Dos dados aos formatos: a construção de narrativas no jornalismo digital
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A obra convida todos os leitores a acolherem a imponderabilidade do formato narrativo. No lugar do controle e da linearidade, este livro revela como se dá a produção narrativa dentro de um processo circular, instável e líquido, típico do jornalismo pós-industrial.
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Dos dados aos formatos - Daniela Bertocchi
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
Para Rubens e Sônia, com amor.
Agradecimentos
Ao Rafael, pelo incentivo.
À minha família, pelo apoio.
À professora Elizabeth Nicolau Saad Côrrea, por me guiar ao longo da jornada acadêmica.
Ao professor Ramón Salaverría Aliaga, pelas contribuições inestimáveis.
Aos professores que generosamente aceitaram avaliar a tese doutoral que deu origem a este livro: Silvia Laurentiz (USP), Giselle Beiguelman (USP), Maria José Baldessar (UFSC), Suzana Barbosa (UFBA) e, novamente, Ramón Salaverría Aliaga (Universidade de Navarra).
Aos pesquisadores do Grupo de Pesquisa COM+ da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, pelas trocas estimulantes.
Aos professores do CECS (Centro de Estudo em Comunicação e Sociedade) da Universidade do Minho, em Braga, Portugal, amigos com os quais tive a oportunidade de iniciar minha caminhada pelo mundo da narratologia digital.
Apresentação
As mudanças generalizadas que o mundo sofreu da Revolução Industrial à era pós-industrial talvez tenham eliminado das redações o ideário do jornalista combatente, sagaz e perspicaz. Mas a vocação transformadora da notícia e suas potencialidades poéticas ainda resguardam-se no núcleo do seu código à espera de que sejam acionadas, mesmo que sejam em novos formatos.
Ronaldo Henn¹
Contamos histórias porque as vidas humanas têm essa necessidade e merecem ser contadas, como escreve Paul Ricouer.² Contar histórias sobre o mundo real – ou estórias
³, se preferirmos – tem sido, e permanecerá sendo, uma tarefa fundamental também àqueles que se propõem a fazer jornalismo. Narrar é a maneira de o jornalista organizar eventos múltiplos e dispersos em um esquema de significação inteligível para as pessoas. No entanto, embora a criação desses esquemas pareça evidente, esse não é exatamente um processo aleatório: existe um aspecto artificial no ato narrativo.⁴
O fato de organizarmos nossas experiências em forma narrativa – e, de fato, narramos por impulso mesmo antes da aquisição da linguagem⁵ – não significa que narrar seja algo natural, orgânico, banal. Pelo contrário, existe um aspecto singular no ato de arrumar um conjunto de eventos em forma de entrevistas, notícias ou infográficos.
No meio digital, essa condição de artificialidade ganha cores ainda mais fortes, uma vez que a construção da narrativa não significa apenas a organização das informações e dos eventos e a posterior publicação de um texto noticioso acompanhado de uma foto relevante. Mais do que isso: no digital, a narrativa está subordinada à costura computacional solta – e às vezes esgarçada – de dados, metadados e formatos on-line; uma costura realizada por softwares, jornalistas, robôs, algoritmos, leitores, aplicativos, sistemas indexadores, entre milhares de outros atores humanos e não humanos.
A complexidade da construção narrativa para o meio digital não significa uma má notícia. Ao contrário, o desenvolvimento deste livro tem a ver com nossa convicção de que o aspecto organizacional da produção de notícias, uma vez compreendido sob a luz do pensamento computacional sistêmico, ganha saídas viáveis para seguir em frente de forma relevante e continuamente sustentável.
O pensamento sistêmico liberta os formatos noticiosos de amarras que somente fariam sentido em um cenário industrial em cascata de comunicação de massa. De fato, ao longo desta obra, o leitor verá que abandonamos a ideia da notícia como o produto final de uma cadeia de produção industrial jornalística. Desconsideramos a lógica do pipeline impresso, uma vez que já́ não vemos o formato narrativo digital como um produto hereditário de uma cadeia linear e fechada de produção no jornalismo.
O encadeamento sequencial e impermeável agora se revela desajustado para a produção informativa no contexto digital na medida em que, no lugar do produto final
, temos uma diversidade de formatos informativos elaborados e remodelados simultaneamente e em fluxo constante para e pelas redes digitais, inclusive pelas mãos de não jornalistas e em espaços não jornalísticos.
O desajuste que enxergamos não está na notícia, em sua estrutura tradicional ou em sua função social, mas no entendimento dela como produto final, como efeito de uma causa, como desfecho, epílogo ou conclusão de um processo. O desajuste está no termo final, o qual pressupõe um início – inexistente no meio on-line.
No lugar do controle e da linearidade, observamos nesta obra como se dá a produção narrativa dentro de um processo circular típico do jornalismo pós-industrial. Em vez de fechamentos de formatos estáticos, notaremos continuidades com formatos adaptativos e mais leveza e imponderabilidade no lugar de estruturas narrativas rígidas e sólidas.
