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O cinema-poesia de joaquim pedro de andrade: passos da paixão mineira
O cinema-poesia de joaquim pedro de andrade: passos da paixão mineira
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O cinema-poesia de joaquim pedro de andrade: passos da paixão mineira

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Este livro examina a cinematografia de Joaquim Pedro de Andrade e o papel decisivo da memória como seu maior impulso criativo, sobretudo a partir da inspiração fundamental de Rodrigo Melo Franco de Andrade, metáfora paterna e intelectual, a nortear sua trajetória de cineasta. Por meio da análise de sua cinematografia mineira, formada pelos filmes O padre e a moça (1965), Os inconfidentes (1972) e O Aleijadinho (1978), a autora investiga os elementos formadores de toda a obra de Andrade, sempre apoiada na observação da cultura e da literatura brasileiras, para uma tradução da identidade nacional, capaz de projetar Minas Gerais, não só como microcosmo do país, mas também como cenário universal, não deixando de lado o fato de que "Joaquim era um libertário [...]", "O menos careta de sua geração. [...] Vamos lembrar dele com alegria, que é isso que ele merece".
LanguagePortuguês
Release dateJan 1, 2016
ISBN9788547300104
O cinema-poesia de joaquim pedro de andrade: passos da paixão mineira

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    O cinema-poesia de joaquim pedro de andrade - Meire Oliveira Silva

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição – Copyright© 2016 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM

    Para minha mãe,

    dentro da eternidade e a cada instante.

    Para Xande, sempre: "Mas, porque me tocou um amor crepuscular,

    há que amar diferente. De uma grave paciência

    ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia

    tenha dilacerado a melhor doação.

    Há que amar e calar.

    Para fora do tempo arrasto meus despojos

    e estou vivo na luz que baixa e me confunde."

    (Drummond)

    AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, por todo amor e pelo apoio incondicional em todos os momentos; e a Alexandre, desde os tempos imemoriais (sem vocês, nada disso seria possível!)

    A Maria de Andrade, filha mais nova do cineasta, pela enorme gentileza e atenção ao receber-me e apresentar-me os materiais pertencentes ao Arquivo de Joaquim Pedro de Andrade, desde a elaboração da dissertação de mestrado. A Alice de Andrade, filha mais velha do cineasta, que conheci recentemente, mas que foi igualmente importante no processo de revisitação das ideias da tese de doutorado, e no amadurecimento desta em livro.

    Ao ator Paulo José e à atriz Helena Ignez, pelos maravilhosos depoimentos, pela atenção e pelo carinho com que me receberam.

    Ao professor e amigo Joaquim Alves de Aguiar, pela confiança, pelo acompanhamento sempre atento da pesquisa sob sua orientação valiosa, e pelas conversas agradáveis e esclarecedoras, desde o mestrado até o término do doutorado. Sua participação no processo de minha formação acadêmica foi fundamental. (In Memoriam)

    Ao professor Fernão Pessoa Ramos, por participar da banca da defesa do doutorado, com valiosas observações e análises que serviram para a finalização deste projeto e, sobretudo, por incentivar o aspecto cinematográfico das minhas pesquisas.

    Aos professores Betina Bischof, Míriam Gárate, Eduardo Morettin e Edu Teruki, que acompanharam a trajetória deste projeto, e compuseram a banca da qualificação ou da defesa, contribuindo com ideias, sugestões e apontamentos que resultaram neste trabalho.

    Às queridas Claudia Oliveira e Denise Sintani, pelas conversas esclarecedoras e pelas discussões que tanto contribuíram para a maturação das pesquisas, sobretudo nos anos que antecederam a finalização deste livro.

    À CAPES, pela concessão da bolsa de doutorado para a realização desta pesquisa, no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada (DTLLC), da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP).

    Enfim, a todos os amigos e familiares que participaram direta ou indiretamente deste projeto, compartilhando as minhas angústias e compreendendo as minhas ausências. Não citarei nomes, mas cada um se reconhecerá, de certa forma, nestas páginas.

