Ciências da Complexidade e Educação: Razão Apaixonada e Politização do Pensamento
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Tendo como interlocutores pensadores como Edgar Morin, Claude Lévi-Strauss, Isabelle Stengers, Gaston Bachelard, Ilya Prigogine, Henri Atlan, Bruno Latour, Werner Heisenberg, entre outros, a autora problematiza as bases epistemológicas de uma ciência da inteireza e da implicação do sujeito no conhecimento. Defende uma ciência no plural, um conhecimento de base complexa e transdisciplinar. Instiga o leitor a se deslocar da narrativa analítica da ciência que aprisiona o pensamento no cárcere das certezas e verdades unitárias e dogmáticas.
Escrito em linguagens diferenciadas, por vezes mais prosaicas, por vezes mais poéticas, o livro expõe uma ecologia das ideias capaz de provocar novas atitudes e ações por parte de educadores, antropólogos, filósofos, sociólogos, literatos e cientistas de diversas áreas.
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Ciências da Complexidade e Educação - Maria da Conceição de Almeida
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE
Para meus alunos de ontem, de hoje e de amanhã.
Para os educadores que, como Nietzsche e Spinoza, concebem o conhecimento como o mais potente dos afetos.
Para todos que, como Epicuro, reconhecem nos ensinamentos da filosofia elementos para uma vida feliz.
Para Edgar Morin, Edgard de Assis Carvalho, Henri Atlan e Emilio Roger Ciurana, pelo diálogo que me alimenta.
Para os amigos do GRECOM, que me ajudam a pensar melhor.
Para você.
Eu tenho amado as estrelas profundamente...
para ter medo da noite.
Galileu Galilei
Nada me parece mais natural do que
pintar aquilo que ainda não se realizou.
Frida Kahlo
O ovo é perfeito, secretamente perfeito,
divinamente perfeito porque,
e só porque, se pode quebrar!
Teresa Vergani
APRESENTAÇÃO
Os ensaios aqui reunidos tratam de educação, diversidade cultural, ética da ciência, formação do cidadão, nascimento e metamorfose das ciências modernas, emergência da noção de complexidade e estado da arte de uma nova reorganização da cultura científica.
Escritos em linguagens diferenciadas, por vezes mais prosaicas, por vezes mais poéticas, o livro expressa a necessária diversidade, princípio caro ao pensamento complexo e a uma ecologia das ideias. Procuro afastar-me de uma narrativa esotérica (limitada ao entendimento dos especialistas) para caminhar em direção a uma narrativa exotérica (capaz de ser compreendida por leitores de várias áreas do conhecimento).
Autônomos, mas ao mesmo tempo dependentes uns dos outros, os vários cenários temáticos permitem ao leitor compor seus próprios eixos de interesse. A polifonia de escrituras e temas expressa as marcas do tempo e das circunstâncias em que foram escritos os ensaios, que devem ser entendidos como provisórios, abertos, inacabados e parasitados pelos erros próprios à uma razão complexa. Mas há aqui, também, uma unidade. Ela diz respeito a uma aposta em uma arquitetura do espírito que deseja religar o local e o universal, o mito e o logos, a razão e a paixão, a cultura científica e a cultura humanística, a ciência instituída e os saberes da tradição.
São conferências proferidas no Brasil e em outros países, em sua versão ampliada, artigos já publicados em revistas científicas esgotadas e capítulos de livros publicados em outros idiomas.
O projeto original era mais ambicioso. Dois colegas pesquisadores – Carlos Aldemir Farias e Paula Vanina Cecing – já haviam reunido parte de minha produção acadêmica e até elaborado um sumário preliminar que incluía, além de textos mais técnicos, ensaios, entrevistas, prefácios, orelhas de livros e notas de aulas ministradas em cursos de pós-graduação e de graduação na UFRN e em outras universidades brasileiras. Projeto de tão grande monta exigia, de minha parte, um tempo e uma dedicação impossíveis diante da quantidade de compromissos e atividades acadêmicas dos quais me ocupo no dia a dia. Entretanto duas outras pesquisadoras do GRECOM – Josineide Silveira de Oliveira e Louize Gabriela Silva de Souza – incumbiram-se de parte desse projeto, organizando Palavras Úmidas: homenagens, prefácios e outros escritos, livro já esgotado e publicado pela Editora da UFRN em 2014. A terceira parte do projeto, a publicação de um memorial autobiográfico que religa os cenários socioculturais e pessoais da minha trajetória (itinerário de formação, atuação profissional, circunstâncias vividas, interlocuções intelectuais, síntese de aulas e entrevistas), fica por fazer.
