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Pânico, Sintoma Psíquico e Doença Psicossomática
Pânico, Sintoma Psíquico e Doença Psicossomática
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Pânico, Sintoma Psíquico e Doença Psicossomática

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Um dos termos empregados por Freud em sua metapsicologia que mais foi adulterado foi o vocábulo Angst. Em português, foi vertido para "angústia", "ansiedade", "medo" e "temor", e seu emprego se deu de forma tal que, em alguns dos textos de Freud, pela leitura da versão brasileira, não se consegue saber o que ele tinha em mente quando empreendeu a sua elaboração. Mas Angst, em alemão, quer dizer medo, e Freud dedicou-se a descrever as suas diferentes apresentações clínicas com suas graves repercussões psicológicas.

A perspicácia clínica de Freud levou-o a constatar que o afeto do medo (Angst) assumia diferentes feições na vida de seus pacientes: apresentava-se numa forma aguda – os ataques de pânico –, numa forma crônica – a expectativa medrosa – e nas fobias. As pessoas revelavam diversas formas de temor, de múltiplas coisas e em várias situações. A partir de 1926, ele definiu que seria essa emoção o sinal usado pelo ego como forma de mobilizar as defesas neuróticas.

O afeto do medo, entretanto, não é um evento psíquico apenas. Ele causa profundas alterações fisiológicas e é, atualmente, reconhecido como a principal emoção desencadeadora do processo de estresse. Essas alterações orgânicas decorrentes do alerta fisiológico que caracteriza o estresse prolongado são, cada vez mais, relacionadas àquelas afecções denominadas doenças psicossomáticas.

Observa-se, assim, na prática clínica, uma relação direta entre os processos neuróticos e as doenças psicossomáticas, estando o profissional da saúde constantemente frente a quadros clínicos complexos que exigem uma abordagem multiprofissional entre diferentes áreas da saúde.
LanguagePortuguês
Release dateNov 19, 2018
ISBN9788547313722
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    Pânico, Sintoma Psíquico e Doença Psicossomática - Antenor Salzer Rodrigues

