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A Busca pela Árvore da Vida: Livro I - Terra
A Busca pela Árvore da Vida: Livro I - Terra
A Busca pela Árvore da Vida: Livro I - Terra
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A Busca pela Árvore da Vida: Livro I - Terra

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About this ebook

O Homem já foi imortal. Quando a Terra era jovem e a grande batalha ainda não havia sido travada, num jardim paradisíaco, um ser perfeito conversou com uma serpente e se encantou com sua sabedoria. Dias depois, um trágico desfecho pôs fim a essa amizade, e o homem, agora mortal, chorou a eternidade perdida. No entanto, seu novo entendimento o levou a uma nova realidade, e o preço da eternidade pareceu pequeno frente ao novo mundo que se abriu. Desde então, a humanidade tem experimentado uma era de descobertas e realizações, guiada pela ânsia do conhecimento e do saber, sem desconfiar que o tempo do fim se aproxima, e que apenas os imortais sobreviverão à batalha final.É nesse ínterim que o jovem alquimista Adam descobre que seu falecido avô lhe deixou um único baú como herança, e que esse objeto místico tem a chave para reunir os Círculos de Poder e levá-lo com seus amigos a uma terrível jornada em busca pela imortalidade.
LanguagePortuguês
PublisherM-Y Books
Release dateJun 29, 2017
ISBN9781526001832
A Busca pela Árvore da Vida: Livro I - Terra

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    A Busca pela Árvore da Vida - Elizeu Feitosa

    PRÓLOGO

    -- DEZOITO ANOS ATRÁS --

    E

    ra alta madrugada quando chegaram. O vento estava calmo e a noite serena como as águas de um lago profundo, mas o velho sabia que a tranquilidade era apenas aparente e que todo cuidado seria pouco ao adentrarem naquele lugar desabitado há tanto tempo. Ouvira histórias, é claro, de outros aventureiros que alegavam terem invadido o jardim e escapado ilesos da fúria do guardião, mas percebia agora que não passavam de fábulas inventadas por charlatões. O jardim era muito diferente de tudo que ouvira falar. Era mágico, exuberante e sobrenatural!

    – Aquela é a árvore? – perguntou o rapaz que o acompanhava, apontando com o dedo para a árvore gigantesca que marcava o centro de uma clareira. Suas folhas pareciam pequenos flocos de neve suspensos nos galhos retorcidos e os frutos alaranjados, lembravam pequenas carambolas rechonchudas.

    – Sim, meu amigo! – respondeu o velho emocionado – Aquela é a Árvore da Vida. A dádiva da imortalidade concedida e, ao mesmo tempo, negada a nós pelo Criador – e uma lágrima rolou de seus olhos, estampando a felicidade de alguém que vê o sonho de uma vida inteira sendo realizado – O homem será imortal, como já foi outrora meu rapaz, e o mundo conhecerá a verdadeira paz.

    O jovem não parecia muito empolgado com o discurso, mas apressou o passo, acompanhando o velho que seguia à frente. O caminho terminou em uma velha ponte em ruínas cercada por pilares de pedra branca, onde o rio era mais volumoso e a forte correnteza castigava o que restou da antiga construção.

    – Como vamos atravessar? – perguntou o rapaz examinando os destroços da ponte – A correnteza é muito forte nessa curva.

    – Não vamos atravessar – respondeu o velho olhando ao redor – Teríamos que dar uma longa volta e o caminho mais curto é pela floresta. Veja se consegue enxergar outra estrada adiante.

    O rapaz correu em direção aos pilares e subiu no mais alto para avaliar o horizonte e ver o que os aguardava logo à frente.

    – O que está vendo? – perguntou o velho – Algum outro caminho, ou sinal da presença do guardião?

    – Vejo apenas o fim da clareira – respondeu o rapaz – e alguns animais grandes e estranhos, pastando na margem daquele rio mais caudaloso.

    – São behemoths! – suspirou o velho, comovido – Quase não acredito que estamos tão próximos deles. São criaturas maravilhosas apesar da aparência. Vamos tentar não perturbá-los.

    O rapaz assentiu com a cabeça e continuou a observar os animais, que se pareciam com búfalos, mas tinham chifres na cabeça e na carapaça que protegia o lombo; e narinas grandes e ruidosas. Seu rabo terminava num chicote, com três pontas de ossos afiados e suas patas, fendidas como nos bovinos tradicionais, pareciam pequenas e fracas frente ao corpo descomunal da criatura. Pareciam animais sociáveis e viviam em manadas a beira dos rios, se alimentando da vegetação rasteira e mergulhando sempre que um perigo ameaçava sua tranquilidade.

    – Vamos em frente – continuou o velho, adentrando mata fechada e marcando sua passagem com um facão. O rapaz pulou do pilar e o seguiu, abrindo caminho por entre plantas exóticas e pequenos arbustos de folhas coloridas.

    A floresta era escura e barulhenta. O piado das aves noturnas lembrava um lamento agonizante e os uivos dos animais selvagens tornavam o trajeto ainda mais assustador, mas o velho parecia ignorar os perigos da jornada e seguia em frente com determinação. Somente o rapaz não parecia satisfeito e se virava na direção de cada barulho estranho que ouvia, não se cansando de resmungar.

    – Tem certeza que o espelho funcionará? Se não conseguir afastar o guardião da árvore eu estarei em sérios apuros.

    – Vai funcionar! – respondeu o velho – Tem que funcionar...

    O jovem não pareceu muito convencido e se preparava para contra argumentar, quando um lampejo repentino iluminou a floresta e afugentou um enorme pássaro que se escondia entre galhos retorcidos de uma árvore próxima. A ziz voou sobre a clareira e deu um rasante sobre a margem do rio, capturando um behemoth, enquanto o restante das criaturas lançava-se desordenadamente nas águas.

    O velho gritou instruções para seu companheiro e correu em direção à luz, sacando um estranho objeto de sua mochila, enquanto o rapaz corria para a clareira, de encontro à Árvore da Vida.

    O que se passou a seguir foi uma curiosa sequência de acontecimentos. O velho desapareceu na floresta e o foco de luz brilhante o seguiu, como se atraído pelo objeto que ele carregava. O rapaz escalou habilmente a árvore e colheu um dos frutos, mas sua atuação foi notada pela criatura lampejante, que desistiu do velho e voou em sua direção como um raio em chamas. O rapaz saltou ao perceber que fora descoberto e o velho reapareceu ao seu lado, ajudando-o a se levantar.

