Memória Genético: Livro um: O Oásis
By JC Durendal
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Memória Genético - JC Durendal
MEMÓRIA GENÉTICA
O oásis
JC Durendal
MEMÓRIA GENÉTICA
Livro um
O oásis
Primeira edição
Rio de Janeiro
Edição do autor
2015
D955m Durendal, JC, 1970 -
Memória genética: o oásis/ JC Durendal. - Rio de
Janeiro: [s.n], 2015.
360p.
ISBN: 978-85-919439-0-6
1. Ficção científica brasileira 2. Romance
I.Título. II.Série
CDD B869.3
CDU 82-311.9 (81)
Capa
Ficha Cartográfica
Dedicatória
Agradecimentos
Prólogo
Um O observatório
Cena 1 - Labirinto da memória
Cena 2 - A família
Cena 3 - A Terça-feira Negra
Cena 4 - A irmã da fera
Cena 5 - Beatriz, Giulietta e o telescópio
Cena 6 - O observatório
Cena 6.1 - Estranhos visitantes
Cena 6.2 - A reunião
Cena 7 - O indutor de memórias
Cena 7A - O Biochip
Cena 7A1 - O mal se espalha
Cena 7A2 - A encomenda
Cena 8 - Saindo do Colégio
Cena 8.1 - Margot dorme na casa de Giulietta
Cena 9 - A canção de Ferdinando, Capitão-de-Tormenta
Cena 9.1 - A Fundação
Cena 9.2 - Triângulos de Andrômeda
Cena 9.3 - O colar de Ariadne
Cena 9.4 - A dona da loja de discos
Dois O Oásis
Cena 9.5 - A batalha dos Açorianos
Cena 9.6 - Muito mais que amigos
Cena 10 - Enfim o calor
Cena 11 - No Clube
Cena 11.1 - O salto
Cena 11A - Antigos hábitos
Cena 11A1 - O teste
Cena 11A2 - A proposta
Cena 12 - O livro misterioso
Cena 12.1 - Não existem coincidências!
Cena 12.2 - Eclipse
Cena 12.3 - Encontrando o que não procurava
Três A festa
Cena 13 - Os novos Nômades
Cena 14 - O ensaio
Cena 14.1 - O aprendiz
Cena 14.2 - A fada madrinha
Cena 14.3 - O roubo espetacular
Cena 15 - Um casal improvável
Cena 15.1 - A festa no Consulado
Cena 15.2 - O pianista
Cena 15.3 - O Beijo
Cena 15.4 - O atormentado
Cena 15.5 - Incertezas
Cena 15A - Projeto COEUS
Cena 15A1 - Difíceis escolhas
Quatro A apresentação
Cena 16 - O Velho soldado
Cena 17 - Ecos do passado
Cena 18 - Saia justa
Cena 18.1 - A hora da verdade
Cena 18.2 - A apresentação
Cena 18.3 - Uma noite surpreendente
Cena 18.4 - O incêndio
Cena 18.5 - Extraordinários!
Epílogo
Considerações Finais
Dedicado às minhas filhas
Nenhum autor escreve um livro sem ajuda. Agradeço à minha esposa Francine que, com muito amor, soube entender mais de um ano despendido na elaboração deste trabalho. A minha família, pelo o apoio e incentivo. Aos amigos, pela colaboração e disponibilidade. Às minhas filhas, que me ajudaram na composição das personagens (principalmente, Maria Cecília, que me deu bons palpites e Clara, que me influenciou muito. Tem muito delas em Giulietta e Blanca, respectivamente). Ao Max, que sempre me ouviu com atenção, enquanto tagarelava sobre o livro, nos nossos passeios diários. Emprestando seu nome e personalidade a um dos personagens. Agradeço muitíssimo a Professora Áurea Machado, uma pessoa radiante e generosa, que me ajudou com seu miraculoso toque de midas
, a organizar a bagunça dos meus escritos. E, por fim, ao Rio Grande do Sul, a todos os meus amigos gaúchos e a Porto Alegre. Cidade onde vivi três anos maravilhosos ao lado da minha esposa. Lugar que aprendi a amar e que pretendo homenagear, ambientando parte da minha inusitada história.
Acampamento da Força Expedicionária Brasileira (FEB) Batalhão VELEDA
, 25 km dentro da linha Gótica, arredores de Montese, Itália, 9 de fevereiro, de 1945.