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO

    1

    MEDO, TEMOR E TERROR – RECORTES HISTÓRICOS

    2

    ANGST: VOCÁBULO PERDIDO

    2.1 O TERMO ANGST

    2.2 O MEDO NO CORPO 

    3

    MEDO E NEUROSE DE MEDO

    3.1 AS NEUROSES ATUAIS E A ANGST NA CLÍNICA 

    4

    AS VÁRIAS FACETAS DO MEDO E A SEGUNDA TEORIA DA ANGST

    4.1 O ESTRANHO 

    4.2 A SEGUNDA TEORIA DA ANGST

    5

    O MEDO E A FORMAÇÃO DE NOVOS SINTOMAS

    5.1 A INSTABILIDADE DAS NEUROSES 

    5.2 MEDO E SINTOMA 

    5.3 AS PSICOSES 1

    5.4 SOBRE O MECANISMO DA PARANOIA 

    6

    MEDO, DEFESA PSÍQUICA E TRANSTORNO DE ANSIEDADE

    6.1 OS ATAQUES DE PÂNICO 

    6.2 A EXPECTATIVA MEDROSA 

    6.3 ANGST E FOBIA 

    6.4 O PEQUENO HANS 

    6.5 O CASO CLÍNICO 

    6.6 O PEQUENO HANS e o HOMEM DOS LOBOS

    6.7 OS QUADROS FÓBICOS 

    7

    REPERCUSSÕES FISIOLÓGICAS DO MEDO

    7.1 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE A PSICOSSOMÁTICA 

    7.2 A DESCOBERTA DO ESTRESSE

    7.3 A FISIOLOGIA DO MEDO 

    7.4 FISIOPATOLOGIA DO ESTRESSE E NEUROSE 

    7.5 OS CIRCUITOS CEREBRAIS 

    7.6 OUTRA VIA 

    7.7 ESTRESSE, NEUROSE, ALOSTASIA E DOENÇA PSICOSSOMÁTICA 

    7.8 O CORTISOL 

    7.9 AS DOENÇAS PSICOSSOMÁTICAS 

    8

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    INTRODUÇÃO

    A relação mente-corpo, ou alma-corpo, constituída como enigma, impôs-se como um mistério a ser decifrado. Charada inquietante, sempre atraiu a atenção e a curiosidade dos homens. Ao longo das eras históricas, os indivíduos inquiriam-se sobre a vida e a morte, o movimento e as paixões. Por milênios, a ideia de uma alma imortal atrelada a um corpo mortal e perecível acalmou o alvoroço imposto pela incógnita da vida e da existência. As civilizações ergueram culturas fundadas nessa dicotomia e as religiões se formaram oferecendo resposta e consolo ao mistério insondável do universo e da finitude. Da Mesopotâmia ao Egito, de Grécia a Roma, sempre se buscou uma compreensão que embaçasse o segredo dos céus, que garantisse uma vida eterna à alma imortal e a boa saúde nessa existência passageira. A fé, a magia e a observação empírica construíam um cabedal de informações religiosas, filosóficas e médicas com vistas a preservar a existência, pacificar o espírito e garantir a boa permanência da alma no além.

    Na aurora dos tempos, as inúmeras culturas da Mesopotâmia conceberam uma cosmologia baseada no código moral e na ideia de pecado, na qual a doença seria uma maldição, uma punição dos deuses pela profanação, intencional ou inadvertida, da lei moral, que atingiria, inclusive, a família do proscrito. Os médicos mesopotâmicos dependiam da adivinhação para descobrirem a violação cometida e procederem à expiação do penitente, enquanto avaliavam os sintomas a fim de determinar a gravidade do caso. Para isso, adotavam a Hepatoscopia, o exame detalhado do fígado e outras entranhas de animais sacrificados, já que o fígado seria o órgão vital, por parecer-lhes realizar a coleta de sangue. Recitações, preces e sacrifícios eram os meios religiosos comuns de implorar aos deuses pela cura, e imagens do período mostram cerimônias de exorcismo dos espíritos maléficos responsáveis pela doença.

    Paralelamente, havia alguma percepção das causas naturais para os males do corpo e uma verdadeira farmacopeia de drogas era usada regularmente no tratamento das doenças. Os tabletes de cerâmica com escrita cuneiforme encontrados na região relatam doenças com seus sintomas, diagnóstico, prognóstico e tratamento. Outros tabletes listam drogas e seu uso apropriado. Centenas de plantas, minerais e substâncias animais eram usados como agentes terapêuticos (cf. LYONS; PETRUCELLI, 1987).