    Outro clarão se seguiu e um turbilhão de chamas irrompeu do lugar onde o guardião caiu sobre eles e um grito agudo seguido por sons de passos em disparada se misturou aos pios e uivos dos animais noturnos. A floresta se incendiou, instigada pelo súbito vento forte que sucedeu o voo do guardião, sacudindo as árvores e levantando uma nuvem de poeira no caminho. Do meio dela o velho surgiu desesperado correndo em direção à saída do jardim. Suas roupas estavam sujas e esfarrapadas e seu rosto, marcado por cicatrizes e fuligem, demonstrava cansaço e medo.

    – John, onde você está? – gritou assustado, procurando pelo amigo – Responda, por favor! – e se escorou na velha ponte destruída, tentando recuperar o fôlego.

    Porém, novamente o vento se intensificou, varrendo areia e folhas pela estrada. As aves noturnas interromperam seu canto lúgubre e até os animais selvagens silenciaram. O velho olhou para trás assustado e tentou voltar a correr, mas uma forte luz dourada surgiu a suas costas e uma espada de fogo atravessou seu peito, liberando na noite um cheiro de carne queimada. O velho deu um passo tremulante e caiu sobre a areia do caminho. A luz desapareceu e tudo voltou a ficar escuro.

    Por um longo tempo fiquei ali, no vazio, apenas contemplando minha essência, pensando em como era grandioso existir, mas aos poucos fui sentindo necessidade de algo mais para contemplar. Queria uma forma, uma estrutura, algo digno de minha grandeza. Um deus deve ter o que quer ou não pode chamar-se Deus.

    I

    A HERANÇA

    -- DIAS ATUAIS --

    J

    á passava das duas quando Adam decidiu ir dormir. A noite não havia começado bem para o alquimista¹ e, após doze tentativas fracassadas de completar o ritual, resolveu desistir e adiar seu propósito. Doze era um número importante para os magos. Doze privilégios, doze classes, doze círculos e doze elementos. O doze estava em tudo no mundo mágico – só não estava no último rito que tentara – e se não conseguira até agora, isso só poderia significar uma coisa: transmudar vidas ia contra as leis da natureza e o preço a ser pago era alto demais.

    Do lado de fora de sua janela à chuva continuava a cair e o brilho dos relâmpagos iluminava suas últimas oferendas – sangue, suor e lágrimas – e o Livro Vermelho, aberto na última página e marcado com uma fita carmesim. O título estampava o motivo de seu fracasso: XCIX Canção do Livro Vermelho, o último ritual que todo alquimista jamais conseguira realizar. O ritual do Elixir da Vida Eterna.

    Na manhã seguinte, o dia amanheceu quente, como geralmente acontece depois de uma noite de tempestade, e o sol matutino incidiu sobre a janela de Adam e o despertou. Havia se esquecido de fechar as cortinas na noite anterior e agora o astro-rei invadia seu quarto com seu terno brilho acalorado e o forçava a abrir os olhos. Levantou-se sonolento e pegou as roupas que estavam amontoadas sobre o criado-mudo, enquanto no andar de baixo, sua mãe mexia nas louças preparando o café. Era 25 de setembro de 2010, o dia que completaria dezenove anos.

    O som dos pratos e talheres na cozinha atraiu sua atenção e o cheiro gostoso de algo assando, fez com que descesse as escadas, onde sua mãe o aguardava com um sorriso e os braços abertos. Adam devolveu o sorriso e abaixou-se para receber um beijo e um abraço.

    – Já nem consigo mais beijar meu filho. Você não vai parar de crescer não, Sr. Ocher? – apesar da brincadeira sua voz demonstrava orgulho da altura do filho.

    – Já parei mãe. A senhora que não percebeu – e se desvencilhando do abraço da mãe, seguindo em direção ao banheiro.

    O vento fresco da primavera balançava os galhos da mangueira que crescia perto de sua janela e roedores afoitos saltavam pelo telhado e corriam pelo forro de madeira. Adam não lhes deu atenção. Estava acostumado com os sons da natureza e seu quintal, grande e bem arborizado, fazia fundo com a reserva florestal do município, então não era raro encontrar animais passeando pelo terreno ou revirando as latas de lixo dos vizinhos.

    O banho foi rápido, apenas para espantar o sono, e quando Adam voltou para a cozinha sua mãe o saudou com uma xícara de café e uma fatia de bolo.

    – Parabéns filhote! Mais à tarde vou ao centro comprar seu presente por isso não demore muito na sua avó tá!

    – Não vou demorar. – respondeu, pegando o café – Tenho uma reunião na facul depois do almoço e não posso me atrasar.

    Na verdade Adam não tinha intenção de chegar à faculdade, mas sim voltar à praça em frente ao campus onde vira uma moça no dia anterior. Uma aura azul celeste a envolvia e por um minuto suspeitou se tratar da visão de um anjo, mas ela se virou, entrou no Corolla estacionado em frente à praça e desapareceu.

    A mentira o remoeu por um instante, mas da forma como a mãe era curiosa, ela o interrogaria por horas a respeito da garota e ele ainda não tinha nada de concreto que pudesse dizer, então, comeu o bolo rapidamente e se despediu, saindo em seguida.

    Na rua o vento soprava mais forte e balançava os galhos das árvores ao redor, espalhando folhas e flores pela estrada e inundando a atmosfera com cheiro de terra molhada. Sua vila era bem arborizada e o vento sob as árvores proporcionava uma atmosfera agradável para caminhar.

    A avenida que dava para a zona rural era larga e possuía duas vias de acesso, divididas por um canteiro com árvores frondosas e grama alta onde pássaros e grilos faziam uma verdadeira algazarra. Adam fingiu não escutá-los enquanto tentava imaginar o motivo que levou sua avó a lhe mandar um bilhete depois de tanto tempo. É certo que ela e sua mãe não se entendiam e depois da morte de seu filho a velhota se afastou do resto da família, permanecendo isolada numa chácara que possuía perto da estrada, mas por que chama-lo agora, depois de tanto tempo sem contato?

    Adam ainda não tinha a resposta, mas apenas por descargo de consciência leu o bilhete novamente.

    Oi filho, como você sabe seu avô está desaparecido há dezoito anos e seu pai nunca quis aceitar o legado da família, então, agora que você tem idade suficiente para entender, estou lhe confiando a herança dele. Sei que você é especial e fará bom uso dela. Espero-te amanhã de manhã em minha casa. Não falte.