    APRESENTAÇÃO

    Esta obra se propõe a analisar a filmografia de Joaquim Pedro de Andrade, embasando-se em três filmes que carregam a mineiridade como pano de fundo, sendo eles O Padre e a Moça (1965), seu primeiro longa-metragem, filmado em um vilarejo de Minas Gerais – São Gonçalo do Rio das Pedras; Os Inconfidentes (1972), seu terceiro longa, realizado nas ruas e em algumas edificações que constituem o patrimônio cultural e artístico de Ouro Preto; e O Aleijadinho (1978), seu sétimo curta-metragem, voltado para a reconstituição do curso criativo de Antônio Francisco Lisboa pelas cidades históricas mineiras. A seguir, serão estabelecidas relações entre esses filmes, de maneira a averiguar o motivo que os fez ser alguns dos pilares da obra de Joaquim Pedro, bem como serão abordados seus demais filmes, relacionando-os ao momento histórico no qual estão inseridos e contextualizando o cineasta em meio a sua geração, a partir do Cinema Novo. A questão da memória será esmiuçada para dar conta da problemática que envolve o mote da cinematografia aqui estudada e sua relação com a história nacional, sobretudo, ao enfocarmos a figura de Rodrigo Melo Franco de Andrade, em meio a toda a intelectualidade que o cercava, e acompanhou de perto o crescimento de seu filho, Joaquim Pedro. Nesse contexto, Minas Gerais aparecerá como palco dos acontecimentos de maneira direta e indireta, afirmando-se como berço cultural do país e fonte inesgotável de inspiração para o cineasta.

    Reconstruir o trajeto de Joaquim Pedro de Andrade no Cinema acaba sendo, portanto, também optar pela análise da história nacional a partir de um microcosmo revelado por um olhar muito particular sobre o Brasil. No entanto, apesar de ter sido uma obra sempre pautada pela discussão do país, tendo como respaldo seus mitos históricos, seus heróis e sua literatura, também mostrou extrema originalidade ao retratar os símbolos nacionais mais emblemáticos durante pouco mais de três décadas – contando com os anos de cineclube e diversos estudos – de dedicação à compreensão das contradições históricas de nossa formação, por meio de uma lente afetiva, que levou sua cinematografia a ser simbolicamente relevante em seu meio e em sua época.

    Ligado aos intelectuais que formaram, na década de 1930, um grupo muito influente na produção cultural brasileira – extremamente pautada pelas tradições e pela origem patriarcal da história do país –, é possível entrever em seus filmes uma ótica voltada para a problematização do que seria a identidade nacional. E esse é o desafio ao ser promovida uma discussão em torno de uma brasilidade capaz de expressar questões universais. Analisar, portanto, esses três filmes de Joaquim Pedro em relação a toda a sua obra reside não só na confirmação do importante papel da história e da literatura em sua produção, mas também em fazer um estudo que exponha o cerne de sua cinematografia. Em uma análise mais detalhada, chegaríamos não só à questão da mineiridade¹, mas ao caráter universal de constituição de sua produção que, ao mesmo tempo, reflete a formação da cultura nacional e traz aspectos concernentes ao Homem na sua totalidade atemporalmente não localizada.

    O filme O padre e a moça parece ser o precursor dessa tendência memorialista voltada a Minas Gerais. As paixões comedidas, a escrita drummondiana, o preconceito interiorano e o abandono das serras e dos mundos interiores contribuem para erigir essa atmosfera mítica que acompanha seus filmes. Mesmo quando não voltado diretamente a Minas, o cineasta faz um movimento em busca de suas raízes por meio da (re)descoberta do Brasil. O padre e a moça sintetiza, portanto, toda uma paixão envolta pela arte barroca de entrega e recusa, num movimento claramente contraditório. A negação de desejos, de crenças e de verdades, regerá todo o discurso desse longa-metragem. Minas, através da literatura drummondiana, afirma-se como palco propício de ideias revolucionárias de libertação em todos os sentidos. Nesse caso, pode-se conceber a moça como o motor que abala as convicções do homem amarrado pela batina – liberdade amorosa versus aprisionamento religioso? Batina e mulher disputam o amor do padre. Assim, emergem as Minas antigas, cheias de ideias comandadas por ilustres pensadores. É a mesma terra que consagrou sua literatura como máxima expressão a partir do século XVIII, com os árcades, servindo de modelo para as gerações futuras, como o centro irradiador da inteligência nacional². Esse espaço será esmiuçado em Os inconfidentes e também em O Aleijadinho; mas será visto, no longa de estreia, como um lugar recôndito amaldiçoado pelas velhas tradições. Aliás, as velhas tradições e crenças constituirão o maior inimigo desses heróis – padre, moça, alferes, artesão – que, apesar de estarem em uma época de decadência das riquezas mineiras – de pobreza pós-surto aurífero e diamantino –, poderiam ocupar qualquer lugar na história do país, já que a temática explorada por essa cinematografia pode reportar-se a qualquer tempo ou lugar.