    Ainda entre as florescentes culturas da Antiguidade, a atitude em relação à morte é a chave de inúmeros aspectos da civilização egípcia: a vida seria uma preparação para a imortalidade da alma, em outra existência mais prazerosa. Para isso seria necessária a preservação do corpo material para a revivificação do morto. Assim, os embalsamadores removiam os órgãos internos dos cadáveres e deixavam apenas uma concha, embora os restos preservados fossem importantes para o despertar no além e a alma (Ka), uma espécie de duplo espiritual do corpo, permaneceria para sempre no corpo embalsamado. Os conteúdos do crânio eram removidos através das narinas com ganchos, e este, mais a cavidade abdominal, eram lavados com especiarias. O corpo era deixado de molho por 70 dias em bicarbonato de sódio com uma mistura de argila, sais de carbonato, sulfato e cloreto e depois cuidadosamente lavado. Finalmente, passavam-se resinas no cadáver e enrolavam-no em longas tiras de fino linho. Embalsamamentos mais baratos incluíam apenas alguns desses procedimentos e os pobres eram simplesmente enterrados na areia. Apesar de toda essa prática, os egípcios não desenvolveram uma medicina baseada na curiosidade anatômica e seus rituais eram executados com fins religiosos apenas, embora houvessem elaborado uma fisiologia rudimentar baseada em observações agrárias: consideravam o funcionamento anatômico e fisiológico do corpo como um sistema de canais (Metu) similar à rede de canais que criavam para o rio Nilo irrigar suas terras férteis. O coração seria o centro do sistema, e sua pulsação era conhecida, o ar chegava por meio do nariz e das orelhas, entrava nos canais e era levado ao coração e dali enviado a todas as partes do corpo. Esses sistemas de canais corporais – Metu – também carregavam sangue, urina, lágrimas, esperma e fezes. Em volta do ânus, os canais se reuniam numa espécie de sistema coletor e os conteúdos do reto poderiam ou entrar na rede do organismo ou se tornar a principal causa de doenças. Assim sendo, os conteúdos intestinais eram limpos regularmente por eméticos, purgantes e enemas e o ânus se tornou o alvo principal do tratamento médico. Essas purgações, com uso de eméticos e laxantes, eram realizadas todos os meses e eram também uma forma de purificação a fim de livrar o Metu de perigosos conteúdos intestinais. Além disso, os médicos egípcios conheciam algumas doenças resultantes da infecção pela água e alimentos, a catapora, a arteriosclerose e algumas febres (cf. LYONS; PETRUCELLI, 1987).

    Na Grécia Clássica, as inquietações referentes à indecifrável relação entre corpo e alma, vida e morte, saúde e doença também floresceram. Após um longo período de imersão na mitologia, começou a se formar no espírito grego uma abordagem mais naturalista dos fenômenos orgânicos. Pela primeira vez o corpo e suas mazelas passaram a ser abordados a partir de fenômenos naturais. Para aqueles interessados pela medicina, houve uma cisão radical com o desinteresse pela alma e inúmeras manifestações começaram a ser entendidas apenas do ponto de vista de uma primitiva explicação fisiológica.

    Holmes (2010) descreve a emergência do corpo físico na cultura grega como objeto de conhecimento a partir do século VI a. C. A criação do corpo fisiológico significou, por um lado, a ruptura com as tradições mitológicas que entendiam as doenças como enviadas por Zeus na maldita caixa que Pandora trouxe para o meio dos homens como vingança contra Prometeu que roubara o fogo sagrado para doá-lo à humanidade. Nesse contexto mitológico, as doenças seriam silenciosas porque Zeus lhes suprimira a voz e, assim, os homens não conheciam as suas causas e seus processos patológicos. A constituição do corpo físico passível de conhecimento e de estudos pelos médicos por volta do século VI a.C. impôs a dicotomia entre o corpo material e aquelas suspeitas da existência interior que constituía a alma, que passou a ser objeto de conhecimento e cuidado da religião e de algumas filosofias, como a de Platão, levando, assim, à cisão radical entre corpo e alma.

    Paralelamente às ações e explicações religiosas, como as prescritas no culto de Asclépios no seu santuário em Epidauros e as populares práticas da magia, duas escolas de medicina se formaram em torno do século V a.C., com métodos e visões diferentes que, entretanto, foram reunidas em um único corpo de conhecimento. Conforme Bonnard (1984), em algum momento entre os séculos III e I a.C., os sábios do Museu de Alexandria, no Egito, a famosa Biblioteca, se depararam com rolos de papiros que tratavam da saúde e da doença e discutiam a vida e a morte. Esses livros expressavam pensamentos e práticas médicas diversas e eram oriundos de lugares diferentes do mundo grego. Devida a afinidade do tema abordado, reuniram-nos e organizaram-nos, tentando homogeneizar a heterogeneidade. Deram, então, a todos esses escritos um nome comum e os acomodaram lado a lado nas estantes. Escolheram chamá-los de Coleção Hipocrática, em homenagem ao imortal luminar da medicina grega.

