sempre é céu de brigadeiro, e inferno na areia.

    Uma revoada de risos de crianças aborígines anima a porta da cabana separada para viajantes. Ismael é brinquedo da garotada à volta. Não há nada mais divertido que o homem pálido, seminu, tatuado pelo sol nos braços, pernas e pescoço, urrando como um canguru preguiçoso.

    Bermuda e tronco desnudo, a boca aberta, braços esticados sobre a cabeça e uivos digitígrados. Ao perceber a plateia fez mais caretas e urros para a risada das crianças. 

    Neste ponto do deserto o sorriso do musculoso Terramath também é um oásis. Os amigos enfim se apertam num grande abraço e podem conversar com calma sem os assovios do vento, os detritos em voos cegos, estrondos e solavancos.

    Em pinceladas, Ismael explica onde deixou o helicóptero para não arriscar perdê-lo, etc. Terramath ouviu paciente o relato do amigo e só então lhe indagou.

    — Por que não esperou a tempestade passar confortavelmente sentado no chopper numa área mais afastada?

    Ismael afundou o balde d’água na cuba de pedra à porta da cabana, lançou-o em cascata no rosto, secou os lábios com as costas da mão.  

    — Bem, a tempestade estendeu-se além do estimado. Tive que contorná-la. Ficaria sem combustível se chegasse até aqui... e para aonde eu ia... as pessoas não reagem muito bem às máquinas...

    — Tá chamando meu povo de atrasado? – o aborígine corrugou a fronte.

    — Bem, hitech vocês não são! – gargalhou Ismael ouvindo a risada solta do amigo.

    Enquanto riam apontou o norte com o braço. 

    — É pra lá? Isla60’?

    — É! ... – disse o grandalhão mirando a linha do horizonte.

    Ismael estuda o ermo à frente da aldeia. A região das pedras fica atrás. O ar continua morno, a claridade já o força a apertar as pálpebras desejando os óculos de sol. Dali a desolação se abre em kms e kms de areia fina, com ondulações curtas, quase retas. Ao longe, a impressão esotérica de que foram perpetuadas planas e niveladas por uma mão imensurável.

    Onde é céu?... onde é areia... o vapor das miragens. A silhueta dos homens, o horizonte, o chão e a ilusão dos oásis se fundem. Qualquer indivíduo sem o devido preparo pode perder o juízo aqui em questão de horas. Terramath optou por morar na região, na aldeia de seus ancestrais, que, de resto, não é o pior lugar do Gibson.

    — Talvez precisemos pousar um avião aqui... – disse Ismael apalpando o solo de areia finíssima. — Receio que aquelas pedras possam nos prejudicar.

    O aborígine apertou as vistas acostumadas às extensões escaldantes para enxergar os vultos das pedras a tocarem o céu no horizonte.

    — Aquelas lá no fundo?

    — Sim. Podem prejudicar o pouso. – apalpa e pisoteia o solo.

    — Como assim?! – Terramath prende uma risada. — Que avião precisaria de um espaço assim pra pousar? Você desce qualquer coisa aqui!

    Ismael encarou Terramath, pensou um pouco, depois suspirou. — É, pode ser... para um pouso em condições normais...

    O aborígine não se conteve. — Você acha que não dá? – gargalhou bem alto. — Sempre achei os brasileiros um tanto desatinados, mas você!...

    Entram na cabana. Ismael fala e se veste, digita nos seus gadgets, checa as armas e timers explosivos. — Considere um pouso forçado nas condições de ontem.

    — Fico pensando em quantos loucos levantariam voo com esse tempo.

    — ...

    Terramath percorreu suave a ponta dos dedos nas armas, munições, explosivos e suprimentos sobre o grabato de capim vestido num lençol de algodão incrivelmente branco.

    — Espera uma guerra?

    — ...

    PELO AMOR DE DEUS QUE EMPRESA É ESSA?

    O jovem executivo Brandon não sabe o que acontece numa empresa como a Consultores & Cia. Paletó nos braços, caminha preocupado pela rua, cabeça baixa, balança a pasta, em silêncio. A gravata aperta. As pessoas passam por perto, nem as vê. Por que contratar uma firma que não entende como funciona? Contratar essa empresa para um serviço tão importante sem saber como opera...

    Uma empreiteira contratada para executar obras ou reformas em prédios, por exemplo, dificilmente deixaria dúvidas quanto aos seus serviços.

    Tem-se aí uma ideia clara do processo, todos sabem como funciona - onde comprar material, profissionais envolvidos, papelada, etc. etc! Mas uma empresa de consultoria aberta? que vai além da consultoria? que se propõe a operacionar o trabalho e, pelo que entendeu, qualquer trabalho! Que diabo de empresa é essa?!

