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As asas da borboleta
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Ebook410 pages7 hours

As asas da borboleta

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About this ebook

A teoria do caos estabelece o “efeito borboleta” baseado no seguinte proverbio chinês:

O simples bater de asas de uma borboleta pode mudar o mundo.

Certo dia do verão de 2006, quando o pequeno Oli se atreveu a bisbilhotar nos exames médicos de seus pais, uma borboleta qualquer apareceu do nada, e, sem nenhum motivo aparente, bateu as asas.

Neste outono, em Oxford, um solitário agente de polícia foi atacado enquanto dormia, na mesma noite em que um sangrento assassinato ocorreu no outro lado da cidade.

Alheia a tudo isso, uma jovem inglesa toca um violino nas ruas enquanto pensa em um amor impossível do passado.

Em Madri, um talentoso neurocirurgião é acusado pelo homicídio de seu próprio paciente, um multimilionário dono de uma empresa famosa.

Aparentemente, nenhuma destas histórias estão relacionadas com os acontecimentos de 12 de outubro passado protagonizados por Oli e Vovô.

Aparentemente...

LanguagePortuguês
PublisherLuis
Release dateNov 4, 2018
ISBN9781547541614
As asas da borboleta

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    Book preview

    As asas da borboleta - Luis A. Santamaría

    Prólogo

    Despertou, abrindo os olhos em uma linha tênue, e imediatamente depois tocou o telefone. Ou talvez fora o irritante timbre que o fez acordar. De qualquer forma, se surpreendeu consigo mesmo largado no sofá de couro de sua sala. Vestia um traje negro e uns sapatos que combinavam, as mesmas roupas que vestira no dia anterior. Fazia calor.

    Não podia se lembrar com clareza o que acontecerá nas últimas horas, mas se alegrou por estar em casa. O último fato que sua memoria registrava era que já havia anoitecido quando saíra do andar, e um copo de Jack Daniel´s sobre o balcão de algum bar, constituíam a única pista que podia ajudar a reconstruir a noite. Essa lembrança solitária fez com que fixasse sua atenção em uma garrafa de cristal vazia que, em frente a seus olhos mareados, repousava como um borrão sobre a mesinha diante do sofá.

    Suspirou.

    Tinha as pálpebras quase fechadas, pois estava convencido de que se as abrisse totalmente, sofreria fortes dores de cabeça. Tentou se mover, mas tinha o braço esquerdo dormente e não respondia; havia se deixado dormir sobre ele. Sentiu um formigamento incômodo na ponta dos dedos quando por fim o liberou com um exausto movimento de rotação. Depois, separou com lentidão a orelha esquerda do couro negro, deixando à vista a marca que sua própria baba havia deixado sobre a almofada. Sentia um sabor metálico na boca, e uma incômoda massa pastosa lhe impedia de salivar. Decidiu que a primeira coisa que faria após atender a chamada telefônica seria escovar seus dentes. Voltou a si com dificuldade, e depois de um fuck[1] e alguns shit[2], atendeu ao telefone com um simples hello[3].

    – É Carroll – a pessoa do outro lado da linha falava em perfeito inglês. Em seguida, uma pausa – Espero não o ter acordado.

    O homem olhou ao seu redor, desorientado e com uma enxaqueca incipiente. Ainda era de noite. A pouca luz procedentes das lâmpadas exteriores ingressava pelos vidros da janela, revelando parte da estante. Um forte cansaço, seguido de uma estranha sensação de agonia e impotência, lhe sobrevieram quando seguiu olhando para o feixe de claridade. Desordem não era a palavra adequada para definir o que viu. As dezenas de livros e CDs, os troféus de tênis que havia acumulado ao longo de seus anos de adolescência e um par de vasos modernos que, se não valiam uma fortuna, tinham um alto valor sentimental, se encontravam espalhados pelo chão. Estavam amontoados, amassados e feitos em pedaços. Seguiu analisando sua residência, havia também encontrado uma trinca bem no meio de seu televisor de última geração que percorria as quarenta e seis polegadas praticamente por inteiro. Em um movimento instintivo, levou a mão à parte de trás de sua cintura, onde costumava levar encaixada sua pistola. Assustou–se ao tatear o vazio no coldre da arma, e suspirou aliviado quando a encontrou em cima da mesinha, a alguns centímetros da garrafa de whisky. Era uma Hekler Koch Compact, uma arma de quase 700 gramas com o carregador preparado para balas Parabellun de 9 milímetros. Ligeira, fria e manejável. Não recordava de havê–la colocado ali, e isso era estranho, pois havia se acostumado a ser responsável por ela em todo momento.