    PREFÁCIO

    O livro de Meire Oliveira Silva, O Cinema-Poesia de Joaquim Pedro de Andrade: passos da paixão mineira, compõe o panorama da obra do cineasta centrado no aspecto que a autora chama de mineiridade. Certamente, uma filmografia complexa e ampla não pode ser reduzida a traço restrito, ainda mais adjetivo abstrato. Mas o livro desenvolve pontos diversos em sua filmografia, sem se preocupar em colocar a questão como tese. Quando chegamos ao final, parecemos ter cumprido algum tipo de percurso e desembarcado em porto seguro. Pois mineiro Joaquim Pedro o é (apesar de muito bem nascido no Rio de Janeiro), e disso nunca se duvidou. Seja pela forte influência paterna de Rodrigo Melo Franco de Andrade, que a obra investiga em minúcias, seja decorrente de sua sensibilidade como artista, em filmes centrais que a autora percorre de modo convincente. Talvez não seja chave-mestra para decifrar o enigma oculto, talvez esteja longe de esgotar um conjunto que certamente caminha em outras direções, mas a mineirice reluz em Joaquim Pedro e a vereda da figura paterna é bom caminho para nela adentrar. O poeta Manuel Bandeira afirmou com ironia, no curta inicial do cineasta, quando Gilberto Freyre criticou a expressão mestre de Apipucos: o fato é que mestre ele é e em Apipucos mora. Também é fato que mineiro Joaquim Pedro o é, apesar de lá não morar.

    Nessa direção, com recorte de análise estabelecido, o livro centra-se no que chama de filmes memorialísticos: O Padre e a Moça, Os Inconfidentes, os curtas O Aleijadinho e O Mestre de Apipucos e o Poeta do Castelo. Macunaíma circula em proximidade e é analisado a partir do recorte inicial. Pois, para entrar no que denomina cinematografia mineira, a autora faz uma mediação essencial que dá corpo à proposta. A análise toma densidade no eixo da memória, partindo do que denomina memorialística. É nas recordações mais antigas que o pensamento atualiza, em vagas, que o sentimento do mundo pode-se fazer sentir. Trata-se de levar a mineirice para os meandros das recordações e das impressões fortes da primeira infância, dos pensamentos e das sensações que assim atingem a experiência presente. E, nesse sentido, o livro percorre com atenção não só a figura paterna de Rodrigo de Andrade e sua clara influência na obra primeira de Joaquim Pedro, mas o momento seguinte, espécie de liberação a partir da morte do pai e da eclosão de Macunaíma. Ao permanecer durante décadas chefiando o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), Rodrigo de Andrade é figura central no contexto intelectual e cultural brasileiro da primeira metade do século XX, tendo proximidade pessoal com figuras fortes na obra de Joaquim Pedro, como Manuel Bandeira, Gilberto Freyre (com quem o cineasta inicia e termina sua carreira), Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e outros. A posição do pai na cultura brasileira certamente abre portas na obra de Joaquim Pedro e a autora movimenta algumas delas com agilidade. A percepção não é nova e já foi percorrida, mas o diferencial está em fazer passar no vão da memória a figura do pai, não somente em sua ligação com a elite da cultura brasileira no século XX, mas fincando-a nas sólidas camadas que ligam sua sensibilidade estética ao solo de Minas Gerais, levando assim, junto consigo, os afetos do filho e os traços de sua filmografia.

    O que fica de fora dessa equação? Pois de fora, continuando com Bandeira, algo sempre ficará. Fica de fora o dilema que é novo para o cinema, que é o novo do Cinema Novo, e que o pai de Joaquim, assim como a cultura brasileira da primeira metade do século passado, ainda não tem como um paredão à sua frente (ao menos, na intensidade que toma a partir dos anos 1960). Fica de fora o povo, a demanda com o encontro popular e os dilemas de consciência que esse encontro provoca em Joaquim Pedro e outros de sua geração. Meire parece estar ciente dessa impossibilidade. Caminha em direção à memorialística da mineirice como algo que bate no coração da obra, mas não a esgota. Fica fora Couro de Gato; fica fora Brasília: Contradições de uma Cidade Nova, com sua crítica pioneira e amarga ao urbanismo elitista do amigo do pai, Lúcio Costa (e também Niemeyer); fica fora o erotismo meio iconoclasta, cafajeste/rodrigueano, de Dalton Trevisan, em Guerra Conjugal (e também no preciso Vereda Tropical); fica fora Garrincha, Alegria do Povo e sua deslumbrante jornada, face a face, cinema direto na tomada, com o futebol cultura popular, paixão que Joaquim Pedro desconhecia e descobria. Glauber, sempre arguto, comenta em Revolução do Cinema Novo que, em Garrincha, o aristocrata ia ao povo. Era povo. Rompia com a legenda que se tratava de um esnobe. Sim, pois do grupo cinemanovista, Quincas é aquele que carrega nos ombros o peso da clássica e esnobe tradição da cultura brasileira, antes do choque, da trombada, com a murada da representação do outro popular. Talvez também fique de fora O Homem do Pau-Brasil e ainda parte de Macunaíma, apesar dos esforços da autora em trazê-lo para o campo de gravidade no qual estabelece seu ponto centrípeto. Mas o conjunto de obra pode parecer o de menos. A mola propulsora da análise localiza, nos momentos em que é acionada com mais felicidade, boas passagens pela alma e pelos filmes de Joaquim Pedro, que agora deverão ser relevadas.

