A Escrita do Chão
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Book preview
A Escrita do Chão - Ronaldo Lucena
Para Iara Regina,
Joaquim e
João Ernesto.
Apresentação
Caso o leitor desconheça, Ronaldo Lucena é um homem de olhar sereno, feições comedidas e gestos estudados, tudo para esconder múltiplos talentos. Captura-nos com genuíno interesse e observa. Dialoga com nosso silêncio. Hipnotiza. Não deve ter sido por outro motivo que escolheu a radiologia para sustentar o médico que é: exercita seu talento ao ver e interpretar o que se passa por dento de cada um, tesouros enterrados e males ocultos.
Ronaldo Lucena é, também, um escritor de palavras exatas, mensuradas numa balança de altíssima precisão e filtradas pelo bom gosto. Parece que voltou eternas vezes para cada uma das histórias do seu A escrita do chão e, a cada leitura, soube afinar e refinar a linguagem, deixando na página a solidez de um poema em prosa. Poucos conseguem isso com tamanha graça, com tanta riqueza. Faz o que se pode chamar de alta literatura.
Nos 38 contos que compõem o livro, há espaço para a graça, para a sensualidade e para o espanto. Somos ouvintes de apelos desesperados na busca da vida e da morte, somos cúmplices de mansas traições – ou de fidelidade cruel? –, somos testemunhas de histórias encharcadas de humanidade. Somos, antes e acima de tudo, privilegiados observadores os quais olham o mundo pelas vistas de Ronaldo, numa hipnose consentida. Encantadora.
Homem e natureza se irmanam nos relatos do autor. Há uma adesão profunda entre os personagens e a terra, a mesma que quase salta das páginas para escurecer a ponta de nossos dedos ou turvar nossa visão. Mas existe muito de etéreo, igualmente, ampliando a compreensão dos mais íntimos sentimentos. Experiente em antologias, publicado em revistas e seguro de sua voz, Ronaldo Lucena alcança ímpar maturidade em A escrita do chão. Ganha a literatura um valioso autor. Ganhamos nós um livro prodigioso.
Rubem Penz
A caça
Para Francisco, meu pai.
Com barro nas botas, quebrando as geadas, vai circundando os banhados do campo. O perdigueiro, estaqueado, fareja. Os passos curtos do cão, o rabo erguido fazem os olhos do caçador vasculharem a macega tentando adivinhar de onde partirá a perdiz no último e desesperado voo.
– Vai, Tupi, meu guaipeca, levanta um perdigão! Quero mostrar praquela gurizada que o velho ainda é bom no tiro!
O dedo indicador, já preparado, alisa o primeiro gatilho, certificando a posição e tensão do metal. Na ansiedade pelo baque, ele traz até a maçã do rosto a coronha com as iniciais talhadas na madeira. Lembra que não pode decepcionar o falecido sogro, de quem herdou a espingarda e as manhas da caça:
– Que Deus o tenha.
O coração dispara no bater de asas repentino da perdiz em fuga. A alça de mira da Boito cano duplo dança em linha parabólica. Controlando a surpresa e a pressa, com os olhos bem abertos, relaxando o dedo no gatilho, acorda o campo com o primeiro estampido, logo seguido de outro. Sobram os ecos que reverberam pela coxilha. O cachorro corre, em alarde, mas a ave mantém seu voo livre no céu contaminado de nuvens.
– Desgraçada!
A fumaça de pólvora se dissipa na brisa gelada da meia-tarde. Tupi se aproxima do caçador e recebe um afago pelo trabalho executado, porém em vão. Como que reconhecendo no dono as impossibilidades, o cão late e se põe a farejar os rastros na grama no encalço de nova vítima. Já trocando os cartuchos da carabina, se reanima o caçador:
– Bom guri, bom guri!
De longe se escutam mais tiros no campo. O velho desenha diante dos olhos a trajetória dos outros caçadores, procurando evitar o fogo cruzado. Afastara-se do grupo na volta do banhado, indo em direção à plantação de soja. Pelo número de disparos, calcula que os companheiros estejam abatendo perdizes em boa quantidade. Acredita que a sorte sempre corre pro outro lado. Apalpa a tiraca e conta apenas uma perdiz presa pelo pescoço. O sangue do pequeno animal, cravejado de chumbo, mancha sua calça. Sabe que será motivo de chacotas no acampamento e que as desculpas esfarrapadas, entre um chimarrão e goles de cachaça, não funcionarão mais. Sentimento de derrota nunca foi tolerado.
O silêncio do cachorro deixa o caçador em prontidão. O processo se repete. O cão rasteja o focinho por entre o capim e tocos de soja. Não demora muito e outras duas perdizes saem em voo rasteiro. Talvez como em estratégia de defesa, elas partem em sentidos divergentes. A mira da espingarda acompanha, em linha, a primeira ave. Dessa vez apenas um disparo, e diminuem os sons de asas no campo. Um espalhafato de penas demarca o último pouso daquela ave. Ainda resta uma perdiz no céu. O olhar procura, o dedo desiste e o segundo cartucho permanece tranquilo na culatra.
O corpo sacode em passos rápidos. Por instantes esquece as dores nas juntas e a doença que tenta impedir-lhe os movimentos. Balança no peito e na cintura a cartucheira de munições e a tiraca quase ausente de perdizes.
O cão o alcança no sentido inverso, trazendo pela boca o perdigão, mostrando os olhos de felicidade. Parece saber combinar o olhar com o do dono. O calor da ave pesa nas mãos enrugadas do caçador. Um esboço de sorriso, sem piedade: o pequeno animal é um troféu.
Um tremor nas pernas faz o caçador sentar no capim. Talvez a corrida tenha exigido demais dos membros amortecidos.
– É, Tupi, o velho aqui não é mais o mesmo...
As mãos afagam o bicho, que continua farejando as penas espalhadas pelo chão. O caçador se permite um momento de descanso enquanto prende o pescoço do perdigão na tiraca. Ficam cada vez mais longe e esparsos os tiros dos outros caçadores. O homem percebe-se, então, quase sozinho, apenas com o fiel companheiro, sentado no meio do nada. O zunido do tiro ainda permanece no ouvido. Consegue ver o movimento do vento na mata, mas já não escuta o barulho das águas do riacho. Perdeu as contas de quantas manhãs de inverno caminhou em campos derretendo a geada. Não lembra quantos céus estrelados viu em noites frias, aquecidas à beira do fogão do acampamento, tudo pelo prazer de interromper o voo das perdizes em fuga.
O frio do chão tomou conta das pernas do caçador. Tenta erguer-se e percebe a dificuldade de firmar o conjunto de ossos. Já não tem mais tantas forças. O cão fica observando como que desconfiado da capacidade do seu dono. Late, aflito, quando percebe no rosto do velho a expressão de sofrimento. Ouve o gemido de uma dor lancinante que percorre o peito do caçador. A respiração é curta, a dor aos poucos vai cedendo, sobrando tempo pra consolar o cão angustiado:
– Não te assusta, Tupi.
Mesmo sentindo-se melhor, decide descansar um pouco mais, lembrando dos apelos da mulher para que ficasse em casa. Mas não era homem para aceitar a velhice como impedimento de fazer mais uma caçada.
A luminosidade do sol diminuiu bastante por entre as nuvens no final da tarde. O velho recobrou as forças