    Um beijo. Vovó.

    – Legado da família. – pensou em voz alta – A velhinha deve estar caducando. – sabia que a avó vivia apenas com a aposentadoria e o único bem que possuía era a propriedade no fim da estrada. No entanto a referência ao seu pai e ao desaparecimento do avô indicava que a avó remexeria nas velhas feridas da família.

    Um gemido vindo de trás de uma árvore que adornava o canteiro central tirou Adam de seus devaneios e chamou sua atenção. A grama alta naquele pequeno espaço e as flores silvestres que cresciam em meio ao gramado, lutando para conquistar o seu lugar ao sol, prejudicavam qualquer tentativa de encontrar o autor do barulho, então Adam subiu no canteiro e contornou a árvore para descobrir de onde vinha o som. Entre raízes e folhas secas, um filhote de pardal tentava abrir a asa e imediatamente a recolhia, se contraindo de dor. Aparentemente caíra de um galho e a quebrara.

    – Olá. Tudo bem aí? – falou Adam no piado característico dos pardais – Parece que está com problemas – o pássaro tentou afastar-se, mas mal conseguia se movimentar e se encolheu, encostando-se ao tronco – Não se preocupe, só quero ajudar.

    Apesar da altura do capim, Adam não teve dificuldades em encontrar um ramo seco, com o qual começou a desenhar um pentagrama no ar. Um pequeno feixe vermelho como brasa viva, seguiu o graveto e formou um desenho, iluminando o espaço em volta da ave. Pegou o pássaro com cuidado, depositando-o sob o desenho e puxou uma pena de sua asa, fazendo com que o filhote se encolhesse ainda mais e piasse um palavrão em protesto. Não tinha certeza se a oferenda ia funcionar e não queria piorar a situação do pássaro, executando um ritual inadequado, mas estava com pouco tempo para procurar uma oferta melhor, então desenhou outro pentagrama e abaixo dele colocou a pena, se posicionando com as mãos atravessando os círculos. A mão esquerda sobre a pena e a direita sobre a asa quebrada. Fechou os olhos, concentrando-se e recitou lentamente.

    XIV CANÇÃO DO LIVRO VERMELHO

    O mundo estava tingido de vermelho quando abriu os olhos tentando focar a visão. Suas pupilas estavam dilatadas e as íris vermelhas como brasa, dando ao alquimista uma aparência aterradora. Adam fixou o olhar no pássaro, sentindo a pulsação do círculo vermelho e sussurrou o canto.

    Ossos e sangue, pena vivaz;

    Círculo de luz, uma troca se faz.

    Perto do fim, um novo começo;

    Cura sem dor. Eu ofereço!

    Os pentagramas brilharam mais intensamente e a pena desapareceu no ar. O círculo da esquerda uniu-se ao da direita e envolveu o pássaro com uma aura vermelho fogo, enquanto a luz percorria seu corpo e se concentrava na asa quebrada, fazendo-a estalar. No mesmo instante a fratura desapareceu e a ave alçou voo, levando consigo os últimos resquícios de brilho avermelhado.

    – Puxa, nem agradeceu! – resmungou Adam, levantando a cabeça para olhar na direção que a ave voara. O sol brilhava mais forte agora e ofuscava sua visão, impossibilitando que enxergasse qualquer coisa no alto, mas ouviu um muito obrigado vindo de um galho distante, pouco antes de ver o pássaro voar novamente.

    Magias de cura não era sua especialidade, Adam sabia disso, então tinha algum receio de executa-las indiscriminadamente, mas usar uma pena como oferenda em uma troca simples, lhe pareceu suficiente para uma pequena fratura e a pouca energia consumida apenas o deixara ofegante por alguns instantes. Uma das regras da magia antiga é que a oferenda sempre é menor que o benefício. Para ossos uma pena, para ouro, chumbo, e para a vida eterna uma vida humana. Porém, poucos tinham coragem para entoar o cântico proibido, pois o espírito humano é a única substancia que não pode ser contrabalanceada e ao consumir um perde-se também o seu. Então nunca passara por sua cabeça usar um ser humano vivo em um ritual de troca, mas sua avó já lhe contara histórias de alquimistas negros, sem espíritos, e vagantes entre a vida e morte.

    A longa avenida se estreitou a sua frente quando desceu do canteiro e seguiu adiante. As casas raleavam conforme prosseguia e ao longe avistou a porteira que dava para a casa da avó. O mato estava muito maior agora e a velha mangueira era apenas um amontoado de madeira em decomposição, mas ao final do caminho um velho rancho ia surgindo no horizonte. A luz do sol refletia nas janelas de vidro e as cortinas encardidas esvoaçavam ao vento, lembrando fantasmas maltrapilhos em fuga e dando ao rancho um ar de mansão mal assombrada. As velhas paredes de tábua há muito pediam uma pintura e liquens forravam a madeira de alto a baixo, formando uma crosta cinza esverdeada sobre a madeira apodrecida. O telhado parecia que ia desabar a qualquer momento e as persianas do sótão estavam quebradas e escancaradas.

    Adam se sobressaltou com o que estava vendo. Não parecia a mesma casa que visitava na infância. Apenas a fumaça saindo da pequena chaminé em forma de galo no telhado e o cheiro de ervas que inundou o ambiente assim que ele adentrou a varanda o lembrou dos tempos passados.

    Sentada ao lado de um velho fogão à lenha e vestida com um jeans surrado, uma camiseta do Green Peace e um tênis All Star, uma mulher idosa, já passando dos setenta anos, esboçou um sorriso ao vê-lo. Seu cabelo parecia não ver escova há anos e os dentes estavam amarelos e raleados. A velha chaleira no fogo apitou indicando que a água fervera, no mesmo instante em que a avó se levantou para abraçá-lo.

    – Bem vindo filhote. Chegou bem na hora do chá.

    Adam reparou que o casebre estava muito pior que da última que o vira. A escada para o telhado estava disposta de maneira a escorar as vigas e, dos móveis, restavam apenas uma velha cama de madeira com lençóis encardidos, uma escrivaninha com alguns produtos de beleza e um espelho grande, um armário antigo repleto de porcelana, uma mesa redonda, algumas banquetas de tronco de carvalho e o fogão a lenha perto da porta. Sentou-se na banqueta ao lado da mesa e sorriu para a avó.