    Deve-se igualmente realçar a boa formação em Letras de Meire Oliveira, o que permite um diálogo denso com as fontes literárias, que não são poucas, na obra de Andrade. O domínio do campo abre à autora longos desvios nessa direção, que, no final, parecem justificados, ampliando nosso conhecimento sobre referências, às vezes ocultas, no trabalho do cineasta. Pode-se acrescentar que ele mesmo é conhecido pelo método minucioso que lida com as fontes primárias que nutrem seus filmes. Assim, uma pesquisa exaustiva encontra campo propício para se expandir. Trata-se, em resumo, de obra inovadora, resultado de trabalho acadêmico que soube encontrar seu caminho para publicação em livro. A empreitada revela, ainda uma vez, um cineasta complexo e rigoroso que tem sua filmografia pouco explorada, apesar de ocupar posição-chave no cruzamento entre a vertente moderna da literatura e sociologia brasileiras e o jovem meio de expressão cinematográfico. Com Joaquim Pedro e sua geração, o cinema no Brasil parece finalmente conseguir sentir-se à vontade para ocupar a posição que lhe é devida no cenário nacional.

    Fernão Pessoa Ramos

    Professor titular do Departamento de Cinema do Instituto de Artes da UNICAMP

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO

    Toda história é remorso

    CAPÍTULO I

    Primeiros passos da paixão

    1.1 Linhagem paterna

    1.2 Memória afetivo-familiar

    Capítulo II

    Passos em preto e branco

    2.1 Trilhas drummondianas

    2.2 Seguindo um cinema-poesia

    Capítulo III

    Passos da Inconfidência

    3.1 Passeios entre 1789, na Inconfidência Mineira, até 1970, naditadura militar

    3.2 Entre as veredas da adaptação e do romanceiro

    CAPÍTULO IV

    Passos pela Arte Mineira

    4.1 À sombra do Aleijadinho

    4.2 Em busca do patrimônio nacional

    CONCLUSÃO

    Do sonho de eterno fica esse gosto acre

    REFERÊNCIAS

    ANEXOS

    Imagens

    INTRODUÇÃO

    Toda história é remorso

    "Só sei fazer cinema no Brasil

    Só sei falar de Brasil

    Só me interessa o Brasil"

    (Joaquim Pedro de Andrade)³

    Em entrevista a Sylvia Bahiense⁴, Joaquim Pedro de Andrade declarou que, para o artista, a técnica de recorrer constantemente a alegorias para escapar da censura poderia resultar em uma solução muitas vezes simplista, e o ideal seria fazer uma referência direta ao problema. Contudo, por vezes, a alegoria foi uma saída para sua proposta fílmica, fazendo com que o diretor construísse, então, diversas imagens que atravessariam as passagens do tempo e sobreviveriam a elas, confirmando a qualidade da sua arte. De fato, o cineasta sempre buscou a originalidade de sua cinematografia, apoiando-se nos pilares⁵ da história nacional, refazendo o percurso da memória da cultura brasileira, de certa forma, através de suas próprias memórias.