Neste livro, abraçamos o desconforto e a beleza das incertezas que nascem da relação forma-conteúdo-tela das narrativas digitais no jornalismo. O que nos interessa aqui é criar um instrumento teórico para lidar com essa condição complexa. Assim, propomos um modelo teórico capaz de expandir a compreensão do que seja a narrativa digital jornalística, inaugurando um modo sistêmico de se pensar o desenho das narrativas no jornalismo digital e fornecendo assim um entendimento novo para esse fenômeno.
Pelas próximas páginas, o termo narrativa
não irá, portanto, referir-se apenas ao que vemos nas telas de nossos dispositivos tecnológicos. Expandimos neste trabalho a perspectiva da narrativa clássica (a narrativa jornalística como o agenciamento dos fatos) e assumimos a narrativa como o agenciamento coletivo entre os estratos do sistema narrativo ou, de forma mais reduzida, defendemos a narrativa como sistema narrativo.
Desenhado a partir de articulações conceituais de base somadas à observação de exemplos narrativos em meios de comunicação relevantes no cenário mundial, o modelo proposto neste livro serve aos distintos atores da comunidade jornalística. O modelo é útil aos profissionais nas empresas que precisam compreender melhor o funcionamento do meio on-line e definir estratégias de gerenciamento de conteúdos; serve aos futuros jornalistas em formação universitária que desejam experimentar novos formatos narrativos; revela-se um contributo teórico sobre narratologia digital para pesquisadores e professores da área interessados em estudos interdisciplinares sobre jornalismo, design e tecnologia.
Este livro convida todos os leitores a acolherem a imponderabilidade do formato narrativo. Será preciso considerar que cada formato que vemos substancializados na tela carrega camadas computacionais que interagem e se rearranjam continuamente – ora respondendo às possibilidades e às limitações de dispositivos (tamanho de telas, por exemplo), ora obedecendo às preferências do usuário (configurações pessoais, por exemplo), ora reagindo às interferências de outros sistemas (redes socais, por exemplo), ora adaptando-se à própria instabilidade, leveza e liquidez do ambiente digital.
A todos, uma boa leitura.
A autora
São Paulo, outubro de 2016.
PREFÁCIO
Nada é permanente a não ser a impermanência das coisas.
da Filosofia Budista
O livro Dos dados aos formatos: a construção de narrativas no jornalismo digital exige de seus leitores, primordialmente, posturas receptivas à visão de que vivenciamos uma sociedade em permanente mutação. A partir disso, recorremos à ideia de impermanência para a compreensão do jornalismo contemporâneo, seja como expressão da legitimidade coletiva, seja por seus processos e fazeres.
Um jornalismo impermanente
acolhe em seu caráter, sem restrições, uma sucessão de adjetivações: evolutivo, renovador, (eco)sistêmico, encadeado, criativo e recriador. Assim, nada nem ninguém são permanentes ao longo do tempo, já que causas e condições variam sempre e, consequentemente, o que resulta delas também muda, em uma contínua espiral de evolução.
A aceitação da condição de impermanência e sua vivência exigem uma segunda condição essencial, aquela da plena atenção. É necessária uma espécie de antena a acontecimentos, fatos, alterações, emergência de dispositivos, enfim, atenção às transformações de tudo o que nos envolve cotidianamente.
Ao interpretarmos a impermanência e a plena atenção no mundo do jornalismo, hoje tomado pela digitalização, falamos de uma estratégia impermanente e da plena atenção aos processos de inovação, duas condições fundantes para os negócios informativos. Essas são condições plenamente desenvolvidas na proposta apresentada pela pesquisadora Daniela Bertocchi neste livro. O modelo teórico por ela proposto para sustentar narrativas jornalísticas nas ambiências digitais é, sem dúvida, um convite à adaptação das redações e dos negócios jornalísticos à típica impermanência do mundo ciber
.
O conteúdo de Dos dados aos formatos: a construção de narrativas no jornalismo digital é mais do que oportuno para ser assumido pelos leitores mais diretamente envolvidos com o tema – jornalistas, publishers, professores, pesquisadores e estudantes da área. É um material indispensável para compor todas as bibliotecas e referências bibliográficas de quem olha para o jornalismo como uma instituição essencial à sociedade.
A proposta de Daniela Bertocchi indica algumas condições irreversíveis para a prática do chamado jornalismo pós-industrial e das narrativas dele resultantes:
• A digitalização universal e sistêmica dos processos;
• A introdução cotidiana da cultura do software;
• A consequente relação entre dados, metadados e formatos para a construção narrativa;
• E, como decorrência, a condição da artificialidade das narrativas produzidas pela presença de atores humanos e não humanos (os algoritmos).