Quando o tenente Macedo reuniu o grupo em sua barraca no meio daquela noite chuvosa e ainda fria da primavera italiana, Medeiros imaginou que iria receber algum tipo de punição, devido ao seu comportamento inadvertido e impulsivo das últimas missões, não tinha a menor ideia, no entanto, de que todos ali haviam sido escolhidos a dedo para compor uma força tarefa conjunta com os melhores homens da 10ª Divisão de Montanha - tropa de elite do exército americano - para uma missão muito especial, que mudaria sua vida para sempre.
Os soldados do 3º escalão da Força Expedicionária Brasileira chegaram à Itália em vinte e dois de setembro de 1944.
Um punhado de homens sem preparo, inocentes e patriotas.
Foram meses extenuantes de combate, com pouco ou nenhum treinamento, enfrentando o enxame de projéteis das metralhadoras alemãs que, do alto das suas casamatas, ceifavam a vida dos brasileiros, com os campos minados, a chuva de bombas, morteiros e granadas e a voracidade dos canhões de 100 milímetros do 14º exército alemão. Eles se tornaram soldados de verdade tendo a guerra como mentora. O frio desumano do inverno europeu foi, aos poucos, congelando a alma cordial dos brasileiros, que viam seus compatriotas tombando, um a um, na selvageria daquela guerra insana.
Depois da vitória gloriosa em Monte Castelo, todos no front italiano passaram a respeitar a bravura dos guerreiros do Brasil. Que, naquela ocasião, tiveram despertados dentro si uma besta que só o deus da guerra tem poder de fazer aflorar. Nas quatro desastrosas tentativas anteriores da tomada do estratégico Monte, os inimigos impuseram um número inadmissível de baixas à tropa brasileira, sendo a derradeira e não menos penosa operação, chamada pelo exército americano pelo codinome ENCORE. Uma prova de fogo ansiada, não tanto pela bravura ou patriotismo, mas pura e simplesmente pelo ódio e desejo de vingança contra os alemães que cresciam com a visão de cada cadáver de brasileiro jogado no meio da lama. Muitas vezes um amigo ou apenas um conhecido, desfigurado e mutilado, esquecido e mumificado pelo frio.
O soldado Pedro de Medeiros, ou Gaúcho, como todos o chamavam, fazia parte do 1º esquadrão de reconhecimento que ganhou muita notoriedade depois das bem sucedidas intervenções em Monte Castelo. Muito bom no combate corpo a corpo com baioneta e exímio atirador com o fuzil M1 Garand, logo se destacou como homem de confiança do oficial comandante do esquadrão. Ele era natural de Bagé, Rio Grande do Sul, e nunca imaginou que a sua vida simples e campeira nos pampas gaúchos mudaria tanto. Quando saiu do Porto do Rio de Janeiro nem sabia, ao certo, para onde estava indo. Só quando avistou da baía de Nápoles, pela proa do navio transporte, a fumaça branca que saía do cume do monte Vesúvio, se deu conta de quão distante estava de casa.
Medeiros e outros nove companheiros de esquadrão, juntamente com mais vinte soldados americanos da Divisão de Montanha saíram no meio da madrugada, em 10 de fevereiro de 1945, em dois caminhões. Só depois de uma hora de viagem, os soldados foram informados da natureza da missão: a invasão do Castello di Leone, local que a inteligência aliada acreditava ser um quartel general e depósito de armas e munição.
Quando se aproximaram da base do monte de onde já era possível avistar as ruínas da milenar construção, foram surpreendidos por um barulho forte semelhante a uma sequência interminável de trovões. De dentro do castelo, três máquinas voadoras, diferentes de tudo que ele já tinha visto, decolavam verticalmente. Eram helicópteros, aeronaves experimentais e raríssimas naquela época. Divididos em dois grupos avançaram pelo bosque da encosta, um pelo flanco sul e o outro pelo oeste do monte. Os americanos escalaram a muralha e o grupo brasileiro entrou por uma lateral desmoronada da fortaleza, surpreendentemente pouco guarnecida.
Depois de receber o sinal para avançar, Medeiros logo tratou de procurar um ponto elevado com uma visão privilegiada e, com seu fuzil M1, abateu duas sentinelas. Do outro lado, ouviam-se os disparos das submetralhadoras americanas. Os dois grupos se encontraram no centro do pátio depois de clarear o perímetro, entrando em seguida no interior do castelo. O que parecia as ruínas de uma fortaleza medieval, na verdade, revelou ser um complexo subterrâneo. O combate foi rápido.