    Sempre preocupado em descrever o Brasil e suas dificuldades, investigando sua formação plena de contrastes, Joaquim Pedro procurou fugir das soluções fáceis, optando pela transfiguração da realidade, por meio de uma metodologia cinematográfica que atingisse as massas e as levasse a conjeturar sobre seu papel na coletividade. É preciso ressaltar que o cineasta produzia a média de um filme a cada dois anos – ou ainda mais tempo – e ele mesmo reconhecia seu processo extremamente conflituoso de criação, o que envolvia uma série de questões, entre elas, a revelação do cinema como uma técnica de desnudamento de suas próprias inquietações, sobretudo ao pensarmos nos filmes que optei por classificar aqui como memorialísticos, ou cinematografia mineira, a saber, O padre e a moça (1965), Os inconfidentes (1972) e O Aleijadinho (1978), e o diálogo que esses estabeleceram com os demais filmes, inclusive, os considerados mais polêmicos ou de temática mais aberta, como Macunaíma (1969). Tal paroxismo instiga a investigação: Isso fez de seu cinema apenas uma arte de contrastes ou uma proposta totalizante, capaz de englobar diversas questões às quais se empenhou em responder ao longo de sua carreira? Joaquim Pedro de Andrade foi capaz de fazer de seus filmes uma extensão de si mesmo. Não tinha como um distintivo fazer cinema político e nem política a partir do cinema, por isso suscitou inicialmente algumas críticas por parte daqueles que não compreendiam seu trabalho, sempre interessado em revelar qual Brasil habitava o país. Um dos exemplos de crítica mais ferrenha veio do CPC (Centro Popular de Cultura), na ocasião do lançamento de seu primeiro longa-metragem, O padre e a moça – ponto que também será esmiuçado na análise desse filme no capítulo seguinte. Em seu primeiro curta-metragem de ficção, Couro de Gato (1960), o cineasta lança um olhar apurado sobre o cotidiano carioca da época – inevitável microcosmo do país –, mostrando a rotina dos menores que viviam de apanhar gatos cujas peles eram utilizadas para a produção de tamborins, no período do carnaval. Mas o relato, que poderia ficar somente no documental, caminha em direção à beleza e ao imaginário da sondagem do ser humano e de suas agruras, em meio à miséria que não só sufoca, mas serve também de palco para a emersão de temas sensíveis, como a afeição despertada por um gato angorá em um menino pobre que sobrevivia do rapto e da venda desses animais. São justamente esses os aspectos que sempre chamaram a atenção no cinema de Joaquim Pedro, os exercícios de desvelamento das camadas mais perturbadoras da realidade, propalando as verdades egoístas e as ironias dolorosas da condição humana, quando parecia estar somente apontando e representando sutil e recatadamente a sociedade brasileira.

    A elegância discursiva e a perspicácia do diretor sempre caminharam nesse sentido a partir de O padre e a moça, intensificando-se em Macunaíma e explodindo em Guerra Conjugal (1975), num cinema que narrava as formas caóticas e aprisionadoras das relações humanas. Nessa obra, cada indivíduo aparece defendendo-se e tentando sobreviver: índio retirante que se vê em meio à selva urbana (Macunaíma), revolucionários presos e torturados em busca de si mesmos no ideal coletivo (Os inconfidentes), casais confinados aos espaços fechados – prisão ou quarto? –, como reclusão e distância do outro (Guerra Conjugal) –, ou religioso emparedado em suas convicções (O padre e a moça), trazendo a batina como um dos símbolos do alheamento em si mesmo – evasão ascética de recusa da humanidade.

    Assim, pode-se afirmar também que o cinema de Joaquim Pedro sempre tendeu a encalçar os passos da literatura – ficcional ou histórica –, e é justamente instigada pelo abarcamento dessa articulação feita entre as duas linguagens – o que seria, também, retroceder ao passado do rapaz apaixonado por Literatura, mas que ingressaria numa faculdade para estudar Física, encontrando ali um curioso cineclube que o lançaria à carreira de cineasta – que será descrita a trajetória desse carioca; com raízes profundamente mineiras e familiares, portanto, memorialísticas, a funcionar, de certa maneira, como um elemento abalizador de toda essa cinematografia voltada para a tentativa de investigação do país, a partir de seus homens e de sua história. Decifrar a imbricada teia de relações entre cinema, memória, pesquisa e identidade nacional é o desafio aqui proposto e isso implica em resvalarmos, por alguns momentos, em traços demasiadamente biográficos, na tentativa de abrangência do conjunto da obra do cineasta, porém é essencial destacar que todo esse trajeto levará ao encontro do cerne da cinematografia de Joaquim Pedro de Andrade que, neste estudo, aparecerá justamente como a busca pela preservação da memória nacional mais autêntica, flagrada pelas lentes de um cinema capaz de estabelecer relação entre o passado e o presente – coletivo, porque é retrato de uma nação, mas profundamente individual, já que parte das experiências pessoais de um brasileiro que se debruçou sobre os aspectos mais peculiares da cultura e da história de seu país.