    Franziu a testa.

    – Agente? – insistiu a voz.

    – Que droga quer a esta hora, Tom?

    – Sinto ter te acordado em seu dia de folga, mas algo ocorreu nesta noite.

    Seu dia de folga. Supunha que estas palavras significavam alguma coisa boa. As pessoas costumavam aproveitá–las para fazer passeios ao campo com suas famílias, ir jantar no centro com suas parceiras, jogar futebol com seus filos ou, se fizesse bom tempo, desfrutar de um gorduroso e calórico churrasco com os vizinhos. Ele, entretanto, tinha outros tipos de planos. Dormiria até tarde, talvez até as 14 ou 15 horas. Depois, seu café da manhã seria um whisky com gelo enquanto desfrutaria do jogo de Andy Murray pela televisão. O dia terminaria coma visita de Ania que, como sempre quando ele pedia, compensaria seu dia de folga de merda com um tórrido e selvagem exercício de sexo sobre o tapete do quarto, estão os dois até a tampa de champanhe.

    Mas Carroll havia telefonado, algo havia ocorrido essa noite. Algo sério, pensava o detetive sem deixar de observar a estante, que sem dúvida iria atrapalhar seu dia de folga.

    – Está me escutando? – insistiu a voz atrás do fone.

    – Tom, o que disse que aconteceu?

    – Creio que deveria ver com seus próprios olhos. – a voz de Thomas Carroll soava tenebrosa do outro lado do telefone – Cowley Road, número 219. Meu Deus...

    – Está bem, não perca a calma. Me troco em um segundo e saio voando para aí. Só me diga o que devo esperar, me adiante alguma coi...

    Não pode terminar a frase. Durante a conversa, estava sentindo um ardor em parte do antebraço direito. Na verdade, notou isso desde que havia acordado. Em um ato instintivo, levou a outra para a região irritada para apertá–la e coçá–la. Foi então quando apalpou algo pegajoso cobrindo sua pele. Ficou assustado com o que viu, e entendeu que seu mal–estar não se devia apenas a ressaca: três profundos arranhões lhe percorriam o braço, desde o cotovelo até o punho. E a julgar pela cor arroxeada na qual estava se tornando a pele ensanguentada, estavam começando a infeccionar.

    Mas que diabos...

    – Foi cometido um terrível assassinato esta noite. – disse Carroll.

    O detetive engoliu em seco.

    Tratou de se despedir com a promessa de que estaria ali as soon as possible[4], desligou o telefone e pulou do sofá. Atordoado, observou a fechadura da porta de entrada, parecia estar intacta. Depois caminhou através do corredor de sua casa, apoiando–se nas paredes. Alcançou o banheiro, e ao examinar seu aspecto em frente ao espelho, começo a suar. Teve que se sentar na privada para controlar a tontura que estava começando a lhe dominar. Tinha o lábio ligeiramente rachado (daí que sentia a boca tão pastosa), e algumas manchas secas de sangue sujavam sua barba, seu colo e boa parte da camisa.

    Alguém, o mais provável um profissional, havia entrado na casa à noite, destruído o mobiliário, drogando–o e dando–lhe uma boa surra. E o pior de tudo, o que mais lhe atormentava, era que não se recordava absolutamente de nada. Por um insignificante instante, o agente sentiu medo.

    Capítulo 1

    – Crê que algum dia me deixarão sair deste lugar, Morgan?

    – Espero doutor. Se fosse eu, não suportaria a ideia de morrer entre estas quatro paredes. Tenho muitas coisas maravilhosas para fazer no mundo lá fora.

