Psicanálise
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Psicanálise - Júlio Eduardo de Castro
Editora Appris Ltda.
1ª Edição – Copyright© 2016 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.
Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.
Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI
Aos filhos, Heitor e Pedro.
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
O que buscam os jovens que, a cada ano, chegam às nossas universidades, tendo escolhido o curso de Psicologia? E o que buscam, mais especificamente, quando se orientam para a área clínica, dentre as outras possibilidades oferecidas? Almejam o conhecimento e o cuidado de si, que desde a Grécia norteiam o encontro com nossas verdades e suas consequências? Conhecimento e cuidado que, seguindo ideais, são enunciados, comumente, em uma orientação ‘para os outros’: ajudar os outros, cuidar dos outros, curar os outros?
Como responde um professor do curso de Psicologia a essa escolha pela clínica? Maneja os ânimos (a ansiedade), adia as indagações, aqui e ali acolhe as verdades que vão sendo ditas, as transferências que vão se fazendo, quando as perguntas já se mostram coloridas dos afetos e marcadas pelas repetições da trajetória subjetiva de algum estudante, dando-se a ver e a ouvir?
Hoje, nas faculdades de Psicologia, em algumas de modo mais esparso em outras de modo nuclear, a psicanálise ‘se ensina’. Por se fazer de modo distinto do que acontece nas sociedades de psicanálise, onde a teoria está em estreita conexão com o curso das análises, nessas faculdades o ‘ensino’ universitário da psicanálise leva à pergunta: o que preside este ‘ensino’? Vale ele como uma transmissão? E essa é a questão central da obra de Júlio Eduardo de Castro, que vai sendo desdobrada sob o amparo de um firme patamar teórico lacaniano – os quatro discursos. Mas não só.
Partindo desse fundamento, durante o caminho de sua escrita, o autor vai nos provando que a transmissão da psicanálise pede mais do que a proficiência esperada do professor em seu exercício.
Não há ensino da psicanálise que seja/esteja desvinculado de sua ética e de seus operadores – o ato, o desejo, o discurso e o saber do analista, operadores esses entrelaçados por um estilo que, como tal, se configurou de modo singular. (p. 217, da obra que aqui prefaciamos).
Com este ‘point de capiton’ soberano, que escolhemos antecipar aqui, o livro condensa a exigência particular a esse ensino.
‘Point de capiton’: enlace amplo de uma enunciação que percorre as páginas e que, tal como o enigma, vai buscando os enunciados que a ela correspondam, na tarefa impossível e, entretanto, obrigatória, de que nos fala Lacan, logo às primeiras páginas do seu Seminário XVII – O Avesso da psicanálise (1969-1970). Seminário propício à elaboração, por Júlio, proposta – marcado que foi pelo clima agônico da revolta dos estudantes franceses – em 1968, como também nos lembra Júlio: Maio de 1968, como ficou conhecido, foi um movimento estudantil que questionou as instituições e o poder, bem como suas bases, dentre elas o próprio saber.
(LACAN, 1969; 1970, p. 46). Seminário historicamente ligado, então, por seu tempo, a questões vitais do ensino, seus discursos e seus poderes. Um Seminário que vai porta afora, ganha as ruas e desce à praça, sentando-se Lacan com os estudantes para a Conversa nos degraus do Panteão
, no dia 13 de maio de 1970 (LACAN, 1969; 1970, livro XVII, p. 135-141).
Os dois primeiros capítulos apresentam uma exploração tão avançada dos quatro discursos escritos por Lacan – o discurso do mestre, o do universitário, o da histérica e o do psicanalista –, que nos levam à impressão de um exaurimento sucessivo das letras e das posições que aquelas vão sucessivamente ocupando, sem combinatória, numa ordem precisa e em giros para a direita, progressivos, ou para a esquerda, regressivos. Esse estudo fascinante, levado aos limites, entretanto, não deixa margem para que o leitor escape da pergunta a ser sustentada e respondida, e que Júlio vai tecendo com firmeza em postulações fundamentais: no ensino universitário, o saber, referido obrigatoriamente às fontes autorais, anestesia a verdade do significante mestre, enxame de significantes, marcas diferenciais das alienações da primeira operação de fundação do sujeito. Enxame a ser tratado, prolongadamente, no curso da análise, em repetições temporais e subjetivas sucessivas.