    CAPÍTULO I

    Primeiros passos da paixão

    "O que é memória? Uma acumulação de

    experiências de vida, de imagens e de sons,

    que acabam construindo uma identidade.

    As relações de amor são fundamentais."

    (Alice de Andrade)

    1.1 Linhagem paterna

    De conhecida e admirada trajetória, Joaquim Pedro de Andrade, filho dos mineiros Graciema Melo Franco de Andrade⁷ e Rodrigo Melo Franco de Andrade⁸, foi um dos grandes nomes do cinema nacional. O cineasta nasceu em 25 de maio de 1932, no Rio de Janeiro, cidade onde também faleceu, a 10 de setembro de 1988, deixando uma obra vasta⁹ e de suma importância para a história do cinema nacional. Contrariando toda uma linhagem familiar voltada para as Letras e para as Ciências Humanas, ingressa no curso de graduação em Física, da Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro, em 1950. No entanto, o universo das artes o seduz inevitável e definitivamente, ao frequentar o Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), um cineclube instituído por Saulo Pereira de Mello e Mário Haroldo Martins. Seu professor de Mecânica na época, Plínio Süssekind da Rocha¹⁰, também exerceu uma forte influência no início de sua carreira cinematográfica. Sendo assim, não é equivocado afirmar que os primeiros passos de Joaquim Pedro no Cinema foram norteados curiosamente pelos caminhos da Física.

    Joaquim Pedro de Andrade e um grupo de colegas, futuros ícones do cinema brasileiro – Paulo César Saraceni, Marcos Farias, Leon Hirszman e Miguel Borges, além de seus próprios organizadores –, iniciaram suas atividades nesse cineclube, criado em 1953, e passaram a realizar diversos exercícios e experimentações em cinema, mergulhando¹¹ no conhecimento dessa técnica por meio da projeção de diversos filmes e da escrita de algumas impressões sobre a sétima arte que estava sendo realizada ali ou ao redor do mundo, numa espécie de jornal amador da faculdade. Além desses trabalhos, filmavam exaustivamente, incursionando em múltiplas linguagens, 16 mm, cinema mudo, ficção; tudo resultando geralmente em pequenos formatos. A equipe, na maioria das vezes, decidia não seguir adiante com tais projetos, deixando-os somente no copião, porque, segundo o próprio Joaquim Pedro, o resultado técnico era desastroso¹², apesar da paixão e da vontade que os impulsionavam, levando-os a se alternarem no desempenho de todos os papéis – de atores à produção técnica – nos filmes. O mendigo e a pintura, filme de três minutos, foi a única exceção a ser concluída em meio às tentativas cinematográficas nos tempos desse cineclube, mas o resultado ficou perdido¹³, não havendo registros desse experimento. Joaquim Pedro, à época, também chegou a atuar no filme Les Thibault, uma tentativa de adaptação do romance francês¹⁴, por Saulo Pereira de Mello, e desempenhou a função de assistente de direção em Caminhos (1957), curta-metragem de Paulo César Saraceni.

    No entanto, a primeira grande experiência profissional aconteceu como assistente de direção dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, no filme Rebelião em Vila Rica¹⁵ (1957), quando opta definitivamente pelo cinema, abandonando a física, apesar de ter começado a trabalhar nessa área, com o tio Mário Mesquita, no setor de Rádio Isótopos do Hospital dos Servidores, na Praça Mauá, e com Carlos Chagas, no Instituto de Biofísica¹⁶. O cineasta estreante foi chamado para o projeto dos irmãos Santos Pereira por ter muito conhecimento sobre Ouro Preto, pois já havia participado, durante um ano, como estagiário, junto à equipe de restauração da obra Os Passos da Paixão, de Aleijadinho, em Congonhas do Campo, por exigência de seu pai, Rodrigo¹⁷. Logo após, vieram diversos filmes, entre curtas, médias e longas-metragens.

