Línguas encruzilhadas: histórias de meninos e medicalização na educação
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Línguas encruzilhadas - Maria Carolina de Andrade Freitas
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Editora Appris Ltda.
1ª Edição – Copyright© 2016 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.
Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.
Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIEDADE
AGRADECIMENTOS
Aos meninos-conta(dores) e aos seus derredores de pessoas e afetos. Eles fazem descobrir o diverso e o bonito dos encontros.
Aos caros amigos, tantos quantos! Aos familiares queridos e ao amado companheiro, pelos encontros e esteios. Com eles, cada palavra, cada nascente, cada raio de sol, cada música. Sempre nasce de muitos a força. É bom que eles componham o deserto. Assim, o viver é mais intenso. E a solidão mais humana.
Aos professores, pelas trilhas e pelos rastros. Pelas indicações e apostas. Pela abertura de mundos, de modos, de sentidos.
Ao Facitec por financiar percursos e trajetos.
Aos mistérios que restam sem nome.
PREFÁCIO
Um texto que insiste porque fez encontros. Um texto que é forjado, que se impõe como necessidade pungente na medida em que vai nascendo, crescendo, sendo rendado pelos encontros com histórias de submissão e teimosia. Um texto-renda que quer afirmar a teimosia bonita do cotidiano. Um texto que, em consonância com as vidas que acompanha e encontra, insiste e resiste às totalizações de toda ordem, que impõem às nossas experiências uma ordenação heterônoma. Um texto que afirma a potência da escrituração e seu poder de invenção de outros possíveis.
É assumindo este compromisso ético-político que Maria Carolina narra, tece, renda. E é do encontro com a vida em sua multiplicidade que a autora nos fala. De mãos dadas com o poeta Manoel de Barros, a cartógrafa vai em busca de minúsculos filetes d’água por onde escorrer algum olhar. Uma tarefa nada fácil em um momento em que nossos olhares e ouvidos tornaram-se cegos e surdos ao detalhe, ao que desvia, desmonta, dissolve, passando do molar ao molecular. Uma tarefa nada fácil quando, capturados por uma política cognitiva representacionista, como cientistas, tornamo-nos atentos ao desvio apenas para capturá-lo e ordená-lo.
Como pesquisadora-narradora a autora assume e fortalece outro ethos de pesquisa. A pesquisa, em seus encontros com as vidas que objetiva acompanhar, interfere e é por esses encontros interferida. Com eles, cria e recria. Trata-se, como diria Annemarie Moll, de uma gramática outra. Performamos, criamos, atuamos, fazemos a realidade e estamos, portanto, comprometidos e implicados nessa tecitura. Mas como? Maria Carolina nos diz: de muitas formas!
. Em cada encontro, em cada palavra pronunciada, nas entrevistas, nas conversas, em cada afetar-se, em cada momento da pesquisa que é prolongado em tantos outros momentos. Ao assumir que estamos implicados na produção de conhecimento na qual nos engajamos como pesquisadores, tornamo-nos por ela responsáveis. Assim, a pesquisa não julga, cuida. E a autora indaga: como narrar cuidando? Como narrar uma pesquisa que cuida ao afirmar a teimosia bonita do cotidiano? Como escriturar uma pesquisa que tem por compromisso criar interesse e disposição por formas de vida que não se submetem?
Maria Carolina adverte que, antes de tudo, é preciso exercitar delicadeza, trabalho necessário à tecitura dos elementos em composição, assumindo que somos, também nós, parte desse compósito. Propõe, então, uma ciência que tenha tempo para pensar. Para contar cuidando. Ciência que assume a narratividade como uma contação de histórias, que não segue um único rumo e, por isso, constitui-se na encruzilhada, abrindo-se a outras versões.
Assim, embalados por uma narrativa sensível e delicada, somos convocados a tornarmo-nos leitores atentos ao detalhe, sensíveis às miudezas da vida, às suas derivas, brechas, diferenças e fraturas. Nas entrelinhas, surgimos com os meninos que, como minúsculos filetes de água, correm e escapam pelas mãos mesmo quando querem aprisioná-los. Mudam de estado, equivocam, evaporam, voam, dançam. Meninos e meninas. Todos e qualquer um. Menino que lembra quando esquece; Ulisses-garoto, conta(dor) de Odisseias na escola; menino que voa e gira no ar; menino que dis-trai e inventa. Meninos, meninos, meninos.
Línguas Encruzilhadas: histórias de meninos e medicalização na educação faz reverberar vozes caladas e contidas por um contemporâneo que, ao apartar o tempo da vida do tempo escolar, converte as teimosias insistentes de meninos e meninas em desvios a serem medicados, tratados, adaptados. A escritura nos coloca em uma encruzilhada, obriga pausa e interroga: será? O que dizem os meninos e meninas sobre suas experiências? O que vivem os meninos e meninas em suas dissidências? É preciso interrogar e ouvir. Não visando com isso encontrar vítimas e culpados, mas afirmar que é preciso seguir a experiência e sermos por ela guiados em nossas atitudes e decisões. O domínio reinante dos processos de medicalização busca totalizar toda e qualquer diferença, colocando-se anterior à experiência. Busca afirmar o UNO, o homem (menino) metro-padrão. Agindo através da política do medo e da culpabilização, os discursos-práticas medicalizantes sugerem a pais, professores e crianças que há UMA forma de aprender, UMA forma de comportar-se, de sentir, de viver, tornando invisíveis as tantas formas de viver que, em suas malhas, são aniquiladas e expurgadas.