Voltando, no capítulo 3, aos fundamentos linguísticos de Lacan, modo princeps de seu retorno a Freud, Júlio Eduardo mostrará o valor das operações da metáfora e da metonímia no que concerne ao ensino e à transmissão da psicanálise, estabelecendo aí mais uma camada teórico-clínica de sua exposição: se o ensino se faz por metáfora, a transmissão é devedora da metonímia:
A metáfora, enquanto mola-mestra deste ensino, indica-nos que, quando alguém se sujeita a este discurso [o universitário], torna-se a priori uma metáfora viva dos autores e das teorias que defende ou com as quais se identifica. (p. 132 desta obra).
Desistência de colocação de si
.
É nesse capítulo, assim retornando a esses dois eixos da linguagem que Roman Jacobson aproxima à condensação e ao deslocamento freudianos, ampliando a teoria de Saussure, em favorecimento do pensamento de Lacan, que Júlio acelera/intensifica suas proposições orientadas pela ética da psicanálise: Contudo, reduzir o estudo da doutrina psicanalítica a uma tarefa educativa é, certamente, uma forma de destituí-la de sua sustentação ética, ética essa que pressupõe a 'colocação de si' a partir da experiência intensiva.
E esse é um risco permanente para aqueles que se metem a ensinar a psicanálise". (p. 133 da obra, grifo nosso). E, com a permissão de Júlio, um risco permanente para os estudantes que também 'se metem' a estudar a psicanálise sem a experiência que apenas o divã propicia, na repetição induzida pela transferência. Ensinar e aprender a psicanálise exigem a presença de um analista, tal como exige a prática da clínica psicanalítica.
Retomando a questão de institutos de Lacan – o cartel e o passe –, Júlio retorna à metonímia como marca da transmissão ética da psicanálise, para mostrar que, em sua radicalidade, essa transmissão supõe as quedas narcísicas que o objeto a preside: destituição dos espelhos, estremecimento dos significantes mestres de um sujeito, orientação para o impossível real que retorna sempre, enigmático, no mesmo lugar:
Por isso, o des-ser do analista, constituído na intensão, denota-nos sua posição de rebotalho, de resto metonímico de uma operação, a analítica. Metonímia do objeto-causa, metonímia do desejo, deslizamento de desejo na cadeia significante, deslocamento-metonímico – enunciados que, como vimos, nos são conhecidos a partir da passagem de Lacan pela linguística e que, com razão, firmam/estabelecem a necessária consideração a esse polo ou eixo da enunciação, o metonímico, nos fóruns dedicados à abordagem do tema da transmissão em psicanálise, bem como aos linguistas interessados em apreciar a participação do desejo nos atos de enunciação de um sujeito. (p. 135 desta obra).
Tendo passado, em capítulos anteriores, pelos dispositivos institucionais
(o cartel e o passe), Júlio nos guia, no capítulo 5, para os efeitos do final de uma análise – para o final de experiência intensiva. Numa nota de rodapé às páginas 173, afirma:
O ato, o discurso e o saber do psicanalista são, a nosso ver, juntamente com o desejo do psicanalista, efeitos de uma análise e, como tais, determinam a posição ética do analista, quer em situação de condução da cura, quer de ensino.
A foraclusão desses operadores na universidade reduz a psicanálise a um estudo de leigos, a uma difusão. Redução que termina em uma banalização? Júlio não usa a palavra, tão em voga em nossos tempos. Mas talvez pudéssemos trazê-la aqui, porque, afinal, está no léxico de nossa língua como palavra plena, e não como vocábulo da moda. Tal redução, se não é sem consequências para os destinos da psicanálise, tão gravemente ainda se faz sentir em suas consequências para os estudantes, privados da experiência de, diante dela, a psicanálise, mesmo em situação de extensão, assistir ao nascimento de suas angústias, seus desejos, seus valores, e, por que não, ao nascimento de um desejo específico – o de verificar-se eticamente enquanto sujeito.