    É notório que Joaquim Pedro de Andrade possui uma obra cinematográfica notoriamente imbricada com a literatura. Ele realmente partiu, muitas vezes, da inspiração literária para apreender verdadeiramente a linguagem do cinema. Talvez porque seu cinema conte com temáticas de raro apelo popular que ainda dispõem de poucos estudos significativos, dentre os demais realizados sobre o Cinema Novo, seus autores e produções. Ou ainda pelo fato de que Joaquim Pedro não tenha realizado adaptações cinematográficas diretas e imediatas das obras originais, aos moldes dos grandes clássicos do Cinema Nacional da época da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, como, por exemplo, o filme de Lima Barreto, O Cangaceiro (1953), cujos diálogos foram elaborados pela escritora Raquel de Queirós, sendo o primeiro longa-metragem brasileiro a ser premiado no Festival de Cinema de Cannes, e um grande sucesso de crítica e bilheteria. Joaquim Pedro cria sua própria versão dos fatos, deixando claro que sua arte é um outro trabalho, bem diverso do objeto que lhe serviu de inspiração, seja ele histórico, literário ou biográfico.

    Obviamente, não há nessa afirmação a intenção de julgar ou comparar épocas, movimentos ou autores do Cinema Brasileiro, o que vale ressaltar é a forma como Joaquim Pedro manejava suas técnicas de composição, sem limitar-se a fazer uma transposição fiel dos livros para as telas. Por ocasião do lançamento do filme Os Inconfidentes, Gilda de Mello e Souza escreveu um estudo homônimo, comentando essa característica do diretor: partir sempre de uma obra ou de um fato consagrado pela História para destacar, através do seu processo de criação, a própria constatação daquilo que era inicialmente o motivo do seu discurso, não se submetendo ao fato ou ao texto, mas questionando-os constantemente¹⁸. Luciana Corrêa de Araújo confirma esta posição ao descrever a criação cinematográfica de Joaquim Pedro, afirmando que nela há a dialética que sempre conduz o cineasta a avaliar sua obra¹⁹; o que vai ao encontro da justificativa do próprio diretor: você sente que um [filme] continua o discurso do outro, embora às vezes agrida os valores que aquele primeiro afirmou²⁰. Entretanto, a própria Gilda desferiu uma crítica pouco amistosa à produção de Joaquim, na ocasião o longa-metragem Os Inconfidentes, como uma espécie de apelo à imagem de certos inconfidentes em detrimento da caracterização de outros – no caso, a crítica ressalta certa inclinação reducionista e tendenciosa da personalidade de Tomás Antônio Gonzaga, levando o espectador a rejeitá-lo, ao passo que seria conduzido à exaltação da figura do Tiradentes.

    No entanto, a fim de entender como se dá essa inspiração curiosa, é necessário voltar às questões que motivaram a criação dessas obras e averiguar como elas ressoam nos filmes anteriormente mencionados. Um exemplo cabível pode partir de Carlos Drummond de Andrade, o primeiro escritor a ter uma obra transformada em longa-metragem por Joaquim Pedro. O escritor itabirano atribuiu a origem de seu poema O padre, a moça a uma história sobre certa Gruta do Padre, em Minas Gerais. Já o cineasta decidiu filmar o poema a partir da primeira impressão que lhe veio, logo no primeiro contato com esse texto: a imagem de uma pele muito branca de mulher tocando um tecido negro – a batina do padre.

    E tais imagens e cores contrastantes aparecerão como a grande força do filme. Todos os motivos que constituiriam a inspiração imediata para o cineasta parecem dar lugar a motivações muito menos explícitas e objetivas. É fundamental citar esse fato para retomar o próprio refinamento do diretor que já estava em formação no jovem estudante de física que, desde menino, viu-se em meio aos mais importantes intelectuais da época. Uma das primeiras personalidades a virar personagem do curta documental de estreia²¹, em 1959, foi Manuel Bandeira – padrinho de crisma e amigo de seu pai, um mineiro de Belo Horizonte, nascido no dia 17 de agosto de 1898. Investigar, portanto, a figura de Rodrigo Melo Franco constituirá o primeiro passo fundamental para a compreensão da arte de Joaquim Pedro de Andrade, na proposta deste estudo: relacionar a memória como catalisadora de um trabalho que é fruto de um valioso processo de pesquisa, apuro técnico e rigor de estilo, em meio aos raros e muitas vezes inexistentes incentivos governamentais – sobretudo no caso do cinema nacional, não só nos seus tempos heroicos, mas até hoje –, que nunca constituíram a base do aprofundamento histórico e do profícuo debate sobre o caráter ideológico da cultura brasileira, sempre presente em sua cinematografia.

    Porém, cabe ressaltar que essa memória está pautada pela presença da imagem paterna, e não é difícil compreender a relevância desse fato na trajetória de Joaquim Pedro, tomando por base a sua história familiar, de mineiros clássicos, profundamente imbricados na história nacional, desde as artes, a cultura e a política, trazendo em seu cerne toda uma tradição que contribuiu não só para a formação do país, mas também para o delineamento de sua constituição em muitos sentidos, seja por meio do núcleo dos intelectuais modernistas do início do século XX, ou através das grandes correntes de pensamento que intentaram desvendar o Brasil nesse mesmo período.