    Esse conjunto de livros que se conhece desde os Alexandrinos como Coleção Hipocrática é, na verdade, uma recolta de aproximadamente 70 tratados. Alguns deles foram escritos na segunda metade do século V ou início do século IV a.C. Determinados tratados que compõem a coleção, se não saíram da pena do próprio Hipócrates são frutos de seus colaboradores próximos. Outros, entretanto, foram escritos por médicos de tendências rivais à Escola de Cós, da qual Hipócrates é o representante mais notável, e ilustram o pensamento médico atribuído à Escola de Cnido. Segundo os eruditos, nessa coleção, apenas uns oito trabalhos são reconhecidos como sendo de autoria de Hipócrates ou de sua escola. São os tratados: Dos ares, das águas e dos lugares; Do prognóstico; Do regime nas doenças agudas; os livros I e III das Epidemias; Aforismos (as quatro primeiras seções); Das articulações e Das Fraturas. Além dessas, podem ser atribuídas à escola algumas obras de tendência ética: O juramento; A lei; O médico; O decoro e Os preceitos. Todos os seus escritos indicam observação, pesquisa e busca das causas das doenças em todos os fatores da vida do paciente. O médico precisava conhecer a fundo o doente, as possíveis causas de sua enfermidade, as implicações climáticas, as afecções passadas, a alimentação e os hábitos em geral. O método consagrado pelos médicos hipocráticos para atingir esses objetivos foi o atendimento à cabeceira do paciente. Cada enfermo era tratatado em sua individualidade a partir da observação das causas naturais presentes em sua enfermidade.

    Bonnard (1984) destaca que, por outro lado, a Escola de Cnido é a fonte da longeva Teoria dos Humores, que varou os séculos alimentando o pensamento médico e conduzindo a prática clínica em toda a Europa por mais de dois mil anos. Segundo os textos atribuídos aos cnidianos, a saúde no corpo seria o resultado do equilíbrio de quatro humores: sangue, fleuma, bílis e água. O sangue concentrava-se no coração; a fleuma, no cérebro; a bílis, no fígado e a água por todo o corpo. Se qualquer doença era resultante do desequilíbrio desses quatro humores, a terapêutica era o restabelecimento do equilíbrio com o emprego de drogas ou procedimentos que provocassem reações opostas ao elemento desequilibrado, tais como: banhos, higiene, dieta, sangria e purgativos.

    Nos séculos seguintes, esse aparente precioso cabedal de práticas médicas denominadas hipocráticas passou a ser a principal referência para aqueles que praticavam a arte da medicina. Sua influência durou muito mais que a existência do famoso Museu de Alexandria. Segundo Lesky (1976), até a metade do século XIX, mais de dois mil anos depois, o pensamento encontrado na Coleção hipocrática ainda conduzia os médicos no exercício de sua profissão. Wootton (2007), entretanto, ressalta que a medicina hipocrática da teoria dos humores e outras práticas foi uma medicina má, que impôs suplícios extremos aos pacientes e fracassos redundantes aos médicos. Segundo esse autor, apenas a partir de 1861, com a elaboração Teoria dos Germes por Pasteur é que a medicina começou a se fazer científica e a promover a saúde e a cura.

    Um dos maiores luminares da filosofia de todos os tempos, Aristóteles, no século IV a. C., interessou-se tanto pelo estudo da alma quanto do corpo, imbuído das explicações naturalistas de sua época, isto é, a atenção aos fenômenos físico-biológicos. Ele estava fundamentado na medicina helênica, sobretudo no hipocratismo e na filosofia jônica. Pigeaud (ARISTÓTELES, 1998, p. 33) destaca essa influência do pensamento médico na obra aristotélica e afirma que [...] é necessário notar aqui que o autor não é provavelmente um médico, em compensação ele conhece a medicina de seu tempo.