    – E então Madame Mim onde é o incêndio? – a avó sorriu ao lembrar-se da forma como o filho a chamava nas vezes em que ia visitá-la com o neto, numa referência a bruxa velha e gorda, personagem de Walt Disney.

    Madame Mim usa um vestido. – disse a velha ainda sorrindo – E eu não troco meu jeans por nada nesse mundo.

    – Parece que a senhora não troca é de jeans por nada nesse mundo. – emendou o rapaz – Faz quanto tempo que não compra uma roupa nova? – falava em tom de brincadeira, mas estava realmente preocupado com a aparência da avó.

    A velha levantou, pegou as louças no armário e sentou novamente se escorando na parede. Seu rosto já não esboçava alegria e o esforço para se movimentar a deixara ofegante.

    – Desde que seu pai faleceu não tenho ido muito à cidade. Tenho pensado muito em você, no seu futuro. Seu avô não está mais entre nós e seu pai também já se foi, você agora é o único motivo da minha existência.

    O rosto de Adam enrubesceu de vergonha por ter deixado a avó esquecida por tanto tempo. Não é que não gostasse da companhia da velha, mas a vida corrida de estudante, os amigos e falta de contato acabaram por arrefecer seu sentimento. Abriu os lábios num sorriso torto e descontraiu.

    – Que isso vovó! A senhora ainda é uma coroa enxuta, tem muito que viver. Está mais que na hora de sair um pouco e arrumar um velhinho bacana para dividir o cobertor. Tem uns bailes da 3ª idade que...

    – Não meu filho! – a velha o interrompeu e lhe serviu uma xícara de chá – Não posso negar meu destino e meu tempo está perto do fim. É por esse motivo que te chamei aqui, hoje. Como disse na carta, seu pai nunca quis assumir o legado de seu avô, nunca quis procurar o caminho e tentou ocultar o mago dentro dele, mas a magia sempre encontra formas de se libertar e se manifestou novamente em você. Você é o escolhido. O descendente direto do patriarca e de tantos outros grandes magos do passado que herdaram o legado de Adão.

    – Espere aí, vovó! – disse o rapaz tomando um gole de chá – Eu sei que é muito raro um mago nascer com o meu dom, e que os Círculos místicos espalham essa lenda do descendente de Adão, mas a senhora sabe que eu não acredito nessa alegoria bíblica. Adão e Eva, serpente falante, arca de Noé e tudo mais, isso é história para criança – falava com convicção, mas a velha parecia não aceitar a descrença do neto.

    – Sei que é difícil acreditar meu filho, mas você precisa me escutar: o movimento já começou e todas as profecias estão se cumprindo. Como foi no tempo de Noé será agora também; a destruição, as mortes, o caos. E só você pode impedir isso Adam. Precisa encontrar o caminho para o Jardim e resgatar o fruto da Árvore da Vida. Só com o fruto é possível criar o Elixir da Vida e dar a humanidade alguma esperança na guerra que está por vir.

    A avó falava com convicção e acariciava as mãos do neto enquanto seus olhos brilhavam de emoção. Adam recolheu as mãos e se arrumou na banqueta disposto a encerrar esse assunto.

    – Vovó, o elixir só pode ser criado com a energia de um espírito humano. – explicava calmamente como se a avó não pudesse compreender de outra forma – Não há como realizar a troca de outra forma, e essa árvore é uma lenda, um conto, assim como seu fruto imortal. Não há um caminho para o Éden. O vovô morreu por acreditar nisso.

    – Não meu querido! – insistiu a avó – Seu avô sabia que existia um caminho e por isso nos deixou. Não pense que foi uma decisão fácil. Deixar família, amigos e seguir numa jornada perigosa, sem garantia de retorno, mas ele sabia que precisava tentar. E como seu herdeiro, você também precisa. – e suspirou, recuperando o folego – David deixou um baú no sótão para seu pai, mas agora eu o transfiro para você. Tudo o que ele descobriu e coletou durante sua jornada em busca do jardim está lá, aguardando a hora de guiar um novo mago.

    O chá morno, abandonado sobre a mesa, demostrava a perplexidade com que Adam recebia aquela noticia. Não sabia o que dizer a avó, tudo aquilo parecia loucura.

    A velha reparou na indecisão do neto e levantou, retirando um estranho artefato do bolso de trás da calça e o entregando ao neto. Era uma chave grande e muito antiga. Tinha o formato de uma cabeça de cobra e no lugar dos olhos, duas pedras vermelhas contrastavam com o verde do metal. Seu corpo tinha a forma de um S e no verso, gravado em baixo relevo, algumas inscrições em um idioma desconhecido.

    – A chave do baú – disse a avó ainda sorrindo – Ela tem o formato de Sophia, para guiar seu caminho em sua nova jornada. Um caminho de descobertas, conhecimento e reflexão, que começou com Sophia e com Sophia deve terminar.

    O coração de Adam começou a bater num ritmo acelerado e uma onda de calor percorreu seu corpo quando ele estendeu a mão e pegou a chave. O artefato pulsava, incentivando-o a prosseguir e Adam pode sentir a magia antiga que emanava dele. Aproximou-se desconfiado da velha escada de madeira e começou a subir. O casebre dançava a cada subida e por um momento pensou em desistir antes que tudo viesse abaixo, mas a avó parecia não se importar e o incentivava com um olhar confiante. Lentamente galgou os poucos degraus e adentrou o local. O sótão estava repleto de teias de aranha que balançavam ao vento e o assoalho, velho e esburacado, parecia que ia ceder a qualquer momento.

    O espaço era apertado e Adam caminhou lentamente enquanto o observava. Algumas prateleiras de madeira resistiam ao tempo e davam ao ambiente um ar de biblioteca medieval, apesar da sujeira e do mau estado dos livros. No final do salão alojado entre dois armários ficava o velho baú. Era de ferro e possuía três cintas de cobre o circundando. A cinta do meio era mais larga e lembrava uma serpente enrolada. Seu pescoço, mais fino, terminava numa fechadura cromada, mas ao contrário dos modelos comuns que possuem a tranca na parte frontal, a abertura ficava na parte de cima como uma serpente degolada.

    Uma nuvem envolveu Adam quando ele soprou a poeira do baú e passou a mão levemente sobre sua borda. O artefato era antigo e forte, e resistira bem ao tempo e a umidade do sótão. Adam respirou fundo, encaixou a chave na fechadura e girou. A forma da serpente ficou completa e com um clique a tranca se abriu, revelando o interior.

