Museus e Etnicidade - O Negro no Pensamento Museal
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Museus e Etnicidade - O Negro no Pensamento Museal - Nila Rodrigues Barbosa
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.
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COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM
Para Nicanor Rodrigues Barbosa (in memoriam).
Para alunos, ex-alunos, amigos e interessados em perceber história e contradições
para além das imagens, dos objetos e das exposições em museus.
Para Nivia, Anete, Dona Nilza e Rosilney com gratidão.
Para José Neves Bittencourt, como devolutiva dos ensinamentos recebidos.
Hablar es existir absolutamente para el otro.
(Frantz Fanon)
Prefácio
Museus e etnicidade – o negro no pensamento museal.
[ALEIXO, Ricardo. Antiboi.
Belo Horizonte: Lira/Crisálida, 2017]
No momento em que vem a lume Museus e etnicidade – o negro no pensamento museal, obra preciosa resultante de pesquisa minuciosa empreendida por Nila Rodrigues Barbosa, os avanços conquistados pela histórica agência e resistência de mulheres e homens negros no esforço contínuo por respeito à sua humanidade são alvo da força bruta de certa tradição política que buscou construir a própria ideia de nação
por aqui, a partir da segregação socioeconômica e racial – da desumanização do Outro
, de que habilmente trata a autora, nas práticas narrativas e na efetividade da cidadania mais uma vez ameaçada.
Por isso mesmo, este livro apresenta-se como uma contribuição de grande relevância para que a sociedade brasileira siga se transformando na perspectiva do aprimoramento de sua democracia, da promoção de justiça e equidade. Sua leitura atenta é um convite a quem, ciente da justeza e da urgência dessa transformação, compromete-se com ela. Uma oportunidade especial para aqueles, dentre esses, que se percebam eventualmente identificados como agentes produtores dos discursos engendrados no campo das estratégias do poder hegemônico; isso porque, como argumenta a autora, de maneira acertada, esse discurso não é impermeável à interferência e à autoria do agente ordinário – aquele que, considerando o rico diálogo empreendido por Nila Barbosa com Michel De Certeau, vale-se de táticas que, fundamentadas que são na astúcia
, podem fazer frente às ações daquele que, detentor de um lugar de poder, lança mão de estratégias, do cálculo e da previsão para estabelecer determinada ordem.
Ao se propor abordar, de maneira entrelaçada, os temas museu
e etnicidade
, Nila Barbosa enfrenta uma das mais sensíveis lacunas nos estudos relacionados às áreas de conhecimento sobre memória, patrimônio e história. E essa talvez possa ser apontada como a contribuição fundamental deste livro. Muito embora nos últimos 30 anos, no campo dos estudos do Pós-Emancipação, por exemplo, já existam avanços notáveis e um crescimento do interesse de novos pesquisadores por temas relacionados à agência de indivíduos e a coletividades negras e suas experiências de liberdade em regime escravista ou após 1988, os estudos afins na área da museologia ainda parecem carecer de novas abordagens que permitam às instituições museais reconhecerem-se como espaços de perpetuação de representações que não contemplam a diversidade das experiências sociais da população brasileira. Reconhecerem-se como tais é, decerto, um esforço importante para a superação das lacunas.
A autora, ela própria profissional experiente de áreas técnicas de museus e de instâncias governamentais ligadas à promoção de políticas culturais e de patrimônio, apropria-se do desafio assim representado de maneira profundamente crítica e, valendo-se de recursos metodológicos e teóricos eficazes, perscruta a maneira como se dão as representações da população negra na sociedade brasileira, em diferentes momentos, especialmente a partir dos referenciais do período colonial. Com maestria, ela nos conduz à sua interpretação de como, a partir da concepção museológica (imaginação museal) derivada dos processos de instituição do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), foram criados os dois museus mineiros por ela estudados – Museu da Inconfidência (Ouro Preto) e Museu do Ouro (Sabará). E de como as escolhas políticas e os diálogos com o pensamento social brasileiro da época – mais detidamente representado em uma de suas vertentes, a produção de Gilberto Freyre –, deram origem a instituições concebidas para representar como protagonista da civilização brasileira um sujeito ideal branco, europeu (português), configurando-se tais instituições como museus coloniais, assim chamados por serem conceituados como museus que negam sociedades preexistentes, conforme aponta a autora, nas conclusões deste livro.
Ela segue, demonstrando brilhantemente, por meio da narrativa construída para os capítulos 2 e 3, de que maneira o Outro
– negros, especialmente, índios e mestiços –, muito embora presentes e atuantes nas sociedades e acontecimentos reais
ali representados, são negligenciados, relegados ao não lugar, e quando tangencialmente mencionados nessas narrativas, nunca evidenciados em suas ações de resistência, mas sempre de submissão.