Surpreendentemente, os alemães restantes esboçaram o mínimo de resistência.
Veio, então, a ordem de fazer o reconhecimento do local. Trocaram os fuzis por armas curtas e foram avançando pelos corredores de concreto. Logo perceberam não se tratar de depósito de armas ou algo do gênero, pois o lugar mais parecia um laboratório ou uma instalação hospitalar. Mas já estava vazio.
Tudo tinha sido levado às pressas e o que não fora levado estava destruído.
Não havia nada além de equipamentos antigos, geradores inutilizados, rádios velhos e material médico espalhados pelo chão. Logo concluíram que aquilo deveria ser um bunker nazista evacuado rapidamente devido ao iminente avanço aliado. Talvez um esconderijo para altos oficiais nazistas.
Um objeto se destacava intacto em cima de uma plataforma no centro de uma sala envidraçada de formato circular. Assemelhava-se a uma mesa cirúrgica com o formato do contorno do corpo humano e com vários cabos elétricos soltos.
No canto da sala contígua, trancado dentro de uma caixa de aço, que Medeiros abrira com uma coronhada de fuzil, encontrou o que parecia ser um estranho capacete metálico, porém, com lentes coloridas sobre os olhos e terminais para conexão elétrica na lateral. O objeto lhe pareceu muito interessante, um bom souvenir de guerra, e ele não hesitou em colocar na mochila.
Em seguida, ouviu um ruído atrás de uma porta semiaberta e seu sangue gelou instantaneamente. Entrou no compartimento com sua pistola Colt .45 em punho e se deparou com um soldado alemão de uniforme preto, sem qualquer identificação, sentado no chão segurando um detonador com o rosto lívido e um sorriso de pavor. Ele falou algumas palavras inteligíveis em alemão apertando então o gatilho...
Nada aconteceu. Ainda tentou sacar uma pistola Luger, mas não teve tempo. Medeiros atirou na sua cabeça. O estampido do disparo atraiu o resto do grupo que chegou em segundos e, depois de observarem melhor a cena, descobriram que era uma armadilha. O lugar estava repleto de cargas explosivas em quantidade suficiente para obliterar o monte inteiro.
***
De volta ao acampamento nos arredores do Burgo de Montese, Gaúcho mostrou a nova aquisição a um colega de esquadrão que não soube precisar o que seria o objeto, porém apostou num equipamento de aviação semelhante aos usados pelos pilotos de caça. Concluíram, então, que só poderia ser das estranhas aeronaves que viu decolando do castelo naquele dia.
Três dias depois, todos que participaram da incursão em Castello di Leone foram chamados e interrogados por oficiais da inteligência acerca de detalhes ou informações negligenciadas num primeiro momento. Com medo, Medeiros nada disse sobre o capacete.
No dia seguinte à incursão, o castelo e as instalações subterrâneas foram completamente destruídos por um bombardeio concentrado de aviões da Luftwaffe. Três bombardeiros foram abatidos por caças da RAF (Força Aérea Britânica).
O empenho dos alemães em destruir o lugar, num momento tão delicado da guerra, com o avanço das forças aliadas em diversas frentes europeias, reacendeu as especulações sobre a real finalidade do bunker. Os boatos das armas secretas de Hitler, que poderiam mudar os rumos do conflito, preocupavam a inteligência aliada.
Em sete de maio de 1945, é assinado o termo de rendição da Alemanha. A guerra na Europa estava terminada, mas o nazismo, não.
***
Medeiros ficou conhecido como o herói de Bagé. Pelas suas atuações na campanha em Monte Castelo, recebeu a Cruz de Combate de prata da FEB, foi promovido, por bravura, à graduação de Terceiro Sargento, e ainda condecorado com a Estrela de Bronze, quarta maior honraria do Exército Americano.
Foi recebido, também, como herói na cidade, homenageado no quartel e na Câmara de Vereadores, mas o alarde passou. Pedro não se adaptou mais à vida no campo. E, aos vinte cinco anos, mudou para Porto Alegre. Diferente de outros Ex-combatentes que voltaram irreconhecíveis para o Brasil, seguiu sua vida normalmente, casou e se tornou vigia noturno. Era alegre e adorava contar suas aventuras na Itália aos amigos, principalmente, de mostrar aquele estranho capacete que trouxera da guerra.