    Por dentro, o baú parecia ser recoberto de cobre polido e brilhou com a pouca luz que adentrava pelas janelas, mas Adam não se impressionou. Estava interessado apenas no conteúdo e a curiosidade impelia-o a seguir adiante. Retirou o tecido de seda vermelha que envolvia os objetos e pode finalmente contemplar sua herança.

    O legado de seu avô não era nada de muito espetacular, apenas uma versão muito antiga da bíblia com capa de couro e letras em alto relevo, uma cópia de um velho manuscrito, que ele reconheceu como sendo o Manuscrito Voynich – um tratado alquímico escrito em uma língua desconhecida e indecifrável –, uma foto de um espelho negro de origem asteca, um mapa rabiscado em um pergaminho e uma carta de seu avô aparentemente endereçada ao filho.

    A velha bíblia tinha uma pagina marcada com uma dobra – Gênesis 1-10 – e o trecho fazia referencia ao jardim do Éden e os rios que o cortavam. A palavra Hidéquel estava sublinhada à caneta e logo acima, também escrita à caneta, a palavra Tigre, aparentemente indicando que se tratava do rio Tigre que atualmente corta o Iraque.

    O segundo item – o manuscrito Voynich – era aparentemente uma cópia, pois sabia que o original estava guardado na biblioteca da Universidade de Yale e não imaginava que o avô tivesse meios de consegui-lo. As velhas páginas do livro estavam amareladas e rotas, mas ainda dava para ver claramente seu conteúdo. Tratava-se de um estranho alfabeto com letras uniformes e o texto não continha parágrafo, como se as frases fossem escritas seguidamente. Já lera sobre o manuscrito uma vez, quando fazia uma pesquisa ainda no ensino médio, e descobrira que o mesmo havia pertencido ao alquimista e astrólogo John Dee, famoso por colecionar objetos estranhos.

    Adam voltou algumas páginas e analisou as figuras. A maioria retratava plantas exóticas e mulheres grávidas e por um momento ficou tentado a decifrar as inscrições. Era apaixonado por códigos e símbolos antigos e já perdera horas resolvendo enigmas que encontrava nos livros da biblioteca municipal, mas preferiu guardá-lo também na mochila e pegar o próximo item; a fotografia do espelho asteca.

    O espelho na fotografia parecia feito de um material negro e luzidio, semelhante a mármore e não possuía vidro. Era apenas um pedaço de pedra negra e polida guardado em uma jaula ao lado de outros objetos estranhos e quinquilharias do século XVIII. Adam sabia que o espelho havia sido usado por Dee, para comunicação angelical, e não entendeu o porquê do avô guardar uma foto do artefato.

    O próximo item era um mapa feito à mão e mostrava as fozes dos rios Tigre e Eufrates, próximo ao Golfo Pérsico quando os dois rios se encontram. Um círculo acima do golfo marcava um local entre os rios e, no centro, escrito à caneta, a frase Possível localização do Éden. Havia também alguns rabiscos em volta e, no rodapé, a sigla J.B. escrito de forma caprichosa.

    O último item era uma carta do avô endereçada ao filho. Estava escrita em papel velho e enrolada junto com uma grande pena dourada, possivelmente usada para escrevê-la. Adam desenrolou o pergaminho e abriu a carta para ler:

    Meu querido filho.

    Se você está lendo esta carta significa que falhei e não pude completar a missão que me foi incumbida. Quero que saiba que fiz todo o possível para realizá-la com sucesso, mas as forças que confrontei eram terríveis e extraordinárias, e estavam além de minha capacidade. Sendo assim, e com pesar, passo a você a tarefa de concluí-la e torço, de onde estiver, pelo êxito em sua jornada.

    Acredito que a essa altura você já tenha desenvolvido seus dons, mas é importante que saiba como tudo começou, saiba qual a origem da magia, por que estamos empenhados nessa incumbência.

    Magia é a energia que sustenta o mundo. É a força criadora e destruidora do universo. É onde tudo se inicia e se encerra. As plantas, flores, água, terra, ar, o universo, tudo se originou do maior ritual de magia que se tem conhecimento. Um feito sem precedentes ordenado pelo maior mago que uma vez existiu: o ser que conhecemos e versamos como Deus.

    Deus é o único ser conhecido com controle total sobre a magia. O único que possui acesso ininterrupto à energia do cosmos e poder para manuseá-la a seu bel prazer. Sim, pois um ritual de magia nada mais é do que uma ponte para tocar a energia do cosmo. Uma forma de abrir uma brecha nos limites da física e por um segundo se tornar pleno, livre e integrado com o cosmos.

    Deus não precisa dessa ponte já que não está sujeito às leis do universo. Elas são impostas apenas a nós, mortais, para controlar e ocultar nossa capacidade e, dessa forma, limitar os rituais que podemos realizar. Num ritual divino, Deus trabalha diretamente com o cosmos, usando sua própria energia como troca e podendo assim, manipular a magia apenas com sua palavra. Gênesis 1-3 exemplifica essa afirmação:

    E disse Deus: Haja luz. E houve luz.

    E assim se concretizou toda a criação.

    Contudo, Deus não simplesmente criou o mundo como o conhecemos, mas os cinco elementos primordiais que dariam origem a todas as coisas existentes. A luz, o fogo, o ar, a água e finalmente a terra. Todos foram criados com um propósito maior que apenas satisfazer o ego do Criador.

    A criação da luz foi, talvez, o mais importante dos rituais, pois definiu a criação do próprio Deus. Ao concebê-la Ele se autoprojetou e passou de uma simples emanação de poder para algo substancial, ainda que espiritual, convertendo-se numa forma corpórea e humanoide, com todas as qualidades e defeitos que essa forma proporciona. Arrisco-me a dizer que, paradoxalmente, a criação da luz definiu a criação do próprio Deus por ele mesmo, separando de seu lado sombrio e o encarcerando na forma inteligente e sagaz de Sophia. Um ser rebelde e astucioso, vivendo à sombra do Todo Poderoso, lhe mostrando seus erros e censurando seus atos.

    O segundo elemento deu origem às hostes celestiais, os exércitos dos céus e a força vital dos demais seres. Foi projetado para estabilizar a criação através do equilíbrio cósmico e por ser, às vezes, incontrolável e impetuoso, mas também quente e aconchegante, o fogo representa um equilíbrio muito tênue entre o bem e o mal.