    Em sua vasta obra, Aristóteles (2006) interessou-se pelo estudo da alma e dedicou-lhe um de seus tratados mais importantes, De anima [Sobre a alma]. A respeito desse livro, Bittar (2003) destaca que o conceito de alma em Aristóteles deve ser entendido como um sistema biopsicológico. Nesse sentido, o interesse pelo objeto em questão atrai tanto ao psicólogo quanto ao físico. Na verdade, corpo e alma formariam uma unidade indivisível, dependendo um do outro. Bittar (2003, p. 545) afirma que: "em Aristóteles, a alma é threptiké (nutritiva), isthetiké (sensitiva), noetiké (noética), dentro da visão ascensional da scala naturae. Há no pensamento aristotélico uma visão que amalgama soma e psique numa unidade incindível e homogênea e embora corpo e alma tenham as suas características próprias, formam uma unidade. Até mesmo o pensar, que é próprio da alma, e todas as demais funções anímicas são resultantes dessa união, pois, a alma nada sofre ou faz sem o corpo, como, por exemplo, irritar-se, persistir, ter vontade e perceber em geral; por outro lado, parece ser próprio a ela particularmente o pensar" (ARISTÓTELES, 2006, p. 47).

    Essa união com o corpo se estende até mesmo às emoções, ou às afecções da alma que afetam o corpo. Essas afecções são determinações na matéria, isto é, no corpo e, por essa relação com o corpo, com a matéria, Aristóteles afirma que quem deveria estudar a alma seria aquele que estuda a natureza, isto é, o físico.

    Essa relação entre corpo e alma determinaria que tanto a alma afeta o corpo quanto este àquela. Assim, o movimento, termo usado por Aristóteles para se referir tanto a qualquer afecção da alma quanto do corpo, ora chega até a alma, como no caso da percepção sensível, quando parte de fora; ora parte da alma, como nas reminiscências, quando o movimento parte da alma até chegar aos movimentos e às estabilizações nos órgãos da percepção (ARISTÓTELES, 2006, p. 61). A alma é, pois, nutritiva, perceptiva, raciocinativa e de movimento. É por meio dela que se vive, percebe e raciocina. Ela é a uma certa determinação e forma, e não matéria.

    Inspirado pela medicina de seu tempo e sustentado pela tradição mitológica, Aristóteles (1998) escreveu o seu famoso "O homem de gênio e a melancolia, o problema XXX, 1", no qual trata mais extensamente dos fenômenos orgânicos e sua repercussão sobre o caráter. Longe de atribuir o que atualmente se considera o caráter à alma, Aristóteles acreditava que esses traços eram dados por uma bioquímica corporal rudimentar, embora ele estivesse longe de compreender esse conceito contemporâneo. Ele cria que o caráter do homem seria determinado por um de seus sucos corporais, a bile negra que, conforme o vinho, produziria um grande número de caracteres, ou seja, as reações humanas seriam resultantes de causas naturais. A diferença residiria no fato de que enquanto os efeitos do vinho sobre o caráter eram passageiros, os da bile eram permanentes. Conforme destaca Pigeaud (ARISTÓTELES, 1998, p. 13),

    No fundo, o melancólico é, em si próprio, uma multiplicidade de caracteres. A bile negra oferece à natureza melancólica todos os estados da embriaguez com todos os seus perigos, e por toda a vida.

    Ao que tudo indica, a concepção de que a bile negra era a determinante do caráter, envolvia não apenas aquelas manifestações de medo e tristeza, denominada melancolia, mas também todas as demais formas de loucura. Para Aristóteles, a mistura da bile negra [melano cholis] conteria vento e por isso os médicos atribuíam as doenças ventosas e as doenças hipocondríacas à bile negra. Esta poderia ser quente ou fria e sua ação variaria em reação à temperatura que apresentasse no momento. Se ela fosse excessiva no corpo, poderia produzir a apoplexia, torpor, terrores ou atimias. Se a bile negra estivesse muito quente, ela seria a causa dos estados de eutimia acompanhados de cantos, dos acessos de loucura e de erupções de úlceras e outros males orgânicos.