Maria Clara Queiroz Corrêa
Tiradentes, 28 de agosto de 2016
Prefácio À primeira EDIÇÃO
A desejável queda fálica no ensino da psicanálise
A obra que o leitor tem em mãos é fruto da tese de doutorado de Júlio Eduardo de Castro. A longa e profícua trajetória do autor na universidade e na clínica nos ajuda a reter a história de sua investigação, qual seja a possibilidade de transmissão, em situação de ensino, de um estilo que tenha decorrido da análise daquele que ensina. Neste livro, o leitor encontrará reflexões fundamentais acerca do ensino da psicanálise. Consideramos que o seu conteúdo, além das assertivas sobre o ensino e a transmissão em psicanálise, abre a possibilidade de refletirmos as implicações éticas, as incidências do estilo e o papel da transferência, presentes nesse contexto.
Como nos lembra o autor, discutir o ensino da psicanálise exige certa prudência, e, inevitavelmente, não há como abordá-lo sem se implicar subjetivamente. Além dessa advertência, outro aspecto se mostra fundamental para os psicanalistas: tomar como objeto de estudo o ensino da psicanálise significa lidar com a política do psicanalista como falta-a-ser.
Sabemos que a transmissão da psicanálise está associada à articulação da teoria psicanalítica com a experiência do analisando. Isso certamente se encadeia com o manejo da transferência na clínica e nas instituições psicanalíticas. Assim, tanto no ensino quanto na transmissão da psicanálise, estamos expostos ao risco de uma formação baseada num personalismo, que pode se manifestar de diversas formas: desde a apropriação, da instituição, feita por um analista que pretende regular seu funcionamento, até aquele analista que se arvora à condição de ser o detentor e guardião da pureza da teoria. Júlio designa tais situações como um engano fundamental
, que ele define como a regência pelos ideais do eu, dispondo, por isso mesmo, o saber em posição de semblante
. (p. 216).
Estamos falando dos riscos da adoção, no ensino da psicanálise, da lógica linguística que domina a linguagem usual que gira em torno do amor ao saber (posição fálica). Porém, o saber no discurso analítico não se configura como um fim em si mesmo, nem é vinculado a qualquer objeto que lhe forneça substância. Sua função, em psicanálise, é possibilitar que os qualificativos que o sujeito atribui a si mesmo sejam convocados ao comprometimento e à queda. Ou seja, temos aí uma convocatória que, uma vez deflagrada, caminha rumo à queda do saber que subjetiva, justamente porque, no campo psicanalítico, o saber mostra-se, no real, refratário à verdade.
A psicanálise postula que o saber, como inconsistente, é incapaz de transmitir-se sem resto. Essa premissa se aplica inclusive ao saber psicanalítico. Não estamos afirmando que a psicanálise recusa o saber, mas que exige que trabalhemos com ele de uma forma peculiar. O que se exige não deriva da ideia de um saber absoluto, que afiançaria a verdade. É exatamente a falta de uma garantia última que dá ao saber sua inconsistência, como descompleto, e não incompleto. Ressalta-se o desejo de saber e as vias de acesso a este, em detrimento do saber e de seu conteúdo.
Podemos afirmar que esta obra, ainda que de maneira lateral, nos permite vigorosas reflexões acerca da fratria entre analistas. Pois, ao escolher o ensino da psicanálise como problema, o autor não se omitiu de abordar os ensinos marcados de burocracias institucionais e as ritualizações contidas em algumas formações de analistas. Portanto, novamente, Júlio nos adverte sobre o risco de, na relação entre analistas, nos afastarmos da ética do desejo e nos colocarmos a serviço dos poderes do eu, de seus ideais e suas instituições
(que inclusive podem, em alguns casos, configurar-se como um agregado de psicanalistas e/ou mesmo de pesquisadores).