    – Verdade? O que tem este mundo exterior sujo que seja tão valioso?

    – Pois minha mulher, que eu amo, e meus dois filhos, Benjamin e África, que são minha razão para levantar–me a cada dia.

    – Entendo.

    – Por que esta cara, Salas? Por acaso você não tem nada no exterior?

    – Não muito, para ser sincero.

    – Você não tem filhos?

    – Venha, vamos dar um passeio. Faz um dia esplêndido.

    – Por que não quer me responder? Se está querendo mudar de assunto comigo, saiba que não suporto isso. Já sabe, né? Tem filhos ou não?

    – Insisto, vamos lá fora e caminhemos. Tenho o pressentimento que este vai ser um grande dia.

    Segunda–feira, 6 de novembro de 2006

    O juiz José Miguel Callejo levou os óculos a alguns centímetros da boca e deixou escapar uma bufada de ar quente. Enquanto limpava as lentes minuciosamente, observou o homem em gabardina que se encontrava sentado a sua direita, em diagonal. Sua visão se concentrava nos formulários que tinha sobre a mesa e, com um semblante permanentemente retorcido, fazia–se intuir uma personalidade tosca e com nenhum senso de humor. O doutor Grau havia se apresentado há pouco mais de meia hora com um conciso olá, que tal?, justo antes de tomara assento em seu lugar correspondente na sala, e não havia voltado a lhe dirigir o olhar. Callejo lhe dava uns cinquenta anos, se bem que podia ser um jovem de quarenta amargurado por seu próprio ego, ou um velho cujos cabelos morenos e volumosos lhe garantiam uns quinze anos a menos. Por debaixo da gabardina podia–se ver um estiloso traje azul–marinho, complementado por uma gravata da mesma cor.

    O juiz se encontrava concentrado neste exame visual quando foi percebido pelo doutor, que lhe lançou tal olhar que o fez virar a cabeça por instinto.

    Depois, apoiou os óculos sobre a ponta do nariz e fingiu ler os papéis que tinha adiante. Mas os pensamentos que na realidade ocupavam sua mente estavam todos relacionados com a mesma data: 12 de outubro passado. Até aquele dia havia desfrutado de alguns meses tranquilos na comarca, sem mais ocupações de trabalho do que algum inocente jogo tráfico de drogas entre menores de idade, alguns casos de violência de gênero, e alguma tentativa de roubo, felizmente resolvido pela Guarda Civil. Tudo mudou, entretanto, quando este tal Charly, o manco que regia em Ámbar aquele jogo de legalidade duvidosa, fora preso com a pica para fora da calça e as mãos nas testas desta pobre garotinha. O caso fora encerrado em menos de vinte e quatro horas. A jovem denunciou a intenção de violação e o verme de cotoco a obrigou a abandonar a cidade até que se firmasse o juízo o levaria direto ao cárcere. Um êxito da justiça e outra medalha a mais para o juiz Callejo. Mas no dia 12 ocorreu uma série de imprevistos. O homem que havia ajudado a impedir que a jovem fosse violentada fora encontrado morto na Praia vítima de, segundo o que havia chegado aos ouvidos do juiz, um derrame cerebral. E qual não foi a surpresa quando dois dias depois, logo após o funeral, o sogro do falecido foi acusado por sua própria filha!

    Callejo deu uma soprada no café que acabara de tirar da máquina e fixou o olhar no infinito.

    Ao que parece, o sogro, um prestigiado médico aposentado, havia falsificado o diagnóstico para ocultar a enfermidade de seu genro, Deus sabe com qual propósito. Um caso tão surrealista como este não se dá todos os dias!, pensou o juiz na ocasião, e continuava pensando agora. Tudo haveria resultado em um divertido desafio se a acusação da viúva não tivesse vindo apoiada por um testemunho da doutora que havia sido vítima da mentira do velho e de seus falsos diagnósticos. A mulher se chamava Sara Mora, e fora a mesma que havia denunciado a intenção de violação do desgraçado do Charly menos de uma semana antes. Coincidências demais. Destas que, ao passo de muitos anos a serviço da lei, havia aprendido a desconfiar.