Este livro é a segunda edição, agora revisada e ampliada, do livro homônimo publicado em 2010 pela EDUFRN, esgotado, reimpresso em 2012 e novamente esgotado. Para a primeira edição, contei com a ajuda e parceria de Carlos Aldemir Farias, João Bosco Filho, Thiago Isaías Nóbrega de Lucena, Josineide Silveira de Oliveira, Margarida Maria Knobe e Helton Rubiano. Nesta segunda edição meu débito é com Mônica Karina Santos Reis e, novamente, com Helton Rubiano. Expresso minha gratidão a todos eles.
A intenção do livro é facilitar o acesso, num só lugar, do que está disperso ou já sem acessibilidade. Essa intenção expressa o compromisso com o ideário de uma democracia das informações, das ideias, do conhecimento científico e da educação.
A autora
PREFÁCIO
Este livro deve ser lido sob o signo do desafio. Mais do que nunca, reitera a assertiva de Edgar Morin de que o pensamento complexo não é solução para os desatinos da fragmentação e da resignação que comandam os dispositivos acadêmicos, mas que é possível a construção de uma razão apaixonada conjugada a uma politização do pensamento, expressão que subtitula este Ciências da complexidade e educação.
São 12 ensaios. Alguns deles trazem a marca do coloquial, típica de conferências, que não se deixa contaminar pelas regularidades da razão gráfica, outros – artigos publicados, capítulos de livros – mais sistemáticos, incursionam pelos territórios inacabados e indeterminados dos saberes, incluem pensadores indignados que advogam uma política do conhecimento decididamente anticartesiana.
Como esclarece a apresentação, o projeto original era mais ambicioso
. Pretendia reunir toda a produção acadêmica – ensaios, prefácios, orelhas, notas de aula. Oxalá, algum dia, eu e Ceiça tenhamos energia para, juntos, fazermos um livro que reúna tudo que falamos, polemizamos, divergimos, contraditamos por este mundo afora.
Claro que este livro tem relação com o GRECOM. São 25 anos – parece que foi ontem! – desde quando o Grupo Morin começou a se reunir em Natal para ler, refletir, criticar as ideias de Edgar Morin. Irreversível, o tempo passou, todos mudamos, mas mantivemos vivas as esperanças de um mundo, de uma sociedade, de uma universidade que respondessem aos desafios do contemporâneo.
Giorgio Agamben afirmou que ser contemporâneo é perceber as luzes do presente, mas saber que, sob elas, existem obscuridades, não ditos, subtextos, recalques a serem desvendados, e não apenas por psicanalistas. Afinal, todos nós, vinculados às humanidades, somos meio analistas das desavenças deste mundo que teima em ser dominado pela instantaneidade, pelo efêmero, pelo espetáculo midiático.
Este livro, agora em sua 2a edição, tem algo a mais. Ele é escrito sob a pulsão de vida que comanda o mundo permanentemente inacabado do sujeito da enunciação. Afinal, vida e ideias estão inextricavelmente ligadas, mesmo que os ditos intelectuais escondam-se sob o manto do cientificismo. Nunca dizem de si. São exímios desvendadores dos escombros dos outros; sob o manto protetor do relativismo, não percebem que, a todo tempo, o inferno está dentro de nós. Por isso, suas narrativas são frias, tecnicistas, sem Eros.
Ao ler o conjunto, veio à minha mente uma narrativa de Jorge Luis Borges intitulada O jardim de veredas que se bifurcam, de 1941, que integra o conjunto de sete obras reunidas em Ficções, cuja publicação original data de 1944. O Jardim, esclarece o autor, é um conto policial, no qual os leitores assistirão à execução de um crime cujo propósito não ignoram, mas que não compreenderão, parece-me, até o último parágrafo
. Esse esclarecimento de Borges sempre me incomodou. Reli-o várias vezes, procurando algo que o autor deixara oculto da fiel comunidade de seus leitores. Nessa narrativa, um certo astrólogo, Ts’ui Pen, pretendera executar duas tarefas inconcebíveis: a construção de um labirinto complexo e a escritura de um romance interminável. Se os caminhos do labirinto não estivessem claros, o romance seria absurdo, incoerente, indeterminado, bifurcado, composto por plataformas incandescentes de espaço-tempo.
Ao percorrerem o conjunto destes textos, os leitores certamente perceberão que a ciência não é um mero instrumento que descreve friamente a realidade. É, isso sim, bifurcação, decifração, metamorfose. Como o sábio da narrativa de Borges, toda vez que um homem defronta-se com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras. Ao optar por todas, o sábio cria diversos tempos que, por sua vez, proliferam-se e se bifurcam. Este livro pode também ser visto como um labirinto de ideias, cujos caminhos serão desvendados pelos leitores a partir de suas experiências, seus sonhos, recalques e utopias.