Dez anos depois, revirando o baú de lembranças na sua garagem, ele se deparou com o capacete que havia trazido do Castello di Leone impecavelmente conservado. Viu-se refletido no metal prateado e, imediatamente, os acontecimentos daquele dia passaram na sua cabeça como um filme. Um arrepio percorreu seu corpo quando se lembrou do rosto do soldado alemão, do sorriso alucinado e das palavras que ele jamais entenderá.
Pedro sempre fora curioso e já havia esperado tempo demais. Era hora de se libertar daquela angústia e superstição.
Começou a manusear o capacete e ficou intrigado com o compartimento na parte traseira do artefato. Tentou, sem sucesso, abri-lo com todas as ferramentas que possuía. Por fim, adaptou fios elétricos às conexões na lateral e, receosamente, ligou-os na energia elétrica.
Foi maravilhoso, pareceu que o capacete ganhara vida.
Os mecanismos internos entraram em funcionamento. Com um leve zumbido, seguido de um ruído de relógio antigo, ele emitia luzes que pulsavam mudando de cor automaticamente. As lentes se moviam coordenadamente no ritmo das luzes.
Não resistiu e vestiu o capacete. No início, ficou maravilhado com a experiência, e pensou como aquilo iria fazer sucesso entre seus amigos. Foi quando sentiu que, da parte de trás do capacete, saiu um tirante metálico que o prendeu firmemente à sua cabeça. Ele se desesperou e tentou tirar aquilo, puxando pelos fios, mas o tirante não cedeu e o equipamento não parou de funcionar. Sentiu em seguida, uma pontada na nuca e uma dor lancinante. Uma agulha grossa atravessara a parte de trás da sua cabeça e injetara um líquido lá dentro. O ex-soldado gritou de dor e, desesperadamente, tentou tirar aquilo da cabeça, mas não adiantou e caiu desacordado no chão.
As luzes ainda funcionaram por um tempo enquanto seus olhos se moviam descoordenadamente. A agulha se recolheu e o tirante se soltou liberando o capacete que foi parar embaixo do seu carro devido às suas convulsões.
Pedro ficou em estado vegetativo vários meses e, quando acordou, não era mais o mesmo. Envelheceu, seus cabelos caíram. Era uma figura mórbida. Passou a falar coisas sem sentido e, às vezes, se dizia soldado da coroa portuguesa.
Agressivo, foi internado como esquizofrênico morrendo, numa tarde de sábado no Sanatório Militar de Porto alegre.
Oficiais do Exército visitaram a casa investigando sua morte. Fizeram perguntas e concluíram se tratar de trauma pós- guerra. Sua mulher lhes entregou o capacete que, enviado para o Rio de Janeiro, foi considerado como equipamento médico e, depois, arquivado com outros artefatos da segunda guerra no Instituto Histórico do Exército.
A função da memória, é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles e, trazê-los até nós para que estejam conosco.
Pe. Antônio Vieira
A primeira vez que o vi, foi no jantar. Ele era o único civil que partilhava a mesa com os oficiais da SS e pela maneira respeitosa como o tratavam, Herr Doktor
, percebia-se que era uma pessoa importante. Ele não falava muito. Enquanto os outros alemães riam e bebiam muito vinho, ele conversava num tom calmo e educado.
Embora meu pai me dissesse que éramos aliados na guerra e que deveríamos ser bons e pacientes, eu acho que eles não partilhavam da mesma ideia. O desprezo e, por vezes, a rudeza com que nos tratavam, deixava claro que não nos consideravam como iguais.
Eu não gostava, pois não entendia uma palavra do que falavam, e tinha a certeza de que toda vez que me aproximava, eles diziam coisas pouco honrosas sobre mim, me olhando de um jeito nojento como se eu fosse uma cabra à venda no mercado. Porém, meu pai me obrigava a servi-los era um pedido pessoal do
Herr Comandant". Dizia que era bom para os negócios. Minha mãe não aprovava, mas pouco podia fazer.
Apenas o Dottore
falava comigo e, gentilmente, traduzia os pedidos num italiano perfeito.
Contudo, numa noite fria de inverno, depois de me certificar de que eles todos já haviam se recolhido, fui jogar o lixo fora.