    E ainda faltava o melhor. A cereja do bolo. O juiz Callejo recordava de estar a ponto de sair pela porta de sua casa, a caminho do despacho, quando recebeu uma chamada urgente do próprio quartel da Guarda Civil: Charly havia sido encontrado morto aos pés do rochedo. Encontraram restos de seus miolos espalhados entre as rochas.

    A porta do recinto se abriu, e uma agradável senhora de gesto sereno entrou acompanhada de um oficial, que amavelmente a convidou para se sentar na cadeira que ocupava, solitária, no centro da sala.

    Para José Miguel Callejo havia algo que não se encaixava. Charly havia se suicidado e o estranho caso do doutor maluco ia se resolver naquela mesma tarde. No entanto, tudo parecia tão bem conectado, tão com sentido, que lhe inquietava. Decidiu que assim que terminasse o processo que estava a ponto de começar, moveria alguns pauzinhos.

    – Dona Violeta, por favor, sinta–se à vontade – dirigiu–se a mulher com um potente tom de voz – quanto antes começarmos, antes acabaremos. Não lhe tomaremos muito tempo.

    Sara Mora dedicou toda a viagem a olhar com nostalgia pela janela, primeiro do trem, mais tarde do avião, e agora, do ônibus. Sentia que levara o dia inteiro viajando, e na realidade, entre trajetos, transbordos e tediosas esperas, assim havia sido. Custava–lhe acostumar–se à maneira envesada que os ingleses tinham de conduzir pela esquerda, em cada rotatória, quando o veículo girava no sentindo dos ponteiros do relógio e não ao contrario, acreditava sofrer um micro enfarto no coração. A paisagem havia sido constante desde que saíra de Londres: pradarias verdes, colinas verdes... verde, verde e mais verde. A jovem doutora observava admirada a formosura da Grã–Bretanha, e pela primeira vez em todo o trajeto, se convenceu de que poderia ser uma viagem sem volta.

    Agradou–lhe a ideia, o que a surpreendeu. Deu uma olhada em seu relógio para comprovar que não faltava muito para chegar.

    Tinha seu notebook aberto e ligado sobre os joelhos. Uma cópia em formato pdf da capa do El Diario Montañes, noticiário local da província da Cantábria, ocupava a tela. Sara havia estado divagando durante grande parte da viagem em torno da mesma notícia:

    SUCESSÃO DE TRAGÉDIAS EM ÁMBAR

    Abaixo do título apareciam publicadas quatro fotografias em primeiro plano de Charly, Alfonso, do doutor Salas, e ela mesma, nessa ordem. De onde diabos esta gente conseguiu uma imagem minha?. A notícia era extensa, e resumia com bastante detalhe (e algum outro sensacionalismo inventado) o acontecido durante a semana fatídica na localidade nortenha. Sara odiou que a haviam taxado como "pobre jovem cuja selvagem tentativa de estupro, sem dúvida, tardará em superar, mas reconheceu que pelo menos haviam tido a decência de apontar sua brilhante carreira no mundo da neurocirurgia. Além do mais, segundo ela, a publicação era demasiado bondosa com Salas e o aleijado, aos quais qualificavam de engenhoso e calculista" e "doente mental", respectivamente.

    Fechou o notebook com raiva e lançou um suspiro no ar.

    Sentado a sua esquerda, um homem obeso e de pele rosácea dormia inclinado sobre ela. Porky, como decidiu batizá–lo Sara por motivos óbvios, roncava tão forte que em certas ocasiões parecia que ia se afogar. A jovem deseja chegar à estação para perdê–lo de vista, mas por enquanto devia se distrair. Com cuidado para não despertar o enorme inconveniente, se inclinou para guardar o notebook e pegar um caderno e uma esferográfica da mochila que levava a seus pés. Deteve–se por alguns segundos olhando a folha em branco, fez clic com a esferográfica e lançou um suspiro nervoso. A seguir, começou a escrever:

