Literatura e cura: oficina de leitura como intervenção psicopedagógica
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Michèlet Petit conta que, na França, as crianças que ouvem histórias, lidas por sua mãe, todas as noites, têm o dobro de possibilidade de se tornarem grandes leitores, em comparação àquelas que não passam por essa experiência. Assim, a leitura coloca o pensamento em movimento, relança uma atividade de simbolização, de construção de sentido, e permite que o sujeito possa se abrir para a fantasia e para o mundo imaginário. A importância de ver um adulto ler com paixão faz parte do relato dos leitores e, assim, alguém pode dedicar-se à leitura porque viu um parente ou um adulto que lhe inspira afeto submergir nos livros. Ademais, a autora também sugere que a leitura tem uma função reparadora, uma vez que "uma obra é capaz, literalmente, de nutrir a vida".
E o que podemos pensar daquelas crianças que vivem situações não facilitadoras para a aprendizagem da leitura e da escrita, como, por exemplo, a pobreza extrema, a desintegração familiar, o analfabetismo dos pais, as experiências desastrosas na escola e a má preparação dos professores? Será possível pensar em algo que possa favorecer a aprendizagem e o gosto pela leitura? Este livro pretende oferecer algumas respostas a essas questões.
Sabemos que a leitura de histórias tem uma função lúdica e criativa e estabelece-se como atividade prazerosa, permitindo um importante momento de aprendizagem.
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Book preview
Literatura e cura - SONIA SAJ PORCACCHIA
Editora Appris Ltda.
1ª Edição – Copyright© 2016 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.
Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.
Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSICOPEDAGOGIA
A Leonildo, Leo, Allan e Éber, sem vocês nada disso seria possível!
Aos meus pais, Josef e Margarete, pela oportunidade da vida.
Ao meu marido, Leonildo, pela companhia preciosa.
Aos meus filhos, Leo, Allan e Éber, cuja compreensão, carinho e convivência ensinaram-me que todo esforço vale a pena.
À querida professora e orientadora Drª Leda Maria Codeço Barone, amiga querida, meu carinho e gratidão pelo acolhimento e generosa colaboração.
À querida professora Drª Márcia Siqueira de Andrade, minha primeira ensinante na Psicopedagogia e que me abriu as portas para eu ser psicopedagoga.
Às crianças, enfim, que fazem parte dessa história.
NARRATIVA E CURA
¹
A criança está doente. A mãe leva-a para a cama e senta-se junto a ela. Então começa a contar-lhe histórias. Como devemos compreender tal coisa? Pude fazer uma ideia quando N. me falou do poder curativo que sua mulher tinha nas mãos. No entanto, sobre elas disse-me o seguinte: ‘Seus movimentos eram extremamente expressivos. Porém, não se poderia descrever sua expressão... Era como se contassem uma história’. A cura pela narrativa, já a conhecemos através das palavras mágicas de Mersenburger - e não porque repitam a fórmula mágica de Odin. Narram, antes, o contexto no qual ele as utilizou pela primeira vez. Também se sabe o quanto a narração que o doente faz ao médico, no início do tratamento, pode tornar-se o começo de um processo de cura. Surge, assim, a questão: a narração não criaria, muitas vezes, o clima apropriado e a condição mais favorável de uma cura? Não seria toda doença curável se ela se deixasse levar pela correnteza da narração até a foz? Se considerarmos a dor uma barreira que bloqueia a corrente da narração, podemos ver claramente que ela se quebra quando o declive é suficientemente acentuado para arrastar tudo que encontra em seu caminho em direção ao oceano do venturoso esquecimento. O afago desenha um leito para essa correnteza
.
(Walter Benjamin)
APRESENTAÇÃO
A leitura de histórias tem função lúdica, criativa e estabelece-se como atividade prazerosa, permitindo um importante momento de aprendizagem. Mas o que pensar daquelas crianças que vivem situações não facilitadoras para a aprendizagem da leitura e da escrita, por exemplo, a pobreza extrema, a desintegração familiar, o analfabetismo dos pais, as experiências desastrosas na escola, a má preparação dos professores? Será possível pensar em algo que possa favorecer a aprendizagem e o gosto pela leitura?