Edgard de Assis Carvalho
Julho, 2017.
Sumário
NARRATIVAS DE UMA CIÊNCIA DA INTEIREZA
MAPA INACABADO DA COMPLEXIDADE: VOO INCERTO DA BORBOLETA
EDUCAÇÃO COMO APRENDIZAGEM DA CULTURA
UMA ASTRONOMIA DAS CONSTELAÇÕES CULTURAIS
RESERVAS POÉTICAS DO PENSAMENTO HUMANO
PARADOXOS DA CONDIÇÃO HUMANA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
COMO ARTESÃO DO OITAVO DIA
PARA UMA EDUCAÇÃO COMPLEXA
ENSINO DA CONDIÇÃO HUMANA E AUTOFORMAÇÃO
COMPLEXIDADE E ÉTICA COMO ESTÉTICA DE VIDA
A CIÊNCIA COMO BIFURCAÇÃO
CIÊNCIA NÔMADE, SUJEITO IMPLICADO
REFERÊNCIAS
NARRATIVAS DE UMA CIÊNCIA DA INTEIREZA
Ciência e subjetividade
O conhecimento científico é uma construção humana. Sendo assim, mesmo se distinguindo de outras narrativas por um método cujo rigor é insistentemente professado e defendido, a ciência também gesta e alimenta mitos. Dois deles, e talvez os que melhor caracterizam a consolidação das ciências modernas, são os mitos da neutralidade e da objetividade. Se libertar dos aspectos subjetivos durante a pesquisa, produzir análises que se restrinjam a enunciar os fenômenos como eles realmente são
e construir interpretações desprovidas dos valores e visões de mundo do observador são alguns dos princípios referendados pelos ideários de uma ciência da assepsia, destituída de sujeito, purificada dos afetos, iras, marcas inconscientes, ideologias e valores éticos dos quais se nutrem – queiramos ou não – estudantes, professores e pesquisadores de todos os tempos e lugares.
Tão logo ultrapassamos nossa iniciação nos códigos do conhecimento formal escolar – alfabetização, assimilação dos conteúdos de diversas disciplinas – e, sobretudo, quando nos é outorgado o direito de nos iniciarmos na atividade da pesquisa, somos levados a ingerir um conjunto de normas e modos de investigação que destacam a separação entre um sujeito soberano e um objeto inerte, mas pronto para falar, tão logo seja tocado pelo sujeito. Tudo se passa como se o sujeito fosse um mero tradutor do que está fora de si. Tal separação tem por suposto uma realidade já dada, a ser descoberta, manipulada, analisada e, por fim, conhecida. Esse duro e frio protocolo corresponde, de fato, a um paradigma próprio da ciência ocidental moderna e, mesmo assim, tal paradigma está longe de representar as vicissitudes e idiossincrasias dos saberes e fazeres da prática científica.
Diferentemente do que é anunciado nas aulas de ciência e de metodologias de pesquisa, cientistas e pesquisadores olham o mundo a partir do lugar de um observador constituído por sua subjetividade, suas experiências de vida, seus saberes acumulados, sua cultura, sua história pessoal. Em O que é a vida? (1997), Erwin Schrödinger, físico austríaco, Prêmio Nobel de Física no ano de 1933, expõe de forma matizada a hibridação objetividade/subjetividade e defende a ideia de que tudo que sabemos, sabemos por meio de nossas experiências pessoais. O relato de sua trajetória intelectual no texto Fragmentos Autobiográficos, escrito em 1960, mostra bem como seu interesse pela biologia e pela física emerge do rico contexto de experiências diversas, que inclui o ambiente familiar, os amigos, as viagens, o clima cruel da guerra de 1914, as leituras. Talvez porque tivesse consciência de que o contexto e as experiências vividas estão na raiz das teorias e interpretações construídas, o autor do clássico ensaio intitulado O que é a vida? pôde, com tenacidade e clareza, discutir o equívoco que é a suposta exclusão do sujeito na ciência.
No conjunto das Conferências de Tamer
, que tem por título Mente e matéria, Schrödinger problematiza o princípio da objetividade. Para ele, por meio desse princípio
excluímos o sujeito cognoscente do domínio da natureza que nos esforçamos para entender. Retrocedemos para o papel de um expectador que não pertence ao mundo, o qual, por esse mesmo procedimento, torna-se um mundo objetivo (SCHRÖDINGER, 1977, p. 132).