    "Diana,

    Escrevo do ônibus. São oito e meia da noite, e creio que devo estar a ponto de chegar. Estou esgotada, mas a longa viagem valeu a pena, que bonito que é isto aqui! Sempre se diz que o clima na Inglaterra se baseia na chuva, no frio e na névoa (deveria ver minha mala, parece de um esquimó), mas hoje faz um dia esplendido. Era muito, muito cedo quando sai de Ámbar e o trem que me levou até Madrid atrasou mais de cinco horas. Aproveitei para me desanuviar na cafeteria que instalaram em um dos vagões, ainda que o café fosse difícil de engolir e tivessem apenas bolos; tive que me contentar com um Donut que estava... duro como uma pedra! Fui dormindo por quase toda a viagem, e quando cheguei a Madrid, estava chovendo sem parar. Depois, quase me perco no metro. Pensava que chegaria atrasada para pegar o avião, mas felizmente ele saiu com atraso, assim que..."

    Deteve–se, releu seu próprio texto, e apagou as últimas frases, decidindo que Diana não se interessaria em nada pelos detalhes de seu dia aborrecido.

    Concentre–se, Sara, se repreendeu.

    Era óbvio que estava nervosa. A caligrafia era enérgica e imperfeita. Entre cada frase, tomava um pouco de ar, excitada, para depois continuar.

    "Tenho estado mal, Diana. Durante este último mês, têm–me ocorrido certas coisas das quais irei me recuperando pouco a pouco, já as sabe. Não as contei para ninguém, a não ser você, naturalmente, da tentativa de estupro. – a jovem sentiu a mão tremer– Como te contei na última carta, meu agressor se jogou dos rochedos. Contudo, meus pesadelos não cessam, muito pelo contrário. Várias vezes acordo de madrugada, com o corpo empapado de suor, convencida de que o manco de olhos estranhos está debaixo da cama. Que sobreviveu e voltou para terminar seu trabalho comigo. Sei que é uma estupidez. Não quero terminar no psiquiatra, tenho fé que esta viagem me ajudará a reencontrar a paz. Às vezes tenho medo de mim mesma, de cometer alguma loucura.

    E falando de médicos, é outro assunto. O doutor Salas dos narizes. O crápula me traiu, traiu a todos. Merece pagar pelo que fez. Obrigou–me a errar em meu diagnóstico e a mentir para toda uma família, para uma amiga. Sinto–me tão responsável! Verônica pediu minha ajuda outro dia, como testemunha direta e vítima principal, para denunciar seu pai. É muito difícil tudo o que está se passando com esta família, mas o velho merece pagar. Não sou uma pessoa rancorosa, mas ajudei a Verônica e testemunhei contra ele. Era o que o coração me pedia que fizesse, fiz o correto. Creio que vai ser julgado."

    Uma lágrima escorregou pela da jovem e se viu obrigada a parar a carta. Depois, concedeu–se meio minuto, limpou as mucosas e se acalmou.

    "Finalmente chegou o dia. Dentro de uns minutos pisarei o solo desta cidade e começarei uma nova vida. Farei o que deveria ser feito há muitos anos.

    Obrigado por tudo, Diana. Logo terá noticias minhas. Prometo."

    Guardou o caderno e a esferográfica em seus lugares e, emocionada, voltou a dirigir a vista à paisagem verde, agora escura pela noite. Verde esperança.

    Porky acordou por um de seus mais potentes roncos, desorientado e satisfeito, no justo momento em que o ônibus entrava na plataforma da Gloucester Green Coach Station, estação de ônibus da cidade de Oxford.

    – O trator não deveria ir naquela velocidade excessiva. Ainda mais tendo em conta que circulava na altura do número 5 da Rua Granito, um caminho que naquela época não era asfaltado e no limite de uma zona residencial bastante tranquila. O veículo era tão largo que ocupava parte do sentido contrario, obrigando aos demais automóveis, motos e bicicletas a se afastar de seu caminho até que conseguisse passar aos tropicões. O condutor do mastodonte dava–se por entender que o resto dos ocupantes do caminho deveriam ter cuidado com ele.

