Estado de despejo
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Para Eduardo Sterzi, que assina o posfácio, "não há (…) como ser poeta, hoje, sem se defrontar com o que Ruy Belo, ainda em diálogo com os resíduos teológicos de sua formação juvenil, designou, no título de um de seus livros, "o problema da habitação". Nesse mundo, apenas a transformação do objeto em mercadoria – "rito odiado" pelo qual o "velho coração de objeto / gasto de existir / desde a pedra lascada" é exposto "a uma plateia calada" – faz-se interpretar como conquista de "uma vida / maior [...] e mais livre". Compreende-se que seja, por contraposição, precisamente a "mínima vida" que interesse ao poeta: "vida mínima" ou "vida menor", diria ainda Drummond; "um pouco de vida, uma semi-vida", dirá agora Ricardo Rizzo. Trata-se, aqui, de dar atenção àquela "parcela mínima de vida", comum a homens e vírus (biologicamente, o gene; filosoficamente, diríamos com Benjamin e Agamben, a "vida nua"), que, como bem viu Oswald de Andrade, concentra numa "duplicidade antagônica" – ao mesmo tempo "benéfica" e "maléfica" – "o seu caráter conflitual com o mundo". Em ninguém essa "mínima vida" é mais aparente do que nos miseráveis: naqueles que foram reduzidos a ela. No entanto, é precisamente esse "pouco de vida" – e não a participação em qualquer plenitude mais ou menos ilusória – que constitui a região ontológica comum a elefantes e filhas inventadas, sem-teto e brinquedos quebrados, Macabéa e o corpo despedaçado de Cristo, o "bicho" que procura comida no lixo do pátio e os "velhos espíritos" que são "formas de poeira" resistentes à história e sua destruição, "o baço / que não usaram no transplante" e "alguma víscera / inicialmente não prevista".
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Book preview
Estado de despejo - Ricardo Rizzo
Sumário
Teoria da Noite Fria
Estudos
Discurso sobre a existência do isqueiro
Posfácio – Notas do subterrâneo
Sobre o autor
Teoria da Noite Fria
Do registro de moradores de rua
não constava o nome
de Henrique Alexandre Floriano
que num dia de janeiro
com muita sede
entrou por galerias pluviais
na rede de túneis de esgoto
perdendo-se logo, ao recuar
(notando que chovia)
para o fundo da galeria.
Sob o peso do escuro, sob
o peso de si mesmo, de bruços
e sob o próprio esqueleto,
sob dobras de pele acima
do outro corpo e sob o leito
de um rio de ar corrente,
indigente inominado no claro
sol que expectorava luz,
no subsolo dos acontecimentos,
sob o peso da palavra, dos guindastes
que reconstruíam campos
e sob a faixa de pedestres
acima dos atores de teatro,
sob o fígado e sob a servidão
de passagem em terreno baldio
apenas afinal sob a luz láctea dos
próprios olhos e dos grilos
rastejou, cotovelos dobrados
entre vespas e sapos,
no seu túnel de três dias,
no seu desespero, como uma larva
em seu próprio crescimento.
Nós comemos maçã, figo
nós estamos aqui, ali
nós fomos ao teatro, à fábrica
desativada, ao circo, ao estúdio
nós consagramos um dia
inteiro à contemplação calma
da floresta, do jardim, do túmulo
nós esquecemos que sempre
há um túnel sob o entendimento
sob a faca como que a prever
o sulco que gravará sob a pressão
dos ossos da mão que a empurram
para dentro da carne do pão assim como
uma coluna de esperma empurra
a massa de ar à sua frente na uretra
para fora com impulsos e com
contrações assim como a expectativa
ligada a esses fatos familiares
(facas, esperma, uretra e tubos)
devolve a família a seu centro de gravidade
em torno do qual dormem
o alimento, a passagem de ônibus
as pedras lisas que vieram da praia
lisas e livres de escamas.
Ele tinha sede tinha
ouvido rádio ontem comido
máscara, mastigado
o próprio alho
de seus dentes, deixado
a barba crescer, tinha sacos
de lixo sob os calos
tinha reunido sapos
e vespas no interior
dos olhos e o suor
que saía de seus olhos
era verde como ásperos
peixes subterrâneos
ele tinha frios
subcutâneos instintos de
noites sob pântanos
sob seus intestinos
as ruas das entranhas
viviam povoadas de brilhos
sinais de que ali fora
acima das imundícies:
com lanternas, o procuravam
(mas apenas os carros
iam e vinham, distraídos).
Dos registros de moradores de rua
seu nome não constava
nenhum henrique junto a nenhum
pequeno herói republicano
nenhum mesopotâmio
a invadir vilarejos
apenas o lodo de seu nome
longo, formado por pedaços
de vime, porque tinha família
fugiu dos registros
espalhou-se pelos túneis
sob o sol invertido das imundícies.
Era tanta a sede, e tão alto o canto
tão alto, tão alta a fuga
que pretendia, no fundo tão surdo
o que o chamava, e o que pedia,
tão miúdo era o que pedia
mergulhado no mercúrio
que varriam sob o entulho
tão frio o que varriam
migalhas de furos e tão escuros
os dias e tão mais puros
ainda os mistérios de que se valia
miúdo seu pulso, e a sede
ainda de mais percurso
a piorar a sede sem uso, tão alta
a fuga de seus pulsos
recolhidos em escusas
tão contritos, esmagados
e tão moídas as migalhas, tão brutas
as pedras reviradas que o chamavam
para abaixo das escadas
para dentro de parafusos
que não puderam seus inchaços
evitar tais chamados.
Nós temos direito a férias
a pensão a macacos domésticos e
tirolesas suspensas
entre árvores frutíferas nós gostamos
de pôr a mesa de sentar à mesa
nós achamos que o simples fato
de convivermos com as despesas
não importa tanto quando se trata
de prender cordas e esticá-las
se possível a grandes distâncias
amarrá-las às coisas e içá-las
para depois jogá-las com violência
no fundo dos lagos até que apodreçam.
De registro nenhum consta o rei
deposto o conquistador de fossos
o marechal esfaqueado
como um cuspe seu nome
parecia ter evaporado do vidro
ou escorrido e depois caído
sobre o assoalho, onde virara lodo
e de onde teria sido riscado
pela própria família
que o levara dali, para longe
para que pensasse sobre seus atos.
Tão frio o escuro em que vivia
e tantas noites frias em três dias
no fundo do mundo, sob os sapatos
dos que vigiam as coisas frias
que estalam de frio nas calçadas.
Fazia tanto frio sob as escadas
que suas costas arqueadas doíam
como se fossem abertas a enxadas
cavidades que mantinham
vazias as palavras
que seus pulmões pronunciavam
e ali fora tão fria a cidade que sofria
da mesma hipotermia, tão fria
a sua água que se deitava
sob as galerias, como mais
frias águas porque à