Ao abordar o ensino da psicanálise pela perspectiva da teoria lacaniana dos discursos, este estudo traz um recorte que nos parece bastante promissor: a psicanálise de seu próprio ensino, tendo como fio condutor a ética na qual, nas palavras do autor, se movimentam aqueles que se põem e se dispõem a ensinar psicanálise
.
Ética, que acreditamos, está pautada no desejo de saber. Para explicitar melhor tal posição, Júlio recorre ao matema do discurso universitário e utiliza dois significantes de forte impacto, que surgem como consequências de seu uso no ensino: psitacismo e escroqueria. Tais significantes marcam a dificuldade de o sujeito tomado pela academia se haver com a ética da psicanálise, pois esta ética pressupõe que todo ensino é inevitavelmente atravessado pelo objeto a. O discurso universitário, por sua vez, sustenta e convoca a mestria, e não necessariamente uma construção
de saber que leve em conta a inconsistência do real que, como bem sabemos, castra/relativiza a lógica fálica. Daí a conclusão do autor:
a ética da psicanálise é o móvel do ensino que não permite ao analista-ensinante cair em frases vazias de sentido (psitacismo) ou apropriar-se do saber de uma teoria sem colocar-se aí eticamente (escroqueria).
Diante disso, podemos retornar a uma antiga, porém sempre importante, discussão sobre o lugar da psicanálise na universidade. De maneira ampla, podemos dizer que a formação em psicanálise não enfatiza a investigação psicanalítica, porque geralmente as instituições psicanalíticas distanciam-se da pesquisa formal. Em contrapartida, sabemos que a universidade não forma psicanalistas. Apesar de contarmos com Programas de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica e termos linhas de pesquisa em psicanálise em diversas universidades, a formação de psicanalistas é um processo muito mais amplo e com características distintas da formação universitária. Porém, tais diferenças, e acreditamos que essa é uma importante contribuição deste livro, não autorizam o psicanalista que faz pesquisa e que ensina a prescindir da atenção quanto ao seu lugar, colocando-se em posição crítica às rivalidades fálicas, tão corriqueiras em nosso cotidiano. Júlio possui esse mérito, oxalá muitos de nós também o possuam!
Fuad Kyrillos Neto
São João del Rei, maio de 2013
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
FREUD, A HISTERIA E A TEORIA LACANIANA DOS DISCURSOS
1.1 FREUD E A HISTERIA: DA NOSOLOGIA À LÓGICA DISCURSIVA
1.2 LACAN E A ESCRITA DOS DISCURSOS
1.2.1 Situando o Seminário 17: o avesso da psicanálise
1.2.2 A escrita dos discursos
1.2.3 O discurso histérico é o oposto do discurso universitário
1.2.4 Teoria dos discursos e direção da cura
1.3 ENSINO E DISCURSO
CAPÍTULO 2
AFINAL, QUE SUJEITO É PRODUZIDO PELO DISCURSO UNIVERSITÁRIO?