No entanto a resistência silenciada desse Outro
de algum modo se faz ouvir. E, talvez por isso, como nos mostra a autora no último capítulo, os produtores do discurso – de modo novamente estratégico ou em resposta estratégica às interferências do ordinário, questiona a autora – intentam uma ação de representação dos negros no Museu da Inconfidência, em 2011, que acaba por, mais uma vez, explicitar a necessidade de constante reformulação das bases de atuação dessas instituições, sob pena de continuarem a contribuir para o aprofundamento do problema da igualdade racial no país.
Um primeiro passo nessa direção acaba de ser realizado, por este importante livro. Oxalá, ele siga abrindo caminhos para que outras ações – como as que dizem respeito à ressignificação de acervos, também considerada pela autora, ainda que não trabalhada nos limites da pesquisa –, fundamentadas em um diálogo franco e respeitoso com sujeitos diversos, concretizem-se. Ainda que – e também por isso mesmo – em tempos que nos demandam renovação profunda do compromisso com o futuro.
Belo Horizonte, agosto de 2017
Josemeire Alves Pereira
Professora doutoranda na área de História Social
Apresentação
O presente livro é uma adaptação da dissertação de mestrado defendida em 2012, na Universidade Federal da Bahia. Depois da defesa e aprovação da dissertação, o trabalho foi colocado em sites acadêmicos e disponibilizado àqueles que solicitaram, e até o momento em que preparo a versão em livro, ele ainda continua sendo baixado. Esse é um dos motivos da publicação em forma de livro. O outro motivo é mais focal, se assim posso dizer, pois para além do interesse da Editora Appris em publicar a obra, é importante demarcar que a temática – representação de Negros em Museus – permanece atualizada e, sendo assim, é um desafio intelectual colocar nela mais questões e interpretações.
O tema da dissertação que deu origem a este livro, especificamente, é um aprimoramento de pesquisa e da problematização ensaiada até então e é também amadurecimento. Minha experiência profissional passa pelo trabalho em museu, como historiadora e servidora pública. O fato de ter trabalhado em instituição museológica e ter contato com teorias sobre ela possibilitou uma visão de dentro (estar lá) (GEERTZ, 2005), no sentido de ter acesso aos documentos de sua fundação, interpretar a forma como são organizados e verificar como lidam com os objetos catalogados e expostos etc. Enfim, participar daquela prática como agente e observador. Os fazeres técnicos de museus e a verificação de suas contradições forçam a busca de diálogo entre disciplinas teóricas para explicar aquelas práticas como frutos de ideologias, políticas ou de simples repetição do esforço de memória e do esquecimento engendrado pelo Estado no seu intento de convencer o povo da validade de ser transmutado em nação (BAUMAN, 2005).
De certa forma, é por causa disso que acabei por perseguir o tema da representação de negros em museus na monografia de especialização, em artigos, em revistas e anais de museus, em capítulo de livros e resenhas, dentre outros, e, principalmente, na dissertação de mestrado que deu forma a este livro. No que diz respeito às variadas questões que se podem colocar para os museus e que são ainda necessárias, algumas delas dizem respeito ao que o museu faz de si mesmo e como ele se interpreta. Questionar museus é algo perfeitamente plausível nos dias atuais. Há anos essas instituições sociais são imaginadas e preservadas de forma privada e pública e, principalmente, com maestria, pelo Estado. Seus métodos, as motivações de sua permanência social e seus processos vêm sendo expostos em seus objetivos de criação e na interpretação de sociedades que representam, por meio das exposições, publicações e outros projetos educativos.
A própria característica de representação, inerente à ação dos museus, também instiga a fazer o exercício de crítica que tem duas vertentes: o diálogo com o público de museu e o diálogo com os pares (estar aqui) (GEERTZ, 2002).
Dois museus criados pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) ainda na primeira metade do século XX são objetos da análise nesta obra: o Museu da Inconfidência, criado em 1938, e o Museu do Ouro, criado em 1943. Objetivamos ver neles algo que pode ser chamado de processo de não representação. Aos museus é creditado o papel de narrador. Ele elabora e narra uma nação, uma comunidade, um lugar. Para estabelecer narrativas críveis, é preciso imaginar antes de elaborar. Trabalhamos com documentos escritos e as exposições dos dois museus para substanciar nossa análise sobre a ausência de representação de negros no acervo e exposições. Explicitamos essa ausência contextualizando a criação das duas instituições pesquisadas em um período em que a ideia de patrimônio nacional começa a tomar forma concreta dentro do aparato estatal, com a missão de construção de identidade nacional pensada a partir da interpretação do passado nacional brasileiro como descendência europeia. Por isso, representar o protagonismo negro estava fora de questão, mesmo em se tratando de representação do século XVIII, em Minas Gerais, ciclo do ouro, onde a presença do elemento negro na população é inegável.