Eu estava faminta, exausta e talvez, pela pressa ou cansaço, não tenha reparado. Num canto, vi o vermelho da brasa cintilando no escuro. O cheiro da fumaça de cigarro vindo das sombras me fez sentir um arrepio como se o próprio demônio estivesse ali presente. Era um alemão com a camisa do uniforme aberta. Jogou o cigarro de lado e me falou algo que não entendi.
Eu o cumprimentei sem olhar e apressei-me em voltar para dentro. Quando dei as costas, senti uma mão segurando meu braço com força. Ele me virou e colocou contra a parede, tentando forçar a mão sob o meu vestido. Eu lhe dei uma bofetada e ele sorriu como se tivesse gostado, exalando um hálito repugnante de vinho e fumo.
Então, uma voz trovejou atrás de nós. Lembro-me da luz amarela da janela da cozinha iluminando o rosto do meu salvador. Era o Dottore
. O maldito oficial alemão acendeu outro cigarro e saiu rindo, enquanto me olhava com um desprezo abissal. O Dottore
aproximou-se e perguntou se estava bem. Não sei por que, eu o empurrei e entrei correndo arrumando minhas roupas com o rosto molhado de lágrimas.
No outro dia, meu pai queixou-se ao Comandante, que se desculpou e pôs a culpa no maravilhoso vino
italiano e na juventude do seu oficial, mas tomaria as medidas necessárias.
Parei de servir as mesas e apenas limpava os quartos durante o dia quando eles estavam fora. Contudo, uma semana depois, meu pai recebeu uma notificação do Departamento Italiano de Razza
na qual levantavam a suspeita de uma possível origem judia na nossa família. Ele ficou apavorado. Naquela época, tivemos alguns vizinhos e amigos italianos natos que, por alguma desavença com os alemães, foram mandados para trabalhar como escravos na construção de bunkers na linha Gótica.
Meu pai procurou o Comandante mais uma vez. Cordial, disse que deveria ser um engano, mas era conveniente meu pai e sua família serem mais amáveis
para com os alemães. Meu pai entendeu o recado, ele era um hipócrita.
O quarto do Dottore
era o mais bagunçado. Havia frascos com líquidos coloridos e fedorentos espalhados pela mesa e folhas de papel com anotações rabiscadas por toda parte.
Ele pediu ao meu pai que apenas eu arrumasse o seu quarto, pois segundo ele, não tirava as coisas da ordem. Duas semanas depois de meu pai haver recebido o preocupante comunicado, o Dottore
caiu doente e ficou de cama vários dias. Durante esse tempo, eu tive mais contato com ele.
- Achei que você fosse médico!
- Não, sou cientista, mas talvez eu saiba mais de medicina que o dummkopf
(idiota) que me obrigou a ficar de cama todo esse tempo. respondeu sorrindo. Desculpe, como se chama?
- Angeline.
- Eu me chamo Thorsten Altemburg.
- Nunca agradeci o que fez por mim àquela noite! Admiti envergonhada.
Depois da proibição de sair para a cidade apinhada de alemães, eu passava muito tempo com Thorsten. Ele era muito inteligente, falava vários idiomas: alguns estranhos como árabe e russo além de inglês, francês e italiano, é claro. Sobre o seu trabalho se limitava a dizer que, em pouco tempo, mudaria o mundo e ajudaria a compreender melhor a humanidade.
As notícias da guerra vindas do sul eram contraditórias, mas, de fato os alemães estavam tensos e mais agressivos do que nunca. Sentíamos que grandes mudanças estavam por vir.
Meu pai recebeu outro comunicado participando sobre os estudos do Departamento de Razza
. Tinham encontrado uma ascendência hebraica em nossa família e informavam que deveríamos nos preparar para uma remoção. A notícia caiu como uma bomba. Minha mãe sugeriu fugirmos para Sicília ou para casa de parentes no sul do Brasil, mas meu pai foi inflexível. Ele não queria passar pelas frentes de combate, muito menos, abandonar sua casa e seu negócio. Ainda acreditava que o cínico Comandante poderia resolver o problema. Mas a oferta que o alemão fez foi inaceitável. Ele me queria como sua concubina.