Fruto da minha dissertação de mestrado², este livro pretende oferecer algumas respostas a essa questão através do relato de uma intervenção psicopedagógica realizada tendo como principal instrumento a leitura de histórias – nomeada como Oficina de Leitura – em uma clínica-escola psicopedagógica com crianças que não conseguiam aprender a ler e escrever. Apoia-se na ideia da existência de uma função terapêutica da literatura buscando aproximar a literatura do conceito de Espaço Potencial desenvolvido pelo pediatra e psicanalista Donald Wood Winnicott, tecendo algumas articulações com seu pensamento. Nesse sentido, acredito que a leitura de histórias de literatura infantil gera um Espaço Potencial na medida em que a literatura, com sua função de humanização defendida por Antônio Candido, aproxima-se do viver criativo
ou ao estar vivo
de Winnicott.
Para tanto, esta obra descreve inicialmente uma fundamentação teórica para a função terapêutica da literatura, incluindo importantes conceitos como narrativa, humanização e as relações da Literatura com a Psicanálise. Entre eles, ressalta-se a importância da literatura como um espelho em que a criança pode se olhar através da atividade do pensamento do autor da história e elaborar e construir a sua narrativa pessoal, favorecendo a sua própria aprendizagem. A literatura é entendida como possibilidade de transmissão e organização da experiência que perpassa pela voz do leitor, pelo ambiente que proporciona um espaço de segurança e confiança e pela presença física do livro, um objeto cultural significativo que foi utilizado como uma espécie de Objeto Transicional
, que pudesse favorecer o trânsito para a simbolização.
Em um segundo momento, relato como foi a vivência criativa na Oficina de Leitura propriamente dita a partir de dois planos: um tomando em consideração cada criança individualmente e outro levando em conta o movimento do grupo ao longo da Oficina de Leitura. Nas discussões, minha atenção se volta não apenas ao modo de interação do grupo e das crianças, da leitura e da escrita, mas principalmente às questões subjetivas e aos momentos mutativos
ocorridos no decorrer do processo. Em especial, analisarei os seguintes aspectos: a capacidade de brincar, a capacidade narrativa, a autonomia e a implicação da criança no ato de ler e escrever, bem como questões subjetivas surgidas durante os encontros.
A Oficina de Leitura desenvolveu significados importantes para as crianças do grupo, como traços de pertencimento e desejo de novas experiências, sustentando a ancoragem na realidade cultural.
Eu não poderia finalizar essa apresentação, sem mais uma vez agradecer às crianças que participaram desse trabalho, pelos momentos de aprendizagem, e por me incentivarem a buscar e criar sempre. Pela oportunidade de acompanhá-las no caminho da descoberta de si mesmas.
Desejo uma boa leitura a todos!
A autora
São Paulo, 20 de janeiro de 2016.
PREFÁCIO
Cada orientação que se inicia abre espaço para múltiplas possibilidades. O orientando traz uma questão que lhe é cara e que deseja investigar; o orientador por seu lado também tem as suas. Mesmo considerando que as questões de ambos, orientando e orientador, pertençam a um campo comum, é necessário que o orientando convença o orientador da pertinência de seu trabalho de forma a despertar naquele o desejo de orientar.
Em minha tarefa de orientadora procuro me guiar por essa ideia e só posso orientar aqueles que são tocados, que se apaixonam por sua questão. A questão que meu orientando me traz lhe deve ser cara, tocar-lhe o fundo d’alma, e dessa forma já temos meio caminho andado.
Não vale investigar qualquer coisa e muito menos criar uma questão postiça. O pesquisador deve estar implicado com sua questão de forma a despertar o desejo do outro, no caso o orientador. Sonia soube, dando início a um trabalho que durou dois anos.
O livro de Sonia é fruto desse trabalho e conta a história de encontros felizes. Os primeiros durante as orientações. Foram muitos e ricos. Neles traçamos os objetivos, os marcos teóricos e o recorte metodológico que sustentariam o trabalho.
Iniciamos a jornada: leituras, muita conversa, pausas, algumas dúvidas e muito empenho. Seguimos um plano, tateamos outros. Encontramos alguns percalços pelo caminho que corrigimos a tempo. Isso faz parte do percurso. Como um veleiro que segue um norte, mas anda em ziguezague aproveitando o vento ou se esquivando da tempestade.