    Quando a bile negra fosse oriunda da alimentação apenas, ela não modificaria em nada o caráter, provocando apenas uma doença da bile negra. Mas quando ela se fizesse presente na natureza das pessoas, essas apresentariam espontaneamente caracteres de todos os tipos, de acordo com a mistura em cada indivíduo:

    Por exemplo, aqueles nos quais essa mistura se encontra abundante e fria são presos de torpor e da idiotia; aqueles que a têm abundante e quente são ameaçados pela loucura (manikoi) e dotados por natureza, inclinados ao amor, facilmente levados aos impulsos e aos desejos; alguns também são mais falantes do que o comum. Mas muitos, pela razão de que o calor se encontra próximo do lugar do pensamento, são tomados pela doença da loucura ou do entusiasmo. O que explica as Sibilas, os Bakis, e todos os que são inspirados, quando eles assim se tornam não por doença mas por mistura de sua natureza. (ARISTÓTELES, 1998, p. 93).

    Mas a bile negra poderia produzir também males no corpo. Chama a atenção o fato de, talvez pela primeira vez na história Ocidental, um filósofo destacasse aquilo que, milênios depois, seria classificado como doenças psicossomáticas, ou seja, manifestações orgânicas consequentes aos fatores emocionais. Aristóteles (1998, p. 81-83) recorreu às observações registradas pela mitologia e repetiu a tradição médica ao destacar que, em alguns casos, as exacerbações do caráter vinham acompanhadas de manifestações somáticas, como no caso das úlceras de Hércules e Lisandro, descritas como decorrente da presença da bílis negra:

    Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem, como contam, entre os relatos relativos aos heróis, os que são consagrados a Hércules? Com efeito, este último parece verdadeiramente se originar dessa natureza; o que explica também os males dos epiléticos, os antigos os chamaram, por sua causa, doença sagrada. O acesso de loucura dirigido contra seus filhos, como, antes de sua desaparição sobre o Eta, a erupção das úlceras, deixa isso manifesto. Porque são acidentes que atingem muitas pessoas, por causa da bile negra. Aconteceu também a Lisandro, o Espartano, que antes da sua morte esse tipo de úlceras se manifestou. Acrescentemos o que concerne a Ájax e Belerofonte; um tornou-se absolutamente louco, e o outro procurava lugares secretos [...]

    E muitos outros heróis, com toda a evidência, sofreram das mesmas afecções que eles. Entre os personagens mais recentes, Empédocles, Platão e Sócrates, e muitos outros entre as pessoas ilustres. É preciso acrescentar a maioria dos que se consagram à poesia. Pois em muitas pessoas desse tipo nascem males que têm sua origem em uma tal mistura no corpo; para os quais sua natureza manifestamente é inclinada às doenças.

    Assim, além da loucura e de diferentes manifestações de caráter, a bile produzia úlceras e outras mazelas, indicando uma etiologia comum e única para alterações no psiquismo e no corpo.

    Os textos médicos gregos produzidos pelas escolas de Cnido e Cós determinaram a prática médica durante os séculos seguintes em Roma e no mundo romano. Conforme Siraisi (1990), na Antiguidade tardia, o império romano não conheceu maior luminar na área médica do que Galeno, falecido por volta de 200 d.C., que foi um dos maiores cientistas da Antiguidade. Mesmo recorrendo ao estudo de animais mortos, fez contribuições importantes ao estudo da anatomia que duraram 14 séculos, até o trabalho anatômico de Vesalius. Seus escritos são considerados uma síntese volumosa de toda a herança médica grega além das suas próprias contribuições. Poucos indivíduos do período se dedicaram ao avanço da medicina nessa época e, quando o império romano do Ocidente ruiu por volta do século IV d.C., e a medicina hipocrática passou a ser de uso restrito de alguns médicos na Europa, no Oriente, os textos de medicina helenística continuaram a compor a formação e a prática dos médicos.