Nunca vi meu pai daquele jeito. Ele explodiu de cólera e esmurrou o Comandante que nos chamou de escória italiana e mandou prendê-lo. Por sorte, não foi morto, ali mesmo na nossa frente. Mas a desgraça abraçou-nos com suas asas negras a partir dali. Depois de levarem meu pai, prenderam também meu irmão Lucio por espionagem. Minha mãe estava desesperada e não via saída para nós. Duas mulheres sozinhas naquela situação, com a guerra batendo à porta, era algo análogo ao suicídio. Ela não cogitava me entregar e disse que, se nada mais restasse mataria nós duas.
Mas a vida é como um floco de neve levado pelo vento.
Tanto pode ser acolhido na folha aguda de um pinheiro, como provocar uma avalanche se cair na encosta certa da montanha.
Não condenei minha mãe pelo que fez. Desejava o melhor para mim e, naquelas circunstâncias, teve de decidir como mãe e pai ao mesmo tempo.
Quando todos estavam reunidos no jantar, o Dottore
desceu as escadas com dificuldade, se aproximou da mesa e fez um comunicado. O Comandante arremessou a cadeira contra a parede furioso, esmurrou a mesa e sacou a pistola mauser para Thorsten. Seguiram-se gritos em alemão, e o oficial da SS apontou para mim e me chamou de cadela e vagabunda em italiano para que eu entendesse. O Dottore
mostrou-se corajoso e não recuou diante do alemão transtornado que foi contido pelos colegas. Eu corri apavorada e, naquela noite, dormi escondida na dispensa.
Pela manhã, minha mãe me achou entre os sacos de farinha e contou tudo. Thorsten disse ao Comandante que, enquanto esteve doente ele me seduziu e nós nos amávamos e iríamos nos casar. O Comandante o ameaçou e disse que, ao voltar iria resolver o problema. Nem que tivesse que matar a todos nós.
Contudo, o destino, mais uma vez, brincou com as nossas vidas. O Mercedes-Benz onde eles viajavam, foi atacado por um caça da RAF (Real Força Aérea Britânica) matando o Comandante e mais dois oficiais da SS e deixando o alemão que abusou de mim aleijado. E Thorsten passou, de um dia para o outro, a ser o representante alemão mais importante do lugar.
Nós nos casamos, uma semana depois, na igreja de pedra de Santa Maria Goretti. Naquele mesmo mês, minhas regras atrasaram e, em nove meses, dei à luz um menino, Amedeo, como o avô.
Não nos amávamos, mas ele era bom comigo e com minha mãe. Amedeo foi fruto da paixão, da minha paixão pela vida. Thorsten nos mandou para uma casa nas montanhas, tão distante que o braço longo da guerra não nos alcançaria. Foram os melhores anos da minha vida e entre os vales verdes e a neve, vi meu filho crescer. As raras visitas do meu marido eram tão estranhas como receber um primo distante, mas nunca nos faltou nada e o isolamento era o maior tesouro de todos. A guerra acabou, dizem que perdemos. Mas Thorsten sempre falava que as suas descobertas científicas estavam além da guerra e, um dia, aquilo seria a nossa salvação.
Ele agora trabalhava para os americanos. Afirmava que estava chegando a hora de nos mudarmos para a América e, finalmente, vivermos em paz. Mas eu infelizmente, adoeci e, na lonjura das montanhas, mesmo com minha mãe fazendo tudo que podia, meu estado piorava dia a dia. Só Amedeo me alegrava.
Era uma criança maravilhosa, um anjo que o horror da guerra não conseguiu contaminar.
Thorsten voltou um dia, com uma comitiva grande de caminhões e jipes, ostentando a bandeira azul e vermelha do vencedor, decidido a nos levar com ele. O médico americano, porém, não me deu esperanças e eu pedi para morrer ali, onde havia vivido tantos anos maravilhosos e minha mãe estaria comigo. Thorsten prometeu cuidar de Amedeo e que eu me orgulharia dele. Com suas mãos pequeninas, ele me acariciou o rosto. Beijei sua testa e pedi a Santa Maria Goretti que olhasse por ele enquanto uma enfermeira o tirava dos meus braços chorando mama!
. As lágrimas tomaram conta da minha alma, mas não chorei. Não queria que a sua última lembrança minha fosse ruim, então sorri. Seja feliz, meu filho!