Aceitar a impermanência (e não insistir na permanência) preconizada pelo jornalismo pós-industrial e construir estratégias que deem conta das inovações que emergem de um estado de plena atenção
são posicionamentos determinantes para a sobrevivência dos negócios informativos na contemporaneidade. Apoiar tais posicionamentos em modelos como este que é proposto por Daniela pode iluminar e instrumentalizar redações e seus profissionais para atuarem de forma resiliente às mudanças.
Temos claro que as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação como um todo e seus desdobramentos específicos – sistemas publicadores, aplicativos, softwares de mensuração, mineração, de big data, publicação em plataformas de terceiros, uso de plataformas sociais, entre outros – são hoje componentes essenciais para o jornalismo da mesma forma que o são os pilares da profissão bastante dissecados por Bill Kovach e Tom Rosenstiel – ética, precisão, veracidade, independência, relevância e legitimidade.
O livro de Daniela Bertocchi dá suporte à práxis, já que o modelo proposto é adaptável às causas e às circunstâncias que ocorrem nas ambiências digitais em cada redação, em diferentes políticas editoriais e nas múltiplas possibilidades de modelos de negócio. Tal suporte é possível porque o modelo se instala (e se adequa) no processo redacional muito antes da geração dos produtos finais informativos. É um modelo que atua nas etapas de backoffice, combinando dados, metadados e sistemas ainda na configuração informática (em bits) para gerar como resultados no front-end narrativas em formatos diversos, adequados às estratégias do negócio e do relacionamento com a audiência.
A característica resiliente do modelo confere sua aplicabilidade e validade em qualquer circunstância, especialmente quando falamos daquilo que vem pela frente para o jornalismo, do que é tendência do agora, do daqui a pouco e do porvir.
Sem uma organização sistêmica e integrada de dados, metadados e formatos não serão viáveis, por exemplo:
• A produção de conteúdos dentro de uma lógica ecossistêmica;
• A presença no contexto do que hoje se denomina jornalismo de plataformas
, o que alimenta o triunvirato GAF – Google, Apple e Facebook;
• A produção de peças jornalísticas com visualização de dados;
• A estratégia editorial investigativa hoje tão dependente da competência analítica sobre o big data;
• A decisão editorial do digital first;
• O uso adequado de aplicativos-novidade a exemplo do Snapchat ou conteúdos resultantes de drones;
• A potencialização de narrativas em vídeo ou imagens animadas;
• A sustentação de atividades laboratoriais de experimentação no interior das redações;
• A convivência com os mais diversos tipos de usos algorítmicos para a produção de narrativas.
Não estamos indicando qualquer tipo de futurologia, mas atividades já em uso ou em experimentação dentro de redações mundo afora. Atividades que se baseiam em dados e metadados organizados em modelos processuais a exemplo deste apresentado pela pesquisadora Daniela. Tais modelos permitem o que Mark Lavallee – editor de noticias interativas do The New York Times –, denominou de escalabilidade para a criação de formatos narrativos, resultantes do trabalho de equipes multidisciplinares, do estabelecimento de fluxos nos processos e, principalmente, da capacitação das equipes de redação para atuar a partir da lógica de dados, metadados e formatos.
Ainda uma palavra final sobre Daniela Bertocchi pesquisadora vinculada ao COM+ – Grupo de Pesquisa em Comunicação e Mídias Digitais da ECA-USP –, a quem tive o prazer de acompanhar em sua trajetória acadêmica e orientar seu doutorado. São poucos aqueles que conseguem aliar com brilhantismo suas vocações simultâneas para a pesquisa acadêmica e atuação profissional. Sem dúvida, Daniela é uma dessas raridades. O resultado dessa combinação academia-mercado pode ser confirmado em Dos dados aos formatos: a construção de narrativas no jornalismo digital. Leitura indispensável, produzida dentro do rigor acadêmico da Universidade de São Paulo e agora disponível para sua aplicação no mundo jornalístico.
Elizabeth Saad
Universidade de São Paulo
Lista de Siglas
Para auxiliar a leitura deste trabalho, relacionamos abaixo as SIGLAS, as ABREVIAÇÕES e também os JARGÕES do mercado de internet mais comumente referenciados ao longo do texto.
Sumário
PARTE I
(RE)DEFININDO NARRATIVA
Capítulo 1
O que é narrativa?
1.1. O começo da história
1.2. Expansão pós-clássica: o fluxo
1.3. O pensamento sistêmico
1.4. Narrativa como sistema adaptativo
1.4.1. O comportamento do sistema narrativo
1.4.2. Agenciamento coletivo interestratos
1.4.3. A complexidade do sistema narrativo
1.4.4. Critérios de noticiabilidade
1.4.5. O jornalista como designer da experiência narrativa
Resumo
Capítulo 2
O sistema narrativo no jornalismo digital
2.1. Um modelo pra quê?
2.2. O desenho do sistema
2.3. Sobre