    Brandon aparenta 30 anos, formado em Ciências Econômicas pela Universidade de Blumenau, não consegue encaixar nada do que aprendeu à concepção da Consultores & Cia. Num mundo onde a especialização é a excelência, é, no mínimo, estranho a existência de uma empresa que se proclama especializada em tudo!

    Absorve-se por completo enquanto caminha. O escritório é logo ali. Primeira porta à esquerda. Entra, toma o elevador, corredor, a recepção. Para diante da secretária, nem percebeu que andou cinco quarteirões.

    Fez de propósito, podia estacionar na porta, preferiu deixar o carro num estacionamento confiável. Carro europeu de luxo estacionado em qualquer lugar?... preferiu lá, um estacionamento com seguranças. Veio. Veio sozinho, a pé com seus pensamentos. Agora, ainda meio aéreo, frente à recepcionista que o apresenta à Laura.

    Brandon não pôde deixar de reparar na executiva da C&C. Linda, deslumbrante. Usava um vestido comportado, dois ou três dedos acima do joelho. Não fosse sua dor de cabeça é provável que entrasse para o rol dos que a olha tentando enxergar além do que estava à mostra.

    — Seja bem-vindo...

    — Obrigado, bom dia. – apertou gentilmente sua mão.

    — Aceita um café, um chá?

    — Nada, obrigado. A reunião com o Sr. Roberto...

    — Pois não. Entre, por favor.

    O Sr. Roberto o recebe com um largo sorriso; tem lá seus 60, a barriguinha proeminente, mas discreta. Sorriso largo, terno azul claro, gravata e sapatos escarlates, a pulseira do relógio, a camisa, todo em harmonia. E brinco na orelha esquerda...

    Laura se despede, diz uma outra reunião, se retira.

    O rapaz puxou a cadeira, sentou-se calado. Via os lábios do Sr. Roberto mexerem, sem ouvir as palavras. Sua mente navegava na coisa pastosa em que se transformaram seu humor e sua insegurança. Como pode uma empresa dar consultoria, e ela mesma, na prática, executar o trabalho? e em tudo! transporte, logística, mercado, construção... como pode? e esse brinquinho na orelha... bem...

    A BewtCom Brazil é uma empresa convencional, afogada em silos abarrotados de soja sem ter a quem vender. Todos que compram soja, já compraram. Não há um comprador em todo o mundo para o qual, por seus próprios meios, pudesse contatar e enviar a safra recorde do país nos últimos quinze anos.

    Arriscaram a qualidade do produto atrasando ao máximo a colheita, usaram altas técnicas de armazenagem, distribuíram a soja por centenas de silos alugados na região, e agora, a colheita ainda não terminou e não havia armazenagem disponível. Tudo entupido de grãos.

    Outros elementos como ameaça de chuvas e greves volatizavam a crise.

    Greve no porto, greve dos caminhoneiros, greve da polícia federal e a temporada de chuvas. Na teoria, a salvação seria esse executivo de terceira-idade sentado à sua frente com seu brinquinho na orelha, e posando de Gestor de empresa. Uma empresa com perfil... minimamente digamos, exótico.

    E é mínima a distância entre o exótico e o bizarro.

    Brandon reexamina aquele brinco na orelha cingindo os frisos da testa com as pontas dos dedos. Pensava num desperdício de tempo e dinheiro contratar essa firma. Discretamente puxou alguns papéis de dentro da pasta para lembrar-se da razão social, Consultores & Cia, ou utilizar-se do que o pai, o velho Bewt, preferia, C&C. Teve que se conter para não emitir um risinho. Ademais, nem ouvia o que o Sr. Roberto falava. O que era mesmo? ah, sim...

    — ... você assina... aqui e aqui... e seremos definitivamente parceiros! – e ofereceu o melhor sorriso que tinha. Um daqueles sorrisos tão simpáticos e sacanas que já venderam lotes na lua e a Serra do Curral na capital de Minas. E pior, a família de Brandon era quem estava comprando.

    Não pegou a caneta. Pediu licença, perguntou sobre o toalete. Sr. Roberto curvou a mão, primeira porta à esquerda...

    Brandon refugiou-se no banheiro. Aos berros no celular usando o mictório xingava, brigava, discutia. Não queria assinar documento algum.

    Neste momento Laura surge dentro do banheiro. Flagra o rapaz com algo a mais na mão que o telefone.

    — Oh! por Deus! desculpe-me! eu... 

    — O quê?!

    — Oh!

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