    O juiz Callejo levou a mão ao bolso traseiro de sua calça e sacou um pacote de tabaco, mas se lembrou de que já era mais permitido fumar em recintos públicos assim que o lançou sobre a mesa. Não deixava de prestar atenção às palavras cansadas da mulher. Tão pouco passou despercebido que o doutor Grau estava anotando tudo em suas folhas perfeitamente alinhadas.

    – Mas naquela tarde, minha filha de seis anos, que jogava uma bola contra a parede e saltava sobre ela quando ela voltava, tinha outras coisas na cabeça. É possível que a bola lhe escapou no momento do rebote e saíra em disparada. Ou talvez o condutor estivesse acendendo um fósforo neste exaro instante. Ou pode ser que naquela tarde de outubro, entre um vento tipicamente outonal, foi apenas mais uma garotinha distraída. De qualquer modo, Amelia não viu o trator se aproximar quando correu para resgatar sua bola. Tendo ouvido ou não a buzina, está claro que não teve tempo para reagir.

    Dona Violeta mirava fixamente os olhos de Callejo enquanto narrava a norte de sua filha, a qual parecia quase heroica ao juiz, dadas as circunstâncias.

    "Segundo relataram as testemunhas, o homem girou o volante, pisou no freio com força e deteve o veículo causando uma violenta nuvem de pó no caminho. Mas foi inútil. Um forte impacto se escutou e foi sentido na parte frontal do chassi. A Rafael e a mim surpreenderam os gritos dos vizinhos, assim que saímos de casa, onde encontramos Amelia estendida no chão sobre uma poça de sangue. Estava inconsciente, mas ainda tinha pulso. Rafael a colocou no carro e fomos ao hospital da Virgen del Carmen de Torrelavega, a mais de trinta minutos de Ámbar até seu interior. Ali foi onde finalmente morreu.

    – Ok, lamento a tragédia.

    Violeta assentiu como resposta ao sincero pêsames do juiz, mas seu olhar lhe fulminava, dando–lhe a entender que a ideia da citação não era de seu agrado.

    O luto durou tempo demais. Familiares e amigos de todos os cantos da Espanha vieram nos visitar durante os meses seguintes para ajudar–nos com a casa e cuidar das crianças, Que naquela época eram ainda bebês. Meu marido que já gozava de um bom cargo médico na clínica, não pode conter a tristeza que lhe torturava pro dentro. Em casa, se alguém vinha lhe dar uma mão para lavar os pratos, por exemplo, sentava–se na primeira cadeira que encontrava e começava a chorar como uma criança. Cresceu–lhe uma barba horrível, engordou mais de dez quilos, e as bolsas dos olhos incharam de tanto chorar.

    "O pior de tudo era quando a irmã pequena de Amelia, Veronica, lhe cercava pedindo atenção. Rafael apenas podia olhar nos olhos de sua própria filha, pois quando o fazia, era como se visse em suas pupilas o vazio deixado pelo que mais amava e que havia perdido por um estúpido descuido.

    – Entendo. – assentiu o juiz.

    Lorena, a menor das três e que, todavia vivia entre papinhas e arrotinhos, tão pouco ajudava. Era com se para Rafael nem sequer existisse. Pode–se dizer que o cuidado e a atenção de Veronica e Lorena durante seus primeiros de vida foi um trabalho exclusivamente meu. Ele estava demasiado ocupado lutando contra seus próprios fantasmas. Transcorreram os anos e a coisa não melhorava. Seu comportamento diário dependia de seu estado de espírito: se lhe dava de ficar por toda a manhã na cama, ficava; se não lhe interessava ir à clínica, não ia e ponto. A profunda depressão em que havia caído estava a ponto de custar–lhe seu posto de trabalho. E uma coisa sim era constante: fosse o que fosse, houvesse o que houvesse, sempre encontrava Rafael observando pela janela o número 5 da Rua Granito.

    Violeta fez uma pausa, mirando o vazio.

    – Ok. Continue, por favor. O que aconteceu então?