As vozes que, neste texto, surgem do encontro com meninos e meninas, produzem desvios e brechas. Indicam e incitam outras versões de vida, das vidas. Como diz Mia Couto, na companhia de Maria Carolina, aqui a escrita torna-se uma janela que se abre e permite lançar outro olhar sobre as coisas e as criaturas, sobre meninos e meninas, sobre a ciência, a pesquisa, a escola, a vida. Ao lançar luz sobre o cotidiano escolar e as vidas tecidas em seus corredores, pátios, salas de aula, recreios... chances são encontradas. Junto com meninos e meninas, a autora teima em abrir direções, cavando túneis e buracos. E é este o convite que é feito também ao leitor deste texto: teimar em rendar novos possíveis, como efeitos de um olhar que, ao distrair-se de si mesmo, encontra o mundo em sua multiplicidade e beleza.
Luciana Vieira Caliman
Vitória, 04/01/2016
APRESENTAÇÃO
O FIBROSO COMEÇO DE UM CAMINHAR
Este livro não segue um caminho único. Ele é, antes, uns desvios. Desvios em bifurcações constantes, apontando linhas de trajetos múltiplos, feito por diversos pés e mãos.
Chamo de desvios
os elementos diversos que mapearam os caminhos em curso, o que nos faz lembrar Deleuze (2009), quando afirma que não importa a entrada desde que as saídas sejam múltiplas. As saídas forçaram aberturas e coragem.
Por ora, os desvios transformaram-se em rotas abertas e expandidas, que perfizeram um caminho cartográfico de inscrição porosa e diversa.
Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (ROSA, 2001, p. 51).
Se viver é negócio muito perigoso
, como versa Rosa (2001), ousaríamos afirmar, neste trabalho, que pesquisar é perigoso. Não no sentido de que o que se difere no processo e produção da pesquisa seja inseguro, arriscado. Quer-se, neste trabalho, apontar o pesquisar como movimento parcial e provisório, no sentido das diversas possibilidades que se colocam em curso no empreendimento do ‘risco de saber’. Assumimos uma decisão de afirmar as inventividades cotidianas da vida, para resistir ao silenciamento que, por vezes, nossos modos de relação produzem, insistindo em invisibilizar o vivo insubmetido. Tal provocação acompanha a produção desta obra.
Embora este trabalho entrecruze-se na problematização dos processos de medicalização, no âmbito da educação na contemporaneidade, sua aposta é poder cartografar – por meio de narrativas – os encontros com as crianças e suas histórias-fragmentos diversas. O trabalho objetiva afirmar a tecitura dos microcasos cotidianos e as oscilações do desejo presentes na constituição dos modos de subjetivação.
Como bem apontou Certeau (2011), a paisagem de uma pesquisa enreda certas composições de lugar, caminhos de análise e, claro, passos regulares e ziguezagueantes, simultaneamente.
Narrar práticas comuns esbarra na inevitável lacuna do movimento. Este trabalho se faz entre o caminho percorrido, seu desejo de inscrição, a escritura possível efetivamente realizada e a interlocução com as diversas leituras possíveis. Enseja recolher as intensidades de uma experimentação em formas provisórias de discursividades. Portanto, a ênfase do texto não se encontra nas discussões sobre a medicalização da educação, mas se produz no alargamento do eixo narrativo e sua escrituração como aposta ética e política.
Faz lembrar Machado (2011), quando sustenta que uma relação de saber faz diferença quando modifica a nós mesmos e ao mundo ao redor; quando, em uma produção, ‘se entra um e se sai outro’.
É isto que propõe esta escritura: contar dos encontros que fez e procurar minúsculos filetes d’água por onde escorrer algum olhar. O trabalho não pretende constituir-se em um extenso estudo sobre medicalização, tampouco desenvolver a história da infância ou da educação, mas colocar-se na intersecção: cartografar narrativas de crianças medicalizadas no âmbito da vida escolar (BOSI, 2004).
Uma preocupação inicial com as implicações da máquina escolar para a produção da medicalização de crianças no campo da educação despertou o interesse em trilhar uma escrita na intersecção entre esses campos. Entretanto, no encontro com a vida concreta e com as artes de dizê-la e contá-la, um novo eixo de força foi se delineando para análise. Seguindo as pistas de Certeau (2011), não é possível pensar uma ‘teoria do relato’ dissociada de uma ‘teoria da prática’. Ambas se interpenetram, forjam-se, beijam-se. Há, mesmo, certo erotismo na escritura.
Narrar permite uma operatividade e escriturar é colocar-se ainda como um moribundo, que pelo seu encontro face a face com a morte, desprende-se e insiste, paradoxalmente, em fazer falar um corpo. Muitas questões surgiram. Muitas perguntas se rasgaram. Muitos passos criaram asas. Começou-se por perguntar quais os jogos de poder-saber estão a se materializar hoje como modos de subjetivações medicalizados no âmbito escolar, e como tais materialidades são apropriadas pelos viventes.
Porém, decidiu-se enfatizar a questão de como falar desses processos e como concorrer para a desmontagem das totalizações que capturam o movimento da vida, ou ainda, como gaguejar na própria língua, no sentido deleuziano, produzindo polivocidades neste campo-território.
Compreende-se o imenso desafio que esse percurso traz consigo, já que a realidade se produz nas relações, a que inclusive esta pesquisa pertence. Este pesquisar é tributário de seu tempo e das tensões dos jogos de medicalização expressos na contemporaneidade (MARCONDES, 2010). É como tentar dizer de algo pelo seu avesso-reverso
(BARTHES, 2004a)¹, suscitar a variação, uma vez que adentrar um campo de forças é adentrar,