Ou seja, o princípio da objetividade na ciência só se sustenta como condição do sujeito se conceber separado da natureza, do mundo à sua volta. Schrödinger relativiza tal princípio, uma vez que, diz ele,
meu próprio corpo (ao qual minha atividade mental está tão direta e intimamente vinculada) forma parte do objeto (o mundo em torno de mim) que construo a partir de minhas sensações, percepções e memórias (p. 132).
Mesmo que se trate de meta-argumentos atinentes a uma fenomenologia geral, as reflexões desse físico prefiguram, já nos anos 50 do século XX, uma crítica importante à separação entre o sujeito que conhece e o objeto do qual se ocupa o pesquisador.
Certamente é o biólogo chileno Humberto Maturana quem trata mais diretamente de desfazer o tão celebrado mito da realidade objetiva. Para ele, a palavra realidade deve ser posta entre parênteses, uma vez que tudo que é dito sobre um fenômeno é construído a partir de um observador em sua relação com o meio exterior, relação essa que passa por sua visão de mundo e seus valores. Tendo como base o conceito de auto-poiesis, construído em parceria com Francisco Varela, Maturana rediscute as bases biológicas da cognição humana realçando o papel central do sujeito-observador. Daí porque, para ele, sobre uma mesma realidade
, sujeitos com experiências de vida e valores distintos a compreendem de maneiras distintas, por vezes mesmo antagônicas e opostas (MATURANA, 1977; 1998; 1999; 2001).
Resguardadas as importantes pesquisas e argumentos de Maturana que incidem numa crítica radical ao princípio da objetividade e, de forma mais abrangente, aceitando as descobertas da física quântica que têm por hipótese central os distintos níveis coexistentes de realidade, centramos nossa atenção na natureza subjetiva da narrativa da ciência. Avançando nessa direção, é importante assinalar que a defesa da objetividade, da neutralidade do pesquisador e de um saber destituído das marcas do autor-sujeito fazem parte de um método que foi repetidamente disseminado nas escolas e universidades.
Como sabemos, sendo um produto da cultura, a ciência é também um tipo de conhecimento tornado hegemônico numa sociedade capitalista, utilitária, e tem, na padronização, uma base importante de sua consolidação. A padronização – outra forma de dizer da negação a tudo que é diverso – acaba por celebrar uma prática científica monolítica, voraz em nivelar os indivíduos, em subsumir suas individualidades e em cultuar um modelo único de conhecer e narrar. Por consequência, elege-se uma axiomática do fazer que prima em impor uma monocultura da mente, como denuncia Vandana Shiva (2003). Do ponto de vista da narrativa da ciência, a monocultura da mente impõe uma gramática dessubjetivada, fria e supostamente impessoal. Para dar um exemplo, sabemos como os pós-graduandos são cobrados – pelas normas e regras dos manuais, ou pelos orientadores – a narrar suas pesquisas e reflexões na terceira pessoa do plural ou no infinitivo. Ora, a impessoalidade, ao mesmo tempo em que amesquinha a singularidade das narrativas, funda, por outro lado, um discurso de autoridade capaz de, por vezes, desautorizar qualquer outra concepção. Esse padrão monolítico da narrativa morta, porque sem sujeito, acaba por livrar o autor do seu compromisso com o que é dito, o que se constitui, em última instância, numa porta aberta para o distanciamento ético do pesquisador com o seu mundo.
Mesmo assim, e malgrado a tentativa de defender uma ciência amputada do sujeito, são diversas as publicações que explicitam a imbricação do ser do autor nas palavras, argumentos e textos que materializam a produção do conhecimento científico. Ainda que sejam classificadas como publicações ensaísticas e ad hoc, separada da obra pela qual o cientista ficou consagrado, são exemplares os livros ou coletâneas que exibem a face um pouco mais completa de Galileu Galilei, Albert Einstein, Guttemberg, Karl Marx e Werner Heisenberg, entre outros. Essas publicações são, às vezes, discriminadas como obras de divulgação científica
, o que demonstra o quanto o paradigma da redução acautela-se contra a contaminação do sujeito. Vivas e dinâmicas, entretanto, essas obras descortinam os contextos, eventos e circunstâncias afetivas do interior das quais os escultores da ciência organizam seu pensamento. Apesar de consideradas obras ilustrativas, tais narrativas expõem o lado vivo de uma ciência levada a efeito por pessoas de carne e osso, minadas por suas euforias, pessimismos, obsessões, emoções.