Os outros encontros foram de Sonia com sua própria capacidade e potência de trabalho, e da terapeuta com seu grupo de crianças. A esses encontros vale a pena me demorar um pouco mais.
Sonia assumiu seu trabalho como uma leoa que cuida de sua cria. Foi incansável a cada etapa do trabalho: em suas leituras, seus questionamentos, sua escrita e seu atendimento clínico. Levava a sério e com comprometimento o trabalho que realizava. Às vezes com certa voracidade, mas sempre muito generosa e solícita. Acolhia as sugestões com humildade notável, aquela própria das pessoas que sabem receber. Sabemos que receber não é fácil. Muitas vezes a oferenda é sentida como um ataque ao narcisismo. Não foi assim com Sonia. Sempre soube receber e repartir comigo aquilo que construía a partir do recebido.
O livro de Sonia conta também a história de sua relação com um grupo de crianças com dificuldades na aprendizagem da leitura e da escrita em Oficinas de Leitura. Para essas crianças, ler e escrever eram atividades sem sentido e distantes de suas vidas. Alijados da leitura, também se isolavam de importante parte da cultura, com risco de perpetuar a pobreza em que viviam. Sabemos que ler e escrever, nas sociedades modernas, é imprescindível para a inserção social. De posse da leitura, o sujeito se integra a seu tempo e espaço, pode conhecer o passado e se projetar melhor no futuro.
Sonia acompanha o desenrolar de seu trabalho em dois planos. No primeiro, segue o movimento de cada criança ao longo das Oficinas de Leitura e, no segundo, o movimento do grupo. Na análise que faz de cada criança, considera a capacidade de brincar, a capacidade narrativa e, por último, a aproximação à leitura.
Na análise que faz do grupo, observa o movimento inicial de desintegração em direção ao surgimento de um grupo de trabalho, o que, sem dúvida, só foi possível por ter sustentado o lugar de terapeuta.
Em seu fazer clínico, Sonia transforma o espaço das Oficinas de Leitura em Espaço Potencial
, conforme estudado por Winnicott. Ela conta para crianças histórias que lê em livros de literatura infantil. Toma o livro como importante objeto da cultura que, semelhante ao Objeto Transicional
, ajuda a criança no trânsito ao simbólico. O olhar de desejo da leitora/terapeuta dirigido ao livro acaba por despertar nas crianças o gosto pela leitura. As crianças ouvem de início com certa perplexidade, impaciência e desorganização. Sonia, sem se intimidar, segue suas leituras dando cobertura
capaz de transformar o conjunto de pessoas relativamente não integradas
num grupo de trabalho.
Acredito que outro encontro feliz será o do leitor com o texto de Sonia.
Leda Maria Codeço Barone
São Paulo, 28 de fevereiro de 2016.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
A OFICINA DE LEITURA
1.1 A análise de cada criança no grupo
1.1.1 Gustavo
1.1.2 Jade
1.1.3 Bruna
1.1.4 Luís
1.1.5 Valter
1.2 A análise do grupo
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
RESUMO DAS HISTÓRIAS LIDAS E SIGNIFICATIVAS PARA AS CRIANÇAS NA OFICINA DE LEITURA
INTRODUÇÃO
Função terapêutica da literatura
A ideia de uma função terapêutica da literatura³ não é recente, parece universal, e surge na Antiguidade Clássica, por exemplo, em Aristóteles, que, na Arte poética, pensa a criação artística e a feitura de obras como tendo um fim terapêutico. Isso provoca no espectador um prazer que consiste num desafogo, num repouso, num modo de ocupar lazeres – num gozo intelectual –, numa vantagem que não é útil aos bons costumes; enfim, opera a catarse, palavra que uns traduzem por purificação e outros por purgação
(ARISTÓTELES, 2004, p. 16). Para Aristóteles o conceito é amplo e pode ser entendido como:
[...] uma expulsão provocada de um humor incômodo por sua superabundância. Do mesmo modo que a música apaixonada, a tragédia, bem concebida, deve determinar no auditório, que se deixou empolgar