    – Meu marido deu um giro de cento e oitenta graus em seu problema – apontou a anciã –: se refugiou em sua profissão.

    Callejo arqueou as sobrancelhas e se inclinou mais adiante, demonstrando máxima atenção.

    – Passou a maior parte do matrimônio fechado em si mesmo. Era um homem sério e bonito, em minha opinião parecia–se um pouco com Robert de Niro, mas estava demasiado ancorado na tragédia de Amelia que perdeu a conexão com o mundo. Somente era capaz de centrar–se em seu trabalho e no hospital, de maneira quase obsessiva, fato qual que lhe serviu para ser considerado o melhor. Creio que pensava que quanto melhor fizesse seu trabalho, menos crianças como Amelia faleceriam em um hospital. Durante estes anos especialmente infelizes, alternava as salas de cirurgia com os balcões dos bares, e chegou a converter–se em algo parecido ao último gelo de um de seus copos de Bourbon: o mais frio de todos, que se mantém vivo quando os demais já se derreteram e acaba machucando os dentes se finalmente o mastiga. O pouco tempo que passava em casa destinava a fumar e beber. Muitas noites eu acordava e Rafael não estava em seu lado da cama. Então, ia na ponta dos pés à cozinha, onde lhe encontrava sentado à mesa com as luzes apagadas. Tentei por todos os meios ajudá–lo, mas não podia atingi–lo. Não podia, e aí está. Podia rogar–lhe e suplicar–lhe. Inclusive, vestir–me com as mais sensuais fantasias e sugerir–lhe uma boa noite de sexo, e ...sabe o que ocorre quando tem a sensação de que não está acontecendo absolutamente nada? Pois era isso exatamente o que se passava. A cozinha era seu templo e a noite sua guardiã. Com uma garrafa de whisky, um pacote de cigarros, um isqueiro e um cinzeiro, passava as horas sozinho na escuridão.

    – Foi esta a causa de seu divórcio? – perguntou o juiz.

    Creio que chegou a odiar–me, sinceramente – comentou a mulher com um ligeiro movimento de ombros – Inconscientemente me culpava por não haver prestado mais atenção a Amelia naquele dia, essas coisas se notam.

    – Callejo pensou que neste momento era fácil dar de ombros para Violeta, mas este motivo então deveria se supor como uma grande tristeza para todos os membros da família.

    – Nos divorciamos finalmente me 1979. Não foi uma decisão fácil, e não só para mim, mas também para as meninas. Veronica, de fato, era adolescente e não chegou a entender. Era uma menina muito particular, sabe? Por alguma razão que sempre lhe agradecerei, mostrava um carinho especial por seu pai, apesar dos incessantes abusos que recebia dele.

    – Se não estou enganado, você se casou pouco depois com aquele que foi prefeito de Ámbar nestes anos. – o juiz pigarreou, consciente de que estava tocando um tema delicado – Como isso afetou ao doutor Salas e sua relação com sua filha?

    – Preferiria não falar sobre meu segundo matrimônio, se não se importa. – replicou a mulher, incomodada.

    – A entendo.

    – Entretanto, responderei sua pergunta: fizeram–se extremamente inseparáveis. Quero dizer, já não viviam na mesma casa, mas pode ser que esta foi a razão pela qual se deram tão bem. Veronica já era adulta e Lorena havia se mudado para estudar em Londres. Creio que Veronica se sentia sozinha, e necessitava recuperar a figura paterna de alguma maneira. Aquele milagre foi maravilhoso. Rafael voltou a sorrir deixou de beber. Comigo seguia sendo a mesma pessoa carrancuda e desagradável da qual me separei, mas não me importava. De maneira alguma, tudo parecia estar bem. E mais ainda quando, uns anos depois, Veronica teve um rebento com seu recém–estreado marido, Alfonso. – a anciã fez no ar o gesto da cruz com sua mão direita, em sinal de respeito por seu recém–falecido genro, e depois continuou como se nada– Ao saírem do hospital após o parto, Alfonso e Veronica foram diretamente para a casa de Rafael, onde lhe entregaram o pequeno Óliver. Rafael lhe aperou entre seus braços e acolheu com ternura o bebê que acaba de entrar em seu lar, supondo que o lembrava a nossa desaparecida Amelia. Quando seus olhos se encontraram, o rosto enrugado de Rafael se iluminou, como se sentisse o resplendor que uma vez irradiou sua própria filha. Agarrou com força a criança e não o soltou novamente.