2.1 SUJEITO E UNIVERSIDADE
2.2 O DISCURSO UNIVERSITÁRIO
2.2.1 O saber sobre o significante-mestre
2.2.2 O mais-gozar sobre o sujeito
CAPÍTULO 3
PSICANÁLISE: ENSINO POR METÁFORA E TRANSMISSÃO POR METONÍMIA
3.1 A LINGUÍSTICA, FREUD E LACAN
3.2 DIFUSÃO, ENSINO E TRANSMISSÃO
CAPÍTULO 4
A ESCOLA DE LACAN VERSUS DISCURSO UNIVERSITÁRIO
4.1 OS TRÊS TEMPOS DO ENSINO DE LACAN
4.2 A MAESTRIA DE LACAN
4.3 O CARTEL COMO DISPOSITIVO DE TRABALHO QUE ENSINA
4.4 O PASSE ENQUANTO DISPOSITIVO DA ESCOLA
4.5 OS RECURSOS LÓGICO-DIDÁTICOS USADOS POR LACAN EM SEU ENSINO
CAPÍTULO 5
OS OPERADORES ÉTICOS DA PSICANÁLISE: O ATO, O DISCURSO, O SABER E O DESEJO DO PSICANALISTA
5.1 SINTOMA, ESTILO E ENSINO
5.1.1 O sintoma neurótico e seu estatuto no campo psicanalítico
5.1.2 A transmissão de um estilo
5.2 ENSINAR A PARTIR DO SINTOMA E/OU DO ESTILO?
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFIA
Introdução
O ensino da psicanálise é um tema-objeto deveras pantanoso, o que exige, por parte de quem o considera, um certo cuidado e uma inevitável certeza: não há como abordá-lo sem nele implicar-se subjetivamente¹. Ao lado disso, a natureza desse objeto de pesquisa, como de todo e qualquer objeto de pesquisa em psicanálise, por si só já impõe ao pesquisador, tanto a incompletude do saber - como corolário inevitável do sujeito do inconsciente ($) - quanto a sua própria implicação no objeto pesquisado.
Tão logo tomamos o ensino da psicanálise como objeto de pesquisa, tivemos a noção de que não lidaríamos com uma impossibilidade qualquer: tratava-se de investigar um fenômeno no qual se encontram em ação as três impossibilidades nomeadas por Freud como tarefas (educar/ensinar, politizar/governar e psicanalisar/curar) e profissões impossíveis. Portanto, se a articulação do ensino à psicanálise já pressupunha o ajustamento de dois termos impossíveis e evidentes (ensino/psicanálise), ainda havia uma impossibilidade adicional a ser considerada: a política do psicanalista como falta-a-ser. Política esta vivida como experiência, na intensão, e aí feita fundamento ético da direção da cura. Além disso, e segundo nosso cálculo, política cuja influência ética é também indispensável aos ensinos extensionistas da psicanálise, ou seja, aos ensinos fora da intensão e da formação do analista, como o universitário, por exemplo. Portanto, o ensino da psicanálise foi um tema que, já desde o início, mostrou-se, por isso mesmo, complexo. Ele concentra sobre si a impossibilidade elevada à terceira potência, principalmente quando levamos em conta a política do psicanalista e a ética da psicanálise aí subentendida.
Neste livro, segundo o nosso ponto de vista, a teoria psicanalítica somente tem consistência pelos textos de Freud – sua obra e doutrina – e pelo ensino de Lacan. Além dessa premissa, presumimos que a extensão da psicanálise a ensinos situados fora da formação do analista não implica, necessariamente, em sua degradação ou mesmo banalização. O próprio Lacan (1968; 2003, p. 294) afirmou ter ele um ensino que era o único, na época, a dar alguma continuidade – por meio do movimento de retorno aos fundamentos da psicanálise – a Freud.
Estudar o ensino da psicanálise à luz da teoria dos quatro discursos de Lacan foi o objetivo primeiro deste livro. Entretanto, após as primeiras leituras, na verdade já desde o trabalho de levantamento bibliográfico, uma direção se impôs em nossa pesquisa: investigar as relações desse mesmo ensino com a dimensão ética da psicanálise. Por isso, o tema ensino da psicanálise
foi, preferencialmente, aqui tomado em toda a sua amplitude (lato sensu).
Todavia, ao considerarmos, em contraponto, dois contextos distintos do ensino da psicanálise (o universitário e o promovido pelas instituições e escolas psicanalíticas) e ressaltando o viés coletivo presente neles², perguntamo-nos sobre a real possibilidade de transmissão psicanalítica por meio de ensinos que se caracterizem como desvinculados da dimensão intensiva – dimensão esta que, sabemos, fundamenta a formação do analista. Principalmente em se tratando do ensino universitário da psicanálise que, sendo uma extensão da psicanálise ao coletivo, não possui, contudo, vínculo direto com a intensão e, por isso mesmo, não tem por objetivo a formação de analistas. Por isso, quando estabelecemos relações da ética da psicanálise com a teoria lacaniana dos discursos, uma via de pesquisa foi aberta e, nela, uma questão, dentre outras, fez-se presente: se a psicanálise em intensão produz um analista, o que o ensino universitário da psicanálise produziria?
E foi por nos termos perguntado sobre as chances de transmissão da psicanálise em situação de ensino,