Memórias do Araguaia: Depoimentos de um ex-guerrilheiro
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Memórias do Araguaia - Dagoberto Alves da Costa
A vida com um ex-guerrilheiro
Terezinha Nunes
Tomara que ele não me procure mais. É uma barra muito pesada para mim.
Foi com este sentimento que acordei em um domingo no final de 1974, no pequeno apartamento do bairro de Ipanema, no Rio, onde minha irmã Socorro morava, enquanto fazia curso de pós-graduação na UFRJ.
Ele
era Dagoberto, um rapaz pouco mais alto do que eu, a quem passaria a chamar de Beto, mas que para os amigos e a família tinha outro apelido — Dagô. Havíamos nos conhecido na noite anterior no apartamento de uma amiga de minha irmã que nos chamara para uma festinha em que recepcionaria uns amigos.
Nosso contato logo transformou-se em algo mais sério. Uma paixão à primeira vista. Ele não era a pessoa que eu procurava. Gostaria sim de namorar alguém de esquerda — esta era a senha da juventude engajada na época — mas, quando ele me disse, após tomar alguns chopes, que estivera na Guerrilha do Araguaia mas não queria falar nisso pois era perigoso até para mim, me arrepiei de medo. Não do Exército propriamente, mas porque senti, apesar do pouco contato, que ele não estava bem e que isso me obrigaria a mergulhar numa tensão maior do que a que vivíamos naquele tempo.
Em São Paulo, para onde havia me mudado após encerrar o curso de Jornalismo na Unicap - Recife e era repórter da sucursal paulista do jornal O Globo, vivíamos a efervescência da luta contra a ditadura em reuniões no Sindicato dos Jornalistas sob o comando de Audálio Dantas e as famosas missas na Catedral da Sé, onde Dom Paulo Evaristo Arns acolhia, a seu modo e com firmeza, as manifestações da sociedade civil.
As notícias sobre prisões e as tensões provocadas pela censura à imprensa eram constantes. Dividia em São Paulo um apartamento com algumas amigas nordestinas — uma espécie de república —, sendo uma delas Rosa Cotrin, alagoana, ex-esposa do estudante Cândido Pinto, líder estudantil em Pernambuco que fora vítima de um atentado, ficando paraplégico.
Rosa era muito visada. Sabíamos que não era bem vista pelo regime, embora já separada de Cândido. Por nosso apartamento passavam amigos de Rosa, alguns procurados pelas Forças Armadas e operando na clandestinidade. Aquilo para mim não era problema. Não era. Até que conheci Dagoberto.
Um dos amigos era Umberto de Albuquerque Câmara, da Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil (APML do B), líder estudantil do Recife que entrou na clandestinidade. Umberto desapareceu em 08 de outubro de 1973, poucos dias depois de nos visitar em São Paulo. Temi que ele estivesse sendo seguido e que acabássemos sendo presas. Só muito tempo depois soubemos, já na redemocratização, que ele desaparecera no Rio de Janeiro, para onde deve ter ido depois do contato conosco, que foi rápido. Pareceu um adeus.
Tudo isso passava pela minha cabeça naquele domingo pela manhã poucas horas antes de ir para a rodoviária tomar o ônibus que me levaria de volta a São Paulo. Dagoberto pedira o endereço da minha irmã, mas eu imaginava que, no mínimo, iria acordar tarde ou mesmo deixar para lá. Torcia por isso.
Para minha surpresa, porém, quando, aliviada pela ausência dele, abri a porta do apartamento para ir à rodoviária, ele apareceu nas escadas, ofegante. Ajudou-me com a pequena mala e disse que me acompanharia até a rodoviária.
Não me largou mais.
E eu fui me entusiasmando com a aventura, afinal nossa admiração recíproca crescia cada vez mais. Passamos a nos ver a cada 15 dias quando — como era costume — eu passava um final de semana no Rio, no pequeno e quente apartamento da minha irmã, entremeando contatos com amigos de esquerda, que minha irmã conhecia, e as saídas à noite para a efervescente Avenida Atlântica, onde os jovens se reuniam para falar de política (que os militares não nos escutassem).
Durante o dia não resistíamos aos mergulhos nas águas geladas da praia de Ipanema (que saudades sentia das águas mornas do mar do Recife...).
No começo de 1975 minha irmã voltou para o Recife, após o término do curso, e Dagoberto então resolveu ele próprio ir nos finais de semana para São Paulo, até que resolvemos morar juntos. Passamos a ocupar um quarto do apartamento junto com a amiga Rosa, que se tornou muito amiga dele também.
Passei a viver uma vida dupla. Não podia contar para ninguém, a não ser Rosa, que iria compreender — como compreendeu e nos ajudou —, que morava com um ex-guerrilheiro. Ninguém mais sabia disso além dela. Corria o risco dos próprios amigos fugirem de mim se fizesse essa revelação, com receito de repressão.
Na época falava-se da luta armada nos grandes centros, mas da guerrilha só se sabia que era algo sombrio e da qual não se tinha notícia. Dagoberto, ao qual vou me referir daqui para frente como Beto, me contou rapidamente que tinha sido guerrilheiro, fora preso e torturado e não se sentia bem em falar no assunto.
Conviver com alguém vindo do Araguaia poderia ser aterrorizante para as demais pessoas com as quais convivíamos. Além disso, Beto precisava recompor a vida, voltar a estudar, trabalhar e nada disso seria possível se fosse divulgado que não fazia pouco tempo ele estivera nos, chamados à época, porões da ditadura
.
Como os militares abafaram o assunto para evitar, certamente, que outros jovens fossem para o Araguaia, ou que o mundo soubesse de uma luta armada na Amazônia, a divulgação da existência de um ex-guerrilheiro que acabara sendo solto poderia ser prejudicial para Beto de duas formas. Alguns se afastariam com receio de acabarem presos também e outros poderiam imaginar que ele fosse um colaborador solto com o propósito de servir de isca a outras presas.
Minha irmã, que já voltara para o Recife, também não falou com a família sobre as atividades políticas de Beto.
Essa inusitada clandestinidade
permitiu que ele trabalhasse em São