***
O tilintar dos talheres e xícaras, chacoalhando no carrinho do café, passando no corredor, a acordou daquele sonho angustiante. Giulietta tocou o rosto com as mãos e se espreguiçou na cama encolhendo os ombros. Os apavorados olhos azuis e o som dos soluços do pequeno Amedeo foram diminuindo aos poucos dentro da sua cabeça, até desaparecer completamente, deixando um inexplicável aperto em seu peito e imagens vagas dos Alpes italianos, perdidos em algum lugar da memória.
A claridade excessiva do ambiente a impedia de abrir os olhos. A simplicidade da mobília, a TV antiga, a mesa de apoio de metal ao lado da cama e o cheiro fraco de iodo eram familiares. Estava no Hospital Militar de Porto Alegre.
Era difícil enxergar, uma dor latejante na cabeça ainda a incomodava. Com os olhos espremidos de uma oriental, ela esquadrinhou o quarto e, mesmo sob a luz forte que a ofuscava, reconheceu Beatriz sentada na cadeira próxima à janela. Elas se olharam e Beatriz sorriu um sorriso fosco.
- Oi, Giuli, como está se sentindo?
Ela era sua irmã mais velha, não muito mais velha, apenas um ano, mas o suficiente para, às vezes se sentir sua mãe.
Na maioria das situações, isso a incomodava, porém agora Giulietta sentia um alívio em vê-la ali na sua frente.
- Estou bem! Só com um pouco de dor de cabeça. Há quanto tempo estou aqui? perguntou olhando para a janela.
Ela se lembrava de estar no palco para a apresentação no Colégio Militar, da música alta, de ficar tonta, do bombardeio de cores invadindo sua cabeça e depois o vácuo.
- Desde ontem à noite eu acho! Nós trouxemos você para cá depois que desmaiou no meio da sua apresentação, foi sinistro! Beatriz soltou um risinho tenso e foi falando cada vez mais baixo, como se não quisesse contar tudo, o tato não era uma de suas virtudes.
- Achamos que era mais uma maluquice de vocês, sabe?
Parte daquela performance alucinada, mas aí você começou a ter convulsões e...
- Onde está a vovó?
- Foi para o asilo. Aconteceu alguma coisa séria. Ligaram de lá e ela saiu desesperada. Mas passou a noite com você.
- Humm... Será que já podemos ir?
- Não sei, o médico amigo da vó, aquele careca...
- O doutor De Lucca, completou.
- Isso mesmo! Ele pediu para avisar assim que você acordasse. Eu vou chamá-lo e já volto. O controle da TV está na gaveta aí ao seu lado. Por falar nisso já está sabendo da explosão?
Claro que não, você estava apagada! Beatriz riu um pouco sem graça e continuou. Explodiu uma bomba na frente do Colégio, bem na hora da saída do festival e atingiu um guri do Colégio Júlio de Castilhos. Ele tá mal. Eu desisti de ver TV, eles só falam disso. Ah! Tem uns biscoitos e suco ali na mesinha!
Enquanto devorava os biscoitos e tomava um copo de suco de laranja, ela ligou a televisão. Estava morta de fome, a última coisa de que se lembrava de ter comido foi uma maçã há pelo menos dez horas. Quem sabe não tenha sido essa a razão do desmaio?
pensou. Ainda se sentia fraca e enjoada, mas uma noite inteira sem comer turbinou seu apetite de tal forma que não se importou muito com o enjoo.
A maioria dos canais de TV ainda repercutia o atentado na saída do festival do Dia da Vitória. Ao que parece, estavam culpando o grupo conhecido como Nômades. Houve, também, um incêndio no asilo dos Ex-combatentes, fato que explicava a ausência tempestiva da avó. As informações ainda eram desencontradas, porém, os repórteres especulavam que fora criminoso.
No jornal da manhã, uma repórter, com máscara hospitalar e o Big-Bem ao fundo, dava a notícia de mais um caso do Mtera vírus, e, para espanto da Europa, agora era em Londres. Giulietta percorreu os canais aleatoriamente. Nada de interessante, sempre a mesma coisa
pensou. Dia da Vitória manchado por atentado em Porto Alegre...A polícia e o SSI intensificam as ações de repressão em todo Brasil e prendem mais integrantes de gangues neonazistas em São Paulo... O campeonato mundial de natação no Rio de Janeiro é cancelado por causa da ameaça do vírus... Embarcação de refugiados africanos naufraga na costa italiana e todos morrem. Acusam a Itália de crime humanitário e omissão por medo do contágio...
Seus pensamentos abafaram