    Nos séculos iniciais da Idade Média, a arte médica era exercida por uma minoria de homens que não tinha formação profissional formal, mas que se apoiava nos escritos hipocráticos e na prática empírica para sustentar seu trabalho. Segundo Lyons e Petrucelli (1987), com o advento do Cristianismo, a ciência foi banida das aspirações humanas e alienada das práticas sociais e religiosas. No pensamento judaico, base da religião cristã, a doença vinha, de há muito, sendo equacionada em relação à punição aos pecados ou à desaprovação de Deus. A Primeira Igreja Católica se empenhou em encorajar essa crença popular, cuja única cura possível seria pela graça, uma intervenção imerecida e imprevisível de Deus. Essa interpretação da causa e da cura das doenças foi amplamente desenvolvida por Gregório de Tours, no século VI d.C.

    Durante esse período, São Benedito de Núrsia (480-554) estabeleceu o seu próprio mosteiro em Monte Cassino, na Itália, criando a Ordem dos Beneditinos. Intelectualmente, esses monges faziam a manutenção e cópias dos velhos manuscritos e abominavam a prática científica da medicina, já que a cura poderia vir apenas de Jesus, por meio de preces e da intervenção divina. Assim, São Benedito proibiu o estudo da medicina. O Mosteiro de Monte Cassino serviu de inspiração para a criação de diversos outros através da Europa, com as mesmas práticas religiosas e crenças, em que não houve lugar para o pensamento médico científico nos 500 anos seguintes.

    Assim, muitos procedimentos médicos já bem desenvolvidos, especialmente cirúrgicos, foram perdidos e a cauterização substituiu muitas técnicas operatórias. A farmacologia abandonou qualquer aspecto experimental e regrediu a um herbatismo simplificado característico de várias formas de medicina popular. Mas à medida que os Beneditinos e outras ordens expandiram-se pela Europa Ocidental, um jardim de ervas, uma biblioteca com escribas para fazer cópias e uma enfermaria eram os elementos essenciais de um monastério.

    Durante esse período totalmente dominado pela Igreja, a qualidade dos cuidados médicos tornou-se muito precária, embora esses profissionais, ou práticos, tenham se tornado parte importante do meio monástico medieval a ponto de muitos mosteiros terem divisões inteiras para os medici, muito do seu trabalho era voltado para técnicas não científicas e o saber médico misturou-se à religião e à magia e passou a adotar práticas tais como rezar, colocar as mãos, exorcismos, o uso de amuletos com inscrições sagradas, óleos bentos, relíquias dos santos e outros elementos sobrenaturais de superstição.

    Assim, as inquirições sobre a relação alma-corpo ficaram esquecidas ou eram ignoradas, uma vez que estava estabelecido que alma era divina e a vida seria uma passagem para a existência verdadeira na vida eterna, cheia de recompensas e benesses celestiais, de acordo com os feitos na realidade terrena. O corpo passou a ser visto como a sede dos males e pecados e não mereceu uma abordagem nobre pelos pensadores da Igreja.

    O século X, entretanto, testemunhou o alvorecer de um longo processo de mudanças tanto políticas quanto econômicas e sociais. Começaram a surgir as universidades e o estudo formal da medicina iniciou uma nova fase. Alguns autores médicos laicos deixaram tratados e livros e, entre esses, destacou-se a única médica medieval de que se tem notícia, Trotula de Salerno, na Itália. Embora sua biografia seja envolta em sombras, considera-se que ela viveu e escreveu seu livro Sobre as doenças das mulheres entre os séculos XI e XII, que entrou para a posteridade com o título The Trotulla (2002). No texto, evidencia-se a influência da medicina hipocrática e galênica e a autora afirma nas primeiras linhas de seu texto que a sua motivação foi atender às mulheres que, mais fracas do que os homens, ficavam muito afligidas durante o parto e com as muitas doenças que as molestavam, especialmente naqueles locais devotados aos trabalhos da natureza. É ela quem escreve:

    Além disso, as mulheres, devida a sua condição de fragilidade e por causa da vergonha e do embaraço, não se atrevem a revelar suas angústias sobre as doenças (que acontecem em região tão privada) a um médico. Assim, esse infortúnio, pelo qual se deve ter pena delas e, especialmente, a influência de algumas mulheres que comove o meu coração, impeliram-me a dar uma clara explicação sobre suas doenças e cuidar da saúde das mesmas [...] (TROTULA, 2002, p. 65).