    Tais passos, essenciais para a compreensão de uma etapa histórica fundamental – de meados dos anos 1950 ao final dos anos 1970 –, não só para o cinema nacional, como para a própria história do país, serão reconstituídos por esse cinema estendendo-se até o final dos anos 1980, após decisiva mudança no curso político brasileiro, coincidente à época do falecimento do cineasta. Logo, talvez a partir dessa trajetória, confirme-se a definição de seu cinema como preservador das raízes nacionais e perpetuador de sua história, a exemplo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – órgãos ligados a seus familiares –, ou de outras instituições similares.

    De tal modo, o que se acompanhará, nesta obra, é a averiguação das inspirações de um cineasta que traz Minas Gerais como extensão e microcosmo de Brasil, e também como palco de suas memórias para reflexões a respeito da formação nacional. Essa produção encontra-se imbricada a uma série de questões sobre o que seria a constituição de seu ser mais completo, refletido e traduzido, ao longo de pouco mais de trinta anos, em uma produção que tomou sua vida até 1988, culminando num roteiro completamente definido para ser filmado em grande estilo a partir da obra – quase homônima de Gilberto Freyre – Casa grande, Senzala & Cia – e em outro trabalho sobre um autor mineiro respeitado na história de nossas letras – O defunto, sobre Pedro Nava. Seu cinema, dessa maneira, apresenta-se como uma extensão das correntes intelectuais que se dispuseram a explicar o país.

    Os costumes provincianos, a tradição e o patriarcado nacionais também submergem dessa cinematografia mineira; também tributo à origem familiar de intelectuais que se dispuseram a explanar a história e a formação do Brasil, na tentativa de atribuir-lhe uma identidade em contraste com sua constituição ainda tão recente. Nesse sentido, o cinema de Joaquim Pedro pode ser compreendido como uma continuidade das diversas correntes, surgidas desde José de Alencar e seu projeto de literatura formadora do país, passando pelos modernistas na década de 1920, ou pelos movimentos artísticos da década de 1960 – momento de maior profusão de ideias em reação à enorme censura que dominava o pensamento brasileiro – berço do Cinema Novo, do qual foi um dos maiores expoentes. Logo, seu cinema foi de contestação, a exemplo das demais realizações artísticas da época, revelando diversos problemas da sociedade brasileira e empenhando-se para ser uma contribuição capaz de derrubar as tendências repressoras que embotavam o pensamento nacional. Porém, sua nuance diferenciadora reside na maneira como se voltou para a história brasileira e aos elementos que selecionou para mapear o país, esboçando um quadro muito amplo da cultura nacional por meio de traços rigorosamente estudados, calculados e atavicamente ligados à sua formação pessoal e à memória.

    1.2 Memória afetivo-familiar

    Com apenas três anos, Rodrigo Melo Franco de Andrade fica órfão do pai, Rodrigo Bretas de Andrade²², professor da Faculdade de Direito de Minas Gerais, o que o aproxima da família do tio Afonso Arinos, escritor regionalista de grande relevância na literatura brasileira, com sua obra Pelo sertão²³. Assim, o menino alfabetizado em casa faz os primeiros estudos no Ginásio Mineiro, em Belo Horizonte. Já conhecendo os grandes clássicos literários, entre autores franceses, latinos e brasileiros aos 12 anos, muda-se definitivamente para a casa do tio, em Paris, e continua seus estudos secundários no Lycée Janson de Sailly. Homem intelectualizado, Afonso Arinos mantinha contato frequente com os grandes nomes da inteligência brasileira de visita à França, personalidades que transitavam entre a vida política e a literária. Muito cedo, Rodrigo já conhecia Alceu Amoroso Lima, Graça Aranha, Tobias Monteiro e era colega do arquiteto e artista plástico, Flávio de Carvalho. Mais tarde, em 1922, estabelece os primeiros contatos com os artistas modernistas, especialmente, com Mário de Andrade, grande pensador da cultura brasileira, ativo estudioso e preservador do folclore nacional²⁴. Já no Brasil, forma-se em Direito pela extinta Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, revezando a continuidade desses estudos entre as cidades de São Paulo e Belo Horizonte. E nesses deslocamentos constantes aproxima-se de outras personalidades importantes para a formação do pensamento nacional, tais como Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade,

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