Em termos metodológicos, o estudo sobre a criação de um museu e sua prática cotidiana, envolve aspectos técnicos que tem por base teorias, ideologias e ideias políticas. Alguns desses itens são materializados em textos de publicações que à época poderiam ser consideradas apenas técnicas, mas que hoje podem ser transmutadas em fontes históricas, importantes para se entender o pensamento que engendrou instituições museais.
Nossa discussão teórica terá por base Michel de Certeau (2007), no estudo das táticas e das estratégias sociais, Stuart Hall e Benedict Anderson, sobre as comunidades imaginadas, e passa pelos conceitos de identidade nacional no Brasil e a identidade como algo imaginado, porém, crucial, apesar de sua ambivalência. Exploramos a relação entre patrimônio e racismo (camuflado, maneiroso) (LENHARO, 1986) manifestado na longa duração do encontro da Europa com o Outro e no Brasil, inclusive em instituições que procuram representar aquele Outro (CUNHA, 2006).
O presente livro não tem a pretensão de pensar em Negro como uma palavra que resume tudo o que foi a contribuição dos escravizados no período colonial e de seus descendentes Negros na história do País. É preciso pensar a multiplicidade de tais atores nos processos culturais e históricos no Brasil e avançar. Nosso intento foi o de explorar a imaginação cultural do País levada a cabo pelo Sphan e a partir de então evidenciar os desdobramentos da ideia que resume o negro a uma coisa: o escravo, e o retira da representação material da história do País. É exatamente por reconhecer diversos papéis, identidades, territórios etc. na nossa história que podemos perceber e explicitar os meandros de efetivação de identidade nacional com base em memória elaborada para esquecer tais contribuições e mesmo apagá-las dos registros materiais históricos.
SUMÁRIO
Capítulo 1
Museus e Etnicidade
CAPÍTULO 2
Arcabouço das narrativas museológicas e suas ideologias
2.1 - O patrimônio como narrativa de nação
2.2 - Metamorfoses e estratégias:
o museu como expressão da memória e do esquecimento
CAPÍTULO 3
Estratégias cenográficas, discursos e
contra discursos dos museus
3.1 - Exposições como Cenografias
3.2 - Cenografia do bem contra o mal e o
rebaixamento do escravizado a objeto
3.3 Cenografia sem o bem e sem o mal.
Negação da agência do escravizado.
Capítulo 4
Ainda a exposição museológica - O Museu
conclama a Etnicidade?
Conclusões
REFERÊNCIAS
Capítulo 1
Museus e Etnicidade
Ao visitarmos um museu, mal percebemos a complexidade do sistema de relações sociais e simbólicas que tornaram possível a sua formação a asseguram o seu funcionamento. Percorrendo o circuito das exposições, somos levados a esquecer todo o processo de produção de cada um dos objetos materiais expostos, a história de cada um deles, como chegaram ao museu, assim como todo o trabalho necessário à sua aquisição, classificação, preservação e exibição naquele espaço. Os agentes e as relações que tornaram possíveis esses processos ficam na penumbra, em favor do enquadramento institucional dos objetos numa determinada exposição.
[José Reginaldo Gonçalves]
Lidamos, no tempo presente, com a herança cultural que podemos impingir aos objetos. É como se eles possuíssem uma aura por causa de valores extras que lhes são atribuídos com o correr do tempo e outros que lhes são também atribuídos quando em coleções de patrimônio, como ocorre com os artefatos colocados em museus. Relíquia, semiósforo, objetos históricos: seus compromissos são essencialmente com o presente, pois é no presente que eles são produzidos ou reproduzidos como categoria de objeto e é às necessidades do presente que eles respondem
(MENESES, 2005, p. 26).
Embora os objetos antigos tenham sido produzidos no passado, eles possuem seu valor acrescido àquele de uso cotidiano quando de sua produção. É, pois, no tempo presente que o objeto antigo figura no museu com valor cognitivo e sensorial já não mais no nível individual, mas coletivo. Ou seja, no social mais ampliado. Entre os valores conferidos aos objetos por causa da chancela do tempo, estão o de memória e o de história. Costumamos eleger alguns objetos, independentemente do seu valor de uso social, para reter, comemorar, fixar e reconhecer uma experiência vivida em sociedade. Assim, escolhemos alguns artefatos unitariamente ou em conjunto, ou mesmo de grandes proporções na forma de um bem arquitetônico, por exemplo. Fornecemos a eles a alcunha de portadores de sentido específico ou de qualidade excepcional de determinada pessoa ou demarcadores de experiências sociais de uma ou mais fases de um processo histórico, bem como de um feito específico.
Passamos, então, à percepção do que é a cultura material nos museus. É preciso ter claro que a Cultura Material é condição de existência do museu. Disciplina, que pode se articular a outras como a arqueologia e a antropologia para estudo de processos e articulação de contextos.