    O livro de Trótula de Salerno é testemunha de que, a partir do século XI, um novo mundo começava a se descortinar com o aumento da população urbana, o crescimento das cidades e que o surgimento das universidades em diferentes países da Europa reacendeu o estudo da medicina, ainda inspirado por Hipócrates e Galeno, e livros sobre diferentes temas começam a ser publicados.

    Concomitantemente a essas mudanças, uma nova visão de mundo foi se formando lentamente nesses séculos de transição da Idade Média à Idade Moderna e um segundo movimento cosmológico surgiu durante os séculos XVI e XVII. Estabelecendo-se como uma construção intelectual antitética à visão grega. Registra-se essa nova cosmovisão na obra de Copérnico (1473-1543), Telésio (1508-1588) e Bruno (1548-1600). Assim, ao contrário dos antigos que viam o mundo como um animal com vida, o Universo passou a ser visto como uma máquina. Nesse momento, faz-se presente uma segunda analogia criada a partir de uma ideia que impregnara a consciência humana por muito tempo. Desde os séculos XII e XIII, o homem ocidental começou a produzir máquinas e engenhos. Mais tarde, vieram a tipografia e o relógio, este último o modelo de mecanismo por excelência. O imaginário do homem europeu ficou tão deslumbrado com a máquina que essas se espalharam pelos quatro cantos do continente. A partir de um determinado momento, tornou-se inevitável que uma analogia da máquina impregnasse o universo. Não somente a Terra passou a ser vista como uma máquina, mas também tudo aquilo que possuísse movimento próprio: o homem e os animais (cf. COLLINGWOOD, 1976).

    Nesse novo mundo de renovação, a medicina ganhou novo estímulo, mas ainda não estava pronta para abandonar os ensinamentos de Hipócrates e Galenos, ruptura que demoraria ainda três séculos. Nessa nova aurora científica, em 1628, veio a lume a grande obra de William Harvey intitulada Dos movimentos do coração e do sangue nos animais. Em suas observações sobre a circulação pode-se perceber claramente uma certa analogia entre o movimento do sangue no coração e nas veias com as teorias hidráulicas: há grande semelhança entre a concepção do movimento do coração e sua relação com as veias e artérias e as bombas hidráulicas e seus tubos e canos, marcando os primeiros albores do mecanicismo na medicina.

    Harvey determinara que o sangue chegava ao coração e por meio do ventrículo direito cumpria o circuito pulmonar e pelo ventrículo esquerdo era distribuído para todo o corpo. Mais tarde, ele demonstrou que o sangue se aproxima do coração por intermédio das veias e se afasta dele por meio das artérias. Essas descobertas, fundamentais para o avanço das ciências biológica e médica futuras, foram recebidas com escárnio e incredulidade por seus contemporâneos e foram alvos de debates infrutíferos por uns 20 anos, até que outro homem genial pudesse utilizá-la (cf. HALL, 1988).

    O homem que se debruçou sobre a obra de Harvey para aplicá-la foi René Descartes (1596-1650). Após a infância vivida entre as sebes de La Haye, na casa paterna, os anos no colégio jesuíta de La Fleche, muitas viagens e aventuras, com a maturidade, Descartes passou a dedicar sua vida à filosofia. Para fugir ao assédio dos amigos e encontrar a solidão necessária às suas reflexões, ele deixou a França e mudou-se para a Holanda. Em 1629, aos 33 anos de

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