O livro Ciência, ordem e criatividade, do físico David Bohm (1989), é exemplar para corroborar o argumento da indissociação entre o sujeito que conhece e as ideias que elabora. Para o autor, somos parasitados por um conjunto de valores pessoais e circunstâncias psicológicas que se organizam numa infraestrutura tácita de ideias e conceitos. Mesmo que o conjunto dos axiomas e argumentos do livro dirija-se a discutir de que forma ultrapassar os obstáculos da infraestrutura tácita, não é possível visualizar nele a situação ideal de um sujeito que se desvencilhe, por completo, dos padrões cognoscentes e crenças que lhes parasitam inconscientemente. Os antigos valores e modos de conhecer se constituem, como quer o autor, em tranquilizantes para o sujeito que acaba por fazer associações equivocadas. De qualquer forma, ainda que tenhamos que considerar a necessidade de pôr em diálogo nossas crenças e visões de mundo, é sempre a partir de um padrão psíquico e subjetivo que compreendemos o mundo a nossa volta.
Mais algumas referências são aqui emblemáticas a esse respeito. Em primeiro lugar, os livros Como vejo o mundo (1981) e Escritos da maturidade (1994), duas coletâneas de aulas, conferências e artigos de Albert Einstein. Ali, o grande físico expõe suas angustias em relação à organização bélica do mundo, seus valores éticos, sua preocupação com a formação dos jovens e as circunstâncias nas quais elaborou sua teoria a respeito do tempo.
Por sua vez, Werner Heisenberg, no livro A parte e o todo (1986), expõe a dinâmica iminentemente coloquial, afetual e tensa que tece o contexto da fabricação da ciência. Uma ciência tecida por sujeitos de carne e osso poderia muito bem aparecer como subtítulo do livro. No prefácio, uma advertência essencial:
É evidente, mas muito frequentemente esquecido, que a ciência é feita por homens. [...] Este livro versa sobre o desenvolvimento da física atômica nos últimos cinquenta anos, tal como o autor os vivenciou (HEISENBERG, 1986, p. 7).
Ao longo das 286 páginas da edição brasileira, Heisenberg reconstrói os cenários diversos no interior dos quais foram sendo elaborados importantes conceitos da física e da mecânica quânticas: complementaridade, simultaneidade, probabilidade, incerteza, entre outros.
As longas conversas entre Niels Bohr, Carl Friedrich, Otto Hahn, Paul Dirac e outros cientistas em diversos lugares deixam entrever os cenários afetivos que estão na base da construção da ciência. Uma intersubjetividade explícita pode ser depreendida da leitura desse livro. Uma crítica aguçada ao que se considera, na ciência positivista, como objetivo e subjetivo, aparece em vários momentos da reconstituição narrativa da nova física em A parte e o todo. Para Bohr, são realmente problemáticos os conceitos de ‘objetivo’ e ‘subjetivo’, que normalmente usamos com tanto desembaraço
(BOHR apud HEISENBERG, 1986. p. 126). Isso porque, a interpretação da realidade é empreendida por sujeitos com valores e concepções de mundo que vão se consolidando por meio de suas experiências. Daí porque, conforme relata Heisenberg, era muito difícil para Einstein aceitar a nova teoria quântica, mesmo que Bohr tenha demonstrado para ele a persistência do princípio da incerteza. Esse fato levará Heisenberg a afirmar:
compreendi como é difícil alguém abrir mão de uma atitude em que se basearam toda a sua abordagem e toda a sua carreira científica. Einstein dedicara a vida a investigar o mundo objetivo de processos físicos que têm lugar no espaço e no tempo, independentes de nós, de acordo com leis exatas (HEISENBERG, 1996, p. 98).
Ampliando o elenco de pensadores que se colocaram a favor de uma ciência da inteireza, cito mais uma referência. A indissociação entre valores pessoais e interpretação dos fenômenos é o centro da reflexão de Ilya Prigogine (2001) no artigo Ciência, razão e paixão, do livro que leva o mesmo nome. Mesmo sem fazer referência a David Bohm, Prigogine acrescenta elementos novos e, penso eu, mais pertinentes, à noção de infraestrutura tácita de ideias e conceitos. Para ele, o papel desempenhado pela forma de pensar do cientista, pela emoção, pela paixão e em termos mais gerais, por elementos irracionais
é um assunto de grande importância e sobre o qual não devemos descuidar. À primeira vista
, diz ele,
parece que estamos tratando de um paradoxo. A ciência, por definição, não se situa além da paixão, além mesmo das necessidades mais prementes da sociedade? Era assim que pensava Einstein. Como sabemos, ele esperava que os cientistas pudessem ter emprego como faroleiros (PRIGOGINE, 2001, p. 89).
Ao problematizar e discutir a relação estreita entre o estilo psíquico do sujeito e suas interpretações dos fenômenos, o artigo apresenta uma síntese arrojada da