    O terceiro é um elemento de retenção e serve para controlar os seres, selando seus conhecimentos. O Ar é o principal instrumento divino para dominar sua criação, mas, por ser desprovido de prudência, pode se rebelar e se tornar terrível e desastroso. É representado pelo espírito e serviu de componente para a formação da árvore imortal da vida.

    O quarto elemento é a água, que serviu de composição para a construção física de todos os seres. É o primeiro dos elementos físicos e o mais importante deles.

    O quinto e último elemento é a terra, usado principalmente na criação de substancias sólidas. É o segundo elemento físico e serviu de componente para a formação do primeiro homem, sendo esse, no entanto, privado de livre-arbítrio e apenas um peão num jogo de xadrez comandado pelo Criador. Um boneco de barro criado para obedecer e servir.

    Apenas um lugar ainda mantém a fórmula original e imaculada desse barro. O mesmo lugar onde a sombra se converteu em luz e plantou uma semente de mudança, de saber e de revolta – a árvore do Conhecimento do Bem e do Mal –, gerada da essência de Sophia, para prover o boneco de senso crítico e poder de escolha, se essa fosse sua vontade.

    Esses são os cinco elementos celestiais usados por Deus na criação do mundo. Realizando um ritual onde Ele próprio se entregou como oferenda e sintetizou o maior rito de troca já realizado, dando origem ao universo e tudo que nele existe.

    Dessa forma teve início à história da humanidade como a conhecemos. O homem recém-criado rejeitou a soberania do Criador e decidiu seguir seu próprio caminho, pagando um alto preço por sua decisão. Porém seu novo entendimento o levou a uma nova realidade e o preço da eternidade se fez pequeno frente ao novo mundo que se abriu; um mundo de descobertas, conhecimento e liberdade, onde cada ser humano possa ter a escolha de desafiar o poder de um deus e vencê-lo, e assim decidir, por conta própria, perpetuar sua existência na face da terra.

    Essa é a nossa missão; nossa benção e nossa maldição. Pois fomos abençoados com o dom da magia e amaldiçoados com essa tarefa de conquistar meios de enfrentarmos uma guerra contra os céus. Uma guerra predita e eminente, mas que pode ter um desfecho bem diferente do esperado. Só depende de você, meu filho: encontrar o caminho para o jardim, resgatar o fruto da árvore da vida e, através dele, dar à humanidade uma chance de resistência na batalha apocalíptica que se aproxima. Nada escrito está que não possa ser mudado, pois nossos destinos são decididos por nossas escolhas. E nós escolhemos resistir. Esse é o legado que Sophia nos deixou e faremos bom uso dele para o bem da espécie humana.

    Eu me despeço com pesar e esperança. Pesar pela dura missão que lhe confio, mas esperança, pois sei que tens os atributos necessários para concluí-la com sucesso.

    Que a luz da magia ilumine sua estrada e os círculos de poder o guiem no melhor caminho. Um caminho de esperança, racionalidade, amor e liberdade para todos.

    De seu pai que muito o ama.

    David Ocher

    Uma gota de suor escorreu por sua testa ao terminar a leitura e Adam a limpou com a manga da camiseta. Não se lembrava do avô, pois ainda era um bebê na época do seu desaparecimento e toda informação que tinha sobre ele vinha de fotos e relatos dos parentes, principalmente da avó, que vivia a elogia-lo. Já a mãe dizia que o velho era meio maluco e que o pai nunca dera ouvida a conversa dele.

    Do lado de fora, uma leve brisa balançava as venezianas escancaradas e invadia o sótão, brincando com os cabelos de Adam. O vento parecia acompanhar seus pensamentos, que, naquele instante, perambulavam pelos tortuosos caminhos de sua mente, sacudidos pela intrepidez dos acontecimentos. Adam sabia que a avó aguardava sua decisão, e que ansiaria por uma resposta positiva, mas não tinha certeza se podia dar a resposta que ela desejava. Não era ingrato, mas a avó não poderia esperar que abandonasse a mãe, a faculdade e uma futura carreira promissora para sair numa viagem maluca em busca de uma árvore lendária.

    O longo corredor poeirento foi vencido rapidamente e Adam seguiu cabisbaixo até a escada de saída. Como esperava, a avó o aguardava ansiosa, e sorriu ao vê-lo descer.

    – E então filhote, encontrou sua herança? – Adam tentou retribuir o sorriso, mas ainda estava meio perturbado com tudo e apenas balançou a cabeça afirmativamente enquanto descia o último degrau. Sua falta de empolgação frustrou um pouco a avó e tentou remendar.

    – Estou meio confuso agora vovó e preciso pensar um pouco, colocar as ideias em ordem, sabe como é. Depois conversamos com mais calma, pode ser?

    – Claro querido! – disse a avó abraçando o neto – Pense com calma. Essa é uma decisão muito importante e vai mudar sua vida para sempre, mas lembre-se que nada acontece por acaso e sua escolha pode mudar o destino de toda humanidade.

    Adam retribuiu o abraço, meio encabulado e despediu-se com um beijo, deixando a casa sem olhar para trás. A poeira do sótão estava impregnada em suas roupas e cheiro de mofo subia até seu rosto sempre que o vento soprava mais forte, desalinhando seu cabelo e provocando um rebuliço nas longas mechas castanhas que lhe caiam sobre os olhos. A avó ainda gritou uma despedida da varanda e Adam retribuiu o gesto timidamente enquanto caminhava rapidamente para fora da propriedade.

    Já de volta a estrada, Adam colocou os pensamentos em ordem. Não tinha como atestar a veracidade da história e não estava em seus planos se envolver em uma aventura tolkieniana, mas era certo que o conteúdo da carta mexera com ele, afinal, o avô a escrevera prevendo o próprio fim. Que enrascada fui me meter, pensou no momento em que o ronco de um motor e uma música conhecida chegava aos seus ouvidos. Adam virou-se no exato momento em que um Corolla azul marinho parou ao seu lado, e uma garota com cara de anjo abriu a porta do passageiro e o cumprimentou com um sorriso.

    – Olá Adam – disse a garota. Seus olhos eram de um azul profundo e sua pele branca e sedosa contrastava com seus longos cabelos negros. Seus seios avantajados quase não cabiam no top decotado e a calça justa destacava as curvas bem modeladas – Que sorte encontrá-lo aqui. Entre! Te dou uma carona para casa.