    – Tenho entendido que o tem como seu filho querido? – apontou Callejo.

    – O quer com loucura. – A mulher sorriu com ar orgulhoso – Com loucura. – repetiu– Esta é exatamente a palavra.

    O juiz mudou a página e considerando que estavam passando demais da hora, decidiu ir ao ponto questionando a mulher sobre sua opinião a respeito.

    – A respeito de quê?

    Na semana passada seu genro faleceu, deixando um segundo bebê a caminho. Até este dia, tanto a família como a doutora que conduzia o caso viveram enganados por seu ex–marido, fazendo todos a crer que a que morreu era sua filha.

    Fez uma pausa.

    – Bem gostaria de saber sua opinião. – adicionou com firmeza.

    – Com todo respeito, excelência, estou aqui para falar de Rafael, não para opinar.

    Mas você não participou da denúncia que sua filha fez contra ele.

    – Exato, não o fiz – replicou a mulher com certo desprezo.

    O juiz tomou alguns segundos para pensar em sua próxima pregunta.

    – Ao menos me responda isto: Qual foi a razão pela qual trocou de forma ilegal os diagnósticos?

    Violeta se negou a responder, não obstante, uma nova voz irrompeu pela primeira vez na conversa. O doutor Grau havia levantado os olhos de seus papéis para interromper o interrogatório com uma voz rasgada e rouca, como se estivera falando havia uma um longo período:

    Surpreendeu–lhe a acusação de seu ex–marido?

    A mulher, surpreendida, balbuciou.

    – Quero dizer – enfatizou o médico com um tom áspero de voz– lhe parece que – lhe parece que Rafael Salas seja uma pessoa que age de maneira impulsiva, sem atender as possíveis consequências, e pondo em risco tanto sua reputação com sua vida familiar? Afinal de contas, você é a pessoa que viveu mais tempo com ele e, portanto, que o melhor conhece.

    – Ssss...não. Bem, não saberia dizer!

    O médico havia tido sucesso em encurralar a mulher, que se mostrava nervosa e insegura.

    – Entenda, Dona Violeta, que necessitamos estar seguros antes de tomar uma decisão. Qualquer mínimo detalhe será útil. – insistiu ele, impecável.

    O doutor Grau golpeava a mesa com a ponta da caneta enquanto falava, ação que irritava de sobremaneira o juiz.

    Violeta, por sua vez, havia passado a respirar mais intensamente.

    – Rafael é uma pessoa difícil e imprevisível, não há dúvida. É impossível saber o que se passa em sua cabeça – digo.

    – Crê que voltaria a fazer o que fez? – foi a pregunta seguinte do doutor.

    A mulher não tem dúvida neste caso.

    – Categoricamente, sim.

    Grau buscou Callejo com olhos pela primeira vez em toda a tarde, e ambos supuseram neste momento o que iria acontecer em seguida.

    – De minha parte, creio que podemos dar por finalizado o depoimento. – disse o primeiro, pondo–se de pé – A decisão está clara.

    José Miguel Callejo assentiu com a cabeça e mandou um alea jacta est[5] em um lacônico sussurro que se perdeu entre o som das cadeiras que saiam debaixo da mesa.

    Terça–feira, 7 de novembro de 2006

    A manhã do dia 7 de novembro havia começado com fortes rajadas de vento, e Violeta teve que agarrar o volante com firmeza para manter o automóvel dentro da pista. Aos vinte minutos de trajeto, desviou o velho Volvo para uma estreita estrada de terra que subia por uma colina. Quando deu cara com a porta de ferro, parou o carro e desligou o motor.

    Desceu e caminho até o portão. O doutor Salas

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