    Adam não esperou um segundo convite. Depois da saia justa que passara na casa da avó, o encontro inesperado com a moça que vira na praça parecia coisa do destino, quase como um sinal dos céus. Ajeitou-se no assento, colocou o cinto e tomado pela curiosidade gaguejou ao perguntar.

    – D-desculpe, mas de onde me conhece? Não me lembro de já tê-la visto antes – mentiu tentando parecer sincero.

    – É uma longa história, mas não se preocupe, temos muito tempo para conversar. Meu nome é Rebecca Blue e se estiver com fome podemos almoçar juntos.

    – Seria ótimo! – disse Adam quase não acreditando na sorte que tivera – Mas antes tenho que passar em casa para tomar um banho e trocar de roupa. Você gosta de comida chinesa? Conheço um ótimo restaurante perto da faculdade.

    A moça apenas sorriu em resposta enquanto erguia o volume do som do carro e a voz melódica de Jon Secada inundou o ambiente no longo trajeto de volta à cidade.

    Instantaneamente fui criando aparência: cabeça, tronco e membros. Por minha vontade assumi a forma que desejei e me maravilhei contemplando meus movimentos; andar, correr, saltar no vazio... falar, ainda que ninguém pudesse ouvir. Percebi que tudo que fazia alegrava minha existência e assim permaneci por um longo tempo... até o tempo da separação.

    II

    O ACORDO

    O

    necromante² caminhava rapidamente, tentando não ouvir o primo que resmungava logo atrás. Estava sufocando dentro da roupa escura e espessa que costumava usar, mas queria chegar logo a seu destino e encontrar o usurpador de sua herança. Passara os últimos dois anos planejando isso e, apesar de alguns percalços, a jornada seguia sem maiores contratempos.

    Uma pequena vila de agricultores rodeada por grandes propriedades rurais surgiu no horizonte e Thomas decidiu acelerar o passo. Ao sul do vilarejo, adornando o alto da colina, ficava uma velha igreja de pedras brancas e, atrás dela, podia se ver silhuetas de lápides e cruzes, indicando um cemitério onde certo número de fiéis transitava por entre os túmulos. Alguns carregavam flores e velas, enquanto outros limpavam as lápides e faziam orações, acompanhados por um pároco, mas logo suas atenções foram desviadas para os visitantes que os encaravam sem constrangimento.

    Após o vilarejo, a presença humana tornava-se cada vez mais escassa, e o calor e o abafamento eram quase insuportáveis. Quando o último resquício de civilização, na figura de um boteco de beira de estrada, ficou para trás, o pouco do ânimo que ainda tinham desapareceu junto com o estabelecimento.

    – Não aguento mais andar – insistiu seu primo, um rapaz louro e de roupa verde extravagante – Vamos parar naquele boteco e refrescar a garganta.

    – Ah claro! Vamos parar em um bar e encher a cara. – respondeu Thomas, sarcasticamente – Mas como você pretende pagar a conta depois? Esqueceu que gastou todo nosso dinheiro no bordel? – e completou entre dentes – Maldita hora que confie meu dinheiro a um bardo³.

    – Eu não sou um bardo. – disse o Wesley, constrangido – Sou um protetor⁴, um mago da natureza, apenas gosto de cantar oras. E eu não gastei todo o dinheiro no bordel. As mulheres aproveitaram que eu estava bêbado e me roubaram. – justificou-se.

    – Grande diferença. – cuspiu o Thomas, irritado – Sua falta de responsabilidade sempre põe tudo a perder. Por sua causa estamos caminhando sob esse sol escaldante quando poderíamos alugar um carro, se tivéssemos dinheiro.

    Wesley ainda resmungou alguma coisa, mas Thomas fez que não ouviu e voltou sua atenção para a estrada. Uns poucos transeuntes passavam pelo lugar e olhavam com curiosidade para os dois, que formavam uma dupla incompatível. Thomas era alto e magro, apesar de ter os músculos definidos. Seus cabelos eram negros e brilhantes e estavam sempre bem penteados, enquanto sua pele, branca e lívida, se destacava sob a roupa preta. Abaixo das pálpebras, grandes olheiras combinavam com os olhos sombrios e sua expressão carregada era um reflexo do seu constante mau humor. Ainda assim era um belo rapaz, apesar da aparência tétrica, e sempre chamava a atenção das garotas por onde passava. Por outro lado, seu primo Wesley era loiro e rechonchudo. Tinha grandes olhos verdes e as bochechas rosadas e proeminentes. Sempre deixava crescer uma barbicha no queixo e seu cabelo desalinhado vivia a cair sobre a vista.

    Apesar da estranheza da situação Wesley estava bem à vontade. Sentou-se na relva que cobria a margem da estrada e retirou um bandolim da mochila que trazia nas costas. Afinou cerimonialmente as cordas do instrumento e ajeitou-se no assento improvisado para iniciar uma cantiga.

    De encontro ao destino, na viela da morte;

    Buscando um caminho e apostando na sorte;

    Perdidos no campo, cheirando à capim;

    Somos dois caminhantes, na estrada sem fim;

    Dois caminhantes, na estrada sem fim.

    Opróbrio injusto, ruína do forte;

    O imã da vida, não aponta pro norte;

    Laços de sangue, sociedade ruim;

    Somos dois caminhantes na estrada sem fim;

    Dois caminhantes, na estrada sem fim.

    A despeito do constante mau humor, o necromante teve que rir da cantiga entoada. No fundo sabia que não era uma companhia agradável e que o primo, apesar de tudo, só estava nessa jornada por ele.

    – Certo peregrino cantante, vamos continuar, caso contrário não chegaremos a lugar algum – disse Thomas, tentando parecer gentil.

    O primo guardou o bandolim na mochila e levantou-se escorando na árvore, consciente de que de nada adiantaria responder.

    O sol primaverado brilhava forte no céu claro da manhã e castigava quem se aventurava a desafia-lo naquele horário. Wesley, que não era acostumado àquelas condições climáticas, ainda estava com sede e resmungou ao recomeçar a caminhada tentando acompanhar o primo que seguia ligeiramente à sua frente.

    – Por que não esperamos anoitecer para recomeçarmos a caminhar? O sol está muito quente e não temos ideia do quanto ainda temos pela frente.

    – Porque temos urgência em nossa demanda e já estamos atrasados. – respondeu Thomas retomando sua rabugice – Quanto ao sol, você não disse que domina as canções de nível III? Faça algo a respeito do tempo, ou estava apenas contando vantagem?

    – As canções de nível III consomem muita energia. Acho que prefiro andar no sol quente a tentá-las.

    – Há! O mago é o senhor de sua magia e não o contrário. Se não tem capacidade para executá-las, abdique de seu dom. – respondeu Thomas, zombeteiro.

    Wesley tentou se justificar alegando que não tinha a mesmo vigor do primo, mas sua atenção foi atraída para uma jovem de longos cabelos prateados. A moça usava um vestido branco e rodado, com detalhes em rosa no decorrer do comprimento e um decote provocante na parte de cima. Sapatilhas brancas com laços vermelhos e meias rosadas com estampa de flores completavam o conjunto da adolescente que tinha olhos grandes e rosto pálido.

    Segurando uma sombrinha rendada em uma das mãos e uma sacola de verduras na outra, a adolescente passou pelos dois olhando-os com singela curiosidade.

    – Com licença, linda senhorita – disse Wesley, galantemente – meu nome é Wesley Green e esse é meu primo Thomas Black. Estamos meio perdidos e discutíamos sobre o caminho para a cidade quando sua bela presença roubou nossa atenção. A despeito de sua culpa poderia nos informar se estamos indo na direção correta e quanto ainda falta para chegarmos?

    A moça corou e abaixou a cabeça timidamente, quando Wesley pegou em suas mãos e segurou-a entre as suas. As longas mechas de sua franja caíram sobre o rosto e esconderem seus olhos acinzentados e seus lábios tremeram na tentativa de responder, mas não conseguiu pronunciar palavra alguma. Wesley aproveitou sua indecisão para segurar seu queixo e levantar seu rosto a encorajando com um sorriso.

    – Por favor, senhorita! Nosso destino está em suas mãos adoráveis.

    – D-desculpe senhor! – respondeu a moça, entre gaguejos. – A estrada é essa mesma e vocês estão à aproximadamente seis horas de caminhada da cidade. Podem seguir em frente que até a noite já devem avistar as luzes.

    Wesley notou uma grande cicatriz sobre sua sobrancelha quando ela levantou o rosto para encara-lo e disfarçou, voltando a atenção para a estrada.

    – Muito obrigado! – replicou, gentilmente – Mas se vamos pelos mesmo caminho poderemos caminhar juntos. Não quer nos acompanhar por um tempo? Assim poderemos nos conhecer melhor.

    Com o consentimento da moça Wesley pegou em seu braço para seguiram conversando, enquanto Thomas seguia atrás, discordando da audácia do primo e praguejando contra o sol.

    – Maldito calor! Mais uma hora nesse sol e vamos torrar – reclamou o necromante inquieto.

    – É verdade. – respondeu a jovem reparando em Thomas pela primeira vez – Eu que estou acostumada também estou sentindo mais hoje, mas logo à frente tem um riacho onde podemos nos refrescar, se estiverem interessados.

    – Claro que estamos! – disse Wesley pulando de alegria – Tomar um banho é tudo que eu gostaria agora. O que acha primo?

    – Bem, em virtude das circunstâncias acho que uma pequena parada para nos refrescarmos não seria de todo ruim, mas não podemos nos demorar – respondeu Thomas.

    – Ótimo! – disse a jovem – Logo após aquela curva descemos o vale que logo chegaremos, não é um rio muito grande, mas a água é muito fresca, vamos apressar o passo que assim poderemos aproveitar melhor o tempo.

    Os dois rapazes concordaram com a cabeça e seguiram mais rapidamente. Wesley prosseguia conversando com a moça e o necromante ia atrás em silêncio. Não gostava de atrasos, mas a ideia de um banho nas condições em que se encontrava, tornaram o convite irrecusável.

    Chegaram à curva e saíram da estrada entrando em meio ao capim alto que a margeava. Uma lebre cinzenta saltou de uma moita e correu para a estrada fugindo à presença dos invasores enquanto algumas codornas fizeram o caminho inverso, assustadas com o semblante dos novos visitantes. Wesley ficou um pouco para trás e praticamente desapareceu dentre o capinzal verde que os envolvia e apenas os praguejos exasperados que aleatoriamente soltava serviam para localizá-lo.

    – Meu Deus, esse capim parece navalha. Meus braços estão todos retalhados.

    O necromante parecia não se importar com os lamentos do primo. Seguia na frente disposto a sair logo daquela situação, mas o capim fechado tornava o ambiente abafado e aumentava a sensação térmica de calor, sufocando-os ainda mais. Apenas a moça se comoveu com as queixas de Wesley e voltou para acompanhá-lo mais de perto.

    – Mantenha os braços dentro da camiseta – respondeu ela tentando ajudar – e tente manter a cabeça abaixada, assim vai evitar que as folhas toquem seus olhos.

    Wesley acatou o conselho da moça e, livre dos arranhões, acelerou o passo tentando alcançar o primo que seguia logo à frente.

    Seguiram por mais uns quarenta metros e chegaram. O riacho era estreito, com uns dez metros de largura, e corria por entre rochas cobertas de musgo e pequenos arbustos. A água morna parecia pura e cristalina, com exceção da margem oposta, onde a fundura tornava-a escura e fria. Pequenas flores cresciam por entre os sulcos das rochas ao lado de grandes pedras que adornavam a paisagem e grama rasteira forrava as margens de um lado e de outro. Árvores frondosas, que cresciam ao redor, tornavam o ambiente agradável e o barulho da água correndo convidava os viajantes para um mergulho.

    A moça começou a tirar a roupa e entrou na água, apenas de calcinha e sutiã – um conjunto branco que, ao molhar, tornou-se parcialmente transparente. Algumas garças que passeavam ao longo do riacho alçaram voo e deram rasantes sobre a cabeça da jovem como se estivessem enciumadas pela beleza da adolescente, mas Wesley as enxotou e foi em direção a moça trajando apenas um calção listrado de verde e branco e uma fita nos cabelos, supostamente para mantê-los longe dos olhos.

    Aproximou-se devagar, caminhando com dificuldade na correnteza e pegou os cabelos prateados da jovem, que agora estavam mais escuros em virtude da umidade, e os acariciou. A moça encolheu-se de tesura e tentou se afastar,

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